SUSP
Sistema Único de Segurança
Pública Estados
Arquitetura
institucional do SUSP
CAPÍTULO
8
Sistema
Penitenciário
1.
Introdução
Entre
1995 e 2003 o número de presos no Sistema
Penitenciário brasileiro dobrou. Passamos
de 148.760 para 302.495 homens e mulheres
privados da liberdade no país. No cálculo
de presos por 100.000 habitantes, necessário
para se dimensionar o tamanho da população
presa, comparando-se com o da população
livre, os índices revelam-se impressionantes:
passamos de 95,5 para 184,4 presos por
100.000 habitantes, ou seja, um crescimento
de 93%. E, o que é pior, a despeito de
um extraordinário esforço de construção
de inúmeras unidades prisionais pelo país
afora, com a geração de cerca de 100.000
novas vagas, continua faltando lugar para
mais de 100.000 presos.1 Se adicionarmos
ao cálculo o número de mandados de prisão
não cumpridos no país, número sobre o
qual nem a Polícia, nem a Justiça, conseguem
chegar a qualquer acordo, poder-se-ia
dizer que falta lugar para muitos outros
milhares de infratores. Outros 100.000?
200.000? 300.000? Ninguém sabe.
Como
se tudo isto não bastasse, a velocidade
de novos ingressos nas prisões do país
é absolutamente assustadora. No sistema
penitenciário do estado de São Paulo,
por exemplo, ingressam, em média, 1.000
novos presos a cada mês. Acentue-se que,
ao se falar de novos presos, já se está
considerando a diferença entre presos
que ingressam e presos que saem em liberdade.
Resultado: brutais níveis de superlotação.
Superlotação. Violência. Corrupção. Condições
de cumprimento de pena absolutamente desumanas
e degradantes. Homens e mulheres tratados
como animais. O sistema penitenciário
brasileiro vive uma crise profunda. Aqui
são sistematicamente ignoradas tanto a
legislação nacional, quanto a extensa
legislação internacional que trata da
questão penitenciária. E não nos esqueçamos:
o Brasil é signatário dessa legislação
internacional. Parece não haver qualquer
compromisso com a administração de um
sistema penitenciário respeitador das
leis.
A
crise do Sistema Penitenciário brasileiro
tem sido objeto constante de cobertura
da mídia, principalmente quando presos
se rebelam, freqüentemente fazendo reféns,
nas fugas e nos constantes episódios de
violência entre grupos de presos que controlam
unidades prisionais e disputam poder dentro
e fora dos muros. A corrupção que grassa
nas prisões do país e a dramática situação
de superlotação também povoam o noticiário
cotidiano. As poucas ações positivas,
que eventualmente geram resultados concretos
para a melhoria da gestão prisional, raramente
chegam ao conhecimento da sociedade. A
sensação mais comum é de que estamos diante
de uma situação absolutamente caótica,
principalmente se nos detivermos na análise
das finalidades da pena privativa de liberdade,
tal como preceituam as leis vigentes no
país.
De
acordo com a legislação brasileira e com
a legislação internacional, é obrigação
do Estado prover educação, saúde, trabalho
e assistência material básica que contribuam
para a futura reinserção social do preso.
É, portanto, inaceitável que ao custodiar
indivíduos que infringiram normas sociais,
o Estado se revele um infrator das leis,
violando toda sorte de direitos, além
de não agir com rigor no combate à violência
e à corrupção. Ademais, o descalabro das
condições de aprisionamento dá lugar à
busca de estratégias de sobrevivência,
por parte da população presa, que acabam
por perpetuar e fortalecer a socialização
de valores de desrespeito à vida, de ausência
de responsabilidade e autonomia e de descrença
na autoridade do Estado e da Lei.
Alterar
o quadro em que se encontra o Sistema
Penitenciário brasileiro requer ações
governamentais firmes que garantam a implementação
das leis, principalmente da Lei de Execução
Penal/LEP (Lei Federal 7.210/1984) e dos
regulamentos estaduais existentes. Requer,
obviamente, a proposição de uma política
penitenciária que estabeleça os instrumentos
que possam efetivar as disposições legais.
O trabalho aqui apresentado busca discutir
estratégias que apontem para possibilidades
concretas de mudança, levando-se em conta
as propostas para o Sistema Penitenciário
inseridas no Plano Nacional de Segurança
Pública proposto pelo candidato Luiz Inácio
Lula da Silva durante sua campanha.
O
Capítulo 2 traça um rápido panorama do
Sistema Penitenciário brasileiro em números.
Primeiramente, a análise de algumas séries
históricas dá bem a noção da gravidade
do problema que enfrentamos – acentuado
crescimento da população prisional e do
déficit de vagas. Em seguida, apresentamos
um sumário dos dados encaminhados à coordenação
deste trabalho pelos diferentes estados
brasileiros. A análise detalhada desse
material, acompanhada dos quadros e tabelas
correspondentes, encontra-se no Anexo
1. Para o estabelecimento de uma “política
penitenciária” é imprescindível que se
tenha clareza acerca das bases conceituais
que fundamentam este empreendimento. É
necessário, portanto, esclarecer, diante
das proposições legais e dentro da construção
de um Estado Democrático de Direito, como
se contextualiza a pena privativa da liberdade
e as suas alternativas na sociedade brasileira,
face aos altos índices de criminalidade
verificados. É preciso indicar, mesmo
que brevemente, em que contexto se gesta
a exclusão social de parcela significativa
da população brasileira, se agudizam os
níveis de desigualdade e se produz solo
fértil para o crescimento brutal da criminalidade
violenta. Tal é a discussão pretendida
no Capítulo 3.
O
Capítulo 4 é dedicado ao tema da Gestão
Prisional em seus múltiplos aspectos,
analisando o cotidiano da vida intramuros
e buscando estratégias de superação dos
principais problemas com que se defrontam
presos e seus custodiadores no gerenciamento
da privação da liberdade. Discutiremos
em que medida a prisão, enquanto instituição
executora das penas, adquire feições muito
especiais quanto às formas como gerencia
o cotidiano de milhares de pessoas confinadas.
Inúmeras são as situações diárias a serem
administradas, em meio das quais se entrecruzam
exigências legais, de segurança individual
e coletiva, de satisfação de necessidades
básicas objetivas e subjetivas, considerando-se,
ainda, que existem diferentes regimes
de cumprimento de penas (regimes fechado,
semi-aberto e aberto). Problemas corriqueiros
podem, rapidamente, dar lugar a episódios
de insurgência e violência. Tratase, pois,
de uma gestão delicada, em que os custodiadores
têm um papel muito importante, já que
a ausência da liberdade também retira
dos presos grande parte de sua autonomia.
O
conhecimento da cultura prisional revela
que a convivência dos presos entre si
e com seus custodiadores apresenta muitas
peculiaridades. Também as relações entre
os gestores da segurança penitenciária
e os da assistência aos presos são objeto
de permanentes dificuldades. Médicos,
dentistas, enfermeiros, assistentes sociais,
psicólogos e professores aparentemente
se colocam como os gestores da assistência,
enquanto que os agentes de segurança se
vêm como responsáveis pela segurança individual
e coletiva. Tal dicotomia acaba sinalizando
responsabilidades distintas, enganosas,
como se um grupo de custodiadores trabalhasse
“pró preso”, enquanto outro atuasse “contra
o preso”. Na verdade, todos trabalham
na custódia de presos, com inserções diferenciadas
de acordo com suas atribuições profissionais,
o que possibilita operacionalizar a execução
da pena.
O
Capítulo 5 discute as formas de controle
interno e externo do sistema penitenciário
e traz propostas muito concretas de aperfeiçoamento
dos órgãos existentes e da criação de
novos mecanismos de controle. A despeito
de a mídia ocupar-se do sistema penitenciário
no momento do escândalo, das rebeliões,
dos episódios vergonhosos de corrupção
e das fugas, o cotidiano da vida nas prisões
padece de brutal invisibilidade e poucos
são os mecanismos instituídos que efetivamente
funcionam no sentido de revelar como se
processa o confinamento dos indivíduos
presos. Carecemos de instrumentos que
dêem visibilidade ao que ocorre no interior
das prisões: a Lei de Execução Penal propõe
órgãos fiscalizadores, mas nem todos têm
a eficácia necessária, seja por que nos
acostumamos a naturalizar que “a prisão
sempre foi assim”, ou mesmo por que não
existe por parte da sociedade a proposição
firme de exercer o controle sobre a ação
do Estado na custódia de presos. Por isso
mesmo, a criação de instituições de controle
interno e externo do sistema prisional,
que possam realizar o contínuo monitoramento
da vida intra-muros, é fundamental se
desejamos alterar uma cultura de violência
institucional e passar para uma cultura
de proteção aos direitos humanos.
Em
busca desta nova cultura, a capacitação
continuada dos recursos humanos que desempenham
a custódia é fundamental, sendo tema para
o Capítulo 6 que versa sobre Capacitação
de Pessoal no sistema penitenciário. Vale
lembrar que não temos, no Brasil, formação
profissional anterior ao acesso ao emprego
dos agentes do Estado envolvidos com a
custódia, principalmente dos agentes de
segurança penitenciária. Estes são recrutados
por mecanismos formais que, na verdade,
não logram avaliar conhecimentos ou formação
ético-política voltados ao desempenhodas
funções de segurança. Tudo isto porque
não temos, ainda, o cargo de agente de
segurança penitenciária ocupado por um
profissional. O que existe é o detentor
de um ofício e a proposta aqui apresentada
é a da profissionalização para a área
de segurança penitenciária, a ser desenvolvida
como uma política pública de educação.
Ao lado disto, discutiremos a necessidade
da capacitação continuada a ser realizada
por Escolas de Formação Penitenciária
nos estados, tanto para agentes, quanto
para os demais profissionais da assistência.
O
Capítulo 7 trata de um tema muito delicado:
a gestão de recursos humanos no âmbito
do sistema penitenciário. Hoje, a maior
parte dos sistemas penitenciários estaduais
não dispõem de planos de cargos e salários.
Tal situação produz graves conseqüências
no gerenciamento de pessoal. Além desta
falta de definição quanto à projeção do
futuro funcional dos servidores, acrescem
as más condições de trabalho, vivenciadas
em ambiente em que são constantes as situações
de emergência e risco. Carecemos de uma
política de saúde do trabalhador, instrumento
usual hoje em toda empresa de médio e
grande porte.Propostas nessas áreas fazem
parte do Capítulo 7.
Alguns
temas muito esquecidos e carentes de propostas
adequadas também serão objeto de discussão
do trabalho aqui apresentado: a situação
da mulher presa, e de seus filhos em idade
de freqüência a creches, e a questão dos
egressos diante dos dilemas da reinserção
social. O Capítulo 8 tratará desses temas.
Como a população prisional masculina é
significativamente mais numerosa em todos
os países do mundo, as prisões são basicamente
concebidas para homens e suas regras e
regulamentos definidos por homens. A especificidade
da mulher presa é freqüentemente ignorada.
As questões de gênero, quando se discute
sistemas penitenciários, deve ser tema
central das preocupações de quem administra
a privação da liberdade. A questão do
egresso penitenciário também mereceu atenção
neste trabalho. Raros são os programas
que objetivam apoiar o indivíduo que reencontra
a liberdade, embora a legislação seja
muito clara a respeito das obrigações
do Estado nesta área. A revisão de algumas
estratégias hoje existentes e propostas
no sentido de criar mecanismos de suporte
ao egresso penitenciário fazem parte do
Capítulo 8.
No
Capítulo 9 será discutida a questão da
terceirização de unidades prisionais e
da privatização. Foram realizadas visitas
aos estados do Paraná e Ceará que adotam
o sistema que intitulam de “terceirização”,
mas que não passa de completa privatização
dos diferentes serviços, inclusive daquele
de segurança. Uma análise da realidade
brasileira nessa área e uma breve discussão
mais geral do tema fazem parte desse item.
Nas conclusões serão revistas, de forma
resumida, as propostas contidas ao longo
do documento, com a preocupação de enfatizar
a necessidade ou não de mudanças legislativas
para que se viabilizem as referidas propostas.
Dedicaremos, também, espaço ao tema das
alternativas à pena de prisão no contexto
brasileiro e à necessidade de mudanças
legislativas emergenciais que permitam
maior utilização das alternativas como
uma das formas decontribuir para a superação
da crise do sistema penitenciário no país.
O Brasil definitivamente não pode se dar
ao luxo de encarcerar o infrator que não
é violento e perigoso. Nunca é demais
lembrar que um preso no país custa, por
mês, dezessete vezes mais do que um aluno
em programas de alfabetização. Se levarmos
em conta que o Brasil convive com a cifra
infamante de um milhão e quinhentos mil
adolescentes analfabetos, não é difícil
imaginar que precisamos, com urgência,
reservar as prisões para o infrator que
se constitui em risco concreto à segurança
da população.
Nesse
sentido, discutiremos, a necessidade de
o governo federal desenvolver ampla campanha
de esclarecimento da população quanto
à ineficácia da pena de prisão enquanto
instrumento de controle social. Está mais
do que na hora de se admitir, sem qualquer
hipocrisia, que a pena de prisão serve
para castigar e que a tão proclamada “ressocialização”
do infrator não passa de uma impostura,
ou, como diz Maria Lucia Karan2 de propaganda
enganosa de um sistema de justiça
criminal que foi idealizado para punir
o pobre, nada mais do que isso.
O
presente trabalho vem acompanhado de três
Anexos. O Anexo 1 é constituído por gráficos
e tabelas que reúnem as informações encaminhadas
pelos estados, em resposta ao questionário
elaborado pela coordenação deste trabalho.
Ao todo, 27 estados responderam o questionário,
com exceção de Roraima e Paraíba. São
61 gráficos e 78 tabelas com informações
das mais variadas, desde temas relativos
à gestão prisional, até dados sobre o
perfil dos presos. Integra o Anexo 1 a
análise de todo este material que, na
verdade, mapeia a realidade do sistema
penitenciário brasileiro nos dias de hoje.
Vale ressaltar a importância do Anexo
1 na medida em que se conhece muito pouco
do que vai pelas prisões do país – os
estados não produzem dados para consulta
e, em geral, não estão informatizados.
O
Anexo 2 é uma avaliação de documentos
enviados pelos sistemas penitenciários,
a nosso pedido: leis, decretos, portarias,
editais de concursos, etc. 14 estados
nos encaminharam algum tipo de documentação
e consideramos importante reunir e analisar
esse material, produzido pelos diferentes
estados, de forma a conhecer um pouco
como se dá a gestão penitenciária pelo
Brasil afora. Com isso constituiu-se um
banco de dados que pode ser extremamente
útil para consulta por estados que buscam
orientação para elaborar documentos semelhantes.
Há referências a modelos de regulamentos
penitenciários, a portarias que disciplinam
a revista de visitantes, etc.
O
Anexo 3 é a proposta de criação de uma
divisão de saúde no DEPEN, considerando
que, muito em breve, haverá unidades prisionais
federais.
Finalmente,
é importante mencionar que, embora o texto
final deste trabalho seja de inteira responsabilidade
da equipe que o produziu, alguns especialistas
tiveram importante participação em sua
elaboração. Ressaltem-se as seguintes
contribuições:
1.
Na área da saúde, uma equipe da Superintendência
de Saúde da Secretaria de Administração
Penitenciária do Estado do Rio de Janeiro
desenvolveu o Anexo 3, do qual foram retiradas
recomendações constantes dos itens 4.4.2.
e 7.3. Para a relação dos profissionais
que contribuíram para a elaboração do
documento conferir Anexo 3.
2.
O item 4.4.3. incorpora sugestões de Julio
Ribeiro.
3.
O texto que Olga Spinoza elaborou sobre
a questão da mulher presa encontra-se
reproduzido no item 8.1. e 8.1.1.
4.
“A questão das creches” é um resumo do
texto que Claudia Stella preparou a pedido
da coordenação deste trabalho.
5.
O item 8.2. é, também, um resumo do texto
que Milton Julio de Carvalho Filho redigiu
a nosso pedido.
6.
O capítulo 9, Privatização no sistema
penitenciário, incorpora o texto que Augusto
Thompson elaborou, também a nosso pedido.
2.
Panorama Geral do Sistema Penitenciário
Brasileiro em Números
2.1.
A Evolução da População Carcerária
Existem
dados razoavelmente confiáveis para o
crescimento da população carcerária no
Brasil entre os anos de 1995 e 2003, quando
o número de presos por 100.000 habitantes
cresceu 84%, como demonstra o Gráfico
1, abaixo. Considerando-se o crescimento
da população carcerária em outras partes
do mundo, percebe-se que tal número é
bastante acentuado. Ao longo dos anos
1990 o crescimento médio do número de
presos variou entre 20 e 40% nos mais
diversos países. No entanto, alguns países
das Américas tiveram crescimento muito
maior: Estados Unidos, México, Argentina,
Brasil e Colômbia, viram sua população
carcerária crescer entre 60 e 85%. 1 De
maneira geral, os especialistas sustentam
que o crescimento da população prisional
ao redor do mundo não guarda qualquer
relação com as taxas de criminalidade.
Ou seja, o número de presos não cresceu
porque havia mais infratores cometendo
crimes. As taxas de encarceramento por
100.000 habitantes aumentaram, basicamente,
porque os diferentes países adotaram legislações
mais duras em dois momentos: na condenação
(impondo penas mais longas) e na liberação
de presos (limitando os benefícios que
abreviavam as penas). Voltaremos a esse
assunto no Capítulo 9.
Gráfico
1. Crescimento da população carcerária
no Brasil - 1995 a 2003
Fonte:
Para o Rio de Janeiro: DESIPE; para São
Paulo: Sistema Administração Penitenciária;
para outros estados: Ministério da Justiça.
Para o ano de 2003 foram utilizados os
dados colhidos por este trabalho.
2.2.
A Evolução do Número de Presos, Vagas
e Déficit
Considerando-se
o somatório do número de presos nos sistemas
penitenciários estaduais e aqueles abrigados
em delegacias policiais, ainda de acordo
com dados do Ministério da Justiça, o
Brasil passou de 148.760 presos em 1995
para 284.989 em 2003. Houve, no mesmo
período, um esforço muito grande de geração
de novas vagas, tendo sido criadas 112.132
novas vagas em dezenas de unidades prisionais
pelo país afora. Passamos, assim, de 68.597
para 180.726 vagas. No entanto, a despeito
do investimento de recursos consideráveis,
nos diferentes estados, para a construção
dos novos estabelecimentos, o déficit
de vagas hoje é muito maior do que em
meados dos anos 1990. De acordo com os
números do Ministério da Justiça, o déficit,
em junho de 2003, era de 104.363 vagas.
Vale ressaltar que este assunto será também
retomado no Capítulo 9 e, por ora, basta
que se registre a dimensão do problema.
Gráfico
2. População carcerária, número de vagas
e déficit de vagas- 1995 a 2003
Fonte:
Ministério da Justiça
1.2.
Análise das Informações dos Estados
No
Anexo 1 ao presente trabalho, podem ser
encontrados o modelo do questionário que
foi encaminhado aos estados e a íntegra
da análise de todas as informações geradas
pelo referido instrumento, relativas ao
conteúdo de 68 gráficos e 78 tabelas.
O material a seguir é um sumário desse
conjunto de informações, cabendo recomendar
que os resultados sejam considerados com
cautela, na medida em que, a despeito
do esforço de crítica dos dados e checagem
de muitos deles com os diferentes estados,
ainda se constatam algumas inconsistências.
Há informações truncadas e há dados faltosos.
Os estados não possuem dados informatizados
e, em sua maior parte, muitas informações
foram coletadas exclusivamente para este
trabalho. Embora, ao longo do Anexo 1,
sejam apontados diversos problemas com
os dados, procuraremos aqui, a título
de sumarizar os resultados, cobrir as
questões mais gerais e menos contaminadas
por incongruências. Vale ressaltar que
os dados referem-se ao ano de 2003.
·
Segundo as informações coletadas,
o Brasil tinha, em novembro de 2003, 302.495
presos, dos quais, 227.670, ou 75,3%,
em unidades dos sistemas penitenciários
e 74.825, ou 24,7%, em delegacias policiais.
De acordo com a lei, xadrezes de delegacias
não estão destinados ao abrigo de presos,
a não ser pelo tempo necessário para lavratura
de um flagrante e identificação;
·
O número de presos abrigados em delegacias
de polícia é muito grande em diversos
estados. Em três estados mais de 50% dos
presos estão fora dos sistemas penitenciários
e em sete estados mais de 30% dos presos
estão em delegacias, em flagrante desrespeito
à legislação do país;
·
As médias mensais de novos ingressos
nos sistemas penitenciários são muito
altas. Em 10 estados a média mensal
de novos ingressos é superior a 5% do
total da população carcerária abrigada
nos sistemas penitenciários, o que, óbviamente,
inviabiliza qualquer tentativa de planejamento
estratégico conseqüente da política penitenciária;
·
Comparando-se as médias mensais de
novos ingressos e de liberações (seja
por término de pena, liberdade condicional
ou desinternação, esta no caso dos inimputáveis),
percebe-se que os primeiros equivalem
a quase o dobro do número de liberações.
Ou seja, o sistema penitenciário funciona
como um verdadeiro funil, o que explica
o crescimento do nível de superlotação
ao longo dos anos, a despeito da criação
de milhares de novas vagas, como já mencionado;
·
Nos sistemas penitenciários, cerca
de 70% dos presos estão condenados e o
restante aguarda julgamento, o que pode
ser considerado aceitável segundo médias
internacionais;
·
75,8% dos presos nos sistemas penitenciários
cumprem pena em regime fechado, aproximadamente
13% em regime semi-aberto e 2,7% em regime
aberto, o que parece indicar rigor do
judiciário na aplicação da lei e mesmo
o endurecimento da legislação.
·
36% dos presos que se encontram em
delegacias policiais já estão condenados,
contrariando diplomas legais do país e
internacionais;
·
Mais de 4.000 presos, condenados nos
regimes semi-aberto e aberto, cumprem
pena em delegacias policiais, estando
impossibilitados de usufruir dos benefícios
que a lei faculta a condenados nesses
regimes, como o trabalho externo e as
visitar ao lar;
·
Em 20% dos estados houve a criação
de Secretarias de Administração Penitenciária
para gerir os sistemas penitenciários
estaduais, demonstrando a crescente importância
dessa área da administração pública, sempre
marcada por crises e convivendo com uma
população carcerária crescente;
·
25% dos estados não possuem Regulamento
Penitenciário. Ora, a Lei de Execução
Penal data de 1984 e deveria ter sido
regulamentada a seguir, por todos os estados.
O fato de 25% dos estados, depois de 20
anos, ainda não contarem com tais instrumentos
de gestão, constitui-se em fato muito
grave. E, pior ainda, apenas 50% dos estados
contam com manuais de atribuições das
diferentes funções nos sistemas penitenciários.
Tudo isto está a indicar que a improvisação
parece ser a marca da gestão prisional
em muitos estados do país;
·
42% dos estados têm convênio com o
SUS na área do sistema penitenciário.
Tomando-se como referência o estado do
Rio de Janeiro, o primeiro a estabelecer
convênio com o SUS para o Sistema Penitenciário,
ainda em 1992, é lamentável constatar
que, mais de dez anos depois, ainda é
pequeno o número de estados que recebem
verbas do Ministério da Saúde para atender
às necessidades de assistência à saúde
dos presos;
·
94,4% da população carcerária é constituída
de homens e 4% de mulheres, o que se aproxima
às médias internacionais;
·
A população carcerária é muito jovem:
18,3% têm entre 18 e menos de 25 anos
e 23,2% dos presos têm entre 25 e menos
de 30 anos. Acompanhando uma tendência,
também mundial, a população de presos
vem apresentando um perfil cada vez mais
jovem;
·
A população carcerária brasileira
apresenta nível de escolaridade muito
baixo. 70% dos presos não completaram
o 1º grau e, o que é pior, 10,4% dos presos
são analfabetos;
·
Quanto aos artigos de maior condenação,
23,9% dos presos estão condenados no Art.157
(roubo); 10,5% no Art. 12 (tráfico de
entorpecentes); 9,1% no Art. 155 (furto);
e 8,9% no Art. 121 (homicídio);
·
Quanto ao tamanho da pena, 15,7% dos
presos foram condenados a penas de 1 a
4 anos; 20,2% dos presos foram condenados
a penas de 5 a 8 anos; e o restante, ou
seja, 64%, foram condenados a penas de
9 anos ou mais, o que indica o rigor do
Judiciário na aplicação de uma legislação,
por si mesma rigorosa;
·
Em 17% dos estados não há controle
do término de pena dos presos e, o que
é pior, entre os estados que o fazem cerca
de 32% não têm esse controle informatizado,
o que nos leva a supor que muitos presos
permanecem privados da liberdade para
além dos prazos legais, não apenas no
que se refere a penas cumpridas, como
à obtenção do livramento condicional;
·
Apenas 17,3% dos presos estão envolvidos
em alguma atividade educacional.
Levando-se em conta que 70% dos presos
não terminaram o 1º grau e que cerca de
10% são analfabetos, é óbvio que os sistemas
penitenciários não parecem estar interessados
em alterar esse quadro. Ademais, considerando
que 83,3% dos estados mantêm convênios
com as Secretarias de Educação para o
desenvolvimento de atividades educacionais,
o quadro resulta ainda mais absurdo;
·
Apenas 26% dos presos estão envolvidos
em atividades laborativas o que, no mínimo,
limita a possibilidade da remição da pena
pelo trabalho (um dia trabalhado = menos
três dias de pena), o que se constitui
em direito do preso, além de refletir
a histórica incompetência do Estado brasileiro
em prover trabalho ao preso. E, o que
é pior, em muitos estados menos de 10%
dos presos trabalham. Se muitos cometeram
crimes por jamais terem aprendido um ofício
ou, por inúmeras circunstâncias da vida,
jamais terem desenvolvido o gosto pelo
trabalho, os sistemas penitenciários fazem
muito pouco para mudar tal estado de coisas;
·
Apenas 20% dos presos condenados em
regime semi-aberto trabalham fora dos
muros, mas 76% têm autorização para visitar
suas famílias;
·
70% dos presos recebem visitas e 27
% recebem visita íntima. Vale ressaltar
que 36% dos estados afirmaram que autorizam
visitas íntimas entre parceiros homossexuais.
