Insurreição
Comunista de 1935
em
Natal e Rio Grande do Norte
Revolucionários
Potiguares em Memórias do Cárcere
Graciliano Ramos
Nosso
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de Produção
Mario
Ribeiro de Paiva
Guarda-Civil, 06 anos e 06 meses
de prisão 20
Alcides
Washington Guerra Carlindo
Revoredo Carlos
Wan der Linden Domicio Fernandes
Ephifânio
Guilhermino Ezequiel Fonseca
Filho Gastão
Correia da Costa João
Anastacio Bezerra João
Francisco Gregório João
Alves Rocha José
Macedo Lauro Cortês Lago
Leonila Felix
Mario Ribeiro de Paiva Miguel
Bezerra Morais Paulo Pinto Pereira
Ramiro Magalhães
Paiva Sebastião Felix
Aragão Vicente
Ribeiro da Silva
“Uma
lengalenga infindável. Nunca nos revelou
outra habilidade, e suponho que o talento cômico
de Mário Paiva não ia além
disso.”
“Escrevi até à noite. Se houvesse
guardado aquelas páginas, com certeza acharia
nelas incongruências, erros, hiatos, repetições.
O meu desejo era retratar os circunstantes, mas,
além dos nomes, escassamente haverei gravado
fragmentos deles: os olhos azuis de José
Macedo, a contração facial de Lauro
Lago, a queimadura horrível de Gastão,
as duas cicatrizes de Epifânio Guilhermino,
o peito cabeludo e o rosário do beato José
Inácio, a calva de Mário Paiva,
os braços magros de Carlos Van der Linden,
o rosto negro de Maria Joana iluminado por um
sorriso muito branco.”
“Fiz uma distribuição avara,
contando os pingos, o que não me livrou
de uma perda avaliada em trinta por cento. Considerei
o dever de solidariedade e o prejuízo,
tomei um copo e fui trancar-me no camarote do
padeiro. Mas não me achei só: Mário
Paiva se sentiu de repente meu amigo íntimo
e, julgando imprudência abandonar-me em
semelhante situação, acompanhou-me.
Sem dúvida essa camaradagem me serviu muito:
se me arriscasse, debilitado, com o estômago
vazio, a ingerir tudo aquilo, provavelmente me
arrasaria. O ator se dispunha a não me
deixar a probabilidade mais ligeira de adoecer:
pelos modos, queria afrontar sozinho todas as
inconveniências; mas aí fiz valer
o meu direito de propriedade, decidi efetuar um
racionamento enérgico. Media atento as
duas porções, enganando-me algumas
vezes contra o hóspede. Na cama do padeiro,
arriado, Mário Paiva beijava o copo, bebericava
chuchurreando, embrenhava-se numa parolagem vaga;
pouco a pouco iam surgindo nela hiatos e repetições.
Na cadeira, o cotovelo sobre a mesa, distraía-me
a ouvi-lo sem perceber nada; via-lhe no rosto
as nuvens da embriaguez a acentuar-se; os olhos
iam ficando vítreos, as pálpebras
cerravam-se, erguiam-se, tornavam a descer. Aparecia-me
como um espelho: sentia-me também assim,
os bugalhos duros e inexpressivos, gotas de suor
a espalhar-se na testa, umedecendo a raiz dos
cabelos. Mantinha-me em silêncio; comportar-me-ia
daquele jeito se falasse, embrulharia assuntos,
divagaria à toa. Não me inclinava
a papaguear: a sombra interior obscurecia os fatos
e os conhecidos próximos: Mário
Paiva, inconsistente, perdia a significação.
Perto, a garrafa de aguardente. Duas porções
minguadas. Dentro em pouco iria mexer-me de novo,
deitar outras nos copos, maquinal. Mário
Paiva discorria, com abundância, naturalmente
presumia estar sendo agradável. Seria melhor
que ele se calasse, mas na verdade a tagarelice
não me perturbava a recordação;
nem me decidia a fazer a mínima tentativa
para compreendê-lo. Se ele me descobrisse
a inadvertência, conservar-me-ia distante,
indiferente; não me importava o juízo
de um estranho loquaz. Conjetura absurda:
Mário Paiva não estava em condições
de ter juízo e descobrir coisas. A voz
dele, um burburinho, desmaiava no som das ondas,
do vento; as ondas não quebravam no costado
velho da embarcação, o vento não
entrava pela vigia: eram ruídos longínquos
a embalar-me o trabalho, na minha sala de jantar.”
