Insurreição
Comunista de 1935
em
Natal e Rio Grande do Norte
Revolucionários
Potiguares em Memórias do Cárcere
Graciliano Ramos
Nosso
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de Produção
Domicio
Fernandes
Motorista, Absolvido
Alcides
Washington Guerra Carlindo
Revoredo Carlos
Wan der Linden Domicio Fernandes
Ephifânio
Guilhermino Ezequiel Fonseca
Filho Gastão
Correia da Costa João
Anastacio Bezerra João
Francisco Gregório João
Alves Rocha José
Macedo Lauro Cortês Lago
Leonila Felix
Mario Ribeiro de Paiva Miguel
Bezerra Morais Paulo Pinto Pereira
Ramiro Magalhães
Paiva Sebastião Felix
Aragão Vicente
Ribeiro da Silva
“um
chauffeur doente, Domício Fernandes, que não
agüentaria aquela vida; “
“Paulo
Pinto, sifilítico, exibia umas canelas pretas
finas demais. Era ele que tinha uma bala na perna? Várias
vezes busquei examinar esse ponto; as informações
perdiam-se. Bem. Se não era ele, seria talvez
o chauffeur Domício Fernandes.
Um
dos dois. A verdade é que não cheguei
a distinguir Domício Fernandes de Paulo Pinto.
Confusão desarrazoada: juntos, notava-se que
diferiam bastante; vendo um deles, sempre me aconteceu
trocar-lhe o nome. “
“Outro
passageiro do Manaus, o chauffeur Domício Fernandes,
estava nas últimas: perdera a fala e certamente
não regressaria ao nordeste.
No
fim do galpão, sobre enormes tábuas, arrumavam-se
muitas pessoas. Devia ser ali, distante dos guardas,
que se faziam as reuniões clandestinas de que
recebi notícia pouco depois. O exame do ambiente
desviou-me as idéias negras, a certeza da morte
próxima. Via antigos companheiros finarem-se
e apegava-me a insensatas esperanças: não
me achava como eles. As misérias patentes - gemidos,
queixas, vozes dúbias, escarros vermelhos, dispnéia
- livravam-nos dos perigos incertos que em vão
queríamos figurar. - "Vêm morrer."
Experimentamos um choque. O pior é não
saber a gente como vai morrer. Ali no canto da sala
enorme, à direita, os nossos receios se limitavam:
desapareceríamos daquele jeito, iguais ao Neves,
a Domício Fernandes, ao negro ansioso que pedia
uma injeção de morfina. Essa perspectiva
de nenhum modo era desagradável; tínhamos
imaginado torturas, a chama do maçarico devastando
carnes, e o consumo lento, a inanição,
quase nos surgia como favor. Provavelmente uso subterfúgios,
justifico-me de não haver sentido compaixão
excessiva diante dos cadáveres que ainda se mexiam.
Os vivos preocupavam-me; ao desespero e ao desânimo
sucedia uma intensa curiosidade. Já não
me achava obtuso, conseguia refletir.”
“Van der Linden e Mário Paiva também
cuspiam sangue. No porão do Manaus tinham perfeita
saúde. Mário Paiva me bebera meia garrafa
de aguardente e me chateara em demasia: - "Lobato
tinha uma flauta. A flauta era do Lobato." Pobre
do Van der Linden. Já nesse tempo se isolava,
cercado por antipatias contagiosas, vagas censuras encobertas.
A velha blusa de mangas curtas exibia os braços
finos, as costelas, o peito débil. Outro passageiro
do Manaus, o chauffeur Domício Fernandes, estava
nas últimas: perdera a fala e certamente não
regressaria ao nordeste.”
