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Insurreição Comunista de 1935
em Natal e Rio Grande do Norte

Revolucionários Potiguares em Memórias do Cárcere
Graciliano Ramos

 

 

 

 

 

 

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Leonila Felix
Doméstica, Absolvida 05

 

Alcides Washington Guerra Carlindo Revoredo Carlos Wan der Linden Domicio Fernandes Ephifânio Guilhermino Ezequiel Fonseca Filho Gastão Correia da Costa João Anastacio Bezerra João Francisco Gregório João Alves Rocha José Macedo Lauro Cortês Lago Leonila Felix Mario Ribeiro de Paiva Miguel Bezerra Morais Paulo Pinto Pereira Ramiro Magalhães Paiva Sebastião Felix Aragão Vicente Ribeiro da Silva

“Duas mulheres achegaram-se, uma branca, nova, bonita, uma pequena cafuza de olhos espertos. Fiquei sabendo que a primeira se chamava Leonila e era casada com Epifânio Guilhermino.”

“Naquele momento o meu desejo era evitar a presença de Leonila e Maria Joana, livrar-me dos restos do vestuário pesado. Em tal situação, o recurso melhor seria pedir aos passageiros machos que formassem diante de mim uma espécie de cerca humana e, protegido por ela, despir-me, arranjar-me convenientemente. Devo ter feito isso, não me lembro. Sei que me achei metido no pijama. Dobrei cuidadosamente a calça e o paletó, arrumei-os sobre a maleta e conservei os meus troços à vista, pois eram tudo quanto eu possuía e ali dentro começavam a representar enorme valor.”

“As duas mulheres passavam, depois desapareciam além das cortinas estendidas ao fundo. Nenhuma comunicação conosco. O riso acolhedor de Maria Joana banhava-lhe o rosto negro, mas Leonila tinha uma sisudez fria de metal. Sertaneja, provavelmente, educara-se e vivera no horror ao homem. Ausência de palestras, de familiaridade. Escondia-se, levava a outra para a fornalha, iam assar, frigir-se, derreter-se na temperatura medonha. Coitadas. Entre nós distrair-se-iam, respirariam por baixo da escotilha, abreviariam as horas, esqueceriam as misérias e as privações; refrearíamos as nossas línguas, os operários deixariam de contar anedotas obscenas e insulsas. Penalizavam-me em excesso as pobres mulheres, atormentava-me ver Maria Joana, tão viva e tão fresca, estiolar-se no retiro e no mormaço. Comparado à furna delas, o camarote do padeiro significava luxo e ostentação. Afligia-me ocupá-lo, sentar-me em cadeira, firmar os cotovelos em mesa, quando a alguns passos homens acabrunhados vergavam sobre malotes e trouxas. Envergonhava-me. Talvez essa vergonha fosse um pretexto para esquivar-me, abandonar o lápis e o papel.

A verdade é que não me trancava muitas horas. Ordinariamente deixava a porta aberta, em minutos o cubículo se enchia. Como prosseguir na tarefa diante daqueles indiscretos que me vinham examinar a escrita por cima do ombro? Além de tudo era-me indispensável observar as pessoas, exibi-las com relativa fidelidade. Outra razão para vadiagem. Os meus desesperados esforços rendiam menos que nos primeiros dias. Tinham-me servido para alhear-me, esquecer as fisionomias decompostas no enjôo e na febre, a imundície, o calor. Representavam de fato um refúgio. Agora podia ocultar-me, dispensar aquele recurso. E não sossegava, tinha remorso por achar-me inútil. Erguia-me, chegava-me aos novos camaradas. Necessário conhecê-los bem. “

“Leonila e Maria Joana foram recolhidas à sala 4. Do terraço, no banho de sol, vi-as lá embaixo, num pátio, em companhia das outras mulheres. Eram dez ou doze, formavam círculo e faziam exercício atirando uma à outra, a desenferrujar os braços, uma bola de borracha. Todas as manhãs passavam ali uma hora. Na ida e na volta, demoravam-se às vezes no patamar, afastavam a lona que disfarçava a Praça Vermelha, detinham-se alguns minutos a conversar com os homens. Sinais de relance percebidos serviram-me para distinguir várias delas: os lábios vermelhos de Valentina, os cabelos grisalhos de Elisa Berger, os olhos verdes de Eneida. Olga Prestes era branca e serena. “

