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AP

 

SUSP Sistema Único de Segurança Pública Estados

Arquitetura institucional do SUSP

CAPÍTULO 8

Sistema Penitenciário

1. Introdução

Entre 1995 e 2003 o número de presos no Sistema Penitenciário brasileiro dobrou. Passamos de 148.760 para 302.495 homens e mulheres privados da liberdade no país. No cálculo de presos por 100.000 habitantes, necessário para se dimensionar o tamanho da população presa, comparando-se com o da população livre, os índices revelam-se impressionantes: passamos de 95,5 para 184,4 presos por 100.000 habitantes, ou seja, um crescimento de 93%. E, o que é pior, a despeito de um extraordinário esforço de construção de inúmeras unidades prisionais pelo país afora, com a geração de cerca de 100.000 novas vagas, continua faltando lugar para mais de 100.000 presos.1 Se adicionarmos ao cálculo o número de mandados de prisão não cumpridos no país, número sobre o qual nem a Polícia, nem a Justiça, conseguem chegar a qualquer acordo, poder-se-ia dizer que falta lugar para muitos outros milhares de infratores. Outros 100.000? 200.000? 300.000? Ninguém sabe.

Como se tudo isto não bastasse, a velocidade de novos ingressos nas prisões do país é absolutamente assustadora. No sistema penitenciário do estado de São Paulo, por exemplo, ingressam, em média, 1.000 novos presos a cada mês. Acentue-se que, ao se falar de novos presos, já se está considerando a diferença entre presos que ingressam e presos que saem em liberdade. Resultado: brutais níveis de superlotação. Superlotação. Violência. Corrupção. Condições de cumprimento de pena absolutamente desumanas e degradantes. Homens e mulheres tratados como animais. O sistema penitenciário brasileiro vive uma crise profunda. Aqui são sistematicamente ignoradas tanto a legislação nacional, quanto a extensa legislação internacional que trata da questão penitenciária. E não nos esqueçamos: o Brasil é signatário dessa legislação internacional. Parece não haver qualquer compromisso com a administração de um sistema penitenciário respeitador das leis.

A crise do Sistema Penitenciário brasileiro tem sido objeto constante de cobertura da mídia, principalmente quando presos se rebelam, freqüentemente fazendo reféns, nas fugas e nos constantes episódios de violência entre grupos de presos que controlam unidades prisionais e disputam poder dentro e fora dos muros. A corrupção que grassa nas prisões do país e a dramática situação de superlotação também povoam o noticiário cotidiano. As poucas ações positivas, que eventualmente geram resultados concretos para a melhoria da gestão prisional, raramente chegam ao conhecimento da sociedade. A sensação mais comum é de que estamos diante de uma situação absolutamente caótica, principalmente se nos detivermos na análise das finalidades da pena privativa de liberdade, tal como preceituam as leis vigentes no país.

De acordo com a legislação brasileira e com a legislação internacional, é obrigação do Estado prover educação, saúde, trabalho e assistência material básica que contribuam para a futura reinserção social do preso. É, portanto, inaceitável que ao custodiar indivíduos que infringiram normas sociais, o Estado se revele um infrator das leis, violando toda sorte de direitos, além de não agir com rigor no combate à violência e à corrupção. Ademais, o descalabro das condições de aprisionamento dá lugar à busca de estratégias de sobrevivência, por parte da população presa, que acabam por perpetuar e fortalecer a socialização de valores de desrespeito à vida, de ausência de responsabilidade e autonomia e de descrença na autoridade do Estado e da Lei.

Alterar o quadro em que se encontra o Sistema Penitenciário brasileiro requer ações governamentais firmes que garantam a implementação das leis, principalmente da Lei de Execução Penal/LEP (Lei Federal 7.210/1984) e dos regulamentos estaduais existentes. Requer, obviamente, a proposição de uma política penitenciária que estabeleça os instrumentos que possam efetivar as disposições legais. O trabalho aqui apresentado busca discutir estratégias que apontem para possibilidades concretas de mudança, levando-se em conta as propostas para o Sistema Penitenciário  inseridas no Plano Nacional de Segurança Pública proposto pelo candidato Luiz Inácio Lula da Silva durante sua campanha.