“Diante
dessa razão miserável, a arrogância
do padeiro murchou e desapareceu. Fui acomodar-me, envolver
uns restos de zanga nos trapos imundos. Certamente havia
ali pessoas mais doentes que eu; Van der Linden e Mário
Paiva mereciam sem dúvida aquele desgraçado
conforto. Domício Fernandes estava moribundo,
não voltaria ao Rio Grande do Norte. Se não
fosse a bazófia de França, não
me custaria despojar-me em benefício de qualquer
deles. Na verdade me achava bem mal, embora não
vivesse a queixar-me nem avaliasse os estragos, mas
cada vez me arrasava mais. Só pensar no refeitório
me causava náusea, as mucuranas e os mosquitos
perseguiam-me, e agora, na esteira suja, enrolado em
trapos vermelhos de vômitos sangrentos, pensava
na invasão dos bacilos, no rápido extermínio
do organismo indefeso.”
“Domicio
Fernandes, o chauffeur que viajara comigo no porão
do Manaus, morreu à noite. De manhã, quando
se varria o alojamento e os presos arejavam no curral
de arame, o cadáver foi retirado, em cima de
uma tábua. Vi de longe o embrulho fúnebre;
não se percebia nenhuma parte do corpo; fora
envolto provavelmente no cobertor ou na rede. Iam enterrá-lo
assim.
Virei-me.
afastei-me daquilo. Apesar de viver numa espécie
de anestesia, abalei-me, senti a morte avizinhar-se
de mim. As dores no pé da barriga cresceram,
a tosse me deu a certeza de que os pulmões se
decompunham. Iriam levar-me qualquer dia enrolado no
lençol tinto, vermelho de hemoptises. Era coisa
prevista, imaginada sempre, mas o jeito de fazer o enterro,
a mudança de uma criatura humana em pacote jogado
fora sem quebra da rotina, expôs-me com horrível
clareza a insignificância das nossas vidas. Não
se indagava a causa da súbita desvalorização:
bastava a nossa presença ali para justificar
o lento assassínio. Lembrei-me de Leal, desesperado,
em busca de razões desnecessárias; talvez
estivesse próximo o fim dos tormentos dele. Uma
apresentação desviou-me um instante as
idéias negras; em seguida concorreu para fortalecê-las.
Um companheiro, a caminho das filas do trabalho, parou
junto de mim, acompanhado por um sujeito moreno.
- Você achou impossível o caso de Tiago,
não acreditou. Pois Tiago é este, ele
pode confirmar.
Grave,
a testa enrugada, escutava a narração
e movia a cabeça aprovando em silêncio.
Era aquilo. Se a bóia nojenta, os piolhos, os
mosquitos, decidissem matá-lo, Tiago sairia do
galpão como Domício Fernandes, em cima
de uma tábua, envolto num lençol.
A história incrível me importunou o dia
inteiro. De regresso ao alojamento, pus-me a remoê-la
contra vontade; meses atrás parecera-me invencionice,
e este juízo ainda persistia, apesar da confirmação
do protagonista: recusava-me a admitir que ele não
houvesse omitido qualquer coisa. É horrível
estarmos a remexer um fato incompreensível. A
minha prisão era justa, na opinião de
Leal. Pois não passara a vida inteira a encher-me
de letras radicais, a procurar sarna para me coçar?
Refletindo, achei a situação dele explicável
também. A dele e a do beata José Inácio,
que a bordo se zangara comigo, rosnara exibindo o rosário
de contas brancas e azuis no peito veloso: - "Quando
nós fizermos a nossa revolução,
ateus como o senhor serão fuzilados." Certamente
era ridículo perseguir essas criaturas. Mas podíamos
conjeturar vinganças, denúncias de inimigos
ocultos, a canalhice de um chefe empenhado em suprimir
eleitores da oposição. Tiago não
tinha inimigos no Brasil, não votava, ninguém
lhe ambicionava o emprego ordinário na frota
mercante inglesa. A absurda acusação de
um patife burlado fora suficiente para inutilizá-lo.