·
Há mais de 2.000 presos comprovadamente
portadores do vírus HIV+ no sistema penitenciário
brasileiro. Considerando-se que, de acordo
com orientação da Organização Mundial
de Saúde, a checagem obrigatória é vedada,
pode-se imaginar que este número seja
muito mais alto;
·
Cerca de 88% dos estados informaram
que há distribuição regular de material
de higiene nos seus sistemas penitenciários
e 40% sustentam que distribuem vestuário
e roupa de cama. Vale ressaltar que em
nossas visitas a diferentes estados foi
constatado que, mesmo aqueles que eventualmente
distribuem tais itens, não o fazem regularmente.
·
Aproximadamente 50% dos sistemas penitenciários
estaduais não contam com creches para
os filhos pequenos de mulheres presas,
o que contraria a Lei de Execução Penal;
·
Em 60% dos estados há censura à correspondência,
em desrespeito à Constituição Brasileira;
·
Em 82,6% dos estados há servidores
desviados de função, o que aponta para
uma grave distorção dos sistemas penitenciários.
Historicamente, se realizam muito mais
concursos para agentes de segurança penitenciária
do que para as áreas administrativa e
técnica (advogados, psicólogos, assistentes
sociais, médicos, etc). O resultado são
carências profundas em determinadas áreas
que acabam supridas por quem fez concurso
para agente de segurança penitenciária
e revela aptidão para tal ou qual tarefa,
ou mesmo possui diploma universitário
que permite o exercício desta ou daquela
profissão dentro dos muros;
·
Nos diferentes sistemas penitenciários,
policiais militares participam das atividades
de formas diversas. Em 45,8% dos estados,
policiais militares dirigem os sistemas
penitenciários e em 66,7% dos casos há
policiais militares dirigindo unidades
prisionais. Em cerca de 80% dos estados
é a polícia militar que faz a escolta
de presos e em todos os estados, à exceção
de São Paulo, são policiais militares
que se responsabilizam pela segurança
externa das unidades;
·
Apenas 20% dos estados contam com
Escolas de Formação Penitenciária, o que
revela o absoluto descompromisso com a
formação e a capacitação continuada do
pessoal penitenciário;
·
Em 70,8% dos sistemas penitenciários
não há planos de cargos e salários, o
que aponta para o improviso em que se
dá a gestão prisional;
·
Apenas 16,7% dos estados contam com
Patronatos, indicando que a questão do
egresso não é considerada uma questão
importante. Muito ao contrário, os sistemas
penitenciários apenas se ocupam daqueles
privados da liberdade, e se ocupam mal,
como está demonstrado pelos números aqui
relatados, não havendo qualquer compromisso
em apoiar quem sai da prisão;
·
Em 66,7% dos estados já se encontra
a terceirização de uma série de serviços,
notadamente daqueles relacionadas com
a feitura e distribuição de alimentação
aos presos.
·
Em 68% dos estados há projetos em
parceria com a sociedade civil;
·
Em 72% dos estados os sistemas penitenciários
identificam e separam presos por facções,
indicando que o Estado está longe de exercer
controle efetivo sobre as unidades prisionais.
E, o que é pior, sabe-se que, freqüentemente,
a identidade com determinado grupo acaba
por materializar-se a partir da provocação
do gestor prisional;
·
39% dos estados não têm Conselhos
da Comunidade e, onde tais Conselhos existem,
os mesmos são atuantes, fazendo monitoramento
das unidades prisionais, em apenas 52%
dos casos;
·
Em 28% dos estados não existe Defensoria
Pública, sendo a assistência jurídica
aos presos muito comprometida;
·
Em 24% dos estados os castigos e recompensas
não estão regulamentados.
·
Em apenas 88% dos estados havia, em
novembro de 2003, CTCs constituídas de
acordo com a LEP;
·
Houve mais de 4.000 fugas no sistema
penitenciário brasileiro no ano 2003;
·
303 presos foram assassinados por
outros presos nos sistemas penitenciários
estaduais. Ora, considerando-se que homens
e mulheres privados da liberdade encontram-se
sob a responsabilidade do Estado, é gravíssimo
constatar que as mortes acontecem em proporções
alarmantes e rigorosamente nada se faz,
não se ouvindo falar de indenizações às
famílias desses presos;
·
50% dos sistemas penitenciários não
contam com Corregedorias, órgão de controle
interno por excelência, que deveria necessariamente
fazer parte da estrutura de qualquer sistema
penitenciário estadual. Considerando-se
os níveis de corrupção e violência, de
irregularidades e ilegalidades de toda
ordem, que grassam nas prisões do país,
é indesculpável que não se trate de criar
Corregedorias para lidar com tais problemas.
·
36% dos estados alegaram ter Ouvidorias,
o que, no mínimo, é surpreendente, se
levarmos em conta os dados do ítem anterior.
Ouvidorias são órgãos de controle externo
e seriam necessárias análises cuidadosas
sobre o funcionamento de tais Ouvidorias
para que as mesmas pudessem ser consideradas
efetivos órgãos de controle externo, ao
invés de estratégias dos próprios sistemas
penitenciários, com independência muito
limitada e relativa;
·
91,7% dos sistemas penitenciários
estaduais contam com detectores de metal
em suas unidades e 8,3% com bloqueadores
de telefones celulares. A grande quantidade
de detectores de metal, basicamente de
portais para tal fim, estão a indicar
a possibilidade de revisão dos métodos
empregados na revista dos visitantes,
sempre humilhantes e vexatórios;
·
Em cerca de 30% dos estados as revistas
dos visitantes não se encontram regulamentadas,
o que, obviamente, dá margem a muita arbitrariedade.
3.
Requisitos para uma Política Penitenciária
3.1.
O Estado e a Política Penitenciária
A
política penitenciária no Brasil, enquanto
política pública, é responsabilidade do
Estado, inserindo-se nas chamadas “políticas
de segurança pública”. E, para se compreender
os dilemas da política penitenciária é
preciso rever, mesmo que brevemente, como
se constituiu o Estado brasileiro, especialmente
no século XX. É preciso que nos voltemos
para a história recente do Brasil, principalmente
dos anos 1930 até hoje, período em que
ocorrem grandes mudanças no cenário brasileiro,
decorrentes das condições mais gerais
do desenvolvimento do capitalismo mundial.
Nos
anos 1930, o Brasil era um país eminentemente
rural, com 70% de sua população vivendo
no campo, vinculada à produção agrícola
e pecuária. Cinqüenta anos mais tarde,
constatava-se o inverso: 70% da população
habitava as cidades e 30% o campo. Assim,
até 1930, a economia brasileira centrava-se
na produção e comercialização de produtos
agrícolas. A partir de então, a industrialização
nas grandes cidades transforma o país,
em 1980, na oitava economia do mundo.
O Brasil torna-se uma potência industrial
média, produzindose ao longo do século
uma mudança radical no perfil da sociedade:
gradualmente, a força de trabalho desloca-se
do campo para as cidades, confluindo em
cinturões urbanos de migrantes, a grande
maioria se inserindo no mercado industrial,
trazendo consigo o analfabetismo, o desraizamento
cultural, ao lado da expectativa de uma
vida melhor na cidade grande. Entretanto,
o grande sonho foi sendo cotidianamente
desmontado, com a gradativa ausência do
Estado na promoção de acesso daquela população
e de suas gerações descendentes a direitos
sociais básicos como educação, saúde,
habitação e saneamento, entre tantos outros.
Para se compreender o caos urbano dos
“cinturões de pobreza”, formados nos últimos
cinqüenta anos, é preciso lembrar o Estado
que tínhamos e qual o seu legado.
A
marca fundamental do Estado brasileiro
no período 1920-1980 é seu caráter desenvolvimentista
(lembremos o governo JK e os “cinqüenta
anos em cinco”), conservador, centralizador
e autoritário. O Brasil não vivenciou
o chamado Estado do Bem Estar (Welfare
State) europeu. O Estado brasileiro se
notabilizou como promotor do desenvolvimento,
buscando consolidar o processo de industrialização
e tornar o Brasil uma grande potência.
Implícito, pois, estava o papel do Estado
de promover a acumulação privada na esfera
produtiva.
Na
sua função desenvolvimentista, o Estado
não buscava alterar a qualidade das relações
na sociedade, marcada desde o período
colonial pela escravidão, pelo autoritarismo
das administrações públicas e das elites
em relação à população. Do ponto de vista
político, o Estado não alterou as relações
de exploração entre as classes, de subjugação
dos pobres à lei, e da distribuição de
benesses às elites dirigentes e aos mandatários
da economia. A essência das políticas
públicas gestadas pelo Estado está voltada
para o crescimento e a acumulação econômica,
acompanhando o movimento do capitalismo
internacional, nos seus avanços e crises.
E,
ao lado de seu caráter desenvolvimentista,
o Estado brasileiro revela-se profundamente
centralizador e conservador. Vem de longe
a tradição do Estado brasileiro de assumir
muito mais o objetivo de crescimento econômico
e, muito menos, o da proteção social do
conjunto da sociedade. O Estado centralizador
busca fazer, produzir, conservando
as relações sociais estabelecidas. Não
se construiu um Estado regulador das
relações sociais, proposto a dialogar
e negociar com a sociedade. E, além de
centralizador é, também, autoritário:
tivemos duas longas ditaduras – o período
Vargas e a ditadura militar inaugurada
com o golpe de 1964.
Considerando
seu caráter autoritário, o Estado não
necessitou legitimar-se perante à maior
parte da sociedade. As questões sociais
decorrentes, desde o início do século
passado, do processo de industrialização
e da prioridade econômica, foram se acumulando
e tratadas, na maior parte das vezes,
como “caso de polícia”. As ditaduras produziram
uma vertente ideológica de “segurança
pública” caracterizada pelo combate aos
“subversivos” à ordem oficial instituída,
transformando-se, ao longo das últimas
décadas, em “combate aos pobres”. O chamado
Estado fazedor promoveu o desenvolvimento
da infraestrutura de portos, rodovias,
telecomunicações e siderurgia, área que
exige investimento substantivo, para oferecer
ao setor produtivo privado as bases para
sua expansão. Além de implementar e conservar
tal infraestrutura, acabou por privatizar
grande parte daquilo que foi construído
com recursos públicos.
Ao
lado da grande tarefa desenvolvimentista,
o Estado fazedor ocupou-se, diante de
circunstâncias conjunturais, de regular
os interesses contrários a seu projeto.
No Governo Vargas, por exemplo, o Estado
estabeleceu as regras de convivência entre
capital e trabalho, regulamentando tais
relações através da legislação trabalhista.
A criação de inúmeros órgãos de assistência
ao operariado, como o SESC, SENAI, SESI,
Institutos de Aposentadorias e Pensões
(embrião do INSS), são o legado getulista
concebido para dirimir conflitos nasrelações
dos trabalhadores com o patronato.
Ao
longo dos últimos vinte anos, acentuaram-se
as chamadas políticas compensatórias,
de reparação e atendimento às necessidades
básicas de sobrevivência da população
pobre, das quais são exemplo o ticket
do leite no Governo Sarney, cestas básicas,
cheque cidadão, vale gás, e tantos outros,
sem que se tenham constituído políticas
públicas que realmente contribuíssem para
alterar significativamente a condição
de vida desses indivíduos.
A
partir de 1988 temos uma Carta Constitucional
com proposições inclusivas de toda a população,
por exemplo, na questão da saúde, com
acesso universal à rede pública, ao contrário
do que acontecia anteriormente, quando
os recursos de saúde estavam destinados
ao cidadão trabalhador com vínculo empregatício.
O Sistema Único de Saúde, como política
pública, trouxe a possibilidade de tratamento
da população, sem qualquer categorização,
e a Carta de 1988, promulgada ao longo
do período de redemocratização do país,
propõe as bases para um novo Estado Democrático
de Direito. A sociedade brasileira recupera
na década de 1980 um conjunto de direitos
civis e políticos que possibilita a mobilização
e luta pelo acesso a direitos sociais
e pela busca da diminuição da distância
que separa as classes, as regiões e os
bairros de uma cidade, como se fossem
mundos excludentes quanto à qualidade
de vida e condições de sobrevivência.
Assim,
torna-se claro que, para o Estado Democrático
de Direito se consolidar, é muito significativa
a luta pela efetividade das leis. Enfrentamos
o desafio de fazer com que as leis não
se efetivem apenas para os pobres quando
se trata, por exemplo, de puní-los ou
enquadrar suas ações ilícitas. A efetividade
de um regime democrático, pautado sob
o ponto de vista formal, no seu aparato
legal, avança no sentido de estabelecer
não apenas quem são os portadores de direitos
de cidadania, mas garantir o acesso universal
e includente a esses direitos. E a garantia
do acesso aos direitos requer a gestão
de mecanismos de controle social para
a sua efetivação.
Guilhermo
O’Donnell3 discute a não efetividade das
leis nos países da América Latina e sustenta
que o que a população conhece é “o
Estado Democrático que pode estar presente
na forma de prédios e funcionários pagos
pelos orçamentos públicos. Mas, o Estado
legal está ausente: qualquer que seja
a legislação formalmente aprovada existente,
ela é aplicada de forma intermitente e
diferenciada”.
Ao
longo da década de 1980, sob a égide da
liberdade política, parte da população
passa claramente a reivindicar direitos.
Do ponto de vista econômico, ingressamos
na década de 1990 com dois terços da população
fora do mercado formal de trabalho, vivendo
também o país a grande crise mundial do
capital e seus corolários: a globalização,
a reestruturação produtiva e a financeirização
da riqueza, com a agudização das questões
sociais. Tudo isto, evidentemente, perpassado
pela hegemonia da ideologia neoliberal.
Alguns ditames prevalecem, tais como:
“Quanto menos Estado e quanto mais mercado
melhor”, ou ainda: “Quanto mais individualidade
e quanto menos coletividade melhor”. Dentro
desta ótica neoliberal redefine-se o papel
do Estado: este recolhe-se da produção.
Há menos Estado na regulação e, portanto,
há mais presença do mercado. Em conseqüência,
o Estado enxuga a sua responsabilidade
na promoção e gestão de políticas públicas
e, em substituição, mais mercadorias e
serviços substitutivos surgem no mercado.
A saúde pública transforma-se na mercadoria
“Planos de Saúde”, a educação tratada
como mercadoria, é acessada através da
variedade de cursos pagos. O Sistema Penitenciário,
igualmente, já encontra na sua gestão
serviços vendidos ao Estado por empresas
privadas.
No
Brasil, nos estados do Paraná, Acre e
Ceará os governos compram os serviços
de custódia e assistência aos presos de
empresas “executoras” da pena privativa
de liberdade. O Estado se desonera, pois,
de sua função precípua, contrariando inclusive
a legislação internacional. A ausência,
ou quiçá, a fragilidade das políticas
penitenciárias, como instrumentos do Estado
para operar a Lei de Execução Penal no
Brasil se reportam, pois, aos diferentes
aspectos cultuados ao longo da história
do Estado brasileiro na condução das políticas
públicas: autoritarismo e maus tratos
físicos de um lado, escassez de investimentos
públicos em programas de capacitação profissional,
de educação formal, de trabalho e ocupação
da mão de obra ociosa de outro, além da
falta de manutenção dos prédios das prisões
e da capacitação continuada dos funcionários,
do abandono da assistência à saúde, jurídica
e material. Portanto, as prisões reproduzem,
no seu interior, a mesma irresponsabilidade
do Estado em relação à população como
um todo, quadro agravado em relação aos
presos face ao fato de sofrerem da exclusão
moral peculiar aos transgressores das
normas sociais. Insista-se que o Estado
mínimo brasileiro tornou estrutural a
exclusão social de grande percentual de
nossa população. São mais de 40 milhões
de brasileiros vivendo abaixo da linha
da pobreza. Tal conjuntura acelera ainda
mais a histórica concentração de renda
em nosso país, onde 1% dos mais ricos
detém mais de 35% de nossas riquezas,
enquanto os 10% mais pobres detém somente
1,1% da riqueza nacional. Esta imobilidade
social sistêmica faz da população mais
pobre uma massa de sub-cidadãos, sem possibilidade
de se empregarem.
Nasce
uma nova “classe perigosa4 , aqueles que
sobraram da sociedade de mercado. Essa
massa de excluídos é formado por pobres,
sendo uma maioria de jovens não brancos,
que sem direitos sociais, vai superlotar
delegacias de polícia, manicômios, abrigos
de menores, ruas e presídios. Segundo
Zigmunt Bauman, “a pobreza não é mais
um exército de reserva de mão de obra,
tornou-se uma pobreza sem destino, precisando
ser isolada, neutralizada e destituída
de poder”.5
A
década de 90 traz grandes avanços democráticos
para o Brasil, porém a conquista da democracia
não resolve, sozinha, os entraves econômicos
e sociais mais agudos da sociedade. Foi
neste período que o Brasil se consolidou
como país mais desigual do mundo. A ideologia
dos modelos de segurança pública, por
exemplo, continuam pautados pela necessidade
de preservação da ordem excludente, através
de rígidos instrumentos de controle social.
A manutenção da ordem vigente se foca
na necessária visibilidade de um inimigo
público. O que passamos a assistir é a
mais absoluta criminalização da pobreza.
Como diz Loic Wacquant6 , “a manutenção
da ordem de classe e a manutenção da ordem
pública se confundem”.
Manter
isolados os novos inimigos públicos da
sociedade é sinal de eficácia do sistema
penal, consolidando-se atrás das grades
a pena de morte social. As prisões são
sempre reflexos das sociedades que as
produzem e o abandono e ausência de políticas
públicas são espelho da relação do Estado
com as populações pauperizadas.
3.2.
As Instituições da Execução Penal
A
Lei 7.210 estabelece quem participa da
execução penal: O Conselho Nacional
de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP),
o Juízo da Execução Penal (as Varas de
Execuções Penais), o Ministério Público,
o Conselho Penitenciário local, o Departamento
Penitenciário Nacional (DEPEN), os Departamentos
Penitenciários locais (na esfera estadual),
o Conselho da Comunidade e os Patronatos.
À exceção do último, todos estes órgãos
têm, entre outras funções, a de fiscalizar
a aplicação da Lei de Execução Penal,
o que raramente é feito. Nem os órgãos
federais, nem os órgãos locais que participam
da execução penal, visitam regularmente
as unidades prisionais, cobrando das autoridades
responsáveis pelos sistemas penitenciários
a implementação da lei.
Se
nos detivermos nas funções precípuas do
Conselho Nacional de Política Criminal
e Penitenciária e no Departamento Penitenciário
Nacional, ambos da esfera do Poder Executivo
Federal e inseridos no Ministério da Justiça,
perceberemos que a relação entre ambos
se consolida na LEP. O primeiro é responsável
por propor a política criminal e penitenciária
e pela inserção de metas e prioridades
dessa política nos planos nacionais de
desenvolvimento. O Departamento Penitenciário
Nacional, por seu turno, é o órgão executor
da política estabelecida pelo Conselho
Nacional de Política Criminal e Penitenciária.
Cabe lembrar o que o Plano Nacional de
Segurança Pública, do então candidato
Luiz Inácio Lula da Silva, recomenda em
relação ao Departamento Penitenciário
Nacional/DEPEN (pág. 74): “aprimoramento
do Departamento Penitenciário Nacional
transformando-o em órgão que realmente
cumpra suas finalidades, com dotação financeira
e recursos humanos adequados. De acordo
com a Lei de Execução Penal (Capítulo
VI, Seção 1), o DEPEN é órgão executivo
da Política Penitenciária Nacional com
responsabilidade, entre outras, de fiscalizar
periodicamente os estabelecimentos penais(o
que nunca é feito) e de “assistir tecnicamente
as unidades federativas na implementação
dos princípios e regras estabelecidos
neta Lei” (o que é absolutamente ignorado).”
Em
relação ao Conselho Nacional de Política
Criminal e Penitenciária, diz o Plano
Nacional de Segurança Pública (pág. 74):
“aprimoramento do Conselho Nacional de
Política Criminal e Penitenciária (CNPCP)
no sentido de que cumpra suas finalidades.
De acordo com a Lei de Execução Penal,
o CNPCP tem a responsabilidade de propor
a política criminal e penitenciária do
país e, no entanto, seus membros passam
a quase totalidade do tempo .... emitindo
pareceres sobre projetos de lei em tramitação
no Congresso Nacional que raramente se
transformam em realidade. Uma de suas
obrigações, a de fiscalizar os estabelecimentos
prisionais do país, é ignorada.”
Ora,
tanto o DEPEN, quanto o CNPCP, têm a obrigação
de fiscalizar as unidades prisionais do
país, cobrando adequação à Lei de Execução
Penal. Evidentemente, o poder de coerção
desses órgãos só poderá ser efetivo quando
o governo federal puder dispor de verbas
significativas para a área. É preciso
prover o DEPEN de recursos humanos e materiais
adequados, além de verbas consideráveis
para auxiliar os estados, não só na construção
de unidades prisionais, mas, principalmente,
no assessoramento técnico da gestão prisional,
para que se possa pensar no estabelecimento
de uma política penitenciária respeitadora
dos direitos dos presos, orientada por
Brasília.
Não
é possível admitir, por exemplo, que recursos
do Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN)
sejam contingenciados, por ser esta uma
verba que legalmente está destinada, com
exclusividade, ao sistema penitenciário.
Como também lembra o Plano Nacional de
Segurança Pública, no ano 2000 mais de
R$ 200 milhões do FUNPEN foram contingenciados,
em flagrante desrespeito à legislação.
Por outro lado, estabelece o Projeto (pág.
74) que devem ser impostas condições específicas
e rigorosas na liberação de verbas federais
para os sistemas penitenciários: “Os estados
deverão demonstrar que estão desenvolvendo
esforços, por exemplo, na área do respeito
aos direitos humanos e aos direitos sociais,
combatendo a tortura e os espancamentos
e oferecendo condições mínimas de subsistência
para a população carcerária”.
Em
relação aos outros órgãos da execução
penal, vale lembrar que tampouco seus
representantes fiscalizam, regularmente,
as unidades prisionais. Embora não se
pretenda, aqui, discutir com maior detalhe
a atuação desses órgãos, é importante
ressaltar que, com o advento da Lei 10.792,
de 1º de dezembro de 2003, os Conselhos
Penitenciários locais deixam de ter qualquer
responsabilidade sobre a concessão de
livramentos condicionais.
Assim
sendo, ficam dezenas de profissionais
que atuam nesses conselhos, pelo país
afora, com tempo ocioso que pode ser dedicado,
quase que integralmente, à fiscalização
dos sistemas penitenciários. Mais adiante,
no Capítulo 5, voltaremos ao tema da fiscalização
e suas vantagens.
4.
A Execução Penal: o Lugar dos Custodiadores
4.1.
A Gestão Prisional
O
mandato da sociedade relativo à forma
de punição instituída pela pena privativa
de liberdade encontra, no aparato político
ideológico e burocrático do Estado, as
condições necessárias para gerenciar os
sujeitos confinados dentro dos muros das
prisões. Este mandato vai se alterando
de acordo com o quadro de criminalidade
do país. Na última década, o clamor público
pelo endurecimento das penas e dos regimes
prisionais tem sido uma constante no cenário
brasileiro e os meios de comunicação têm
contribuído para o aumento da sensação
de insegurança. Principalmente os crimes
cometidos por adolescentes e jovens adultos
recebem extensa cobertura na mídia e são
utilizados para reforçar a necessidade
do agravamento das medidas sócio-educativas
e das penas. E, como dizem os juristas,
o resultado é a edição de novas leis que,
no seu conjunto, podem ser definidas como
“legislação do pânico” que nenhum impacto
têm sobre as taxas de criminalidade.
Na
década de 1990, surge, por exemplo, a
Lei dos Crimes Hediondos: penas mais altas
e rigor maior na concessão de benefícios
legais, como o livramento condicional.
Em 2003, o movimento para endurecer os
regimes disciplinares é vitorioso, culminando
com a edição da Lei nº 10.792, de 1º de
dezembro daquele ano, que inclui o Regime
Disciplinar Diferenciado, já experimentado
em vários estados. Isto tudo posto, o
grande desafio que se impõe aos sistemas
penitenciários no Brasil resume-se ao
seguinte: como a gestão prisional pode
pugnar pela garantia dos direitos fundamentais
constantes na legislação internacional
e nacional, num espaço institucional coercitivo
e autoritário?
A
primeira questão que se coloca à gestão
prisional é de que ela administra uma
relação de custódia, vivida por presos
e custodiadores em três regimes de pena:
o fechado, o semi-aberto e o aberto. Face
à esta diferenciação dos regimes, a gestão
prisional adquire funções específicas,
embora evidencie-se, em todos os regimes,
o dilema da falta de autonomia dos presos
na relação com seus custodiadores. Estes,
agentes do Estado, estão presentes para
garantir a ordem, utilizando-se dos instrumentos
de disciplina e de vigilância direcionados
ao produto esperado pela administração
pública e pela sociedade: a segurança
individual e coletiva, intra e extra-muros.
Para a obtenção desse produto, a gestão
prisional trabalha sobre um grande tabuleiro
composto por “peças” burocráticas: uma
imensidão de portarias, regulamentos,
ordens de serviço formais e um conjunto
de crenças e valores que agilizam procedimentos
informais, reforçando a cultura prisional.