O Capítulo 2 traça um rápido panorama do Sistema Penitenciário brasileiro em números. Primeiramente, a análise de algumas séries históricas dá bem a noção da gravidade do problema que enfrentamos – acentuado crescimento da população prisional e do déficit de vagas. Em seguida, apresentamos um sumário dos dados encaminhados à coordenação deste trabalho pelos diferentes estados brasileiros. A análise detalhada desse material, acompanhada dos quadros e tabelas correspondentes, encontra-se no Anexo 1. Para o estabelecimento de uma “política penitenciária” é imprescindível que se tenha clareza acerca das bases conceituais que fundamentam este empreendimento. É necessário, portanto, esclarecer, diante das proposições legais e dentro da construção de um Estado Democrático de Direito, como se contextualiza a pena privativa da liberdade e as suas alternativas na sociedade brasileira, face aos altos índices de criminalidade verificados. É preciso indicar, mesmo que brevemente, em que contexto se gesta a exclusão social de parcela significativa da população brasileira, se agudizam os níveis de desigualdade e se produz solo fértil para o crescimento brutal da criminalidade violenta. Tal é a discussão pretendida no Capítulo 3.

O Capítulo 4 é dedicado ao tema da Gestão Prisional em seus múltiplos aspectos, analisando o cotidiano da vida intramuros e buscando estratégias de superação dos principais problemas com que se defrontam presos e seus custodiadores no gerenciamento da privação da liberdade. Discutiremos em que medida a prisão, enquanto instituição executora das penas, adquire feições muito especiais quanto às formas como gerencia o cotidiano de milhares de pessoas confinadas. Inúmeras são as situações diárias a serem administradas, em meio das quais se entrecruzam exigências legais, de segurança individual e coletiva, de satisfação de necessidades básicas objetivas e subjetivas, considerando-se, ainda, que existem diferentes regimes de cumprimento de penas (regimes fechado, semi-aberto e aberto). Problemas corriqueiros podem, rapidamente, dar lugar a episódios de insurgência e violência. Tratase, pois, de uma gestão delicada, em que os custodiadores têm um papel muito importante, já que a ausência da liberdade também retira dos presos grande parte de sua autonomia.

O conhecimento da cultura prisional revela que a convivência dos presos entre si e com seus custodiadores apresenta muitas peculiaridades. Também as relações entre os gestores da segurança penitenciária e os da assistência aos presos são objeto de permanentes dificuldades. Médicos, dentistas, enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos e professores aparentemente se colocam como os gestores da assistência, enquanto que os agentes de segurança se vêm como responsáveis pela segurança individual e coletiva. Tal dicotomia acaba sinalizando responsabilidades distintas, enganosas, como se um grupo de custodiadores trabalhasse “pró preso”, enquanto outro atuasse “contra o preso”. Na verdade, todos trabalham na custódia de presos, com inserções diferenciadas de acordo com suas atribuições profissionais, o que possibilita operacionalizar a execução da pena.

O Capítulo 5 discute as formas de controle interno e externo do sistema penitenciário e traz propostas muito concretas de aperfeiçoamento dos órgãos existentes e da criação de novos mecanismos de controle. A despeito de a mídia ocupar-se do sistema penitenciário no momento do escândalo, das rebeliões, dos episódios vergonhosos de corrupção e das fugas, o cotidiano da vida nas prisões padece de brutal invisibilidade e poucos são os mecanismos instituídos que efetivamente funcionam no sentido de revelar como se processa o confinamento dos indivíduos presos. Carecemos de instrumentos que dêem visibilidade ao que ocorre no interior das prisões: a Lei de Execução Penal propõe órgãos fiscalizadores, mas nem todos têm a eficácia necessária, seja por que nos acostumamos a naturalizar que “a prisão sempre foi assim”, ou mesmo por que não existe por parte da sociedade a proposição  firme de exercer o controle sobre a ação do Estado na custódia de presos. Por isso mesmo, a criação de instituições de controle interno e externo do sistema prisional, que possam realizar o contínuo monitoramento da vida intra-muros, é fundamental se desejamos alterar uma cultura de violência institucional e passar para uma cultura de proteção aos direitos humanos.