Era inacreditável. Não me fazia mossa
o ato injusto; afligia-me ser impossível imaginar
uma razão para ele. Disparate. Convencia-me disto
- e continuava a esforçar-me para achar qualquer
vantagem na imensa estupidez. Uma apenas me ocorreu,
já muito repetida. O governo se corrompera em
demasia; para agüentar-se precisava simular conjuras,
grandes perigos, salvar o país enchendo as cadeias.
Mas as criaturas suspeitas, e os homens comprometidos
na Escola de Aviação, no 3.° Regimento,
na revolução de Natal eram escassos, não
davam para justificar medidas de exceção
e arrocho, o temor público necessário
conversas.
Guardou silêncio um minuto, olhou-me de soslaio,
continuou: - Preciso agüentar-me aqui. Tão
cedo não me largam, fico de molho, sem dúvida.
Um dia volto para a minha terra e entro num bando, vou
matar soldado na guerrilha. É o que interessa,
as discussões não servem para nada. Estamos
no meio de espiões; fecho a boca e me livro deles.
O senhor não resiste um mês: com certeza
morre de fome. Eu posso viver aqui alguns anos, estou
acostumado a passar miséria. Depois eles me botam
na rua. Aqui eu não dou armas à polícia.
Lá fora, quando chegar o momento de pegar no
pau furado, entro na dança.
Agradeci interiormente esse desabafo, estranho em pessoa
que pouco antes se mostrara simulada e cautelosa. A
paciência enorme, a saúde firme de mandacaru
em tempo de seca e o plano realizável em futuro
remoto fizeram-me esquecer um instante as chagas medonhas
envoltas em algodão negro, a tosse dos tuberculosos,
o ferrão dos piolhos e dos mosquitos, o embrulho
fúnebre saído para o cemitério,
numa tábua. João Francisco não
teria o fim do pobre Domício Fernandes. Queria
viver e matar soldados.”
“O sono vinha, fugia. Modorras desagradáveis
partiam-se, e nesses intervalos abalavam-me os sentidos
meio dormentes os ruídos noturnos: papaguear
desconexo e delirante, revoluções de tripas,
gemidos, tosses. Avultavam nisso os arquejos do malandro.
Eram na verdade quase imperceptíveis, mas feriam-me
como pregos. Fazia muitas horas que tinham cessado;
capacitara-me disto. Ressurgiam, prolongavam-se, estertor
de moribundo teimoso. Porque não morria logo
aquela criatura? - Uma injeção de morfina,
pelo amor de Deus.
Era apenas um sussurro, quase indistinto. O pedido esmorecia,
inútil. Pela madrugada enxerguei vultos em redor
da tábua, curvados, em cochichos. Teriam vindo
enfermeiros? Estariam abreviando e entorpecendo a agonia
do homem? Retiraram-se. Os lamentos enfraqueceram ainda,
espaçados, sumiram-se.
Ao levantar-me, vi o cafuzo imóvel e sereno.
Afastei-me, com este horror aos mortos, de que não
me livro. Fomos aquecer-nos ao sol, no curral; as turmas
saíram para o trabalho. Quando voltei ao alojamento,
o cadáver tinha desaparecido. Saíra provavelmente
enrolado num cobertor, como Domício Fernandes.”
“Os que chegam aqui vêm morrer. Todos iguais."
Sem dúvida. O malandro cafuzo, Domício
Fernandes, revolucionário de Natal, assassinados,
iguais, sem dúvida. Todos iguais. Ia acabar-me
assim. Natural. Se pudesse entrar na fila, sentar-me
no refeitório ignóbil, ingerir pedaços
da bóia infame, talvez couse guisse estender
um pouco a vida hesitante. Impossível. Cubano
voltaria a agarrar-se comigo, em luta física,
para obrigar-me a comer. Os bons propósitos dele
se perderiam.
O
médico enterrou-me os olhos duros, o rosto cortante
cheio de sombras. Deu-me as costas e saiu resmungando:
- A culpa é desses cavalos que mandam para aqui
gente que sabe escrever.”
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