Insurreição
Comunista de 1935
em
Natal e Rio Grande do Norte
Revolucionários
Potiguares em Memórias do Cárcere
Graciliano Ramos
Nosso
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de Produção
Miguel
Bezerra Morais
Artista, 08 anos de prisão
08
Alcides
Washington Guerra Carlindo
Revoredo Carlos
Wan der Linden Domicio Fernandes
Ephifânio
Guilhermino Ezequiel Fonseca
Filho Gastão
Correia da Costa João
Anastacio Bezerra João
Francisco Gregório João
Alves Rocha José
Macedo Lauro Cortês Lago
Leonila Felix
Mario Ribeiro de Paiva Miguel
Bezerra Morais Paulo Pinto Pereira
Ramiro Magalhães
Paiva Sebastião Felix
Aragão Vicente
Ribeiro da Silva
“Alguém
cochichou-me, atraiu-me a um canto; ouvi o nome
de Miguel Bezerra, um moço de casquete,
moreno e magro, que se pôs a falar com abundância.
No começo não entendi o que ele
dizia, recordo somente uma declaração
repetida:
Não somos comunistas.
Bem, eu os supunha vagabundos; surgiam-me dúvidas
agora.
Donde vêm os senhores?
Tinham embarcado no Rio Grande do Norte. Mas não
somos comunistas.
Perfeitamente.
Porque a insistência? Entrei a conversar
e logo duas surpresas me assaltaram Miguel parecia
alegre, as minhas palavras soavam-me aos ouvidos
como se fossem pronuncia das por outra pessoa.
Doidice rir em semelhante inferno. Ou então
me sensibilizara em demasia, os horrores que estivera
a desenvolver tinham existência fictícia.
Possivelmente o meu enjôo e a raiva do capitão
Mata provinham da mudança repentina: se
nos houvessem feito percorrer escalas, não
nos abalaríamos tanto. Lembro-me de ter
afirmado isto mentalmente. De qualquer modo nos
arranjaríamos, chegaríamos a um
porto. Assim falava no interior e dizia coisas
diferentes,: pausadas, maquinais; pareciam gravadas
num disco de vitrola. Deviam ter significação,
pois o diálogo se prolongou, mas não
me seria possível reproduzi-lo. A declaração
inicial voltava com freqüência:
Não somos comunistas.
Porque inocentar-se? A certeza de que estavam
ali os revoltosos de Natal acirrou-me a curiosidade,
embora não me arriscasse a pedir informações
ao desconhecido cauteloso.”
“Miguel Bezerra, o moço de casquete,
exibia inquietação constante no
rosto fino como um focinho de rato; “
“Afastava-me, acercava-me dos grupos, imiscuía-me
neles: esforçava-me por decifrar certas
particularidades de linguagem e em vão
buscara reter as fisionomias, sempre renovadas.
Não havia jeito de casar às figuras
incompletas os nomes que me chegavam aos ouvidos.
João Anastácio. Bem. Esse conseguiu
fixar-se. Anteriormente fundia-se com Miguel Bezerra,
mas agora se distanciava, e não sei como
baralhei pessoas tão diversas. Julgo que
me surgiram simultaneamente na atrapalhação
da chegada, falaram as duas ao mesmo tempo, quando
não. me era possível estabelecer
a distinção: olhos vivos, modos
inquietos, rosto fino como um focinho de rato;
pele macerada, feições imóveis
de múmia cabocla. Tipos inconfundíveis,
caracteres diferentes. Miguel Bezerra tinha um
modo escorregadio de negar, de justificar-se;
o outro afirmava, lento e seguro, como se batesse
em pregos: nunca vi homem tão afirmativo.
Essas duas figuras me ficaram gravadas profundamente
na lembrança, não por haverem exercido
qualquer influência na minha esquisita aventura,
mas porque avultaram no rebanho indistinto, durante
algumas horas. Depois se afastaram, se diluíram:
os hábitos de classe me aproximaram do
sujeito gordo e louro que fumava cachimbo, sentado
na rede, a sorrir, do rapaz estrábico,
de óculos. Importantes, um secretário
da Fazenda, outro secretário do Interior,
no governo revolucionário de Natal. Propriamente
não fora governo, fora doidice: nisto,
embrulhados, concordavam todos. “
Fiquei a esperá-lo, conversando com João
Anastácio e Miguel, os dois passageiros
que se haviam relacionado comigo. Os outros ainda
estavam nebulosos e distantes.
“Sentado na valise, encostado ao muro, distraía-me
seguindo os movimentos vagarosos e o capricho
do homenzinho gordo, envolto na fumaça
do cachimbo; as mais insignificantes pregas se
desfaziam, alisava-se cada peça com rigor.
Despojara-me voluntariamente, pela manhã,
de um objeto necessário: passaria a noite
mal. Onde estaria o sem-vergonha carrancudo que
me furtara cinco mil-réis e estivera uma
semana a esconder-se? Talvez não nos tornássemos
a ver. Éramos ali quarenta desordeiros,
quase todos espíritas e católicos,
segundo os papéis oficiais escritos à
tarde sobra do refugo humano acumulado no porão.
Dispersavam-nos, rompiam-se camaradagens alinhavadas
à pressa; a inquietação de
Miguel e a energia imóvel de João
Anastácio iriam morrer-me no espírito.
Novas caras surgiriam, novos hábitos e
não teríamos tempo de fixar-nos.”
“Se Miguel e João Anastácio
reaparecessem, seriam criaturas diferentes, procuraríamos
em vão qualquer coisa nas suas fisionomias
apagadas. Instintivamente buscávamos associar-nos;
a associação precária num
momento se desmancharia. E vivíamos a receber
choques na alma. Relações impostas,
desfeitas, mentes diversas agrupando-se, repelindo-se;
ajustamentos difíceis, súbitas explosões
de incompatibilidades. Nessa altura o excelente
Macedo me fez um gesto, cochichou oferta generosa,
imprevista: havia espaço ali para dois
corpos.
“Veio-me à lembrança a opinião
de Miguel Bezerra quando apareci a bordo: vendo
a roupa de casimira e o chapéu de palha,
julgara-me instrumento da polícia. As esfregações
ao pé da torneira haviam findado; a cortina
improvisada baixara, ocultando o vaso imundo;
as redes estavam dobradas e as figuras encostavam-se
às paredes, sentavam-se em trouxas; zumbiam
conversas. Nesse ponto chamaram-me do corredor.
Aproximei-me, vi junto às vergas de ferro
o tipo que me supusera habituado à prisão.
Sair.”
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