Em busca desta nova cultura, a capacitação continuada dos recursos humanos que desempenham a custódia é fundamental, sendo tema para o Capítulo 6 que versa sobre Capacitação de Pessoal no sistema penitenciário. Vale lembrar que não temos, no Brasil, formação profissional anterior ao acesso ao emprego dos agentes do Estado envolvidos com a custódia, principalmente dos agentes de segurança penitenciária. Estes são recrutados por mecanismos formais que, na verdade, não logram avaliar conhecimentos ou formação ético-política voltados ao desempenhodas funções de segurança. Tudo isto porque não temos, ainda, o cargo de agente de segurança penitenciária ocupado por um profissional. O que existe é o detentor de um ofício e a proposta aqui apresentada é a da profissionalização para a área de segurança penitenciária, a ser desenvolvida como uma política pública de educação. Ao lado disto, discutiremos a necessidade da capacitação continuada a ser realizada por Escolas de Formação Penitenciária nos estados, tanto para agentes, quanto para os demais profissionais da assistência.

O Capítulo 7 trata de um tema muito delicado: a gestão de recursos humanos no âmbito do sistema penitenciário. Hoje, a maior parte dos sistemas penitenciários estaduais não dispõem de planos de cargos e salários. Tal situação produz graves conseqüências no gerenciamento de pessoal. Além desta falta de definição quanto à projeção do futuro funcional dos servidores, acrescem as más condições de trabalho, vivenciadas em ambiente em que são constantes as situações de emergência e risco. Carecemos de uma política de saúde do trabalhador, instrumento usual hoje em toda empresa de médio e grande porte.Propostas nessas áreas fazem parte do Capítulo 7.

Alguns temas muito esquecidos e carentes de propostas adequadas também serão objeto de discussão do trabalho aqui apresentado: a situação da mulher presa, e de seus filhos em idade de freqüência a creches, e a questão dos egressos diante dos dilemas da reinserção social. O Capítulo 8 tratará desses temas. Como a população prisional masculina é significativamente mais numerosa em todos os países do mundo, as prisões são basicamente concebidas para homens e suas regras e regulamentos definidos por homens. A especificidade da mulher presa é freqüentemente ignorada. As questões de gênero, quando se discute sistemas penitenciários, deve ser tema central das preocupações de quem administra a privação da liberdade. A questão do egresso penitenciário também mereceu atenção neste trabalho. Raros são os programas que objetivam apoiar o indivíduo que reencontra a liberdade, embora a legislação seja muito clara a respeito das obrigações do Estado nesta área. A revisão de algumas estratégias hoje existentes e propostas no sentido de criar mecanismos de suporte ao egresso penitenciário fazem parte do Capítulo 8.

No Capítulo 9 será discutida a questão da terceirização de unidades prisionais e da privatização. Foram realizadas visitas aos estados do Paraná e Ceará que adotam o sistema que intitulam de “terceirização”, mas que não passa de completa privatização dos diferentes serviços, inclusive daquele de segurança. Uma análise da realidade brasileira nessa área e uma breve discussão mais geral do tema fazem parte desse item. Nas conclusões serão revistas, de forma resumida, as propostas contidas ao longo do documento, com a preocupação de enfatizar a necessidade ou não de mudanças legislativas para que se viabilizem as referidas propostas. Dedicaremos, também, espaço ao tema das alternativas à pena de prisão no contexto brasileiro e à necessidade de mudanças legislativas emergenciais que permitam maior utilização das alternativas como uma das formas decontribuir para a superação da crise do sistema penitenciário no país. O Brasil definitivamente não pode se dar ao luxo de encarcerar o infrator que não é violento e perigoso. Nunca é demais lembrar que um preso no país custa, por mês, dezessete vezes mais do que um aluno em programas de alfabetização. Se levarmos em conta que o Brasil convive com a cifra infamante de um milhão e quinhentos mil adolescentes analfabetos, não é difícil imaginar que precisamos, com urgência, reservar as prisões para o infrator que se constitui em risco concreto à segurança da população.