“O abafamento. Esta palavra circulou, batizando a morrinha coletiva e pensei no banzo dos negros, no mal-triste do gado. Era um nome apenas, mas com ele nos vinha um começo de explicação. A história desgraçada nos contaminava. Abafamento. Não me haviam falado nisso, a moléstia me pegava de surpresa. Conhecia-lhe os primeiros efeitos, via de longe viventes combalidos tentando livrar-se do singular enjôo. Lembrei-me do porão do Manaus, das trouxas vivas a arfar, a vomitar, na porcaria extrema. Não me abatera: uma semana de jejum me deixara lúcido, a mover-me aos solavancos entre as redes oscilantes, a redigir notas a lápis no camarote do padeiro. Agora não me seria possível andar ou escrever. Reminiscências da estúpida viagem me perseguiam: o cachimbo e a placidez de Macedo, o estrabismo de Lauro Lago, as mangas curtas de Van der Linden, a cicatriz de Epifânio Guilhermino, a careta medonha de Gastão, Leonila e Maria Joana a torrar num beliche improvisado. Evidentemente isso eram correlações a que pretendia segurar-me. Um novo porão anexava-se ao primeiro, sobrepunha-se a ele, enchia-se de minúcias temerosas, horríveis por não terem sido vistas por mim: Se aquelas misérias me passassem diante dos olhos, decerto não me impressionariam tanto; observadas por outro, lançadas no papel, não queriam fixar-se, prestavam-se a exageros e interpolações. O abafamento progredia, rápido; agora o conhecíamos e nos tornávamos por isso mais vulneráveis. A idéia de moscas tontas a desfalecer no inseticida, batendo as asas lânguidas, vinha-me com insistência. Algumas procuravam resistir à sonolência mortal. Em cima, no terraço, os militares excediam-se na ginástica.”

“Uma noite chegaram-nos gritos medonhos do Pavilhão dos Primários, informações confusas de vozes numerosas.

Aplicando o ouvido, percebemos que Olga Prestes e Elisa Berger iam ser entregues à Gestapo: àquela hora tentavam arrancá-las da sala 4. As mulheres resistiam, e perto os homens se desmandavam em terrível barulho. Tinham recebido aviso, e daí o furioso protesto, embora a polícia jurasse que haveria apenas mudança de prisão.

- Mudança de prisão para a Alemanha, bandidos. Frases incompletas erguiam-se no tumulto, suspenso às vezes com a transmissão de pormenores. Isso durou muito. Pancadas secas nos mostravam de longe homens fortes balançando varões de grades, tentando quebrar fechaduras. No dia seguinte vários cubículos estariam arrombados, imprestáveis algum tempo. Na Sala da Capela um rumor de cortiço zangado cresceu rápido, aumentou a algazarra. Apesar da manifestação ruidosa, inclinava-me a recusar a notícia: inadmissível. Sentado na cama, pensei com horror em campos de concentração, fornos crematórios, câmaras de gases. Iriam a semelhante miséria? A exaltação dominava os espíritos em redor de mim. Brados lamentosos, gestos desvairados, raiva impotente, desespero, rostos convulsos na indignação. Um pequeno tenente soluçava, em tremura espasmódica:

- Vão levar Olga Prestes.

A cabeça entre as mãos, os olhos fixos no mosaico, tentava desviar-me dali, fugir ao pesadelo. Acendia um cigarro, jogava-o fora, acendia outro. Esse exercício, único, enervava-me. Não seria possível fazer outra coisa? A brasa do cigarro a queimar-me os dedos convencia-me de que não me achava adormecido. Era uma vigília, sem dúvida, infelizmente diversa de outras aparecidas meses antes, quando a polinevrite me lançava à espreguiçadeira, na saleta do café. Idéias fúnebres iam, vinham, engrossavam-me o coração. Miseráveis. O campo sórdido, o opróbrio, a dor. E depois os fornos crematórios, as câmaras de gases. Outras figuras em roda permaneciam inertes como eu, cabisbaixas, olhos no chão Carlos Prestes, isolado, estaria assim, mas ignorava as ameaças à companheira. Chegar-lhe-ia aos ouvidos um som confuso do imenso clamor. De que se tratava? Pegaria um livro, mergulharia no estudo vagaroso e tenaz. A vozearia abafada não tinha para ele significação. E passaria meses sem poder inteirar-se da enorme desgraça. O tenente gemia, e as palavras invariáveis pareciam ter apagado as outras, escorregavam num soluço:
- Vão levar Olga Prestes.

Tarde, a matilha sugeriu um acordo: Olga e Elisa seriam acompanhadas por amigos, nenhum mal lhes fariam. Aceita a proposta, arrumaram a bagagem, partiram juntas a Campos da Paz Filho e Maria Wemeck. Ardil grosseiro. Apartaram-nos lá fora. Campos da Paz e Maria Werneck regressaram logo ao Pavilhão dos Primários. Olga Prestes e Elisa Berger nunca mais foram vistas. Soubemos depois que tinham sido assassinadas num campo de concentração na Alemanha.”

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