Como
contraponto à falta de autonomia dos presos,
surge outro fenômeno: a organização dos
presos em facções, à revelia da administração
pública ou com seu “consentimento”. É
o lado perverso da conquista de autonomia:
os presos se auto-denominam membros de
determinada facção. Dentro do grupo, constróem
regras típicas de disciplina, prêmios
e castigos, além de estabelecerem formas
peculiares de governo que, freqüentemente,
colidem com os interesses da gestão prisional
ou propiciam alianças espúrias com os
custodiadores.
A
separação dos presos por facções foi instituindo
ao longo dos anos uma forma oficiosa de
classificação e, em alguns estados do
Brasil, passa a ser o critério fundamental
para a lotação dos presos nas unidades
prisionais. Esta delicada questão tem
sido um grande desafio para os gestores,
uma vez que são legalmente responsáveis
pela integridade física dos presos. Romper,
pois, com esta auto-classificação de pertencimento
às facções significa, de um lado, não
compactuar com uma forma de organização
com raízes ilegais, de outro, expor os
custodiados à morte e à violência. A organização
das facções com sua conexões extra-muros
veio contribuir com novas formas de interação
entre funcionários e presos, estabelecendo
vínculos de interesse financeiro e agravando
formas de maus tratos e violência letal.
Tal
quadro, é importante lembrar, agrava o
autoritarismo, já que a gestão prisional
não carrega, em si, nenhuma tradição de
participação democrática dos presos nas
decisões dos gestores. Os presos, obrigados
a cumprir rotinas diárias impostas ( a
hora do banho de sol, a hora da visitação,
a hora do atendimento dos serviços técnicos,
por exemplo), vão criando suas próprias
formas de burlar as normas oficiais. Não
raro, esta burla se realiza com a aquiescência
de funcionários, seja em troca de favores
e de informações privilegiadas, ou através
de dinheiro. Em todas estas circunstâncias,
o funcionário corrompido/corruptor, rompe
com seu papel de custodiador, colocando
em risco a própria gestão prisional –
a vida do coletivo, seja de presos ou
de companheiros. Diante deste quadro em
que grassa a corrupção, o produto final
esperado - a segurança individual e coletiva
intra e extra-muros – resulta altamente
fragilizado, a despeito da existência
de adequado aparato físico ou tecnológico
na unidade prisional.
A
gestão prisional, pois, além das dificuldades
mencionadas, tem sob sua responsabilidade=
cotidiana administrar a burocracia do
confinamento de presos provisórios, condenados
ou em medida de segurança, no sentido
de satisfazer desde necessidades humanas
básicas (vestir-se, alimentar-se, higienizar-se,
ocupar-se) até necessidades existenciais,
afetivas e sexuais. Tudo isto requer uma
gama de recursos, providências e estratégias
muito especiais, sendo tal gestão bastante
diferenciada daquela vivenciada pelos
cidadãos livres, que mantém autonomia
e responsabilidade, essenciais para resolver
os problemas cotidianos. O administrador
desse elenco de situações é o gestor e
executor da custódia, na figura de diretores,
chefes e funcionários. Situações corriqueiras,
de caráter doméstico, como o mau funcionamento
na confecção e distribuição da alimentação
ou no fornecimento da água, não são apenas
incômodos ou desconfortos, mas podem ser
estopim de incidentes prisionais de proporções
imprevisíveis.
Outra
questão importante de que se ocupa a gestão
prisional refere-se à disciplina e às
condições de trabalho dos funcionários.
É preciso determinar quem se desempenha
mais efetivamente em cada área de responsabilidade,
como criar acesso aos espaços de poder,
como administrar o espaço do poder, como
e quando punir os funcionários faltosos,
como usar punições previstas na legislação
ou constante do rol oficioso. Trata-se,
por vezes, de administrar interesses diversos
como, por exemplo, negociar a carga horária
para compatibilizar o trabalho na prisão
com outros empregos ou serviços autônomos.
São inúmeras as necessidades dos funcionários
e os gestores necessitam de competência
técnica e habilidade para encaminhar as
soluções mais adequadas.
Não
raro, os espaços de gestão são ocupados
a partir da pressão de grupos políticopartidários,
não contando a maioria dos estados brasileiros
com planos de cargos e salários que disciplinem
o acesso dos funcionários aos cargos superiores
e intermediários de gerenciamento. Predominam
ainda os critérios de relações amistosas,
clientelistas ou de revesamento dos mesmos
sujeitos em cargos distintos.
Na
gestão dos trabalhadores das prisões tem-se
ainda demandas significativas, face à
especificidade do trabalho, tal como a
formação profissional dos agentes de segurança,
ainda inexistente no Brasil como requisito
para admissão, assim como a capacitação
continuada de todos os profissionais,
visando seu desenvolvimento. Outra questão
presente nos vários sistemas prisionais
no Brasil refere-se à constituição de
parcerias com organizações da sociedade
para administrar as penas: são instituições
religiosas, universitárias, organizações
não-governamentais ou públicas, que permitem
ampliar a transparência, a permeabilidade
quanto à vida intramuros. São organizações
parceiras na prestação de serviços de
cultura e lazer, assim como no acolhimento
de egressos ou de famílias de presos.
Estas parcerias se distinguem radicalmente
das formas de terceirização instaladas
nos últimos cinco anos em sistemas prisionais,
como o do Paraná: o Estado abre mão de
sua prerrogativa de uso legítimo da força
e do poder de coerção, outorgando-a à
iniciativa privada.
O
trabalho prisional, voltado à ocupação
e capacitação dos presos, tem-se revelado,
do ponto de vista administrativo e burocrático,
praticamente inadministrável pela gestão
prisional. Em geral, tal atividade está
entregue a fundações, fundos e até organizações
da sociedade, sem que os gestores diretos
da custódia tenham poder decisório sobre
os tipos de atividades de trabalho, escoamento
dos produtos para o mercado, reaplicação
do capital auferido pela venda dos produtos,
etc. A estrutura administrativa de órgãos
como as fundações implica, em tese, numa
agilidade maior nos negócios, no entanto,
a convivência difícil destes órgãos paralelos
com o poder decisório dos gestores prisionais
têm obstaculizado a dinamização do trabalho
prisional. Outro desafio de gestão se
refere à mudança de perfil da população
prisonal, ou seja, nos últimos dez anos
a população se juvenilizou, trazendo para
o ambiente prisional as características
subjetivas próprias do sujeito recém saído
da adolescência: impaciência, onipotência,
dificuldade de obedecer às regras. Por
outro lado, a população de funcionários,
sobretudo no que se refere aos agentes
de segurança, também se juvenilizou: ter
18 anos completos passou a ser a exigência
dos concursos públicos. São jovens custodiadores
guardando jovens presos!
No
que tange à custódia dos presos provisórios,
a gestão prisional no Brasil não só deixa
muito a desejar no sentido de não cumprir
o que está prescrito nas “Regras Mínimas
para o Tratamento de Reclusos”, (Regras
84 a 93), como expõe dramaticamente os
presos a toda sorte de violências. Nas
cadeias públicas insalubres, a falta de
acesso às várias assistências legais é
a regra. As Regras Mínimas denominam preso
preventivo “toda pessoa detida ou
presa em virtude de lhe ser imputada a
prática de uma infração penal, detida
sob custódia da polícia ou em outro estabelecimento,
mas que ainda não tenha sido julgada e
condenada”. De fato, cada estado brasileiro
mantém um grande contingente de “presos
preventivos” fora da gestão prisional
dos sistemas penitenciários, alojados
sob a administração das delegacias e cadeias
públicas, excluídos das oportunidades
de assistência que lhes são devidas, por
vezes cumprindo integralmente suas penas
nessas condições ilegais de custódia.
Situações
cotidianas específicas implicam em cuidados
especiais da gestão prisional: as mulheres
presas, grávidas ou aquelas que têm junto
de si seus bebês. Tanto a legislação internacional
( Regra 23), quanto a LEP (Art. 89), dedicam
atenção especial às parturientes, às mães
e bebês, prevendo-lhes locais especiais
com cuidados específicos. Tal condição
sempre apresenta dilemas, pois a gestão
prisional no Brasil não tem sob sua responsabilidade
recursos hospitalares para parturientes,
o que demanda o deslocamento da presa
grávida e das respectivas escoltas para
a rede pública de saúde. Também a manutenção
de creches junto às unidades femininas
implica numa estrutura de recursos materiais
e humanos diferenciada, nem sempre disponíveis
à administração penitenciária. Como se
pode perceber, a gestão prisional representa
um grande desafio, que nem sempre tem
como norte uma política penitenciária
consistente, a nível estadual ou federal.
O trabalho aqui apresentado, visa detalhar
os pontos até aqui discutidos. No entanto,
vale lembrar algumas responsabilidades
dos gestores prisionais, tanto a nível
micro, quanto a nível macro.
A
nível micro, é necessário enfatizar que
o gestor prisional local, ou seja, os
diretores de unidades prisionais, têm
a obrigação legal de conceder, regularmente,
audiências aos presos. Por outro lado,
as reuniões de equipe são instrumentos
de que dispõe o gestor prisional para
diluir feudos profissionais, em conflitos
de objetivos de trabalho. Tratar das diferenças,
dar visibilidade às contradições inerentes
à execução da pena, são atribuições do
gestor, no seu papel de mediador dos conflitos.
A posição de gestor da unidade prisional,
face ao acúmulo de responsabilidades,
nem sempre favorece a aproximação física,
a circulação pelas dependências da unidade,
a checagem das condições de higiene e
de satisfação dos presos e funcionários.
Andar, observar e conversar são formas
acessórias essenciais para conhecer, avaliar
e decidir com maior segurança sobre as
situações em curso.
Os
gestores dos órgãos de administração penitenciária
superior devem construir canais de comunicação
com os gestores das unidades finalísticas
– presídios, penitenciárias, casas de
custódia, centros de recuperação, etc
- através de reuniões periódicas, de despachos
individuais e de visitas. De acordo com
o tamanho da estrutura burocrática estadual
do sistema prisional, os gestores da administração
superior devem escolher os instrumentos
mais eficazes de comunicação com os órgãos
da base. Vale ressaltar que quanto mais
verticalizada a estrutura burocrática,
mais dificuldades para conhecer, avaliar
e decidir com vistas a propor mudanças
e a sensibilizar o governo face à necessidade
de obtenção de recursos. A administração
superior necessita criar mecanismos que
dêem visibilidade à problemática das prisões
junto ao governo. A publicização dos dados
acerca da população presa, da população
de funcionários e a busca de parcerias
na sociedade para o fomento da pesquisa,
auxiliam a dar transparência à vida intra-muros
e à construção de argumentos para obtenção
dos recursos humanos e financeiros que
propiciem mudanças na qualidade de vida
de presos e funcionários.
4.2.
Segurança e Assistência: Duas Áreas em
Conflito?
O
cotidiano da vida prisional, aos olhos
de um observador atento, mas desprovido
de conhecimentos acerca desta realidade,
assemelha-se ao jogo de “cabo de guerra”:
de um lado, os agentes de segurança, com
sua atenção voltada para as ações de manutenção
da ordem, em que o desassossego para a
consecução de tal objetivo é trazido pelo
outro profissional, estabelecido na outra
ponta do jogo, que são os profissionais
da assistência. Estes, por sua vez, reclamam
freqüentemente dos empecilhos ao seu trabalho,
trazidos pelos agentes., O conflito está
posto e, no discurso de ambos os grupamentos,
parece insolúvel: uns se colocam como
guardiães da segurança coletiva e individual,
os outros como trabalhadores das diversas
formas de assistência7 , na busca de capacitar
o preso para sua futura reinserção social.
Lembrando Chauvenet8 , os agentes teriam
um papel “sujo”, enquanto os profissionais
da assistência, um “bom” papel. Esta discriminação
mútua aponta, inicialmente, para uma divergência
de finalidades quanto à presença destes
grupamentos na execução da pena privativa
de liberdade: enquanto os técnicos das
diversas formas de assistência necessitam
movimentar os presos de suas celas em
diferentes horários para participarem
de atividades educativas, religiosas,
médicas e tantas outras, os agentes, responsáveis
pela circulação, retirada e escolta dos
presos no espaço da unidade prisional,
entendem que os primeiros perturbam a
rotina com atividades em demasia e, por
vezes, “desnecessárias”. No jogo de “cabo
de guerra” entre a autoridade e o poder
de agentes e técnicos, figura
a direção da unidade como mediadora, interpretando
para os subordinados o que considera mais
exeqüível em cada momento. No entanto,
pode-se apreender esta realidade cotidiana
de outra forma: a execução da pena forjou
uma outra forma de punição diferenciada
do suplício em praça pública, no qual
o ato de punir se concretizava com a ação
do carrasco.9 Modernamente, os profissionais
envolvidos com a execução penal estão
no exercício da custódia: isto significa
uma ação de guarda, proteção dos presos
sob responsabilidade dos agentes do Estado,
sob determinadas condições reguladas pela
legislação internacional e nacional, em
que a reprodução da vida seria impossível
sem a ação efetiva de ambos os grupamentos
profissionais. As necessidades humanas
oriundas da vida em confinamento são específicas
e demandam a inserção diferenciada do
pessoal penitenciário10 na execução das
penas privativas de liberdade. As contradições
postas aos objetivos perseguidos por agentes
e profissionais da assistência não podem
ser identificados com os objetivos do
jogo mencionado: todos se debruçam sobre
o exercício de um objeto comum – a custódia.
Portanto,
as ações de guarda e proteção dos presos
não fluem se não estiver em jogo um duplo
movimento: ao mesmo tempo que se depende
das rotinas de vigilância (abrir e fechar
cadeados, as revistas corporais e de ambientes
, as escoltas) para assegurar a ordem
e a segurança do ambiente, também a satisfação
dos presos quanto às suas necessidades
vai depender da ação dos profissionais
da assistência. É possível, pois, perceber
que uma “cadeia segura” não é só aquela
em que todos os equipamentos e agentes
de segurança cumprem bem suas finalidades,
mas sobretudo onde os presos têm acesso
a seus direitos de assistência e se sentem
contemplados na sua condição de sujeitos
submetidos às leis e à ação de custódia
do Estado. Basta lembrar as reivindicações
mais freqüentes manifestas pelos presos
em rebeliões no Brasil: maior acesso à
assistência médica e jurídica, tratamento
respeitoso a seus visitantes, alimentação
suficiente e de qualidade.
Ressalte-se
que as competências do pessoal penitenciário
vinculado à área de segurança penitenciária
não estão definidos, nem sequer mencionados
na Lei de Execução Penal. Já em relação
aos profissionais das assistências – assistentes
sociais, médicos, religiosos, educadores
- , há diretrizes gerais estabelecidas,
acrescidas daquelas relativas à assistência
material. Lacuna significativa diz respeito
aos psicólogos, que são apenas mencionados
na constituição das Comissões Técnicas
de Classificação. Para discutir a capacitação
do profissional penitenciário, é fundamental
que se entenda a questão de ofícios e
profissões inseridos na custódia. Os ofícios
se revestem de práticas baseadas no conhecimento
empírico, que subsidia, por exemplo, o
agir dos agentes de segurança e se acumula
ao longo das diferentes gerações. É um
conhecimento transmitido oralmente, com
vistas a solucionar situações imediatas
e rotineiras. Portanto, caracterizase
pela baixa sistematização e pelo acentuado
pragmatismo. Poucas são as ações do cotidiano
dos agentes que aparecem escritas. Quando
isto ocorre, são normas administrativas
expressas sob a forma de portarias ou
resoluções, emitidas por autoridade administrativa,
visando disciplinar algum assunto na esfera
da ação de vigilância. Na transmissão
oral entre as gerações de agentes de segurança
reproduzem-se os diferentes “vícios” da
cultura prisional. A repetição das ações
ao longo do tempo, sem nenhum respaldo
teórico-metodológico face à ausência de
sistematização teórica, propicia a cristalização
das “verdades” inquestionáveis diante
de qualquer pergunta de um estranho à
área. Algumas práticas violadoras da legislação
são exemplares no que diz respeito à proteção
de direitos legais dos presos, como o
hábito arraigado do uso da “tranca” (cela
de isolamento), sem nenhum processo disciplinar
que o respalde, a intimidação dos presos
novatos, ou, ainda, a crença inquestionável
de que a técnica mais eficaz para evitar
a entrada de drogas e armas seja a revista
amiudada das partes íntimas dos corpos
dos visitantes.
Na
perspectiva de fiscalização e controle
da ação anti-ética dos agentes, não se
conta com nenhum órgão na sociedade
voltado a seu monitoramento, por se tratar
de um ofício, ao contrário das profissões
providas de Conselhos Profissionais. Por
último, o ofício de agente de segurança,
como outros na área da segurança pública,
não dispõe de qualquer requisito de profissionalização
para ingresso no cargo, uma vez que não
existe no Brasil política educacional
neste âmbito. A profissionalização possibilita
maior sistematização teórico-prática,
além de referencial ético-político, com
consecução clara de objetivos profissionais.
As profissões, portanto, dispõem do aparato
referido. Os profissionais da assistência,
a partir de suas diversas formações profissionais,
estão referenciados em seus Códigos de
Ética, sob fiscalização de seus respectivos
Conselhos Profissionais, e têm sua tradição
teórica construída sobre o acervo das
diferentes correntes de pensamento teórico
de suas disciplinas. No jargão prisional,
o termo “técnico” sempre se reporta aos
profissionais das assistências, nunca
aos agentes, o que significa que não são
reconhecidos, por exemplo, como “técnicos
da segurança penitenciária”.
Para
se alterar este quadro, a contribuição
governamental mais significativa se refere
à profissionalização dos agentes de segurança
como pré-requisito ao ingresso no serviço
público. Isto requer a instituição de
um aparato educacional profissionalizante,
sob o comando do Ministério da Educação,
concomitante à criação de legislação de
reconhecimento da função de agente de
segurança penitenciária, como tem ocorrido
com outros ofícios que foram transformados
em profissões, tema que será discutido
mais adiante, no Capítulo 5.
4.3.
Instrumentos da Segurança Penitenciária:
a Disciplina e a Vigilância
A
utilização eficaz dos instrumentos de
vigilância e disciplina são, teoricamente,
garantidores de que a custódia dos presos
se efetive de modo a produzir segurança
no ambiente prisional, na comunidade circundante,
além de garantir a integridade física
de presos, visitantes e funcionários.
Sabemos, no entanto, que esta ordem e
segurança são frágeis, sendo a custódia
operada pelos agentes constituída de um
processo de trabalho pautado por emergências
e riscos. Os instrumentos da segurança
são utilizados exatamente na perspectiva
da previsibilidade e na correção de fatos
graves.
4.3.1.
As Atividades de Vigilância
As
atividades de vigilância requerem um permanente
estado de alerta que seguidamente é acompanhado
da sensação de medo. Este estado de alerta,
em que a audição e a observação têm papel
fundamental, tende a se transformar numa
atitude de desconfiança e suspeita: o
agente, em geral, desconfia não só dos
presos, mas de seus próprios companheiros
de trabalho. Também a vida pessoal do
agente se reveste dos mesmos sentimentos:
determinados lugares públicos de lazer
são evitados, as formas de acesso à moradia
alteradas, informações sobre seu trabalho
não são divulgadas a vizinhos e parentes.
Os agentes vão construindo formas auto-defensivas
para não serem identificados no seu ofício.
Os instrumentos de vigilância mais comuns,
utilizados nas prisões brasileiras e,
também, encontradas em outros países são:
· A revista de objetos, ambientes
e pessoas;
·
A distribuição de agentes em “postos
de serviços”, que cobrem espaços físicos
específicos e determinados números de
presos;
· A utilização de registros diários
por escalas de plantão, de ocorrências,
sejam rotineiras ou ocasionais, no chamado
“livro de ocorrências”;
· A escolta de presos que se locomovem
internamente no espaço físico do estabelecimento,
naquelas áreas onde usualmente o preso
não deva transitar sozinho ou, nos espaços
externos quando deve ser levado à presença
do juiz ou a consultas médicas externas;
·
A ronda noturna;
·
O uso de algemas, armas e carros;
·
A realização de “conferes”, ou seja,
a contagem rotineira diária, pela manhã
e à noite, do número de presos custodiados
no estabelecimento, assim como conferes
especiais após tentativas de fugas ou
rebeliões;
·
A custódia de bens de valor financeiro
significativo trazidos pelo preso ao ingressar
no estabelecimento ou ofertado por seus
visitantes;
·
A vistoria das grades.
Alguns
dos instrumentos de vigilância assinalados
mostram claramente seu caráter invasivo
da intimidade do preso: as revistas de
sua cela, de sua cama, de seus objetos,
de seu corpo. Assim, o desempenho do agente
está fortemente vinculado às atividades
cujo limite quanto ao uso de seu poder
coercitivo sobre o preso não só está dado
pela legislação, mas, sobretudo, pelo
sentido ético sobre o qual se fundamenta
seu agir. De forma análoga, por exemplo,
o médico estabelece com seu paciente uma
relação em que o exame do corpo obedece
a rotinas pautadas na ética médica. Portanto,
as tarefas de vigilância não podem ser
descontextualizadas, nem vistas como mera
burocracia, mero hábito aprendido e repetido
pelas gerações de agentes, sem a reflexão
necessária sobre seu conteúdo técnico
e ético-político.
4.3.2.
A Ação Moralizadora da Disciplina.
Em
todos os espaços onde convivem pessoas
há formas de funcionamento coletivas e
individuais, pautadas em normas disciplinares.
Nos espaços de trabalho, lazer, negócios
e de convivência familiar, sempre existem
formas consensadas em que direitos e deveres
são exercidos, expressando o desenvolvimento
da sociabilidade no grupo e, em última
instância, a moral dos sujeitos em determinado
contexto e época. Podemos dizer que na
prisão existem expressões concretas da
moral na vida coletiva que reproduzem
formas morais da sociedade, mas que adquirem
feições características da vida em confinamento.
Destas expressões da moral podemos salientar
a linguagem, com seu glossário típico,
assim como os preconceitos manifestos
através de atitudes dogmáticas, movidas
pela intolerância e pelo irracionalismo.
Em
alguns espaços coletivos, as regras disciplinares
construídas pelos sujeitos revelam participação
efetiva de todos e a busca por deveres
e direitos consensados. É o caso de assembléias
de grupamentos profissionais ou de partidos
nos quais o ritual de funcionamento não
precisa ser expresso necessariamente por
regulamentos escritos. Os sujeitos incorporam
as normas disciplinares como forma de
convivência necessária à interação na
coletividade.
Noutros
espaços da vida, as regras disciplinares
são dispostas num aparato legal, como
ocorre com a disciplina a ser seguida
pelos jogadores de futebol, de volley,
de tenis ou de outras práticas esportivas.
Tais regras permitem presenciarmos torneios
internacionais entre representantes de
culturas, língua e etnias diversas, sem
que tenhamos qualquer dificuldade de compreensão
do desenrolar da atividade esportiva,
pois as regras disciplinares representam
o elo que facilita a disputa e o entendimento
entre os esportistas. Assim, podemos perceber
que regras disciplinares são consensadas
de modo mais democrático em alguns espaços,
com participação expressa dos sujeitos
envolvidos ou, então, são construídas
através de seus representantes, como nas
confederações esportivas.
As
primeiras regras disciplinares na vida
do sujeito são consensadas na família,
que expressam a moral através da cultura
familiar das gerações parentais. Tanto
a autoridade paterna quanto materna contribuem
de forma decisiva na construção das regras
com vistas à educação de seus filhos.
Em continuidade, os sujeitos vão vivenciar
na escola novas regras disciplinares,
fundadas na moral da sociedade e na disciplina
pedagógica orientadora da relação de ensino-aprendizagem.
A
relação de custódia instituída na prisão
está fundamentada por regras disciplinares
inscritas desde 1955 na “Regras Mínimas
de Tratamento dos Reclusos” e se estende
pelas legislações específicas de cada
país. Não são regras consensuais negociadas
entre custodiadores e custodiados. Seu
parâmetro legal prevê direitos e deveres
a partir da ótica do legislador, circunscrito
na produção das leis num determinado período
histórico, considerando as pressões e
demandas da sociedade e dos representantes
do Estado no intuito de compatibilizar
direitos fundamentais dos presos com requisitos
de segurança individual e coletiva. Sabemos
que, graças ao Direito, cujas normas contam
com o poder coercitivo do Estado, consegue-se
que os sujeitos aceitem, voluntária ou
involuntariamente, a ordem social juridicamente
formulada e, assim, se enquadrem no estatuto
social em vigor.
Na
prisão, o termo “disciplina” é corrente
e adquire um significado especial dentro
da relação de custódia, tal como expressa
o Art. 44 da LEP: “A disciplina consiste
na colaboração com a ordem, na obediência
às determinações das autoridades e seus
agentes e no desempenho do trabalho”.
Tanto na LEP, como no cotidiano das prisões,
a disciplina é tida como instrumento moralizador,
que visa adequar o comportamento dos sujeitos
a uma ordem determinada, em que a obediência,
a hierarquia e a tradição são valores
essenciais que concorrem para a manutenção
daquela ordem. Basta que examinemos com
mais vagar tanto as faltas graves (as
únicas previstas pela LEP, já que as médias
e leves pertencem às legislações estaduais),
como as sanções, recompensas e todo o
procedimento disciplinar. Tais aspectos,
apreciados na cultura prisional, acabam
por provocar formas esdrúxulas, tais como
a prática contumaz e banalizada do uso
de cela de isolamento, muitas vezes durante
o tempo cronológico imposto pelo custodiador.
Outros rituais dessa cultura são reconhecidos
como exemplos de disciplina, tal como
o preso colocar as mãos para trás e baixar
a cabeça diante da autoridade ou de visitantes.