“Mário Paiva chegou silencioso, triste,
com ar doentio; nunca mais tornamos a ouvir a
flauta de seu Lobato. “
“Aquecendo-me ao sol, apoiado a uma estaca
da cerca, distingui várias pessoas conhecidas:
Aristóteles Moura; o português que
no Pavilhão dos Primários cantava
como galo; França, o padeirinho tuberculoso
de riso franzido; Van der Linden, Mário
Paiva, Manuel Leal, meus companheiros no porão
do Manaus”
Van der Linden e Mário Paiva também
cuspiam sangue. No porão do Manaus tinham
perfeita saúde. Mário Paiva me bebera
meia garrafa de aguardente e me chateara em demasia:
- "Lobato tinha uma flauta. A flauta era
do Lobato." Pobre do Van der Linden. Já
nesse tempo se isolava, cercado por antipatias
contagiosas, vagas censuras encobertas. A velha
blusa de mangas curtas exibia os braços
finos, as costelas, o peito débil. Outro
passageiro do Manaus, o chauffeur Domício
Fernandes, estava nas últimas: perdera
a fala e certamente não regressaria ao
nordeste.
“Diante dessa razão miserável,
a arrogância do padeiro murchou e desapareceu.
Fui acomodar-me, envolver uns restos de zanga
nos trapos imundos. Certamente havia ali pessoas
mais doentes que eu; Van der Linden e Mário
Paiva mereciam sem dúvida aquele desgraçado
conforto. Domício Fernandes estava moribundo,
não voltaria ao Rio Grande do Norte. Se
não fosse a bazófia de França,
não me custaria despojar-me em benefício
de qualquer deles. Na verdade me achava bem mal,
embora não vivesse a queixar-me nem avaliasse
os estragos, mas cada vez me arrasava mais. Só
pensar no refeitório me causava náusea,
as mucuranas e os mosquitos perseguiam-me, e agora,
na esteira suja, enrolado em trapos vermelhos
de vômitos sangrentos, pensava na invasão
dos bacilos, no rápido extermínio
do organismo indefeso.”
“Van der Linden e Mário Paiva, meus
companheiros no porão do Manaus, cuspiam
sangue, coitados, precisavam realmente sair.
Passei o dia remoendo idéias lúgubres.
Iam enterrar-me ali. Um pacote leve, alguns ossos
envoltos nas duas bandas de lençol tintas
de vômitos sangrentos. Embrulho imundo,
anônimo, em cima de uma tábua. Enfim
não pretendiam corrigir-nos: queriam apenas
matar-nos, dissera o guarda vesgo na primeira
noite, procurando esconder o braço pequeno,
atrofiado. - "Quem tem protetor fica lá
fora.”
"As redes nordestinas alargavam-se, enchiam-se
de miudezas, dobravam-se, convertiam-se em malas.
Distanciando-se dali, Van der Linden e Mário
Paiva recuperariam talvez a saúde.”
“Voltei à mesa, recebi uma xícara
enorme, cheia, bebi sôfrego. Pedi a segunda,
a terceira, a quarta. Apesar de ter o estômago
vazio, senti apenas uma ligeira turvação.
Alegre, distanciei-me da Colônia, desejei
conversar e de novo me surpreendeu a esquisita
sintaxe dos paranaenses: - "Nós disseram."
Essa estranha maneira de falar tinha-se esvaído
no burburinho do galpão. Van der Linden
e Mário Paiva tossiam.”
“Ignoro se nos retardamos no botequim à
espera da barca ou se ela chegou antes de nós.
Também não sei se conduzia presos
para a Colônia e se a nossa escolta foi
substituída. As quatro xícaras de
aguardente me impediam talvez observar direito.
Lembro-me de haver caminhado nas pranchas do embarcadouro,
saltado na lancha, descido ao porão. Acomodei-me
entre as figuras que se animavam na sombra, riam,
entregues a uma parolagem otimista, cambiando
notícias absurdas a respeito do nosso destino.
Os paranaenses regressariam logo a Curitiba.
Van der Linden e Mário Paiva seriam enviados
ao nordeste. “
“Esperei vê-lo acalmar-sé.
Enfim o miserável troço ia ser útil
e já não havia razão para
acabrunhar-me. Surgia uma escapatória,
respirei tranqüilo. Não achando resistência,
a cólera do vagabundo subiu. Espantava-me
ver alguém excitar-se daquele modo. Um
longo braço estirou-se para mim, da algaravia
atrapalhada veio a ameaça clara: - Peste!
Fingi desconhecer a ofensa; provavelmente o infeliz
bruto ia sossegar. Deu-se o contrário.
Mexeu-se rastejando, chegou-se a mim, disposto
a briga: - Peste! Ergui-me impaciente: - Meu amigo,
vamos deixar de valentia. Você hoje é
incapaz de fazer medo a uma criança. Está
arrasado, não agüenta um empurrão.
Para que barulho? Pensa que vou dormir nessa porcaria?
Tome conta dela. Há mais dois companheiros
com os pulmões estragados Arrumem-se vocês
três, que necessitam.
Van der Linden e Mário Paiva ensaiaram
recusa, depois abriram as redes, tiraram lençóis,
foram acomodar-se nas tábuas.
Por cima da cabeça de Herculano, eram visíveis
alguns vultos caídos também na terra
úmida, e, vinte centímetros acima
deles, Van der Linden, Mário Paiva, os
ombros curvos de Raimundo Campobelo.”
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