Nesse sentido, discutiremos, a necessidade de o governo federal desenvolver ampla campanha de esclarecimento da população quanto à ineficácia da pena de prisão enquanto instrumento de controle social. Está mais do que na hora de se admitir, sem qualquer hipocrisia, que a pena de prisão serve para castigar e que a tão proclamada “ressocialização” do infrator não passa de uma impostura, ou, como diz Maria Lucia Karan2 de propaganda enganosa de um sistema de justiça criminal que foi idealizado para punir o pobre, nada mais do que isso.

O presente trabalho vem acompanhado de três Anexos. O Anexo 1 é constituído por gráficos e tabelas que reúnem as informações encaminhadas pelos estados, em resposta ao questionário elaborado pela coordenação deste trabalho. Ao todo, 27 estados responderam o questionário, com exceção de Roraima e Paraíba. São 61 gráficos e 78 tabelas com informações das mais variadas, desde temas relativos à gestão prisional, até dados sobre o perfil dos presos. Integra o Anexo 1 a análise de todo este material que, na verdade, mapeia a realidade do sistema penitenciário brasileiro nos dias de hoje. Vale ressaltar a importância do Anexo 1 na medida em que se conhece muito pouco do que vai pelas prisões do país – os estados não produzem dados para consulta e, em geral, não estão informatizados.

O Anexo 2 é uma avaliação de documentos enviados pelos sistemas penitenciários, a nosso pedido: leis, decretos, portarias, editais de concursos, etc. 14 estados nos encaminharam algum tipo de documentação e consideramos importante reunir e analisar esse material, produzido pelos diferentes estados, de forma a conhecer um pouco como se dá a gestão penitenciária pelo Brasil afora. Com isso constituiu-se um banco de dados que pode ser extremamente útil para consulta por estados que buscam orientação para elaborar documentos semelhantes. Há referências a modelos de regulamentos penitenciários, a portarias que disciplinam a revista de visitantes, etc.

O Anexo 3 é a proposta de criação de uma divisão de saúde no DEPEN, considerando que, muito em breve, haverá unidades prisionais federais.

Finalmente, é importante mencionar que, embora o texto final deste trabalho seja de inteira responsabilidade da equipe que o produziu, alguns especialistas tiveram importante participação em sua elaboração. Ressaltem-se as seguintes contribuições:

1. Na área da saúde, uma equipe da Superintendência de Saúde da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado do Rio de Janeiro desenvolveu o Anexo 3, do qual foram retiradas recomendações constantes dos itens 4.4.2. e 7.3. Para a relação dos profissionais que contribuíram para a elaboração do documento conferir Anexo 3.

2. O item 4.4.3. incorpora sugestões de Julio Ribeiro.

3. O texto que Olga Spinoza elaborou sobre a questão da mulher presa encontra-se reproduzido no item 8.1. e 8.1.1.

4. “A questão das creches” é um resumo do texto que Claudia Stella preparou a pedido da coordenação deste trabalho.

5. O item 8.2. é, também, um resumo do texto que Milton Julio de Carvalho Filho redigiu a nosso pedido.

6. O capítulo 9, Privatização no sistema penitenciário, incorpora o texto que Augusto Thompson elaborou, também a nosso pedido.