Fitar os olhos ou apertar a mão do outro
seguidamente são gestos que podem significar
desrespeito ou intenção de aproximação,
reprováveis dentro da relação subordinada
implícita à custódia. Disciplinar, pois,
adquire para os custodiadores o sentido
corriqueiro de “cobrar”: significa reafirmar
para o preso que a correlação de forças
entre ele e seu custodiador é mesmo desigual
e pode ser exacerbada, seja através da
repreensão brusca, seja através de maus
tratos físicos.
Assim,
a cultura prisional forjou uma determinada
disciplina, que mais do que seguir os
requisitos das leis, repousa sobre uma
relação política de sujeição e domínio.
Em oposição, seria desejável que a disciplina
pudesse ser para o preso um exercício
de responsabilidade consigo mesmo e de
respeito ao outro, no sentido da revisão
daqueles valores que outrora garantiram
seu ingresso na criminalidade.
O
papel disciplinador exercido pelos trabalhadores
das prisões se concretiza junto aos técnicos
de forma diferenciada da ação dos agentes
de segurança penitenciária. No entanto,
para todos, talvez, a ação disciplinadora
seja a questão mais crucial da relação
de custódia pela fragilidade que desnuda:
custodiado e custodiador estabelecem forçosamente
uma relação de convivência, sem escolhas
mútuas, mas de caráter compulsório, pautada
por uma cultura em que disciplinar significa
apenas adequar os sujeitos àquela ordem.
Ora, de que ordem estamos falando? O ócio
generalizado, por exemplo, resultado da
falta de postos de trabalho dentro da
prisão poderia ser compreendido como imensa
desordem provocada pelos agentes do Estado.
Por outro lado, quando o preso trabalha
num dos postos existentes, respondendo,
assim, aos requisitos disciplinares que
concorrem para a ordem, qualquer deslize
de comportamento pode ser computado como
infração, acarretando imediato desligamento
do trabalho. Esvaziado de seu sentido
de desenvolver habilidade e responsabilidade,
o trabalho adquire o objetivo restrito
de ser instrumento de premiação e castigo.
4.3.3.
Mudanças Importantes na Legislação
Como
já foi ressaltado, tanto a legislação
internacional, quanto a nacional, são
omissas no que se refere às competências
específicas da área da segurança penitenciária.
Por isso mesmo, vale propor alteração
na Lei de Execução Penal de forma a definir
a questão. Há necessidade da introdução
de um capítulo para descrever tais competências,que
poderia ser o seguinte:
Capítulo
XXX
Da
Segurança Penitenciária:
Artigo
1. Com o sentido amplo de preservar e
proteger pessoas - presos, funcionários,
visitantes e cercanias das unidades –
a segurança penitenciária visa ações de
vigilância que propiciem um ambiente favorável
ao desenvolvimento das atividades cotidianas
e da boa convivência de todos aqueles
envolvidos na execução penal.
Artigo
2. A vigilância dos ambientes internos
das unidades compete ao grupamento de
agentes de segurança penitenciária, parte
integrante do pessoal penitenciário (Art.
76 e 77 da atual LEP).
Artigo
3. As ações de vigilância devem ser adaptadas
às condições físicas da unidade, ao regime
de pena, ao perfil e quantitativo de presos,
à rotina de visitação e de atividades
estratégicas, observando-se formas de
conduta funcional pautadas nos parâmetros
dessa Lei e da legislação internacional.
Artigo
4. A administração penitenciária deverá
se apropriar de equipamentos tecnológicos
de vigilância que garantam a segurança
das unidades, reduzindo as práticas aviltantes
de invasão da privacidade dos presos e
visitantes.
Artigo
5. Os agentes de segurança penitenciária
deverão, nas capacitações necessárias
às diferentes funções, ser introduzidos
ao conhecimento relativo a pessoas portadoras
de doença mental e dependência química,
internadas nos Hospitais de Custódia e
Tratamento Psiquiátrico.
Continuando,
nessa linha de proposições, a alteração
do Artigo 44 da atual Lei de Execução
Penal também deve ser considerada. Para
tanto, sugerimos a seguinte redação:
Artigo
44. A disciplina prisional visa superar
o binômio “prêmio- castigo”, contribuindo
para uma convivência coletiva harmônica
e constitui-se no compromisso de todos
– pessoal penitenciário, presos e visitantes
– para o exercício responsável das atividades
diárias e do respeito a todas as pessoas.
4.4.
Instrumentos da Assistência: Questões
Gerais
Com
a promulgação da Constituição Federal,
em 1988, encontramos a assistência social,
integrante da seguridade social, entendida
como um conjunto de ações prestadas “a
quem dela necessitar, independentemente
de contribuição à seguridade social”.
Ainda que o texto Constitucional não se
atenha explicitamente às pessoas que cumprem
penas privativas de liberdade, (Art. 203),
podemos depreender que “a proteção à família,
à maternidade, à infância, à adolescência
e à velhice se reportam, no mínimo, aos
familiares dos presos e presas, e a estas,
mais propriamente. A Lei Orgânica de Assistência
Social ( LOAS, Lei no. 8742, de 7/12/93)
dispõe sobre a Assistência Social, tal
como colocada na Constituição Federal.
O Art. 1º da LOAS define que:
“A
Assistência Social, direito do cidadão
e dever do Estado, é política de seguridade
social não contributiva, que provê os
mínimos sociais, realizada através de
um conjunto de ações de iniciativa pública
e da sociedade, para garantir o atendimento
às necessidades básicas”.
Na
Lei de Execução Penal, de 1984, portanto,
anterior à Constituição Federal, o sentido
de assistência social é mais restrito
e se expressa como sinônimo da ação dos
profissionais de Serviço Social junto
aos presos e seus familiares. No entanto,
as assistências enunciadas pela LEP nos
Art. 10 e 11 incluem os âmbitos da saúde
e das assistências jurídica, educacional,
social, religiosa e material. Note-se
a falta de referência à assistência psicológica.
Refletindo-se sobre a compatibilização
dos textos da Constituição, da LOAS e
dam LEP, é possível deduzir que:
1.
A assistência é um direito do preso provisório,
do condenado e do portador de medida de
segurança;
2.
Os familiares e pessoas de referência
dos presos estão cobertos pela prerrogativa
constitucional de que a assistência é
direito de todos, “para garantir o atendimento
às necessidades básicas”;
3.
As mulheres presas, na sua condição de
mães, assim como seus filhos, são portadores
do mesmo direito constitucional à assistência,
tal como já se fazia anotar na LEP, conforme
o Art. 89 – “a penitenciária de mulheres
poderá ser dotada de seção para gestante
e parturiente e de creche com a finalidade
de assistir ao menor desamparado cuja
responsável esteja presa”;
4.
A assistência é um dever do Estado e está
consubstanciado nas leis citadas, embora
o dever do Estado na proteção e garantia
desse direito venha se exercendo com extrema
fragilidade e inconsistência. Face à qualidade
da vida cotidiana dos presos na maior
parte das unidades prisionais e delegacias,
percebe-se que a assistência ainda é um
direito formal, necessitando adquirir
urgente efetividade.
Dentre
as assistências nomeadas em lei, a assistência
material dirige-se à satisfação de necessidades
básicas como higiene pessoal, vestuário,
sapatos, limpeza do ambiente e roupas
de cama e banho. As demais áreas de assistência
a serem providas dependem sobretudo da
alocação de recursos humanos – médicos,
dentistas, assistentes sociais, agentes
religiosos, professores e pedagogos -
assim como de diretrizes técnicas e políticas
sobre a natureza e finalidade do trabalho
desses profissionais.
Na
cultura prisional não é incomum a rotulação
do “bom papel” atribuído aos profissionais
da assistência, como assinalado anteriormente,
quando se mencionou o “jogo do cabo de
guerra”. No entanto, as contradições inerentes
ao papel profissional dos técnicos de
assistência na prisão se produzem dentro
do binômio assistir/custodiar: assegurar
condições que garantam a integridade física
e psicológica dos custodiados, concomitante
à manutenção da ordem e segurança. Como
já mencionado, é freqüente ouvirem-se
queixas intermináveis dos técnicos quanto
aos obstáculos que as questões relacionadas
à segurança penitenciária impõem a seu
agir profissional. Tais queixas revelam
dificuldades reais, mas traduzem, por
vezes, uma visão fatalista e, portanto,
acrítica, de que na hipótese de se removerem
“os obstáculos” referentes à segurança
penitenciária ter-se-iam as condições
ótimas para as assistências se concretizarem
de modo eficaz.
As
questões acima remetem à necessidade constante
de reflexão acerca da identidade profissional
dos técnicos no campo da execução penal,
certamente com contornos distintos daquela
construída em outros campos de trabalho,
onde inexiste a privação da liberdade
impondo limites à rotina diária de vida.
4.4.1.
Propostas Específicas para a Área das
Assistências
Uma
série de propostas visando o aperfeiçoamento
das práticas profissionais de assistência
são absolutamente viáveis e não dependem
de qualquer alteração legislativa. Neste
sentido estão colocadas as sugestões que
se seguem.
Com
o objetivo de melhor articular os Conselhos
Profissionais com os órgãos de monitoramento
da execução penal e com as administrações
penitenciárias, propriamente ditas, as
seguintes ações são recomendadas a nível
federal e estadual:
Nível
federal: os diferentes Conselhos Federais
de enfermagem, serviço social, psicologia,
medicina, etc., deverão se responsabilizar
pela articulação com o CNPCP e DEPEN quanto
a ações que lhe dizem respeito no âmbito
da política penitenciária, em relação
ao desempenho das respectivas áreas profissionais
da assistência, assim como de diretrizes
nacionais para este campo de ação profissional.
Paralelamente, os órgãos referidos devem
se valer da assessoria dos Conselhos Federais
para o aprimoramento das ações profissionais
de assistência.
Nível
estadual: os diferentes Conselhos
Regionais, articulados com os Conselhos
Federais, deverão acompanhar as ações
profissionais de suas respectivas áreas
de assistência no âmbito dos sistemas
penitenciários.
Os
seguintes temas devem, necessariamente,
ocupar a agenda dos Conselhos Regionais:
a)
Aprofundamento da discussão acerca da
identidade profissional no sistema prisional,
através de palestras, cursos, etc;
b)
Articulação dos Conselhos com os respectivos
cursos de graduação no sentido de inclusão
e discussão do exercício profissional
no sistema prisional;
c)
Fiscalização das condições de trabalho
dos profissionais de suas respectivas
áreas.
4.4.2.
Pensando a Área da Saúde
A
Lei de Execução Penal, em seu artigo 14º,
preceitua o dever do Estado no que tange
à saúde do preso, insistindo que a assistência
à saúde é direito, tanto a de caráter
preventivo como a de caráter curativo,
compreendendo o atendimento médico, farmacêutico
e odontológico. No entanto, é omissa quanto
ao atendimento psicológico, o que nos
leva à proposição contida no final deste
item.
Nos
Anexos ao presente trabalho pode ser encontrada
uma proposta detalhada para a área da
saúde no sistema penitenciário, mais especificamente
para a criação de uma Divisão de Saúde,
no âmbito do DEPEN. De qualquer forma,
algumas recomendações mais gerais, constantes
de tal Anexo, merecem ser enfatizadas:
·
Não se deve negligenciar o padrão
de qualidade na assistência à saúde do
preso, considerando-se, sempre, a assistência
proporcionada aos cidadãos livres;
·
O livre acesso aos cuidados de saúde
nas unidades prisionais deve ser garantido,
recomendando- se que a triagem dos casos
para atendimento seja feita por pessoal
qualificado;
·
É dever do profissional de saúde respeitar
o direito do paciente/preso decidir livremente
sobre sua saúde, a não ser em caso de
iminente perigo de vida, sendo vedado
o tratamento compulsório;
·
Os presos provisórios e condenados
devem ter garantido o acesso às informações
referentes à sua condição de saúde, aos
procedimentos e medicamentos prescritos;
·
O profissional de saúde que atua no
sistema penitenciário não deve abrir mão
de sua independência profissional, pautando
suas decisões e procedimentos no bemestar
da pessoa assistida;
·
O profissional de saúde que atua no
sistema penitenciário deve buscar conhecer
tanto a legislação de saúde, como aquela
que se relaciona com a execução penal
a fim de poder promover o bem-estar do
paciente e assegurar melhor qualidade
na prestação dos serviços de saúde às
pessoas sob seus cuidados.
Como
mencionado anteriormente, vale propor
uma pequena mudança legislativa no Artigo
11, inciso II, da LEP, acrescentando as
palavras física e mental quando
há referência à assistência à saúde. Já
no Artigo 14, há necessidade de que se
acrescente o atendimento psicológico após
a menção que se faz ao atendimento médico,
farmacêutico e odontológico.
4.4.3.
Pensando a Área da Educação e do Trabalho
Qualquer
possibilidade de futura reinserção do
preso no mundo livre, afastado do crime,
passa pelas oportunidades que lhe sejam
oferecidas nas áreas de educação e do
trabalho, embora se saiba que de nada
adiantará ter o preso aprendido um ofício,
se não houver programas efetivos de apoio
ao egresso penitenciário, tema que será
discutido mais adiante. O Estado brasileiro
tem sido historicamente incompetente para
prover educação e trabalho ao preso. Constroem-se
unidades prisionais sem espaço para oficinas
de trabalho. Constroem-se unidades prisionais
sem escolas. Existem escolas que não ensinam.
A educação para o trabalho é absolutamente
ignorada, quando existem recursos do Fundo
do Amparo ao Trabalhador (FAT) que podem
ser utilizados para tal finalidade.
Aqui,
novamente, é bom lembrar o que diz o Plano
Nacional de Segurança Pública, defendido
pelo então candidato à Presidência da
República, Luiz Inácio Lula da Silva.
Na área da educação, lembra o documento,
em sua página 76, a necessidade da “criação
de grupo de trabalho no Ministério da
Educação visando desenvolver conteúdos
programáticos e linha metodológica especificamente
destinados à educação do preso e, a partir
daí, (o governo federal deve) incentivar
os estados a utilizarem tais recursos
e auxiliar financeiramente a implantação
dos cursos”.
Quem
conhece escolas em prisões sabe da urgência
da efetivação de propostas como essas.
É fundamental que currículos específicos
sejam desenvolvidos para a população presa
e que se elaborem metodologias adequadas
às necessidades muito particulares desses
indivíduos. Tudo isto só poderá ser feito
com o empenho do governo federal, evidentemente.
A
revisão da Lei de Execução Penal, no que
se refere à remição pelo estudo, é outro
tema que demanda urgentíssima atenção.
Em alguns estados as Varas de Execução
já vêm aceitando que se computem dias/horas
dedicados ao estudo para efeito de remição.
No entanto, tudo ainda se dá de maneira
informal, o que deve ser evitado com a
revisão da legislação. Por outro lado,
o mesmo Plano Nacional de Segurança Pública
(pág.75) também aponta caminhos na área
do trabalho prisional, sugerindo “a abertura
de linhas de crédito específicas para
estímulo ao trabalho prisional e o apoio,
por intermédio de incentivos fiscais (federais,
estaduais e municipais) aos pequenos e
médios empresários que ocuparem a mão
de obra do preso em regime fechado, semi-aberto
e mesmo do egresso penitenciário”. Correta
proposição. No entanto, há que se atentar
para a necessidade de revisão da Lei de
Execução Penal, especificamente de seu
Artigo 28, parágrafo 2º, se desejarmos,
de fato, proteger o trabalho do preso
da exploração de empresários que, estimulados
por isenções fiscais, vierem a estabelecer
oficinas em unidades prisionais. O Artigo
28, parágrafo 2º, da referida lei, diz
que o trabalho do preso não está sujeito
ao regime da Consolidação das Leis do
Trabalho. Tal fato, como lembra Alvim,
“cria incentivo à ganância do empresariado
privado, à medida que o livra, nas contratações,
do rol de direitos embutidos na legislação
trabalhista, em cabal desrespeito à igualdade
constitucional”. Ademais, tal disposição
legal, “ao negar a possibilidade de contrato
trabalhista, contradiz o artigo 28, caput,
que enfatiza a finalidade produtiva, portanto,
profissionalizante” do trabalho prisional.11
Enfim, a necessidade de o trabalho do
preso ser protegido pela legislação trabalhista
é algo que precisa ser revisto com urgência.
4.5
As Comissões Técnicas de Classificação
A
Lei 10.792 de 1º de dezembro de 2003 muda
substancialmente a destinação das Comissões
Técnicas de Classificação, na medida em
que as libera das obrigações referentes
à confecção de exames criminológicos para
fins de benefícios legais. Fica mantida
a CTC para realização do exame criminológico
inicial com vistas à classificação dos
condenados. Ou seja, os profissionais
que, até então, se dedicavam à elaboração
de pareceres, basicamente para livramento
condicional e progressão de regime, deverão
estar agora apenas envolvidos com
os programas individualizadores da
pena e com a prestação das assistências,
de maneira mais geral.
É
ainda prematuro discutir o destino das
Comissões Técnicas de Classificação, na
medida em que se sabe que em alguns estados,
tanto juízes, quanto administração penitenciária,
continuam solicitando que os técnicos
elaborem exames criminológicos. Por outro
lado, embora a Lei 10.792, enfatize que
é de responsabilidade do diretor do estabelecimento
prisional a imposição das sanções disciplinares,
acredita-se que isto não elimina a possibilidade
de as Comissões Técnicas de Classificação
continuarem opinando sobre essas mesmas
sanções, embora haja quem argumente que
os profissionais que integram as CTCs
estejam dispensados deste papel.
De
qualquer forma, vale acentuar que, sobretudo,
psicólogos, psiquiatras e assistentes
sociais poderão dedicar mais tempo ao
atendimento das necessidades individuais
dos presos e à participação nas discussões
sobre o cotidiano das unidades prisionais
nas quais atuam. Mais ainda, está na hora
de as CTCs começarem a desempenhar um
papel que é seu e que jamais foi assumido:
o de assessorar a administração penitenciária
com vistas ao aperfeiçoamento da gestão
prisional e, sobretudo, o de construir
estratégias para lidar com o conflito
inerente à pena privativa de liberdade,
ou seja, a contradição entre custodiar,
punir, assistir e proteger.
Algumas
práticas, já implementadas em sistemas
penitenciários pelo país afora, devem
agora ser muito incentivadas, como por
exemplo:
1.
Reuniões periódicas (semanais, quinzenais
ou mensais), agendadas pela Direção da
unidade prisional, de caráter técnico-administrativo,
para discutir os problemas do cotidiano
da unidade, buscando as propostas de cada
área profissional (psicologia, serviço
social, saúde, administração, segurança).
2.
Reuniões periódicas da direção com uma
única área profissional no sentido de
debater o trabalho da área no contexto
da micropolítica da unidade.
3.
Reuniões de equipes de profissionais da
mesma área profissional com sua chefia
imediata (chefia de segurança com seus
subordinados, chefia de serviço social
com os assistentes sociais ou chefia da
área assistencial, quando houver, com
os seus subordinados).
Essas
reuniões, que podem ser vistas como mero
instrumento burocrático, podem, na verdade,
constituírem espaços privilegiados de
troca de experiência e de discussão acerca
das finalidades da pena privativa de liberdade,de
tal forma que permita a técnicos das áreas
profissionais distintas repensarem seu
papel de custodiadores. Por outro lado,
tais reuniões contribuem para horizontalizar
a gestão prisional, colocando as direções
das unidades como facilitadores desse
processo.
5.
Controle externo e interno
5.1.
Entendendo o Monitoramento e as Formas
de Controle Externo
O
sistema prisional, por sua própria natureza,
tem como principal característica o isolamento
do indivíduo. Este isolamento, no entanto,
deve obedecer a determinadas regras e
limites para que se evitem violações de
direitos humanos, muito comuns quando
é suprimida a liberdade. A maioria das
violações de direitos nos centros de detenção
resulta da falta de transparência que
permeia este universo, o que muitas vezes
impede que o próprio Estado tome conhecimento
da gravidade de tais violações.
O
monitoramento do sistema prisional deve
ser realizado de forma permanente e continuada
por representantes da sociedade civil
organizada e por todos aqueles órgãos
cuja responsabilidade de fiscalizar as
prisões e centros de detenção encontra-se
contemplada na Lei de Execução Penal.
Evidentemente,
a melhor maneira de se efetuar o monitoramento
é por meio de visitas in loco,
onde podem ser documentados abusos e irregularidades
e, de maneira geral, as principais funções
do monitoramento devem ser:
·
A prevenção
A
fiscalização regular das unidades, realizadas
por pessoas de fora do sistema, certamente
contribui para a proteção dos presos.
Aceitas ou toleradas, tais visitas representam
um mecanismo de controle de razovável
eficácia que pode evitar a ocorrência
de violações;
·
A proteção direta
As
visitas proporcionam a oportunidade de
resposta imediata a determinados problemas
vivenciados pelos presos, em relação aos
quais as autoridades não se tenham pronunciado;
· A documentação
As visitas exercem importantíssimo
papel na documentação de informações sobre
o sistema penitenciário, permitindo não
somente transparência, mas principalmente
justificativas para propostas que visem
mudanças;
·
O suporte ao preso
O
contato direto com alguém privado de liberdade,
por si só, pode significar valioso suporte
moral;
·
O diálogo com as autoridades
As
visitas tornam possível estabelecer diálogo
direto e permanente com as autoridades,
objetivando a colaboração mútua e a procura
de alternativas para a solução de problemas
detectados.
Pode-se
dizer, então, que o monitoramento envolve
o exame regular de todos os aspectos da
detenção e sua importância reside na possibilidade
de que, através de sua ação, as autoridades
responsáveis pela área possam ser chamadas
a cumprir o que determina a lei. Ressalte-se
que o monitoramento terá sempre mais eficácia
na medida em que as denúncias estiverem
acompanhadas de propostas concretas. Ou
seja, o caráter propositivo do monitoramento
é condição primeira de seu sucesso.
5.2.
O Monitoramento e a Legislação
Tanto
a legislação internacional, como a Lei
de Execução Penal, referem-se claramente
aos mecanismos de controle das prisões.
A breve análise dessa legislação é importante
para se perceber a distância entre os
dispositivos legais e a realidade do sistema
penitenciário brasileiro.
5.2.1.
Legislação Internacional
Uma
série de acordos e tratados internacionais,
dos quais o Brasil é signatário, dispõem
sobre questões relativas ao monitoramento
e inspeção dos sistemas penitenciários,
além de ressaltar o direito dos presos
em apresentarem queixas. Antes de mais
nada, proporcionar ao preso um mecanismo
eficaz de comunicação com a autoridade
responsável pelo sistema penitenciário
é fundamental e está contemplado no Art.
2 do Pacto Internacional sobre Direitos
Civis e Políticos: Cada Estado signatário
do presente Pacto compromete-se a:
a)
Garantir que toda pessoa, cujos direitos
e liberdades reconhecidas no presente
Pacto hajam sido violados, possa dispor
de um recurso efetivo, mesmo que a violência
tenha sido perpetrada por pessoas que
agiam no exercício de funções oficiais;
b)
Garantir que toda pessoa que interpuser
tal recurso terá seu direito determinado
pela competente autoridade judicial, administrativa
ou legislativa ou por qualquer outra autoridade
competente prevista no ordenamento jurídico
do Estado em questão e a desenvolver as
possibilidades de recurso judicial;
c)
Garantir o cumprimento, pelas autoridades
competentes, de qualquer decisão que julgar
procedente tal recurso.
E,
mais ainda, o Princípio 33 do Conjunto
de Princípios para a Proteção de Todas
as Pessoas Sujeitas a Qualquer Forma de
Detenção ou Prisão, estabelece o seguinte:
1.
A pessoa detida ou presa, ou o seu advogado,
têm o direito de apresentar um pedido
ou queixa relativos ao seu tratamento,
nomeadamente no caso de tortura ou de
tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes,
perante as autoridades responsáveis pela
administração do local de detenção e a
autoridades superiores e, se necessário,
para autoridades competentes de controle
ou de recurso;
2.
No caso de a pessoa detida ou presa ou
o seu advogado não poderem exercer os
direitos previstos no nº1 do presente
princípio, estes poderão ser exercidos
por um membro da família da pessoa detida
ou presa, ou por qualquer outra pessoa
que tenha conhecimento do caso;
3.
O caráter confidencial do pedido ou da
queixa é mantido se o requerente o solicitar;
4.
O pedido ou queixa devem ser examinados
prontamente e respondidos sem demora injustificada.
No caso de indeferimento do pedido ou
da queixa ou em caso de demora excessiva,
o requerente tem o direito de apresentar
o pedido ou queixa perante autoridade
judiciária competente ou outra autoridade.
A pessoa detida ou presa ou o requerente
nos termos do nº 1 , não devem sofrer
prejuízos pelo fato de terem apresentado
um pedido ou queixa. Os documentos internacionais
também são muito claros quanto à necessidade
do monitoramento ou inspeção das unidades
prisionais por inspetores/monitores independentes.
Vejamos o que diz o Conjunto de Princípios
para a Proteção de Todas as Pessoas Sujeitas
a Qualquer Forma de Detenção ou Prisão
dispõe em seu princípio 29:
1.
A fim de assegurar a estrita observância
das leis e regulamentos pertinentes, os
lugares de detenção devem ser inspecionados
regularmente por pessoas qualificadas
e experientes, nomeadas por uma autoridade
competente diferente da autoridade diretamente
encarregada da administração do local
de detenção ou da prisão, e responsáveis
perante ela;
2.
Uma pessoa detida ou presa deve ter o
direito de comunicar-se livre e confidencialmente
com as pessoas que visitam os lugares
de detenção ou prisão de acordo com o
parágrafo 1 do presente princícipio, tudo
sujeito a condições razoáveis que garantam
a segurança e a boa ordem desses lugares.
5.2.2.
Lei de Execução Penal
A
Lei de Execução Penal é muito clara quando
se refere aos órgãos que devem fiscalizar
e/ou inspecionar os sistemas penitenciários.
Em primeiro lugar, cabe ao Conselho Nacional
de Política Criminal e Penitenciária,
entre outras responsabilidades, a de “
inspecionar e fiscalizar os estabelecimentos
penitenciários....”(art. 64,VIII). Por
seu turno, cabe ao Juiz da Execução “inspecionar,
mensalmente, os estabelecimentos penais,
tomando providências para o adequado funcionamento
e promovendo, quando for o caso, a apuração
de responsabilidade.(art. 66,VII). Deve,
ainda, o Ministério Público visitar mensalmente
os estabelecimentos penais.(art. 68, parágrafo
único) Os Conselhos Penitenciário dos
estados também estão obrigados a “inspecionar
os estabelecimento penais” (art. 70, II),
e o Departamento Penitenciário Nacional
também deve “inspecionar e fiscalizar
periodicamente os estabelecimentos e serviços
penais”(art. 72, II). Finalmente, o Conselho
da Comunidade, deve “visitar, pelo menos
mensalmente, os estabelecimentos penais
existentes na comarca, entrevistando presos
e apresentando relatórios mensais ao juiz
da execução(art. 81,I,II e III) .
Ora,
se todos esses órgãos procedessem a fiscalizações
e inspeções regulares das unidades prisionais,
certamente as irregularidades e ilegalidades
estariam sendo melhor combatidas. Por
outro lado, a criação de um Fórum Permanente
que congregasse representantes dos diferentes
órgãos responsáveis pelo trabalho de fiscalização/e
ou inspeção seria muito útil e contribuiria
para o aperfeiçoamento dos sistemas penitenciários.
Entre
os órgãos de monitoramento externo já
existentes, os Conselhos da Comunidade
apresentam potencial muito significativo
e sua criação deveria ser estimulada.
É urgente, no entanto, a criação de Ouvidorias
para os sistemas penitenciários. São esses
temas que trataremos a seguir.
5.3.
O Conselho da Comunidade
No
ano de 2000, recebemos no Brasil a visita
de Sir Nigel Rodley, Relator Especial
das Nações Unidas para a tortura. Suas
constatações caracterizaram a tortura
no Brasil como sistemática, disseminada
e impune. No relatório apresentado em
2001, Nigel Rodley fez inúmeras sugestões
ao governo brasileiro, dentre elas a necessidade
de se garantir o monitoramento permanente
das instituições penais, através do acesso
irrestrito de organizações não governamentais
de direitos humanos e da garantia de recursos
e estrutura necessários para o funcionamento
dos Conselhos da Comunidade, assim como
das Ouvidorias e dos Conselhos Estaduais
de Direitos Humanos. Ganha destaque o
fato de o Brasil, no ano de 2003, ter
assinado o Protocolo Facultativo à Convenção
contra a Tortura da ONU, que prevê a criação
de um órgão internacional para monitoramento
das prisões e obriga os governos a criar
instrumentos nacionais com o mesmo objetivo.
Investir
em um órgão que tenha autonomia e estrutura
para monitorar o sistema penal é criar
condições para combater a ação do Estado
que se afasta de seu papel legal e, como
bem lembra Foucault, “cada luta se desenvolve
em torno de um foco particular de poder.
Designar esses focos de poder, denunciá-los,
falar deles publicamente, forçar a rede
de informações institucional, nomear,
dizer quem fez, o que fez, denunciar o
alvo é a primeira inversão de poder, é
um primeiro passo para outras lutas contra
o poder”.12
O
artigo 80 da Lei de Execução Penal, prevê
a existência de um Conselho da Comunidade
em cada comarca. Segundo a LEP, o Conselho
deve ser composto por um representante
da associação comercial ou industrial,
um advogado indicado pela OAB e um assistente
social. Afirma-se, em parágrafo único,
que em falta de representação prevista,
ficará a critério do Juiz da Execução
a escolha dos integrantes do Conselho.
De pronto, deveria ser garantida maior
representatividade para o Conselho. A
participação das universidades, ONGs grupos
religiosos e outros conselhos profissionais
como o de psicologia e medicina, por exemplo,
deveriam ter o mesmo destaque dos órgãos
hoje citados na LEP. Outro aspecto importante
quanto ao funcionamento dos Conselhos
da Comunidade, que deveria ser revisto,
é a relação dos mesmos com o Juízo da
Execução. Havendo desinteresse do Juiz
de Execução da Comarca na criação do Conselho
da Comunidade, o mesmo deveria ser criado
a partir de iniciativas de membros da
sociedade civil organizada. O artigo 81
da LEP prevê as obrigações do Conselho
da Comunidade: visitar, pelo menos mensalmente,
os estabelecimentos penais existentes
na comarca; entrevistar os presos; apresentar
relatórios mensais ao Juiz da Execução
e ao Conselho Penitenciário; diligenciar
a obtenção de recursos materiais e humanos
para melhor assistência ao preso ou internado,
em harmonia com a direção do estabelecimento.
Em relação a essas últimas tarefas percebe
se forte inspiração assistencialista supondo-se
que o Conselho possa suprir a ausência
do Estado e a falta de políticas públicas
para a área.
Tendo
em vista que o Conselho da Comunidade
é o único órgão da execução penal composto
por representantes da sociedade civil
organizada, é fundamental que suas possibilidades
de monitoramento sejam estruturadas e
efetivadas. Algumas propostas concretas
para viabilização do perfil fiscalizador
do Conselho da Comunidade seriam:
· Encaminhamento dos relatórios
de visitas do Conselho da Comunidade aos
órgãos federais da execução penal;
· Criação de um Fórum Nacional
de Conselhos da Comunidade, viabilizando
o intercâmbio de experiências e informações
da ação dos Conselhos;
· Produção de diagnósticos das
condições das unidades visitadas, inclusive
avaliando as condições de trabalho dos
profissionais da segurança e da área técnica;
· Autorização para utilização
de máquinas fotográficas durante as visitas
do Conselho da Comunidade às unidades
prisionais;
· Incorporação da responsabilidade
de visitar e fiscalizar as cadeias públicas
e delegacias;
· Notificação aos Conselhos das
Comunidades das operações de revistas,
a fim de que num curto espaço de tempo
os conselheiros tenham acesso aos presos
e verifiquem sua condição física e mental;
· Padronização dos modelos de
relatórios de visitas, facilitando a unificação
das informações a nível nacional. Neste
sentido o Conselho da Comunidade do Rio
de Janeiro produziu modelo que foi construído
a partir dos questionários utilizados
pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara
Federal, do questionário do Centro de
Europeu de Prevenção à Tortura. Por fim,
a LEP não faz qualquer menção a recursos
administrativos e financeiros que viabilizem
o adequado funcionamento dos Conselhos
da Comunidade, com o conseqüente cumprimento
de suas obrigações. A autonomia e independência
dos Conselhos ficam, na prática, comprometidas
pela falta de estrutura. Os governos estaduais,
auxiliados pelo governo federal, devem
disponibilizar recursos financeiros para
que os Conselhos da Comunidade contem
com instalações adequadas e equipamentos,
assim como pessoal de apoio e viaturas
para as visitas. Verbas também deveriam
ser asseguradas para viabilizar a participação
de representantes dos Conselhos em eventos
organizados por outros estados (seminários,
conferências, etc.), de maneira a fortalecer
redes de defesa dos direitos dos presos.
Por fim, os Conselhos da Comunidade deveriam
dispor de recursos para realizarem pesquisas
e publicações.
5.4.
As Ouvidorias
Mecanismos
de controle externo, na área da segurança
pública, vem se popularizando em muitos
estados brasileiros, com a criação de
Ouvidorias das polícias estaduais e municipais.
No entanto, na área do Sistema Penitenciário,
tal prática ainda está longe de se tornar
realidade. Com exceção de São Paulo e
de Pernambuco, os sistemas penitenciários
ainda são absolutamente refratários a
qualquer tentativa de criação de órgãos
de controle externo. No entanto, sabe-se
que a sensação de segurança da população
depende muito do grau de confiança depositado
no poder público e na qualidade dos serviços
prestados e que essa confiança aumenta
quando governantes e servidores públicos
conduzem seu trabalho com transparência,
desenvolvendo canais de comunicação com
a população.
Se
atentarmos para o que sugere o Plano Nacional
de Segurança Pública, do então candidato
Luiz Inácio Lula da Silva, para a área
do Sistema Penitenciário, percebe-se que
houve preocupação particular de enfatizar
a necessidade do controle externo. Fala-se,
claramente, da criação da “Ouvidoria-Geral
do Sistema Penitenciário Brasileiro, no
Ministério da Justiça, e estímulo à criação
de Ouvidorias nos sistemas penitenciários
estaduais, por meio de ajuda técnica e
financeira.” E, mais ainda, insiste-se
que “a partir de um determinado momento,
os estados que não tiverem implantado
suas Ouvidorias, não receberão verbas”
(federais, evidentemente). Louve-se a
recentíssima iniciativa do Ministério
da Justiça de criar a Ouvidoria-Geral
do Sistema Penitenciário. Espera-se que
tal Ouvidoria funcione, como acontece
em tantos outros órgãos federais, com
um número 0800 à disposição da população.
Desta forma, o Ministério da Justiça poderá
monitorar o que acontece nos sistemas
penitenciários estaduais e cobrar dos
estados o respeito à lei.
Por
outro lado, os estados também devem criar
suas Ouvidorias, disponibilizando um número
0800 para o recebimento de queixas. E,
mais ainda, principalmente nos estados,
as Ouvidorias devem ter caráter também
pró-ativo, de forma a não se restringir
ao monitoramento de casos individuais,
buscando a punição de funcionários que
se comportam de forma ilegal ou irregular,
mas deve envolver-se com o monitoramento
mais amplo dos sistemas penitenciários,
buscando formular propostas para problemas
estruturais.
5.5.
As Corregedorias
As
Corregedorias são órgãos de controle interno
no âmbito dos sistemas penitenciários
que objetivam combater irregularidades
e ilegalidades, principalmente a violência
e a corrupção. É importante que as apurações
das Corregedorias sejam sempre muito céleres
e seus resultados amplamente divulgados
de forma a combater a sensação de impunidade.
Constatou-se, no levantamento realizado
para este trabalho, que cerca de 50% dos
estados não contam com Corregedorias e
constituem comissões de sindicâncias,
toda vez que há necessidade de investigar
o desvio de comportamento de funcionários,
o que é absolutamente inaceitável. A criação
de corregedorias em todas as unidades
da federação é urgente e algumas recomendações
para tal encontram-se a seguir.
Deve
ser de competência das Corregedorias dos
Sistemas Penitenciários dos Estados:
a)
Verificar o cumprimento das normas e diretrizes
fixadas para o Sistema Penitenciário,
apurando, através de sindicâncias, as
irregularidades que vier a constatar ou
lhe forem submetidas;
b)
Prestar esclarecimentos aos diversos órgãos
dos Poderes Judiciário e Executivo, bem
como a outras instituições, sobre a instauração
e tramitação das sindicâncias relativas
aos servidores nelas envolvidos;
c)
Manter as autoridades superiores do sistema
penitenciário informadas das atividades
de corregedoria;
d)
Analisar e emitir parecer em todas as
sindicâncias instauradas e concluídas
nas suas unidades administrativas e prisionais
dos sistemas penitenciários;
e)
Controlar, através de publicação em informativo
oficial, a instauração de todas as sindicâncias,
acompanhando a tramitação das mesmas,
até sua conclusão e/ou encaminhamento
à autoridade competente;
f
) Proceder a revisão das sindicâncias,
pesquisando novos fatos apresentados pelo
peticionário e elaborando relatórios conclusivos;
g)
Desenvolver atividades correcionais nos
órgãos dos sistemas penitenciários, principalmente
através de análise de relatórios de supervisões
ou inspeções realizadas;
h)
Apurar infrações e sua autoria, desde
que imputadas a servidores dos sistemas
penitenciários;
i)
Avaliar, de forma sistemática, nova legislação,
decretos e/ou portarias que entrem em
vigor, de forma a adequar seu trabalho
às novas regras, inclusive apreciando
a validade jurídica de regulamentos introduzidos
pelas autoridades da área;
j)
Estar sempre em contato com os órgãos
externos de monitoramento das prisões,
principalmente o Conselho da Comunidade
e os órgãos responsáveis pela fiscalização
do sistema prisional, de acordo com a
Lei de Execução Penal. Considerando as
diferenças estruturais dos Sistemas Penitenciários
dos estados federativos brasileiros, que
apresentam quantitativos funcionais e
efetivo carcerário diversos, exigindo,
inclusive, legislações específicas, seria
difícil definir o número de servidores
indispensável ao funcionamento modelar
de uma Corregedoria.
No
entanto, para que este órgão desempenhe
seu papel, dispondo de condições similares
em todos os Estados, deve ser estabelecido
um número mínimo de Comissões Permanentes
de Sindicância, tomando-se por base o
quantitativo de unidades prisionais, o
efetivo carcerário e o número de profissionais
ali lotados. É de fundamental importância
que as Corregedorias mantenham, através
de Escolas de Formação Penitenciária,
cursos permanentes de sindicância, com
obrigatoriedade de presença daqueles que
dirigem ou pretendem ser Diretores dos
estabelecimentos prisionais, bem como
de seus principais auxiliares, já que
a maioria das apurações é feita pelos
servidores das próprias unidades, local
de origem dos fatos geradores das mesmas.
Pelo
despreparo dos membros das Comissões,
os procedimentos apuratórios, em sua grande
maioria, são eivados de vícios, fazendo
com que sua duração se estenda demais,
gerando descrença, ineficácia e ineficiência
do trabalho, estimulando a crença na impunidade.
Em razão da obrigatoriedade de apuração,
pela autoridade administrativa competente,
de qualquer irregularidade havida no âmbito
do serviço público, e visando à uniformidade
e padronização dos atos praticados e das
medidas adotadas, a sindicância terá que
estar adstrita a normas legais e gerais
a toda Federação, respeitadas as legislações
específicas de cada Estado. Contudo, atenção
especial deverá ser dispensada no sentido
de se evitarem divergências de interpretação
e conflito de dispositivos legais, argumento
utilizado para a anulação de procedimentos
apuratórios.
Algumas
medidas que deveriam ser adotadas quando
da implantação de Corregedorias:
· Criação de cargos para as Corregedorias.
Tanto o cargo de Corregedor, quanto aqueles
de seus auxiliares, devem fazer parte
de estrutura própria das Corregedorias,
independente da estrutura dos sistemas
penitenciários;
· Manutenção, nas Corregedorias,
em ordens alfabética e numérica, de arquivo
atualizado com relação dos servidores
punidos e/ou que estejam envolvidos em
procedimentos apuratórios, visando ao
fornecimento de subsídios funcionais aos
demais órgãos do Sistema;
· Publicação trimestral, em informativo
próprio, de listagem das sindicâncias
instauradas no período, bem como do estágio
em que se encontram as anteriores, possibilitando
aos dirigentes e demais servidores total
transparência e crença na seriedade das
investigações das falhas ocorridas no
Sistema;
· Promoção de palestras e cursos
nas Escolas de Formação Penitenciária
a partir de problemas constatados nas
sindicâncias de forma a prevenir futuras
ilegalidades;
· Agilização das várias assistências
nas unidades, com base em denúncias recebidas,
contribuindo para o melhor funcionamento
das unidades prisionais.
6.
Capacitação de Pessoal
As
Regras Mínimas para o Tratamento dos Recusos,
documento da ONU que data de 1955, é bom
que se lembre, já estabeleciam que a formação
profissional propriamente dita, anterior
ao ingresso nos cargos, e a capacitação
continuada, ao longo do desempenho de
suas atividades, são absolutamente indispensáveis
para o pessoal penitenciário.
“1.
O pessoal deve possuir um nível intelectual
adequado;
2.
Deve freqüentar, antes de entrar em funções,
um curso de formação geral e especial
e prestar provas teóricas e práticas;
3. Após a entrada em função e ao longo
da sua carreira, o pessoal deve conservar
e melhorar os seus conhecimentos e competências
profissionais, seguindo cursos de aperfeiçoamento
organizados periodicamente” 13
Já
se salientou, anteriormente, que dentre
o pessoal penitenciário há os portadores
de profissões e os de ofícios. A formação
profissional anterior ao ingresso nos
cargos diz respeito, portanto, ao pessoal
das áreas técnicas, que praticam “as assistências”
previstas na LEP. Para habilitarem-se
aos concursos públicos, uma das exigências
se refere ao registro nos Conselhos Profissionais.
Quanto ao pessoal da área de segurança,
inexiste uma política pública de educação
profissionalizante de segurança penitenciária.
Mesmo
assim, pode-se verificar que ainda são
muito limitadas as iniciativas dentro
dos cursos de graduação, no Brasil, de
introdução de disciplinas que possibilitem
o acesso a estágios na área do sistema
prisional ou a conteúdos teóricos que
problematizem a temática das prisões.
Ainda que as formações profissionais sejam
generalistas até determinada etapa dos
cursos superiores, e depois se abram num
leque de especializações, muito escassas
são as inserções de temáticas nas universidades
referentes ao campo da execução penal.
Seguidamente,
comenta-se que a universidade brasileira
tem sido pouco sensível, nas suas linhas
de pesquisa e extensão, à questão da segurança
pública, em especial à área de estudos
do sistema prisional. Há, portanto, a
necessidade de uma política de fomento
à pesquisa nessa área, que deveria ser
estimulada por órgãos como a CAPES e o
CNPq. O enfoque também deve se dirigir
a cursos de especialização que aglutinem
profissionais das diversas áreas, num
esforço de coletivizar a discussão das
práticas profissionais no campo da execução
penal.(vide Plano Nacional de Segurança
Pública). É importante assinalar que uma
variedade de temas, fundamentais para
a formação dos profissionais que atuam
na área, são constantemente esquecidos,
como por exemplo, a função da prisão na
sociedade; a relação da criminalidade
com a prisão; a produção da criminalidade;
a construção das identidades profissionais
no campo da execução penal; e a inserção
diferenciada de cada profissão. Estas
são questões básicas que constituem um
núcleo comum de conhecimentos, tanto para
detentores de profissão como de ofícios.
Em
relação aos ofícios, como o de agente
de segurança penitenciária, a formação
mínima exigida para ingresso no cargo
é a escolaridade de 2º grau. A percepção
usual em relação ao exercício da segurança
penitenciária é de que os agentes desempenham
uma função essencialmente pragmática,
em que o conhecimento necessário se constrói
na experiência adquirida no cotidiano.
Esta é uma constatação restrita às tarefas
residuais dos agentes, quer seja a movimentação
dos presos, sua escolta, o manuseio de
instrumentos de vigilância. No entanto,
o desempenho essencial dos agentes de
segurança se refere à sua responsabilidade
formal na ação disciplinadora junto aos
presos. Como já se disse, é nesta relação
entre custodiador e custodiados, perpassada
pela ação moralizadora da disciplina,
no âmbito da cultura prisional, que estão
postos os maiores desafios e dilemas à
ação dos agentes. É exatamente nesta relação
que se verifica grande parte dos episódios
de violação à integridade física e psicológica
dos presos, assim como os conseqüentes
incidentes prisionais. Portanto, a ação
disciplinadora, nas formas hoje existentes
na cultura da prisão, se naturalizou,
banalizando ações violentas, e permitindo
que os presos reafirmem que a presença
do Estado nas suas vidas significa o desrespeito
e a infração às garantias legais.
Alterar
a cultura de violência institucional existente,
da qual os agentes são em grande parte
atores consensuais, supõe, por parte da
Administração Pública, um compromisso
que é político com investimentos muito
significativos na formação profissional,
instituindo- se uma política de formação
profissionalizante, alavancada pelo Ministério
da Educação (Vide Plano Nacional de Segurança
Pública). Em tal formação profissional,
inicialmente de nível técnico, segurança
penitenciária poderia ser concebida como
uma proposta de formação continuada, composta
por graduação e pós-graduação. A formação
curricular, nesta hipótese, trabalharia
com conteúdos básicos que contemplem,
como já mencionado, a discussão sobre
as formas de punição contemporâneas, sua
relação com a criminalidade, as contradições
da punição e da reinserção e sua operacionalidade,
a legislação penal e de execução penal
e a respectiva inserção e identidade profissional
dos agentes neste contexto. Já na área
de formação de habilidades para o exercício
profissional, pode-se destacar temas específicos
como, por exemplo, o uso da força, o manuseio
de armamentos, o controle de incidentes
prisionais, a direção defensiva, procedimentos
administrativos diversos e tantos outros.
No
sentido que se dá à formação profissional,
visa-se colocar a ação dos agentes dentro
dos parâmetros legais em que se inscreve
a custódia no Estado Democrático, buscando
substituir uma cultura de violência, impregnada
de vingança, alimentada pelo preconceito
em relação aos presos e aos próprios agentes,
por uma cultura de respeito ao preso e
à valorização do funcionário, em que este
possa se inserir como um agente de disciplina,
fundada em valores éticos de responsabilidade
e respeito à convivência coletiva. O Brasil
tem urgência em fundar uma nova imagem
de seus agentes da lei, que possa espelhar
para a população, valores de credibilidade,
confiabilidade e proteção. A capacitação,
portanto, é constituída pelas ações pedagógicas
e pela proposição de conteúdos programáticos
que possam propiciar atualização e desenvolvimento
aos trabalhadores dos sistemas penitenciários.
Tais ações podem se desenvolver através
de Escolas
Penitenciárias
nos estados. É importante destacar, no
entanto, que a política de capacitação
das Escolas de Formação não supre por
si só as questões mais gerais e pontuais
dos trabalhadores. De fato, só uma política
de recursos humanos, ainda tímida e até
inexistente em muitos estados da federação,
pode instituir várias frentes de abordagem
das questões relativas ao trabalho, tais
como a saúde do trabalhador, o plano de
cargos e salários, a revisão constante
das condições de trabalho e a própria
política de capacitação. Querer resolver
a insatisfação, o imobilismo, a indisciplina
dos trabalhadores através da capacitação,
como única alternativa, é uma perversão.
Na verdade, não se constrói um ambiente
pedagógico de sensibilidade à necessidade
de aprendizagem num clima de profunda
insatisfação com as condições de trabalho.
Destrói-se a credibilidade na capacitação,
desmerecendo seu valor, na medida em que
ela não alterar, por si só, posturas descompromissadas,
violentas ou ideologicamente conservadoras
dos trabalhadores da prisão.
As
propostas de capacitação operam num campo
delimitado: ora informando sobre novas
questões em debate (veja-se, por exemplo,
o debate sobre justiça terapêutica, diminuição
da idade de responsabilidade penal e regime
disciplinar diferenciado) na conjuntura
atual, ora aprofundando temáticas desafiantes
relativas aos presos como a dependência
química, o abuso sexual, etc.
6.1.
Recomendações na Área da Formação Profissional
Na
área da formação profissional, as recomendações
são as seguintes, também incorporando
sugestões do Plano Nacional de Segurança
Pública:
1.
Quanto às profissões em que é requerido
o nível superior: (Serviço Social, Direito,
Psicologia, Medicina, Odontologia, Enfermagem,
Nutrição, Terapia Ocupacional, e Pedagogia,
principalmente).
a)
Inclusão de disciplina nos respectivos
cursos de graduação que abranja:
·
A questão da economia lícita da criminalidade
e o elo indissociável com a prisão, assim
como a legislação internacional/nacional
acerca da punição e proteção dos presos.
·
A discussão acerca da relação entre a
cultura brasileira marcada pela ideologia
elitista, conservadora, relacionada a
questões da história da formação da sociedade
brasileira, com rebatimentos substanciais
na cultura da impunidade, da violência
institucional, do clientelismo, do autoritarismo,
etc;
b)
Incentivo ao fomento de pesquisas no sistema
prisional pela CAPES e CNPQ com a concessão
de bolsas de iniciação científica e especialização
atreladas à linhas de pesquisa sobre criminalidade
e prisão, buscando publicizar os relatórios
de pesquisas, colocando tal material bibliográfico
ao alcance do público diretamente interessado
na questão prisional: pessoal penitenciário,
professores de universidades e de ensino
médio, pesquisadores e administradores;
c)
Valorização de carga horária e de conteúdos
nos cursos de Direito de conhecimentos
acerca de execução penal, buscando capacitar
mais efetivamente os futuros advogados,
defensores e promotores públicos;
d)
Incentivo a bolsas de estágio para alunos
de graduação em projetos de extensão em
diversas áreas disciplinares com vistas
a tornar mais permeável e visível a execução
das penas, assim como capacitar profissionalmente
estudantes que potencialmente possam contribuir
com o campo da execução penal;
e)
Mapeamento através de órgãos como CAPES
e CNPq, de pesquisadores e de produções
acadêmicas referentes ao campo da criminalidade
e execução penal, visando a criação de
um banco de dados;
f
) Incentivo ao aumento do número de bolsas
de mestrado e doutorado para estudantes
com projetos de pesquisa significativos
na área de execução penal.
g)
Criação de cursos de especialização junto
às faculdades de Direito, Psicologia,
Serviço Social, Sociologia e Ciência Política
visando formar acervo de produção acadêmica
num enfoque multidisciplinar, estabelecendo
parcerias entre as universidades e os
órgãos das administrações penitenciárias
estaduais.
2.
Quanto à profissionalização de sujeitos
que venham a se candidatar a empregos
na área de segurança pública e, em especial,
à função de agente de segurança penitenciária:
a)
No sentido de transformar o atual ofício
de agente de segurança penitenciária em
profissão, criar, com o concurso do MEC
e das Secretarias Estaduais de Educação,
cursos profissionalizantes em dois níveis:
·
Nível Médio – correspondente à finalização
do Ensino Médio, (com expedição de diploma
de 2º Grau)
como “técnico de segurança penitenciária”.
Além das disciplinas convencionais de
português e matemática, tal currículo
aprofundaria os conteúdos de história
e geografia, principalmente no que se
refere às questões mais significativas
da história e geografia políticas brasileira,
buscando ressaltar os problemas da desigualdade
social e da cultura (cultura da violência,
da impunidade, autoritarismo, burocratismo).