2. Panorama Geral do Sistema Penitenciário Brasileiro em Números

2.1. A Evolução da População Carcerária

Existem dados razoavelmente confiáveis para o crescimento da população carcerária no Brasil entre os anos de 1995 e 2003, quando o número de presos por 100.000 habitantes cresceu 84%, como demonstra o Gráfico 1, abaixo. Considerando-se o crescimento da população carcerária em outras partes do mundo, percebe-se que tal número é bastante acentuado. Ao longo dos anos 1990 o crescimento médio do número de presos variou entre 20 e 40% nos mais diversos países. No entanto, alguns países das Américas tiveram crescimento muito maior: Estados Unidos, México, Argentina, Brasil e Colômbia, viram sua população carcerária crescer entre 60 e 85%. 1 De maneira geral, os especialistas sustentam que o crescimento da população prisional ao redor do mundo não guarda qualquer relação com as taxas de criminalidade. Ou seja, o número de presos não cresceu porque havia mais infratores cometendo crimes. As taxas de encarceramento por 100.000 habitantes aumentaram, basicamente, porque os diferentes países adotaram legislações mais duras em dois momentos: na condenação (impondo penas mais longas) e na liberação de presos (limitando os benefícios que abreviavam as penas). Voltaremos a esse assunto no Capítulo 9.

Gráfico 1. Crescimento da população carcerária no Brasil - 1995 a 2003

Fonte: Para o Rio de Janeiro: DESIPE; para São Paulo: Sistema Administração Penitenciária; para outros estados: Ministério da Justiça. Para o ano de 2003 foram utilizados os dados colhidos por este trabalho.

2.2. A Evolução do Número de Presos, Vagas e Déficit

Considerando-se o somatório do número de presos nos sistemas penitenciários estaduais e aqueles abrigados em delegacias policiais, ainda de acordo com dados do Ministério da Justiça, o Brasil passou de 148.760 presos em 1995 para 284.989 em 2003. Houve, no mesmo período, um esforço muito grande de geração de novas vagas, tendo sido criadas 112.132 novas vagas em dezenas de unidades prisionais pelo país afora. Passamos, assim, de 68.597 para 180.726 vagas. No entanto, a despeito do investimento de recursos consideráveis, nos diferentes estados, para a construção dos novos estabelecimentos, o déficit de vagas hoje é muito maior do que em meados dos anos 1990. De acordo com os números do Ministério da Justiça, o déficit, em junho de 2003, era de 104.363 vagas. Vale ressaltar que este assunto será também retomado no Capítulo 9 e, por ora, basta que se registre a dimensão do problema.

Gráfico 2. População carcerária, número de vagas e déficit de vagas- 1995 a 2003

Fonte: Ministério da Justiça

1.2. Análise das Informações dos Estados

No Anexo 1 ao presente trabalho, podem ser encontrados o modelo do questionário que foi encaminhado aos estados e a íntegra da análise de todas as informações geradas pelo referido instrumento, relativas ao conteúdo de 68 gráficos e 78 tabelas. O material a seguir é um sumário desse conjunto de informações, cabendo recomendar que os resultados sejam considerados com cautela, na medida em que, a despeito do esforço de crítica dos dados e checagem de muitos deles com os diferentes estados, ainda se constatam algumas inconsistências. Há informações truncadas e há dados faltosos. Os estados não possuem dados informatizados e, em sua maior parte, muitas informações foram coletadas exclusivamente para este trabalho. Embora, ao longo do Anexo 1, sejam apontados diversos problemas com os dados, procuraremos aqui, a título de sumarizar os resultados, cobrir as questões mais gerais e menos contaminadas por incongruências. Vale ressaltar que os dados referem-se ao ano de 2003.