·
Nível de Graduação
6.2.
Recomendações na Área de Capacitação Profissional
Na
área da capacitação profissional as recomendações
são as seguintes:
1)
Dotar os órgãos estaduais de administração
penitenciária de Escolas de Formação,
voltadas para capacitar o público interno
– o pessoal penitenciário. Tais escolas
necessitam ser implantadas para se incumbirem
da ambientação dos trabalhadores recém
ingressos nas prisões, seja oriundos de
concursos públicos ou de requisições administrativas,
assim como da capacitação continuada,
no sentido de oferecer atualização técnica
aos diferentes segmentos funcionais. Evidentemente,
tais Escolas não podem ser mantidas no
improviso, como ocorre em alguns Estados.
É preciso que tenham orçamento próprio,
corpo docente capacitado, tanto fixo como
complementado por professores “visitantes”,
assim como propostas pedagógicas concretizadas
em currículos escolares, etc;
2)
A ambientação deve se voltar a estagiários,
novos técnicos e novos agentes de segurança
recém ingressos, assim como voluntários
que estão inseridos em atividades religiosas,
culturais ou de lazer, parceiros de programas
de trabalho e de assistência a egressos.
A ambientação visa inserir, de forma mais
segura e produtiva, novos atores no contexto
prisional;
3)
A capacitação continuada busca instrumentalizar
o pessoal penitenciário com novos conhecimentos,
organizar e sistematizar o conhecimento
empírico adquirido na prática cotidiana
e oferecer novas habilidades diante do
desafio do acelerado desenvolvimento tecnológico,
tornando a participação dos trabalhadores
das prisões mais produtiva, tanto no desempenho
que lhes é requerido, como na construção
de sua auto-estima.
A
capacitação continuada é uma estratégia
que acentua o elo do trabalhador com a
prática que exercita e sua sistematização
teórico-metodológica.É importante ficar
claro que não existe um fazer acabado,
soberano e inquestionável, mas sujeito
a reformulações face à disposição de refletir
e refazer a prática cotidiana na dinamicidade
da vida institucional;
4)
Revisão das práticas de gestão prisional
destinada aos gestores inseridos nas diversas
instâncias da estrutura organizacional:
direções, assessorias, chefias intermediárias
e de vínculo direto com a população de
funcionários;
5)
Capacitação de pessoal das diversas áreas
para o exercício da supervisão técnica
aos grupamentos profissionais. A figura
do supervisor se coloca como aquele que
possibilita no cotidiano discutir com
seus pares os conflitos institucionais
existentes, os objetivos das ações e elaboração
e avaliação dos projetos e outros pontos
trazidos como uma necessidade pelos supervisionados.
A capacitação formulada pelo Programa
das Escolas se constitui em eventos –
cursos, seminários, por exemplo, enquanto
que a supervisão acompanha o desempenho
dos profissionais cotidianamente. Formar
supervisores, como uma atribuição das
Escolas, requer que as Administrações
Penitenciárias creditem aos programas
de Supervisão o objetivo de desenvolvimento
contínuo dos trabalhadores, assim como
estabeleçam o fluxo de comunicação dos
profissionais da ponta, que atuam junto
aos presos e familiares com as assessorias
e direções superiores.
7.
Gestão de Pessoal
7.1.
Recrutamento e Seleção
7.1.1.
Recrutamento
Ao
nos reportarmos à gestão de pessoal, teceremos
alguns comentários acerca de recrutamento
e seleção do pessoal penitenciário, assim
como sobre planos de cargos e salários.
Foram fonte de análise os documentos encaminhados
pelos sistemas penitenciários de alguns
estados. Face à avaliação do material
colhido, apresentaremos algumas proposições
que não podem ser vistas de forma dissociada
da capacitação profissional de pessoal,
ítem já discutido anteriormente.
Iniciamos
pelas condições de recrutamento realizado
majoritariamente por órgãos públicos,
para preencher cargos da organização administrativa
do Estado. Vale lembrar que, em
pelo menos três estados onde existem unidades
terceirizadas (privatizadas), o recrutamento
e seleção se fazem através de empresas
privadas. Deve–se notar que não existe
no país uma política de recrutamento e
seleção orietadora dessas atividades operadas
pelo estado. Portanto, não é surpresa
encontrarmos uma diversidade de critérios
de recrutamento e seleção, sem que se
tenham fundamentos claros para tal, mesmo
levando em conta a diferente dimensão
de sistemas prisionais nos estados. O
que importa salientar é que as funções
de trabalho na custódia e na assistência
têm uma mesma finalidade em diferentes
cenários, uma vez que regidas pela mesma
Lei de Execução Penal. Chamamos atenção,
como mencionado no item 4.3.3, que os
gestores do sistema penitenciário no Brasil
não encontram nenhum parâmetro legal que
oriente a área da segurança penitenciária.
Para
facilitar a compreensão desta diversidade
que aparece nos critérios utilizados pelos
estados, listamos algumas categorias constantes
dos editais de concursos públicos. Quanto
ao recrutamento, as exigências para inscrição
variam a cada ano no mesmo estado e de
estado para estado, conforme descrito
abaixo:
·
Idade mínima
A
maioria dos estados exige a idade mínima
de 18 anos para admissão aos variados
cargos dos sistemas penitenciários. Entretanto,
observou–se variações entre editais de
anos diferentes, no próprio estado: ora
exigem 18 anos, ora 21 anos. Apenas um
estados não limita a idade mínima para
admissão ao cargo de agente penitenciário,
porém exige a escolaridade de ensino superior
completo, o que faz supor que a idade
mínima esteja em torno de 20 anos, pelo
menos.
·
Carteira de habilitação
Todos
os editais exigem a carteira de habilitação
para motorista, indiferentemente dos cargos.
·
Altura mínima
A
altura mínima exigida na maioria dos estados
é de 1,65cm para homens e 1,60cm para
mulheres, no cargo de agente penitenciário.
Entretanto há variações entre editais
do próprio estado, quanto à altura das
mulheres: uns exigem1,60cm e outros 1,55cm.
·
Vagas destinadas aos portadores de necessidades
especiais
A
maioria dos editais garante um percentual
de vagas para os portadores de necessidades
especiais, como determina legislação específica,
porém os candidatos serão avaliados por
ocasião do exame médico quanto à adequação
da deficiência à função a ser exercida.
Entretanto, observa–se nos editais de
alguns estados, a expressa proibição de
inscrição aos portadores de necessidades
especiais, justificadas pela incompatibilidade
com a função de agente penitenciário.
·
Incidência de vagas
A
maioria dos concursos se destina ao preenchimento
de vagas para o cargo de agente penitenciário.
Alguns estados realizaram concursos para
cargos na área das assistências, porém
o número de vagas oferecido foi bastante
reduzido. Cabe salientar que em alguns
estados da federação não existem profissionais
da área das assistências, sendo as mesmas
prestadas por profissionais cedidos de
outros órgãos do estado ou por agentes
penitenciários com formação acadêmica
na área específica, desviados de função.
Observa–se
que em nenhum dos editais foram oferecidas
vagas para cargos na área da assistência
jurídica. Levando-se em conta que muitos
estados não contam com Defensorias Públicas,
é muito grave tal constatação.
·
Escolaridade:
Quanto
ao nível de escolaridade, a maioria dos
estados exige o ensino médio completo
para o cargo de agente penitenciário e
o curso técnico para áreas específicas,
como por exemplo, auxiliar de enfermagem.
Para cargos administrativos e de serviços
gerais é exigido o ensino fundamental
completo ou incompleto, ou o ensino médio
completo, conforme a função. Apenas um
estado, após a criação do Plano de Cargos
e Salários, passou a exigir o ensino superior
completo para o cargo de Agente Penitenciário.
Na área das assistências é exigida a graduação
plena, com os registros nos respectivos
Conselhos Regionais.
7.1.2.
Seleção
As
etapas de seleção dos candidatos variam
entre os estados, porém a prova escrita,
objetiva, é comum a todos, diferenciando-se
apenas nas disciplinas e nos conteúdos
exigidos. Em alguns estados, na prova
para o cargo de Agente Penitenciário,
constam as disciplinas de Português, Matemática,
História, Geografia e conhecimentos específicos.
Em
outros estados, são exigidas apenas as
disciplinas de Português, Matemática e
Conhecimentos Específicos para o cargo
de agente penitenciário. Para os cargos
da área das assistências, uma única exigência
é geral: a de conhecimentos específicos
da área de atuação. Cabe destacar que
na maioria dos estados, os editais não
exigem conhecimentos no campo da Criminologia
e da Justiça Criminal, ou mesmo, execução
penal. Apenas alguns editais para concurso
de agente penitenciário incluíram tais
exigências. Na maioria dos estados, a
pontuação mínima exigida na prova objetiva
é de 50 pontos para todos os cargos. Observou-se,
entretanto,que em alguns estados, em anos
diferentes, esse critério se modificou,
apenas para o cargo de agente penitenciário,
passando a exigirse a pontuação mínima
de 60 pontos. Todos os editais analisados
incluem prova de aptidão física para o
cargo de agente penitenciário, de caráter
eliminatório, realizada, na maioria dos
estados, nas Academias de Polícia Civil
ou Militar.
A
prova de títulos para os cargos da área
das assistências se constitui na segunda
etapa do processo seletivo. Em alguns
estados, a prova de títulos também é exigida
para os cargos de agente penitenciário
e para serviços gerais. Esta etapa tem
o caráter classificatório. O exame médico,
de caráter eliminatório, é exigido para
todas as categorias profissionais. Os
portadores de necessidades especiais são
avaliados conforme sua deficiência e função
a ser desempenhada. O exame psicotécnico,
ou avaliação psicológica, não é comum
a todos os estados, mas naqueles em que
aparece tal exigência, o mesmo tem caráter
eliminatório. Cabe destacar que em todos
os estados, o Curso de Capacitação Profissional,
na verdade, uma das etapas do processo
seletivo, é exigido apenas para o cargo
de agente penitenciário e tem o caráter
eliminatório. Em alguns estados também
é classificatório. A carga horária dos
cursos varia de 80 horas/aula a 720 horas/aula.
Os órgãos que ministram o curso também
diferem entre os estados: naqueles que
contam com Escola de Formação Penitenciária,
as aulas teóricas são aí ministradas,
e as aulas práticas (defesa pessoal, utilização
de armas, etc) são realizadas nas academias
de polícia. Nos estados que não possuem
escola, que são a maioria, o curso é ministrado
pelo DEPEN ou por profissionais do próprio
sistema penitenciário, ou ainda por outros
profissionais de órgãos da segurança pública
e professores universitários.
Observa–se
que a qualidade e o nível de exigência
dos cursos estão relacionados com a política
penitenciária do estado e, conseqüentemente,
com a infra-estrutura existente. Entre
os Editais analisados observou-se que
apenas dois estados incluem, entre as
etapas do processo seletivo, a investigação
social: o Rio de Janeiro e o Ceará.
7.1.3.
Salários
Poucos
foram os editais que mencionaram o valor
dos salários. Entre os salários apresentados,
para as diversas categorias, observa–se
uma grande diversidade. A maioria oferece
salários muito baixos, com exceção de
Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rondônia,
Rio de Janeiro e Distrito Federal,
onde os salários variam de R$700,00 a
R$3.000,00, respectivamente. Nos demais
estados, a média dos salários é de R$500,00
para as diferentes áreas. Tal diversidade
está a indicar a necessidade da criação
de Planos de Cargos e Salários para a
área dos sistemas penitenciários, o que
também deveria contar com orientação partindo
do DEPEN. Por outro lado, isto também
reflete a necessidade de uma política
penitenciária que priorize a valorização
dos servidores, possibilitando a perspectiva
de ascensão profissional, aperfeiçoamento
e melhoria salarial.
7.2.
Planos de Cargos e Salários
Em
se tratando de Planos de Cargos e Salários
dos funcionários dos sistemas penitenciários
no país, verifica-se que 70,8% das administrações
públicas estaduais ainda não se ocuparam
de elaborá-los, ou mesmo de oficializá-los.
Esta é uma questão seguidamente lembrada
pelos funcionários, diante de sua insatisfação
com a falta de perspectivas mais promissoras
de ascenção funcional. Pode-se levantar
algumas questões quanto à ausência desses
Planos, na maioria dos estados:
1.
Seriam os funcionários das prisões vistos
com algum preconceito por parte da administração
pública superior, face a seu objeto de
trabalho?
2.
Seria o movimento sindical, na área dos
sistemas penitenciários, ainda muito incipiente,
isolado do movimento mais geral do funcionalismo
público, no sentido de lutar por tais
planos? Contribuiria para a fragilidade
do movimento sindical nos sistemas penitenciários
a pulverização existente de associações
e sindicatos, abrigando diferentes categorias
profissionais no cenário de cada estado?
3.
Esta fragilidade poderia ser vista como
resultado do arrefecimento do movimento
sindical dos trabalhadores no país, face
à precarização das relações de trabalho
e da competitividade no mercado?
Na
verdade, talvez a resposta a essas perguntas
seja positiva. Logo, é preciso refletir
sobre a falta de Planos de Cargos e Salários
a partir de uma perspectiva política,
e não apenas técnico-administrativa e
é fundamental a participação do DEPEN
para que se saia do imobilismo e se comece
a discutir, com seriedade, o que provoca
a falta de Planos de Cargos e Salários.
É importante observar, também, que no
relatório do Encontro Nacional das Escolas
Penitenciárias, realizado nos dias 12,
13 e 14 de novembro de 2003, os representantes
das cinco escolas existentes no Brasil
não incluíram em suas propostas a necessidade
e a importância de um Plano de Cargos
e Salários, muito menos mencionaram a
necessidade do aperfeiçoamento profissional
vinculado a qualquer Plano. Percebe-se,
assim, o longo caminho que ainda necessita
ser percorrido para se criar uma gestão
prisional baseada na competência e no
conhecimento, critérios norteadores de
Planos de Cargos e Salários em outros
campos profissionais e instituições. Por
último, cabe assinalar que, dentre os
documentos analisados, encontram-se os
Planos de Cargos e Salários dos sistemas
penitenciários do Rio Grande do Sul e
Mato Grosso do Sul, os únicos estados
que enviaram à coordenação deste trabalho
tal material. Vale assinalar que esses
Planos podem ser referencial para outros
estados e, entre suas características
positivas, estão a de se utilizarem da
titulação de nível médio, superior e de
pós-graduação, como critério para ascenção
funcional e retribuição salarial.
7.3.
Algumas Propostas
Diante
do exposto, propomos a construção de uma
política nacional pelo DEPEN, norteadora
não só do processo de recrutamento e seleção
do pessoal penitenciário, como também
de planos de carreira. Tal política deve
considerar os seguintes pontos:
·
Conteúdo programático único para todos
os cargos, inclusive para aqueles da área
das assistências, versando sobre legislação
específica do campo da execução
penal, do funcionamento do sistema penitenciário
e do estatuto do funcionalismo de cada
Estado;
·
Criação do cargo de assistente jurídico
e, conseqüentemente, concurso para preenchimento
de vagas;
· Inclusão dos profissionais da
área das assistências, recém-aprovados,
ou em exercício, nos Cursos de Capacitação
Profissional (ambientação e aperfeiçoamento
profissional, respectivamente);
· Currículo básico para os cursos
de capacitação (ambientação e de aperfeiçoamento
profissional), de boa qualidade, ampliando
a formação dos novos servidores para além
da questão da segurança, vigilância e
disciplina, de modo a permitir uma reflexão
sobre a sua função enquanto custodiador;
· Criação de um Plano de Carreira,
Cargos e Salários para os servidores do
sistema penitenciário, que priorize a
formação profissional como forma de ascensão
funcional;
· Parcerias com instituições acadêmicas
para realização de cursos de especialização
na área da execução penal.
7.4.
Saúde do Trabalhador
Na
área do sistema penitenciário, um programa
de saúde do trabalhador consiste em oferecer
assistência médica, odontológica, psicológica
e social, bom como desenvolver ações específicas
de promoção da saúde e prevenção de doenças
aos profissionais das unidades prisionais.
Os
agentes penitenciários são os trabalhadores
encarregados de revistar presos, celas,
visitantes, conduzir presos, realizar
a vigilância interna das unidades e disciplinar
a refeição dos presos. Por terem contato
direto com os internos e sendo vistos
por estes como um dos responsáveis pela
manutenção do seu confinamento, estes
trabalhadores estão freqüentemente expostos
a diversas situações geradoras de acentuado
estresse. Todos os outros profissionais
que labutam no sistema penitenciário,
embora sem contato próximo, diário e regular
com os internos, também sofrem o impacto
da tensão presente no ambiente prisional.
Assim, um programa de saúde do trabalhador
do sistema penitenciário, deveria ter
como atribuições:
· Estabelecer os padrões profissiográficos
de todas as funções e cargos no âmbito
do sistema penitenciário e sua aplicabilidade
quando da admissão do trabalhador, garantindo-se
desse modo uma efetiva aptidão física
e psíquica para estas atividades laborativas.
· Promoção da Saúde e prevenção
de doenças, ocupacionais ou não, tais
como Hepatite B, Tétano/difteria (por
meio de vacinação), HA, diabetes, DSTs,
depressão, entre outras (através de informações
sobre mudanças de hábitos de vida e comportamento).
· Detecção dos agravos à Saúde
relacionados com o trabalho, através de:
1.
Estudos epidemiológicos que visem estabelecer
nexo causal entre as doenças mais comuns
apresentadas pelos servidores e suas diversas
atividades;
2.
Inspeção periódica aos locais de trabalho
avaliando suas condições físicas ambientais
e conseqüentes riscos à saúde dos funcionários;
3.
Permanente diálogo com o setor de Recursos
Humanos avaliando as rotinas de trabalho,
conflitos interpessoais, etc;
·
Prevenção de acidentes de trabalho,
através de palestras, folders e cartazes;
·
Acompanhamento de casos de acidente
de trabalho pelo serviço de assistência,
em especial aos acidentes com material
biológico.
· Realização de exames periódicos
anuais.
· Realização de exames periciais
nos casos de afastamento por doenças.
· Acompanhamento de doenças crônicas
(já instaladas) e contagiosas, visando
a parada de progressão das mesmas.
· Acompanhamento pelo Serviço
Social dos casos de readaptação no trabalho
(com redução ou não de carga horária,
etc).
·
Acompanhamento, através de exames
mensais, dos agentes novos em fase de
estágio probatório/experimental a fim
de detectar doenças mentais, preexistentes/latentes,
por profissionais das áreas da psiquiatria
e psicologia.
8.
Outros Temas
8.1.
A Especificidade da Mulher Presa
Como
se sabe, a prisão representa uma caricatura
da sociedade em geral. Por um lado ela
é um espaço que reproduz as condições
de exclusão das mulheres, segundo vivenciadas
no mundo de fora. Por outro lado, intensifica
alguns males da sociedade em forma perversa,
porque infantiliza as pessoas (ao controlar
todos os aspectos de suas vidas e fazê-las
dependentes de uma autoridade externa)
e, ao mesmo tempo, exige delas maturidade
para declará-las “ressocializadas”.
Assim,
cabe lembrar que o cárcere é uma instituição
totalizante e despersonalizadora, na qual
predomina a desconfiança e onde a violência
se converte em instrumento de troca. Essas
características correspondem às prisões
em geral, mas são muito mais marcantes
em prisões de mulheres.
Do
conjunto de pessoas que compõem a massa
carcerária, a mulher não se destaca. Na
América Latina, a porcentagem de presas
oscila, aproximadamente, entre 3% e 9%
da população carcerária. No Brasil, representa
4,33% dos presos.14 A
reduzida presença numérica da mulher no
sistema prisional tem provocado o desinteresse,
tanto de pesquisadores como das autoridades,
e a decorrente “invisibilização” das necessidades
femininas nas políticas penitenciárias,
que em geral se ajustam aos modelos tipicamente
masculinos.15 O perfil da mulher reclusa
demonstra o quanto ela integra as estatísticas
da marginalidade e da exclusão: a maioria
é não branca, tem filhos, apresenta escolaridade
incipiente e conduta delitiva que se caracteriza
pela menor gravidade, vinculação com o
patrimônio e reduzida participação na
distribuição de poder, salvo contadas
exceções. Esse quadro sustenta a associação
da prisão à desigualdade social, à discriminação
e à seletividade do sistema de justiça
penal, que acaba punindo os mais vulneráveis,
sob categorias de raça, renda e gênero.16
8.1.1.
Legislação Penitenciária sob um Olhar
de Gênero
Uma
leitura detalhada e focalizada na busca
de referências sobre a mulher reclusa
nos leva a constatar que são escassas
as disposições que dela se ocupam. Existem
poucas referências na Constituição Federal,
na Lei de Execução Penal, que regulamenta
os dispositivos constitucionais, e em
alguns regimentos estaduais para os estabelecimentos
prisionais. Os referidos diplomas legais
regularam acertadamente a situação especial
da mulher, mas o fizeram de forma demasiado
tímida, sem abranger a totalidade de suas
necessidades e impondo parâmetros passíveis
de interpretação conservadora, em especial
no que tange à formação profissional feminina
na prisão. No artigo 19 da LEP, que trata
da assistência educacional, menciona-se
que “a mulher condenada terá ensino profissional
adequado a sua condição”, sem evidenciar
o significado da expressão “condição feminina”.
Acreditamos que a diferença de gênero
não representa critério legítimo no que
concerne à organização de cursos
de formação profissionalizante diferenciados.
A mulher tem ingressado em espaços de
trabalho antes tipicamente masculinos,
e vem tendo sucesso ao lidar com situações
complexas. Dispositivos que imponham limitações
baseadas em argumentos ambíguos e de múltipla
interpretação devem ser objeto de concentrada
atenção, porquanto se trata de situação
que pode provocar abuso de poder e facilitar
a transgressão do direito à igualdade.
Por
outro lado, uma característica comum naqueles
textos é o suposto caráter de neutralidade.
Porém, entendemos que a redação de uma
norma não terá tal caráter na medida em
que fizer referência exclusiva ao homem,
perfil que corresponde à maioria dos textos
legislativos em matéria penitenciária.
Existem
de fato citações sobre a mulher presa,
porém os referidos documentos limitamse
a regular aspectos ligados à maternidade.
Nossa intenção não é, tampouco, negar
a importância de uma norma a esse respeito;
o que pretendemos é chamar a atenção para
a identificação da mulher com um único
papel, como se o universo feminino, composto
por necessidades e recursos próprios e
diversos, pudesse ser representado apenas
pela função de mãe. Se a esse tópico somarmos
a pretendida “neutralidade” na redação
dos artigos da LEP nos indicativos da
visita íntima, concluiremos que a norma
(e a prática) nega a sexualidade da mulher
quando esta se vincula ao exercício da
liberdade sexual e, contrariamente, a
reforça quando a mulher é identificada
com o papel materno. É importante a análise
de alguns temas pontuais:
·
A questão da saúde
A
questão da saúde representa um problema
fundamental no contexto prisional feminino,
porquanto ela forma parte das recorrentes
demandas das mulheres presas não só em
penitenciárias, mas também em cadeias
públicas e distritos policiais.17
Por
essa razão as políticas de saúde devem
abranger tanto o âmbito dos sistemas penitenciários
(que administram as penitenciárias) quanto
o de segurança pública (que administra
cadeias e distritos policiais).
Restringindo
nossa análise ao âmbito normativo podemos
asseverar que no texto da LEP (artigo
14) que trata do direito de assistência
à saúde, lê-se que esse direito se efetivará
com a contratação de médico, farmacêutico
e odontologista — não existindo nenhuma
indicação à necessidade de contratação
de ginecologista, especialidade vital
no controle de doenças que vitimizam as
mulheres (câncer de mama, câncer de colo
uterino, etc) e no acompanhamento pré-natal.
·
A questão do trabalho
A
maioria das mulheres presas trabalhou
antes de sua prisão.18 Após o ingresso
na prisão, essas mulheres continuam trabalhando,
embora nem sempre realizem atividades
reconhecidas oficialmente. A valoração
do trabalho como meio de obtenção de liberdade
conjuga-se com a importância que tem essa
atividade para o trabalhador por garantir
sua subsistência, e nessa interseção se
confundem os interesses do trabalhador
na prisão com os daquele que se encontra
no meio livre. Porém, a aproximação de
interesses é relativizada quando percebemos
que a condição de subsistência difere
da do senso comum, porquanto seu caráter
utilitário não se vincula ao lucro nem
ao consumo (ao menos não exclusivamente),
mas à possibilidade de afastá-los da realidade
e de lhes ocupar o tempo livre. O tempo
ocioso pode se converter no pior inimigo
do recluso, não só porque no entender
das autoridades sugere vadiagem e fracasso
do tratamento ressocializador, mas também
porque favorece o envolvimento em ilegalidades.19
Daí a importância de proporcionar todas
as condições para que o trabalho possa
ser realizado no interior dos cárceres.
Por
outro lado, a restrição do exercício de
direitos trabalhistas prejudica às trabalhadoras
presas e, especialmente àquelas que engravidam.
Segundo a Consolidação das Leis
Trabalhistas (CLT), a mulher trabalhadora
tem direito à licença-maternidade por
120 dias correspondentes aos períodos
pré e pós-parto20 e
o direito de não ser demitida nesse período,
salvo justa causa expressamente comprovada.
Como inexiste a possibilidade de apelar
à CLT (segundo o artigo 28 da LEP) quando
se trata de trabalho carcerário, a presa
que presta serviços corre o risco de ser
demitida e prejudicada como conseqüência
de sua gravidez.
Finalmente,
cabe destacar que o trabalho exercido
na prisão deve se distanciar das práticas
de manipulação, sometimento e de imposição
de modelos conservadores de feminilidade
ou de mulher “normal”, e deve passar a
ser entendido como um direito de base
constitucional e, ao mesmo tempo, como
uma alternativa de resistência à degradação
do cárcere.
·
A questão da família
Um
dos aspectos cruciais nas aflições provocadas
pela detenção entre as mulheres presas
é o distanciamento da família. Essa afirmação
deve ser confrontada com os dados estatísticos
que dão conta de que entre 65% e 90% das
mulheres presas são mães e aproximadamente
60% são chefes de família, ou seja, representam
a principal fonte de renda do lar.
Em
pesquisa sobre a visita íntima, a Coordenadoria
de Saúde da Secretaria de Administração
Penitenciária de São Paulo recolheu informações
dos presídios femininos do Estado de modo
a identificar o contexto familiar das
mulheres. Na Penitenciária Feminina da
Capital21 82,87% declararam ter filhos22
, dos quais 59,12% vivem com a família
da reclusa; o marido (ou ex-marido) conservou
a guarda só em 6,07% dos casos. A residência
dos filhos está localizada em 42,55% dos
casos na capital, em 32,45%, no interior
ou no litoral e na porcentagem restante,
em outros estados ou países. Tais informações
confirmam o abandono de que são vítimas
as mulheres na prisão. Ademais, podemos
deduzir que a condenação das mulheres
recai não só sobre elas, mas também sobre
os filhos, vítimas indiretas da sanção
estatal. Esses dados sugerem a necessidade
de criar presídios menores perto das localidades
de procedência das mulheres presas, para
dessa forma manter o binômio preso-família,
e assim facilitar a reintegração, uma
vez readquirida a liberdade .
·
O acesso à informação
Outro
fator que condiciona o cotidiano na prisão,
além do silêncio, das múltiplas e pequenas
regras, da monotonia, da rigorosidade
da disciplina, da despersonalização e
da perda de autocontrole, é a limitação
do acesso à informação. Essa ignorância
persistente gera desorientação e estimula,
ainda mais, a docilidade como valor absoluto.
Nas prisões femininas, o valor “docilidade”
adquire significação especial na medida
em que tenta reproduzir os padrões “femininos”
como regra de conduta. A não-adequação
a esses padrões provoca maior repressão
por gerar o entendimento de que se pretende
fugir do modelo de “mulher normal”, e
pode redundar em avaliação negativa no
tocante aos laudos e pareceres de técnicos.
Nesse sentido, convém fortalecer um discurso
crítico que incorpore a perspectiva de
gênero nos cursos de formação de agentes
e técnicos penitenciários.
Intensificando
ainda mais a desinformação, observa-se
o desconhecimento da maioria das mulheres
presas sobre sua situação jurídica ou
sobre processos administrativos a que
esteja submetida na unidade prisional.
Portanto, sugere-se implementar canais
de informação sobre os direitos das presas,
garantindo maior transparência de informações
processuais e administrativas nos estabelecimentos
prisionais (via a divulgação das regras
internas ao presídio, por exemplo). Para
ampliar o direito às informações processuais,
deveriam ser criados mecanismos de formação
e educação em direitos e cidadania às
presas, no sentido de capacitá-las, não
só para a compreensão de sua realidade
jurídica como condenada / acusada, mas
também visando sua reinserção social.
·
Reintegração social
Para
atingir esse objetivo é preciso promover
mecanismos de sensibilização sobre a realidade
prisional e sobre a necessidade de um
papel ativo da sociedade na reintegração
das mulheres encarceradas, seja através
dos meios de comunicação, seja via a incorporação
nas grades curriculares das escolas e
universidades destas temáticas. Nesse
contexto, devese estimular a constituição
de Conselhos da Comunidade em todas as
comarcas, garantindo a aproximação efetiva
da sociedade civil organizada às prisões.
8.1.2.
A Questão das Creches
O
crescimento do número de presos no país,
acarreta o aumento do número de crianças
que vivem a experiência de terem seus
pais ou suas mães encarceradas. Como uma
população esquecida, essas crianças sofrem
o impacto de políticas públicas que desconsideram
suas necessidades para um desenvolvimento
psicológico saudável. Os dados estatísticos
da literatura internacional mostram que,
quando o pai é preso, a maioria das crianças
continua sendo cuidada por sua mãe. Contudo,
quando da prisão materna, somente 10%
das crianças continuam sendo cuidadas
pelos companheiros das mães.23
Segundo
dados constantes do Anexo 1 deste trabalho,
atualmente no Brasil cerca de 4,1% da
população carcerária é composta por mulheres
e assim como os homens são jovens e com
filhos.
No
Brasil, quando uma mãe é presa, existem
três possibilidades para a guarda de seus
filhos pequenos (0 a 6 anos): em instituição
de abrigo, em família substituta (que
pode ser a sua família ampliada) ou no
berçário e/ou creche do presídio. Os poucos
e desatualizados dados brasileiros indicam
que a maioria das crianças filhas de mulheres
presas acaba sendo cuidada por suas avós
maternas (51%).24 A
guarda em presídio é bastante polêmica
e complexa, talvez em decorrência do ambiente
prisional e das relações estabelecidas
em seu interior não serem as mais adequadas
para o acolhimento da relação mãe-bebê
e para o saudável desenvolvimento infantil,
mas também pela delinqüência materna ferir
o estereótipo da “boa mãe”.25 “Insinua-se
que a mulher criminosa apresenta um real
perigo para a sociedade, mais do que muitos
homens perigosos e violentos, por seu
potencial de influenciar seus filhos e,
possivelmente, encorajá-los a atitudes
criminosas” 26 A literatura internacional
relata diversas experiências de creches
em presídios femininos e apresenta argumentos
favoráveis e contrários à permanência
de crianças em seu interior.
Em
outros países como Estados Unidos, Austrália,
França, Alemanha a maioria das experiências
de guarda de crianças em presídios são
desenvolvidas durante o período de amamentação,
pois várias instituições defendem a permanência
da criança com a mãe nos primeiros meses
de vida, por considerarem-na saudável
para o relacionamento mãe-criança, reforçando
laços e contribuindo para a posterior
reinserção social da presa.27Um problema
relatado quanto a esse tipo de guarda
é a tensão entre as necessidades de um
bebê e os regulamentos institucionais
de um presídio, ou seja, o exercício de
sua função básica de punição. Sarradet,28
que estudou as crianças que vivem em presídios
na França (onde a criança pode ficar em
creche no interior de uma unidade prisional,
junto com sua mãe, até completar dezoito
meses) afirma que, a princípio e juridicamente,
a criança não é privada de sua liberdade;
entretanto, no seu cotidiano, ela é apresentada
a um mundo de vigilância, cheio de celas
e guardas. Em resumo, a criança passa
a ser encarcerada tanto quanto sua mãe,
apresentando um problema de cunho jurídico.
Do
ponto de vista desenvolvimental a prisão
não é o ambiente mais adequado ao desenvolvimento
humano, especialmente o infantil, ainda
mais no que se refere às insalubres
instalações das prisões brasileiras. Vários
teóricos do desenvolvimento humano, no
entanto, destacam que o contato inicial
com a mãe, ou alguém que a substitua,
é essencial para a formação da personalidade
de crianças e para seu desenvolvimento
emocional e alguns defendem a idéia de
que por mais que seja traumática a separação
mãe-bebê após a primeira metade do primeiro
ano de vida, esses bebês se recuperam
melhor e mais rapidamente se tiveram a
oportunidade de desenvolver e vivenciar
um importante apego emocional com a mãe
ou outra cuidadora antes da separação.
Na legislação brasileira são assegurados
os direitos dos presos para o exercício
da paternidade, especialmente o da maternidade,
como se vê no quadro 1.
Quadro
1
Artigos
de leis, indicações de direitos e diretrizes
quanto à maternidade e/ou paternidade
no contexto prisional, na legislação brasileira
Direito/Indicação |
Lei |
Artigo |
Direito
à amamentação |
Constituição
Federal –1988
Estatuto
da Criança e do Adolescente –1990
Regras
mínimas para o tratamento do preso
no Brasil (Ministério da Justiça,1995) |
Art.
5º - L- “às presidiárias serão asseguradas
as condições para que possam permanecer
com seus filhos durante o período
de amamentação.”
Art.
9º -“O Poder Público, as instituições
e os empregadores propiciarão condições
adequadas ao aleitamento materno,
inclusive aos filhos de mães submetidas
a medida privativa de liberdade.”
Art.7
“são asseguradas as condições para
que a presa possa permanecer com
seus filhos durante a amamentação
dos mesmos.” |
Direito
à berçário/amamentação |
Lei
de Execução Penal – 1984 |
Art.
83 - § 2º - “Os estabelecimentos
penais destinados à mulher serão
dotados de berçário, onde as condenadas
possam amamentar seus filhos.” |
Indicação
de assistência à criança desamparada
pela prisão |
Lei
de Execução Penal – 1984 |
Art.
89* – “Além dos requisitos no artigo
anterior, a penitenciária de mulheres
poderá ser dotada de seção para
gestante e parturiente e de creche
com a finalidade de assistir ao
menor desamparado, cuja responsável
esteja presa.” |
Fonte:
Stella (2001, 244)
Da
ótica da criança, a Constituição Federal
(art. 208) e o Estatuto da Criança e Adolescente
(art.54) determinam que é direito da criança
de 0 a 6 anos o atendimento em creche
e pré-escola, sem especificar em que condições
e como garantir esse direito. Em estudo
descritivo sobre as creches no sistema
penitenciário brasileiro, Santa Rita29
enviou um questionário para as 28 (vinte
e oito) unidades30 identificadas pelo
Depen como de cárcere feminino. Esse questionário
foi respondido pela direção do presídio
e seu objetivo era avaliar a existência
ou não de creche em seu interior, bem
como a infraestrutura disponível para
o atendimento das crianças.
O
estudo de Santa Rita verificou que: no
Brasil existem 10 creches em estabelecimentos
prisionais femininos atendendo 69 crianças;
alguns presídios de forma improvisada
atendem as crianças no período de amamentação,
mesmo não contando com infra-estrutura
de creche; a grande maioria das 49 crianças
atendidas no sistema era composta por
recémnascidos, não havendo registro de
crianças com idades entre 4 e 6 anos.
Quanto ao quadro de recursos humanos a
pesquisa mostrou que as próprias presas
e técnicas de segurança atuavam como educadoras
e que somente 14% dos profissionais eram
técnicos de nível superior e médio, ligados
a áreas de saúde e educação, o que pode
refletir em ausências de ações psicopedagógicas
tanto para as crianças, como para suas
mães. Com base nas considerações acima,
é possível elencar algumas sugestões de
atendimento a crianças pequenas, nas instituições
prisionais femininas:
.
Primeiramente devemos saber quantas
são e onde estão essas crianças, para
propor uma política pública adequada à
população, incluindo os filhos de mães
que se encontram presas em cadeias e delegacias;
.
Devemos pensar em atendimento de qualidade
para essas crianças com infraestrutura
adequada, com quadro de educadores e técnicos
especializados e propostas psico-pedagógicas
adequadas que propiciassem o desenvolvimento
integral das crianças e suas mães, bem
como o fortalecimento de vínculos para
posterior recuperação da guarda da criança
pela mãe;
.
Outra sugestão diz respeito a diferentes
atendimentos conforme a faixa etária da
criança. Para crianças de 0 a 3 anos que
precisam de cuidados integrais, o presídio
deve proporcionar o alojamento conjunto
com todas as questões propostas no item
anterior, onde o vínculo e a interação
mãe-bebê pudessem ser fortificados. Para
crianças de 3 a 6 anos é essencial que
a criança entre em contato com meios sociais
mais amplos, portanto essas crianças deveriam
ser incluídas no sistema público de educação,
onde pudessem desfrutar de políticas educacionais
adequadas para o seu desenvolvimento e
passar o dia, ou uma parte dele, convivendo
com outras crianças e adultos fora dos
muros prisionais, mas que pudessem retornar
para o convívio de suas mães no alojamento
conjunto no final do dia. Um dos desafios
do sistema penitenciário brasileiro é
o desenvolvimento de propostas e estratégias
– envolvendo mães encarceradas, crianças,
profissionais e administradores – que
minimizem ou reduzam os impactos da prisão
materna, potencialmente perversos para
o desenvolvimento da criança. No universo
da prisão feminina a mãe pode até ser
culpada, mas as crianças não o são, embora
acabem bastante penalizadas.
8.2.
A Questão do Egresso Penitenciário
Para
discutir a questão do egresso penitenciário,
é preciso saber, antes de mais nada, em
que condições os sujeitos em situação
de privação de liberdade, entendidos como
“produtos” de um sistema prisional complexo
e ineficiente, voltam às ruas e ao convívio
social. Quais as condições que têm para
restabelecer vínculos primários e secundários?
Atualmente a quantidade de egressos é
menor do que a de ingressos no sistema
prisional, especialmente em São Paulo,
o que indica tempo de permanência maior
desses indivíduos, geralmente jovens,
nos estabelecimentos prisionais. O que
esperar daqueles que saem das prisões
brasileiras todos os dias?
Em
pesquisa de campo sobre egressos do sistema
penitenciário, desenvolvida no Programa
de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais
da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, foram entrevistados, desde
o ano dois mil até o ano de dois mil e
três, cerca de duzentos homens, egressos
do sistema prisional brasileiro, mais
especificamente, das penitenciárias paulistas,
após o cumprimento de penas que variam
de três a trinta anos. Esses homens foram
classificados conforme o delito praticado
e o tempo de permanência em regime fechado.
A maioria deles foi entrevistada em seus
locais de moradia temporária ou fixa,
sejam albergues ou nas casas de suas famílias.
Muito embora a amostra principal da pesquisa
citada reporte-se a São Paulo, egressos
de outros estados também foram entrevistados
para testar a possibilidade de generalização
dos dados encontrados em São Paulo. Foram
entrevistados egressos do sistema penitenciário
de Porto Alegre, do Rio de Janeiro, de
Belo Horizonte, de Salvador, de Recife
e de Belém. Poucas são as variáveis que
não se tornaram recorrentes nessas outras
capitais, entretanto as singularidades
da cultura local foram percebidas. Também
foi mapeado, em todo o Brasil, projetos
de apoio aos egressos do sistema penitenciário.
A
realidade dos homens e mulheres que saem
das prisões, aqui denominados egressos,
é a pior possível. Representa o resultado
da pedagogia da ociosidade, da improdutividade,
do terror, e da contraditoriedade, empregada
no sistema penitenciário brasileiro. A
saída desses homens e mulheres da prisão
dá-se sem nenhum planejamento prévio.
A morosidade de encaminhamento dos processos
penais e o excesso de burocracia do judiciário
são fatores impeditivos da previsão de
progressão de regime ou de obtenção de
liberdade, dentro das penitenciárias,
que por sua vez também são desorganizadas
em suas assistências jurídicas. Assim,
não é incomum o grito “te prepara pra
sair”, quando os agentes informam aos
presos que a sua saída será quase que
imediata, após anos de aprisionamento.
Ainda
que desejada, essa liberdade amedronta
por representar o início desorganizado
de vidas, das quais a sociedade cobra
reorganização. Homens e mulheres migram,
rapidamente, da situação de aprisionados
para a situação de egressos do sistema
prisional. Muitos desses egressos não
chegam a avisar as suas famílias da sua
saída, outros nem sequer têm família e
deverão procurar, por conta própria, albergues
para pernoitar. Muitos saem sem nenhum
recurso, nem mesmo para o transporte e
não é incomum que percorram vários quilômetros,
caminhando até suas casas ou abrigos provisórios.
A chegada em casa nem sempre é uma agradável
surpresa para ambos os lados, egressos
e famílias, principalmente por representar
o aumento do custo familiar e pela dificuldade
no resgate dos vínculos. A dificuldade
de se localizar na cidade e o medo de
coisas simples como atravessar uma rua,
também são freqüentes, assim como a prédisposição
paranóica que muitos têm de identificarem
em rostos alheios a percepção da sua condição
de ex-preso.
A
criação de serviços de atendimento a egressos
em todo o país é um passo importante e
está previsto no Plano Nacional de Segurança
Pública, do então candidato Luis Inácio
Lula da Silva. A Pastoral Carcerária de
São Paulo já mantém um serviço dessa natureza,
implantado no ano de dois mil, contando
inclusive com a mão-de-obra de um egresso
no setor de atendimento. Esses serviços
devem contar basicamente com profissionais
qualificados nas áreas de serviço social,
psicologia, sociologia e direito. No país
já existem serviços dessa natureza em
algumas capitais. É fundamental a expansão
quantitativa e qualitativa desses serviços,
muito embora seus custos sejam elevados,
tendo em vista que auxílios básicos e
emergenciais devem estar disponíveis,
a exemplo de cestas básicas, vales transportes,
material de higiene pessoal, remédios,
etc. A elaboração de cadastros atualizados
de albergues, de locais para retirada
de documentos, de postos médicos, de postos
de assistência ao trabalhador, entre outros,
é o insumo básico do serviço a ser prestado.
Embora, a princípio, este tipo de
prestação de serviços pareça ter um caráter
assistencialista, esses locais de assistência
devem ser entendidos como ancoradouros
para homens e mulheres que necessitam,
muitas vezes, de atendimentos emergenciais
orientadores na área psicológica, jurídica,
médica ou na área da assistência social.
A condição de egresso do sistema penitenciário
é uma condição complexa por conjugar várias
demandas ao mesmo tempo, com a agravante
da perda de referências, objetivas e subjetivas,
para lidar com elas.
O
próprio conceito de egresso também guarda
complexidade. Entendido como “aquele que
deixou o estabelecimento criminal onde
cumpriu a sua sentença,”31 esse é também
um conceito problemático. Todos aqueles
que saem oficialmente das prisões podem
ser considerados egressos. Entretanto,
são caracterizados por diferentes tipologias
de saída: alguns obtém a liberdade definitiva,
outros solicitam e recebem benefícios
após cumprir parte da pena em regime fechado,
como é o caso dos que têm o benefício
da Prisão Albergue Domiciliar – PAD ou
da Liberdade Condicional – LC. Os dois
últimos são benefícios atribuídos por
juízes de direito, respeitando a especificidade
de cada caso.
Àqueles
que saem em regime de Liberdade Condicional,
muitas vezes é exigido pelo juiz, uma
carta de emprego. A carta pode ser exigida
até mesmo antes da saída, como garantia
para a obtenção do benefício, ou em até
trinta dias da obtenção do mesmo. Essa
carta é um documento no qual uma empresa
privada, legalizada e em operação, assegura
o vínculo empregatício para o preso nominalmente
citado. Dada a dificuldade que os egressos
e as suas famílias têm em conseguir tal
documento, absurdo diante da situação
econômica e da crise de emprego vivida
no país, alguns juízes, atualmente, já
desconsideram tal exigência, mas essa
ainda não é uma postura generalizada.
Além dos altos índices de desemprego que
afligem a homens e a mulheres não fichados
pela polícia, a manutenção dessa exigência
desconsidera a possibilidade do trabalho
informal, adequado às habilidades que
muitos egressos possuem, como as de marcenaria,
carpintaria, de serviços de pedreiro,
de hidráulica, de eletricidade, entre
outras.
Sem
a obtenção de qualificação específica
durante o período de prisão, mesmo quando
os egressos têm habilidades obtidas em
períodos anteriores ao aprisionamento,
sofrem defasagem dos seus conhecimentos,
principalmente pelos avanços tecnológicos
incorporados a esses serviços e pelas
diferenças administrativas e gerenciais
na prestação dos mesmos. O trabalho desenvolvido
no cárcere, através de empresas privadas,
motivadas pelas isenções dos custos trabalhistas
e previdenciários, atribui aos presos
ocupados um trabalho específico dentro
do processo de produção – uma especialização
que não gera quase nenhuma reprodução
de capital profissional, como é o caso
da costura de bolas e ou da colagem de
pipas e das partes específicas da produção
de vassouras. É fundamental que as empresas
que atuam no cárcere tenham compromisso
social com a causa do preso, até à sua
saída da prisão. Essas empresas deveriam
ter necessariamente programas de responsabilidade
social em troca das reduções que obtém
nos seus custos trabalhistas. A atribuição
de capacitação e de qualificação técnica,
gerencial e administrativa, deveria ser
um atributo mínimo para a seleção dos
empreendimentos a serem estabelecidos
nos cárceres.
O
processo burocrático de reabilitação diante
da justiça é outro entrave para aqueles
que obtém a liberdade definitiva. Na maioria
das vezes, sem advogado e sem recursos
para acompanhar o processo burocrático,
a reabilitação da condição civil torna-se
lenta. O tempo de reabilitação para que
os nomes dos egressos não mais apareçam
em relações de indivíduos com antecedentes
criminais, pode chegar a dois anos. Além
de ser um processo demorado, seu trâmite
é muito pouco claro para os egressos e
até para as instituições que os auxiliam.
Durante o tempo em que transcorrem os
processos de reabilitação definitiva de
seus nomes, os egressos, de modo geral,
mostram-se inseguros para a procura de
emprego com registro oficial na carteira
de trabalho, assim como temerosos quanto
às ocorrências que envolvem a polícia.
Não
é raro a detenção de egressos para averiguação,
em batidas policiais, por ainda constarem
seus nomes nos registros da polícia e
do judiciário. Principalmente para aqueles
que se encontram em liberdade condicional
ou em prisão albergue domiciliar e figuram
nos sistemas informatizados da polícia
como ainda presos, a insegurança ainda
é maior, uma vez que alguns policiais,
pouco informados, entendem que por constarem
em registros, essas pessoas podem estar
sujeitas à iminente captura.
Ao
problema acima citado, a objetividade
da justiça indica como solução a apresentação
dos documentos oficiais de identificação
do egresso: o alvará de soltura ou a carteira
de liberdade condicional, assinada regularmente
nas varas de execuções. A apresentação
de tais documentos deveria sanar as dúvidas
e evitar as detenções irregulares pela
polícia. Ainda que a objetividade dessa
solução seja real, o caráter subjetivo
da questão pouco é tratado. A carteira
de identificação da condição de homem/mulher
em débito com a justiça poderia ser aceita
sem maiores atribuições simbólicas negativas
ao seu portador, se a sociedade confiasse
na eficiência do modelo disciplinar e
pedagógico das prisões. Pelo contrário,
o descrédito na instituição prisional,
entre outros fatores, gera diante desse
documento uma tensão, tanto para quem
o apresenta, como para quem a ele é apresentado.
Transforma-se o documento oficial em documento
estigmatizante. Rever as formas de cadastramento
e de identificação do sujeitos egressos
do sistema prisional brasileiro, sem reforçar
as estigmatizações, é um dos pontos importantes
para a melhor aceitação do egresso. Urge,
também, a revisão nos procedimentos de
atualização dos dados do cadastro da polícia
relativos a quem já cumpriu sua pena ou
que está em liberdade condicional e/ou
em prisão albergue domiciliar.
A
suspensão dos direitos civis de homens
e mulheres, enquanto estão privados de
liberdade implica, de forma objetiva,
a apreensão32 dos documentos de regularidade
civil, como o registro geral (RG), cadastro
de pessoa física (CPF) e o título de eleitor
para aqueles que tinham esses documentos
antes do seu encarceramento.33 Ao saírem
das prisões, entretanto, os egressos,
por necessidade de auto-sustentação e
algumas vezes por imposição judicial,
são obrigados a imediata procura de emprego.
Muitas instituições de apoio aos egressos
os encaminham para os locais específicos
de retirada de documentos, através de
fichas de encaminhamento que de quase
nada ou nada valem nos estabelecimentos
públicos responsáveis por documentação
civil. De modo geral, em quase todas as
capitais do Brasil, os registros gerais
podem ser retirados em delegacias de polícia
e, em algumas capitais, eminstituição
específica que reúne num só lugar vários
serviços de órgãos públicos. Os egressos
não se sentem confortáveis com a retirada
do registro geral em delegacias de polícia,
ou mesmo com a retirada desse documento
em órgãos prestadores de serviços públicos
gerais.
A
possibilidade de negativa ou de constrangimentos
nesses locais é sempre iminente. A falta
de documentação gera toda uma série de
problemas e o processo de sua obtenção
é eivado de contradições. Em primeiro
lugar, os egressos de estabelecimentos
prisionais em regime de liberdade condicional
ou de prisão albergue domiciliar ainda
estão com seus direitos civis suspensos,
daí não ser facultado aos mesmos o direito
da retirada da segunda via da carteira
de reservista. Àqueles que não têm o documento
de reservista, não é facultada a retirada
do título de eleitor e, assim, aquele
que não tem o título de eleitor fica impossibilitado
de se cadastrar no cadastro de Pessoa
Física do Ministério da Fazenda.
Não
fosse esse apenas um desencadeamento de
impossibilidades, é também um desencadeamento
de contradições: aos egressos34 que vivem
a impossibilidade da regularização da
sua documentação civil é exigida a integração
ao mundo do trabalho formal, cuja porta
de entrada é a regularidade documental.
É necessário que políticas públicas indiquem
caminhos objetivos para a minimização
de pequenos problemas cotidianos que assumem
dimensão muito maior quando afligem pessoas
fragilizadas pela vivência do encarceramento
e principalmente pela estigmatização.
A regularização dos documentos civis é
o primeiro passo para a retomada da cidadania
e a negação desse direito é o mesmo que
fomentar o retorno às atividades ilícitas.
Fazer com que as Instituições públicas
e/ou Organizações do terceiro setor possam
prestar serviços de acompanhamento ou
mesmo que sirvam como posto de retirada
de documentos especificamente voltados
para egressos do sistema penitenciário,
pode ser uma saída no curto prazo.
Estes
postos de atendimentos aos egressos do
sistema penitenciário podem ser viabilizados
por Organizações da Sociedade Civil de
Interesse Público – OSCIP, através de
convênios com o Governo, seja na instância
Federal, Estadual, ou Municipal. O importante
é que estas Organizações possam ser estimuladas
a incluir os egressos do sistema penitenciário
nas suas ações, sejam elas da área de
educação, da geração de emprego e de renda,
ou da assistência social mais geral. Antes
disso é fundamental o aprofundamento da
discussão, na esfera jurídica, da suspensão
dos direitos civis para aqueles que deixam
os estabelecimentos prisionais nos regimes
de Liberdade Condicional ou em Prisão
Albergue Domiciliar, embora a dificuldade
para a retirada dos documentos seja também
uma realidade para aqueles que obtêm a
liberdade definitiva.
A
falta de capacitação técnica é outro entrave
para a inclusão dos egressos no mundo
do trabalho, além da baixa escolaridade,
associada à falta de experiência no mercado
formal de trabalho. Essas carências funcionam
como impeditivos para a obtenção de emprego.
Durante o tempo de encarceramento alguns
homens e mulheres presos fazem curso de
informática e/ou terminam o ensino médio
e/ou fundamental, o que lhes garante maiores
possibilidades ao sair. Entretanto, essas
oportunidades de capacitação escolar e
de capacitação técnica no cárcere não
fazem parte da realidade da maioria dos
homens e mulheres presos e, principalmente,
urge uma reflexão séria sobre o que significa
capacitar para o trabalho, no momento
em que a economia mundial reduz drasticamente
os postos formais de trabalho. A capacitação
para o trabalho autônomo, empreendedor
e sustentável, é muito conseqüentemente
de renda. O Sebrae pode ser parceiro nesse
intento de promover capacitação sobre
empreendedorismo para homens e mulheres
presos, no final de suas penas, permitindo
que vislumbrem algum futuro ao sair, que
não seja o reingresso na criminalidade.
O
Sebrae, o Senac e o Senai deveriam ser
provocados no sentido de gerar programas
de apoio à capacitação do homem preso,
próximo à liberdade. Assim como a política
de micro crédito deveria ser também dirigida
para esses sujeitos, devidamente acompanhados
por técnicos ou por estudantes de empresas
juniors. Em São Paulo, a extinta COESP
– Coordenadoria de Orientação aos Egressos
de São Paulo – viabilizava financiamentos
de até dois mil reais para egressos, visando
a aquisição de máquinas, ferramentas,
utensílios e matéria prima, mediante a
elaboração de um pequeno projeto de auto-sustentabilidade.
Em
quase noventa por cento dos casos os recursos
eram bem empregados pelos egressos que
montavam salões de beleza, oficinas, pequenas
mercearias, etc. O programa foi extinto,
deixando muitos egressos endividados,
com prestações a pagar dos bens adquiridos
por meio do financiamento. É fundamental
que haja um cadastramento dos egressos
quanto à sua formação, vocação e/ou habilidade
de trabalho e que instituições do terceiro
setor sejam capacitadas para recebê-los
e direcioná-los na busca de ocupação,
inclusive ministrando capacitações básicas,
conforme as demandas dos mercados locais
e, como já citado, auxiliando na retirada
de documentação. A viabilização de parcerias
com cooperativas de trabalho que tenham
interesse em incluir egressos pode representar
um diferencial importante na obtenção
de ocupação rentável, assim como isenção
ou redução fiscal para empresas que absorvam
a mão-de-obra de egressos cooperativados.
A abertura de cooperativas de trabalho,
especificamente dirigidas aos egressos,
pode não ser uma idéia viável, por reforçar
a estigmatização desses homens e mulheres.
O setor público pode desempenhar um papel
importante na geração de ocupação e renda
para egressos. É importante, também, estimular
novas iniciativas, principalmente do terceiro
setor, para lidar com egressos e suas
famílias. Não há, por exemplo, qualquer
projeto que beneficie a mulher egressa
e, evidentemente, a singularidade de sua
condição, principalmente se ela tem filhos,
exige atenção.
Por
outro lado, é possível pensar em envolver
organizações do terceiro setor, através
de licitações públicas, com a capacitação
de egressos penitenciários em áreas demandadas
por pesquisas de mercado locais. Os cursos
devem reforçar as atividades autônomas,
a prestação de serviços, de maneira a
estimular o empreendedorismo, o associativismo,
o cooperativismo e a auto-sustentabilidade.
A elaboração de um cadastro de prestadores
de serviços e a sua divulgação e manutenção
pelo período mínimo de um ano, devem também
ficar a cargo das organizações vencedoras
dos certames licitatórios.
Os
egressos, contrariando o censo comum,
buscam alternativas que não sejam o retorno
à criminalidade, sempre de portas abertas
à sua espera. As dificuldades encontradas
e, principalmente, o preconceito e a estigmatização,
acabam por estimular a reincidência. Atualmente,
as prisões brasileiras estão abarrotadas
de jovens entre dezoito e vinte e cinco
anos e, muitos destes homens e mulheres,
deixam os muros dispostos a não retornar
ao ambiente carcerário. Tal intenção é
totalmente desperdiçada pela falta de
iniciativas públicas que visem oportunizar
capacitações e encaminhamentos burocráticos,
além de fomentar ocupação e renda.
A
improdutividade do sistema penitenciário
é produtiva! Produz sujeitos objetiva
e subjetivamente sequelados e, por isso
mesmo, gera a reincidência criminal, ampliando
os índices de violência urbana. Reduzir
essa produção de reincidentes é, em primeiro
lugar, uma questão de organização de parcerias
entre o setor público e o terceiro setor;
em segundo, o estabelecimento de redes
de cooperação entre entidades com diversas
finalidades e a causa dos egressos; em
terceiro lugar é uma questão de reordenamento
das estratégias internas das penitenciárias.
As penitenciárias brasileiras precisam
deixar de ser “um cemitério de homens
vivos” e desenvolverem estratégias de
inclusão social. Sem isso o seu produto
final será sempre desastroso.
9.
Privatização no Sistema Penitenciário
O
idealizador do panóptico, Jeremy
Benthan, foi quem primeiro sugeriu a entrega
das prisões a empresas privadas (1884).
Fracassaram a idéia e a pretensão na época.35
Passaram-se os tempos. Com o término da
“guerra fria”, desaparecido o
“império do mal” da ocasião, indispondo
de inimigo nítido a guerrear, os Estados
Unidos elegeram para o papel as subclasses:
os pobres, os negros, os imigrantes, os
infratores da lei.36 Na era Reagan,
quando tudo se desejava privatizar, dominante
a ideologia de que a iniciativa particular
realizava milagres comparativamente aos
serviços públicos, combinada com a de
que se impunha prender mais e mais, ressurgiu
o projeto de passar para mãos mercadoras
a lida com os detentos. Logo surgiram
pretendentes para a missão. Explorando
a tendência das pessoas a cultivar uma
concepção mágica do mundo, alardeou-se
sedutora propaganda, seguida de intenso
lobby junto aos responsáveis pelo comando
do Estado: a questão penitenciária, terrível
e custoso pesadelo, com sua passagem para
a área empresarial livraria completamente
a administração pública de encargos a
esse respeito. Os reclusos passariam a
habitar alojamentos iguais aos das universidades,
na mais completa disciplina e limpeza,
trabalhando ordeira e produtivamente,
de sorte a purgar as culpas e se acostumar
a ganhar o pão de cada dia com o suor
do rosto.
Assim,
no embate da concorrência, duas empresas
suplantaram as rivais, apossandose no
novel mercado, passando o antigo monopólio
estatal para o oligopólio privado. Com
que resultado? Um aumento turbilhonante
de presos retirados das estratos inferiores
da sociedade (cerca de 2.000.000 de presos
nos EEUU, quase 50% de negros, numa população
livre em que pessoas de tal etnia figuram
na faixa dos 13%) e uma locupletação opulenta
dos exploradores da hotelaria carcerária.
O dirigente de uma delas chegou a anunciar:
“Se mantivermos nosso mercado acionário
e a taxa de crescimento, seremos uma firma
de um bilhão de dólares em 2.004”.
37
Compreende-se, a administração carcerária
particular é tocada exclusivamente como
um negócio que tem de gerar lucros, como
se depreende do anúncio de uma corretora:
“Prisões privadas: maximize o retorno
de investimentos nesta explosiva indústria...
...enquanto encarceramentos e condenações
permanecem em crescimento, ganhos serão
obtidos - lucros do crime”. 38 Ou,
num pragmatismo mais franco, diz um dos
fundadores da CCA: “Você apenas vende,
como se estivesse vendendo carros, imóveis
ou hambúrgueres” .39
No
Brasil, o sonho de privatizar a custódia
de presos se concretiza em novembro de
1999, no Paraná, com a construção e instalação
da Penitenciária Industrial de Guarapuava.
Tal
iniciativa se deu através de uma parceria
em que o Governo Federal arcou com 80%
dos recursos e o Governo do Paraná com
o restante, num gasto total de R$ 5,32
milhões. Esta nova política do Ministério
da Justiça se estendeu ao longo dos últimos
quatro anos aos estados do Acre e Ceará,
ora com recursos compartilhados, ora com
custos arcados somente pelo governo estadual.
A posição da Secretaria Nacional de Justiça,
em 2001, em relação a esta nova gestão
prisional é clara e reafirma o sucesso
“das condições propiciadas pela terceirização
dos serviços prisionais, em que os resultados
positivos que parecem despontar dependem
da própria concepção do que seja a pena
privativa de liberdade”.40 Muitos são
os argumentos dos defensores da terceirização,
obviamente movidos por referências teórico-políticas
distintas quanto à execução das penas.
Tanto no Paraná quanto no Ceará, a empresa
inicialmente contratada para realizar
os serviços de custódia, denominada Humanitas,
vinha de uma fusão com uma empresa tradicional
de segurança privada – a Pires Serviços
de Segurança Ltda. Esta ainda é, atualmente,
a maior empresa de segurança privada de
São Paulo, com mais de dez mil vigilantes.
Originariamente, tratavase de uma firma
de serviços de limpeza que, mais tarde,
passou a se dedicar a vigilância
bancária e hoteleira. Portanto, é interessante
observar que a privatização dos serviços
prisionais ocorre no final da década de
90, quase trinta anos depois da ditadura
militar ter, após a edição da Lei de Segurança
Nacional, regulamentado a segurança privada
para proteger pessoas e bens patrimoniais.
O que se depreende é que as empresas candidatas
ao exercício da custódia de presos não
tinham acumulado, até então, qualquer
experiência ou especialização na área
prisional.
A
proposta da gestão terceirizada, tal como
acontece no Paraná, repousa sob a égide
da “atuação conjunta do governo, que fornece
instalações e amparo legal e, da iniciativa
privada, representada por duas empresas
distintas: uma que responde pelas funções
de guarda e assistência aos detentos e,
outra, uma indústria que oferece treinamento
e utiliza mão de obra dos internos para
a sua produção”. Na operacionalização,
portanto, desta premissa, o Estado prepara
com os recursos públicos toda a infraestrutura
física assim como equipamentos de segurança
eletrônica a serem usados pela empresa:
uma, gestora do trabalho prisional, que
contribui com o capital relativo à matéria
prima e máquinas, se desresponsabilizando
de pagamentos de taxas, tais como, luz,
água, gás e aluguel. A segunda empresa
estabelece salários, seleciona pessoal,
contrata carga horária, enfim, administra
o pessoal penitenciário. Também as taxas
não são de sua responsabilidade, mas do
erário estadual. Os custos arcados pela
empresa dizem respeito ainda ao pagamento
do salário penitenciário dos presos, sem
nenhum controle pelo Estado sobre o lucro
extraído pelo empresário patrão. É exemplar
a desativação do trabalho prisional iniciado
na penitenciária de Guarapuava: a instalação
da indústria de móveis naquela unidade
se estendeu até o momento em que oferecia
lucro a seu proprietário. Quando a indústria
moveleira do Paraná entrou em crise, o
trabalho prisional entrou em retração
e a proposta “reabilitadora” esvaziou-se
rapidamente. À empresa terceirizada para
gerir o trabalho prisional interessava
ter uma única atividade produtiva, que
concentrasse toda a disponibilidade de
mão de obra daquela unidade. Portanto,
temos, mais uma vez presente, a tradição
colonialista brasileira, de uso do Estado
para beneficiar interesses privados, o
que desnuda a denominada “eficácia do
modelo de gestão prisional terceirizada”.
Outros
pontos poderiam ser abordados: a assepsia
do ambiente e a oferta contínua= de recursos
materiais (artigos de higiene pessoal,
roupas e sapatos de boa qualidade). Ambientados
na penúria de recursos materiais e na
cultura da postergação burocrática, os
funcionários públicos gestores entendem
que a terceirização vem resolver as velhas
dificuldades da gestão tradicional, na
medida em que os entraves administrativos
são superados.
No
seu funcionamento cotidiano, as unidades
terceirizadas, estão submetidas a uma
dupla gestão. De um lado, os três cargos,
considerados principais – diretor, subdiretor
e chefia de segurança – são ocupados por
funcionários públicos, indicados pela
administração penitenciária estadual;
de outro, todos os demais postos de trabalho
e cargos de chefia são de responsabilidade
da empresa privada. Isto quer dizer que
os funcionários técnicos, administrativos
e de segurança estão vinculados à empresa
que os selecionou, os paga, os promove
ou demite. Dentro desta forma administrativa,
os conflitos de gestão podem, não somente
ser presumidos, como de fato acontecem.
A chefia de segurança mencionada, por
exemplo, tem o papel oficial de supervisionar
os agentes de segurança penitenciária
e comunicar os problemas verificados à
gerência operacional da empresa, que também
supervisiona e freqüenta diariamente a
unidade prisional. Assim, no cotidiano,
seguidamente uma área de atritos se estabelece:
na verdade, estão em confronto, nos mecanismos
de gestão, duas culturas administrativas
distintas.
A
direção e subdireção da unidade gerenciam
a parte administrativa com as restrições
impostas pela gestão de pessoal afeta
à empresa. No entanto, insiste-se que
a posição da Direção é tranqüila, desprovida
de aborrecimentos relativos a desvios
de conduta dos funcionários, pois,
seu papel é apenas comunicá-los à gerência
da empresa. As substituições ou punições
de funcionários são rápidas: resulta desta
agilidade uma grande mobilidade de funcionários,
principalmente de agentes. Poucos são
os que permanecem no emprego. A substituição
constante tem suas conseqüências: não
há espaço de tempo necessário para se
investir na capacitação dos agentes, pois
o quadro está sempre se renovando. Por
outro lado, surge outro problema: as atividades
imediatas dos agentes os levam a crer
que os mesmos não têm responsabilidade
com a “política de reabilitação”, objeto
de preocupação restrita dos técnicos.
A dicotomia entre “o papel de reabilitação”
e “o papel de manutenção da segurança”
se consolida nesta ótica de gestão terceirizada.
A avaliação feita pela administração penitenciária
é de que os técnicos apresentam-se mais
afinados com “o papel de reabilitação”,
pois se lhes atribui a responsabilidade
ética e de preparo técnico, uma vez que
detém uma formação profissional que lhes
deve permitir melhor desempenho dessas
atividades. Sem dúvida, a ausência de
formação profissional na área de segurança
pode efetivamente concorrer para que os
profissionais dessa área não se comprometam
com os objetivos de reabilitação. Ademais,
lembra o administrador outras questões
relativas à inserção dos funcionários
na gestão prisional, como os salários
mais baixos do que os do serviço público.
Da
ótica da disciplina, o rigor cristaliza
a ordem pretendida – ausência de fugas,
de rebeliões e de reivindicações dos presos.
Algumas regras indicam o rigor: nenhum
preso pode fumar, ou ter alimentação de
qualquer espécie em sua cela (não existe
a tradicional bolsa de guloseimas trazidas
pela visita). Todos andam juntos em filas
nos deslocamentos para o refeitório, para
o trabalho, dentro dos limites geográficos
traçados no chão. Todos os banhos são
num único horário e o tempo de banho é
programado pelo equipamento hidráulico.
O acesso aos técnicos ou à Direção se
faz mediante solicitação e programação
da escolta interna, não havendo acesso
espontâneo. Os presos que não se adaptam
a este paradigma disciplinar, retornam
às unidades prisionais do “sistema de
gestão tradicional”. Concluindo, podemos
questionar os custos financeiros da manutenção
de um preso. Na gestão terceirizada, o
preso custa de R$ 1.500,00 a R$ 2.000,00
reais, por mês. Ou seja, 100 a 150% a
mais do que é gasto na gestão tradicional.
No entanto, os custos mais altos são justificados
pelos defensores da privatização pela
excelência da qualidade dos serviços,
o que é considerado benéfico para toda
a sociedade.
Vale
ressaltar, por último, que, tanto as empresas
que administram as prisões referidas,
como os responsáveis pela administração
penitenciária nos estados em questão,
classificam como “terceirização” a forma
de administração das unidades prisionais
hoje nas mãos da iniciativa privada. No
entanto, é importante insistir que, embora
algumas funções estejam, ainda, sob a
responsabilidade da administração pública,
o que se verifica é uma verdadeira privatização
da custódia. Tudo isto é bem diferente,
por exemplo, do que a terceirização na
área da confecção e distribuição de alimentação
nos sistemas penitenciários. O atual governo
do Paraná já se manifestou contrariamente
à renovação dos contratos com a firma
que administra seis unidades prisionais
naquele estado. Por seu turno, autoridades
do Ministério da Justiça também já condenaram
a chamada “terceirização” de unidades
prisionais. Tanto uns, quanto outros,
perceberam as limitações e custos exageradosde
tal estratégia. E, principalmente, defende-se,
hoje, uma questão que é política e ética:
a custódia de presos é dever e responsabilidade
do Estado.
É
bom que se diga que, nos Estados Unidos,
já existem estudos que indicam a falta
de
evidências de que as prisões privadas
possam acabar custando menos do que aquelas
geridas pelo poder público. Na verdade,
quem lucra com as prisões privadas são
as companhias que proliferaram na área,
cortando custos, pagando salários menores,
com alta rotatividade de funcionários,
tudo isto comprometendo o trabalho desenvolvido.
10.
Conclusões
A
avaliação que já se tinha sobre o sistema
penitenciário brasileiro ganha em dramaticidade
ao término deste trabalho. As prisões
no Brasil são, de fato, depósitos de presos.
Constatou-se o crescimento vertiginoso
da população carcerária com a proliferação
de novasmunidades prisionais e uma absoluta
falta de planejamento e de regras básicas
de gestão. A quantidade de presos abrigados
em delegacias policiais pelo país afora
demonstra que, a despeito do altíssimo
investimento na geração de novas vagas,
o quadro só se agrava. E, o que é pior,
36% dos presos em delegacias já estão
condenados. O sistema penitenciário reproduz
um funil: a cada mês, entra quase o dobro
do número de presos que sai. Não há esforço
que dê conta de tal absurdo. Só em São
Paulo, como já dissemos, ingressam no
sistema penitenciário mais de 1.000 novos
presos por mês. Ou seja, seria necessário
construir, pelo menos, duas novas unidades
prisionais mensalmente, naquele estado.
O endurecimento da legislação vem contribuindo
para que mais infratores sejam privados
da liberdade, fiquem presos por mais tempo,
e o resultado só pode ser o crescimento
da superpopulação.
O
Ministério da Justiça tem uma tarefa gigantesca
à sua frente que não se resume ao auxílio
que os estados necessitam para construir
novas unidades prisionais e tentar, a
curtíssimo prazo, diminuir o déficit de
vagas. Os estados precisam de orientação
para gerir seus sistemas penitenciários.
Como vimos, 25% dos estados não têm Regulamentos
Penitenciários, 80% não têm Escolas de
Formação Penitenciária, 70% não têm Planos
de Cargos e Salários e 50% não contam
com Corregedorias. Em muitos estados,
atividades rotineiras das unidades prisionais
não se encontram disciplinadas, como por
exemplo, a revista dos visitantes, dando
margem a toda sorte de arbitrariedades
Isto para não falar do número insignificante
de presos envolvidos em atividades educacionais
ou laborativas, como ficou amplamente
demonstrado. E, para completar tal quadro,
de mais absoluta falta de controle do
sistema penitenciário, 72% dos estados
utilizam o critério de pertencimento a
facções para classificar os presos e alocá-los
nas diferentes unidades prisionais, o
que não impediu que, em 2003, 303 presos
tenham sido assassinados por companheiros
dentro dos cárceres do país. Quem se responsabiliza
por isso? Procuramos, ao longo deste trabalho,
discutir alguns temas que precisam fazer
parte das reflexões dos gestores prisionais
e elaboramos uma série de propostas visando
neutralizar problemas relativos a tais
temas, superar deficiências e suprir lacunas.
Algumas propostas dependem, unicamente,
da vontade dos administradores dos sistemas
penitenciários e dos diretores de unidades
prisionais. Viabilizam-se através de memorandos
internos, portarias, ou ofícios circulares.
Algumas demandam mudanças legislativas,
basicamente alterações na Lei de Execução
Penal. Muitas vão depender do empenho
do Ministério da Justiça em tomar para
si a responsabilidade pela superação da
crise do sistema penitenciário brasileiro
na área da gestão e, para dar encaminhamento
adequado a algumas questões, o Ministério
da Justiça vai precisar se articular com
outros Ministérios, como o da Educação
e o do Trabalho.
Vale
ressaltar que grande parte das sugestões
podem ser implementadas de imediato, principalmente
aquelas que dependem, unicamente, das
administrações de sistemas penitenciários
e unidades prisionais. Entre as sugestões
para o Ministério da Justiça, imaginamos
que se possam concretizar ao longo do
ano em curso, na medida em que o Departamento
Penitenciário Nacional acaba de passar
por uma completa reestruturação. Cabe
lembrar, no entanto, que não bastam mudanças
da organização administrativa do DEPEN
se verbas adequadas não forem disponibilizadas.
Sabe-se que continuam a acontecer cortes
significativos nos orçamentos, com contingenciamento
das verbas do Fundo Penitenciário Nacional,
o que é inadmissível. As propostas de
mudanças que requerem alterações na Lei
de Execução Penal podem ser encaminhadas
ao Conselho Nacional de Política Criminal
e Penitenciária para exame e elaboração
de novos textos da LEP. A título de reflexão
final deste trabalho, gostaríamos de discutir
a necessidade emergencial de ampliação
da legislação que trata das alternativas
à pena de prisão no país., O Brasil não
pode se dar ao luxo de continuar encarcerando
infratores no ritmo constatado neste trabalho.
As prisões devem ser reservadas aos criminosos
violentos e perigosos que se constituem
em ameaça concreta ao convívio social.
Tudo mais é desperdício de verbas públicas.
Desperdício dos recursos que resultam
dos impostos dos contribuintes. É preciso
que se deixe a hipocrisia de lado e se
admita, de uma vez por todas, que a pena
privativa de liberdade tem por objetivo
a punição do infrator e o isolamento do
mesmo da sociedade. Ninguém é “ressocializado”
através da privação da liberdade. A humanidade
ainda não produziu um sistema penitenciário
que transforme criminosos em cidadãos
cumpridores da lei. Ao contrário, como
dizia um antigo Ministro do Interior na
Inglaterra, Douglas Hurd, “a prisão é
uma maneira cara de tornar as pessoas
piores”. Mesmo em países que investem
somas fabulosas em suas prisões, provendo
os sistemas penitenciários de programas
de “reabilitação” muito sofisticados e
inundando as unidades prisionais de técnicos
nas mais variadas áreas, não se produzem
níveis de reincidência baixos. A prisão
gera violência, a prisão é um meio de
controle social falido – todos sabemos
disso. No entanto, embora o discurso das
autoridades seja sempre neste sentido
e, contínuamente, ouçamos Ministros da
Justiça neste país insistirem na necessidade
da ampliação do uso das alternativas à
pena de prisão, tudo parece continuar
limitado à retórica que impressiona bem,
mas é vazia de projetos efetivos. Teme-se
a reação popular, os políticos não querem
arriscar seus mandatos e os governos,
timidamente, continuam repetindo os mesmos
erros. Urge que o governo federal inicie
ampla campanha de esclarecimento da população
sobre o custo benefício da pena de prisão.
Em primeiro lugar, é preciso que a sociedade
compreenda que as taxas de encarceramento
não guardam nenhuma relação com as taxas
de criminalidade. É preciso, sobretudo,
mostrar o que custa a pena de prisão e
sua absoluta ineficácia. Vimos insistindo,
nos últimos anos, em alguns números que
demonstram à saciedade que o Brasil, com
sua gigantesca dívida social, precisando
investir maciçamente em educação, saúde,
geração de empregos, moradia popular,
saneamento, profissionalização da força
de trabalho, não pode se permitir encarcerar
indiscriminadamente. Comparar os custos
de presos e prisões com aqueles de manutenção
de alunos em escolas, (um preso custa
no país, em média, o equivalente ao custo
de 16 alunos em programas de alfabetização),
de construção de casas populares(em Brasília
uma casa popular construída em regime
de mutirão custa a quarta parte do que
custa uma cela em unidade de segurança
média!) é vital.
Enquanto
a sociedade não entender que investindo
em prisões está investindo em sua própria
insegurança, não avançaremos. Estudos
do Banco Mundial já demonstraram que a
criminalidade violenta na América Latina
só poderá ser prevenida de forma eficaz
por meio, principalmente, de investimentos
muito significativos na área social. Dizem
tais estudos que é preciso reduzir o número
de pobres nas grandes cidades, estimular
a geração de empregos e propiciar crédito
fácil para o desenvolvimento de pequenos
negócios, além de estimular programas
educacionais e de lazer que mantenham
os jovens longe do crime e da violência.
Enfim, como já dissemos em outro lugar,
“só um maciço esforço de resgatar a dívida
social o mais rapidamente possível, junto
com uma profunda revisão de nosso falido
modelo de segurança e justiça, é que nos
permitirá vislumbrar no horizonte um país
menos injusto e violento. O resto são
mitos, ou demagogia de quem busca na manipulação
do medo uma fonte de lucro e poder”.
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