· Segundo as informações coletadas, o Brasil tinha, em novembro de 2003, 302.495 presos, dos quais, 227.670, ou 75,3%, em unidades dos sistemas penitenciários e 74.825, ou 24,7%, em delegacias policiais. De acordo com a lei, xadrezes de delegacias não estão destinados ao abrigo de presos, a não ser pelo tempo necessário para lavratura de um flagrante e identificação;

· O número de presos abrigados em delegacias de polícia é muito grande em diversos estados. Em três estados mais de 50% dos presos estão fora dos sistemas penitenciários e em sete estados mais de 30% dos presos estão em delegacias, em flagrante desrespeito à legislação do país;

· As médias mensais de novos ingressos nos sistemas penitenciários são muito altas.  Em 10 estados a média mensal de novos ingressos é superior a 5% do total da população carcerária abrigada nos sistemas penitenciários, o que, óbviamente, inviabiliza qualquer tentativa de planejamento estratégico conseqüente da política penitenciária;

· Comparando-se as médias mensais de novos ingressos e de liberações (seja por término de pena, liberdade condicional ou desinternação, esta no caso dos inimputáveis), percebe-se que os primeiros equivalem a quase o dobro do número de liberações. Ou seja, o sistema penitenciário funciona como um verdadeiro funil, o que explica o crescimento do nível de superlotação ao longo dos anos, a despeito da criação de milhares de novas vagas, como já mencionado;

· Nos sistemas penitenciários, cerca de 70% dos presos estão condenados e o restante aguarda julgamento, o que pode ser considerado aceitável segundo médias internacionais;

· 75,8% dos presos nos sistemas penitenciários cumprem pena em regime fechado, aproximadamente 13% em regime semi-aberto e 2,7% em regime aberto, o que parece indicar rigor do judiciário na aplicação da lei e mesmo o endurecimento da legislação.

· 36% dos presos que se encontram em delegacias policiais já estão condenados, contrariando diplomas legais do país e internacionais;

· Mais de 4.000 presos, condenados nos regimes semi-aberto e aberto, cumprem pena em delegacias policiais, estando impossibilitados de usufruir dos benefícios que a lei faculta a condenados nesses regimes, como o trabalho externo e as visitar ao lar;

· Em 20% dos estados houve a criação de Secretarias de Administração Penitenciária para gerir os sistemas penitenciários estaduais, demonstrando a crescente importância dessa área da administração pública, sempre marcada por crises e convivendo com uma população carcerária crescente;

· 25% dos estados não possuem Regulamento Penitenciário. Ora, a Lei de Execução Penal data de 1984 e deveria ter sido regulamentada a seguir, por todos os estados. O fato de 25% dos estados, depois de 20 anos, ainda não contarem com tais instrumentos de gestão, constitui-se em fato muito grave. E, pior ainda, apenas 50% dos estados contam com manuais de atribuições das diferentes funções nos sistemas penitenciários. Tudo isto está a indicar que a improvisação parece ser a marca da gestão prisional em muitos estados do país;

· 42% dos estados têm convênio com o SUS na área do sistema penitenciário. Tomando-se como referência o estado do Rio de Janeiro, o primeiro a estabelecer convênio com o SUS para o Sistema Penitenciário, ainda em 1992, é lamentável constatar que, mais de dez anos depois, ainda é pequeno o número de estados que recebem verbas do Ministério da Saúde para atender às necessidades de assistência à saúde dos presos;

· 94,4% da população carcerária é constituída de homens e 4% de mulheres, o que se aproxima às médias internacionais;

· A população carcerária é muito jovem: 18,3% têm entre 18 e menos de 25 anos e 23,2% dos presos têm entre 25 e menos de 30 anos. Acompanhando uma tendência, também mundial, a população de presos vem apresentando um perfil cada vez mais jovem;

· A população carcerária brasileira apresenta nível de escolaridade muito baixo. 70% dos presos não completaram o 1º grau e, o que é pior, 10,4% dos presos são analfabetos;

· Quanto aos artigos de maior condenação, 23,9% dos presos estão condenados no Art.157 (roubo); 10,5% no Art. 12 (tráfico de entorpecentes); 9,1% no Art. 155 (furto); e 8,9% no Art. 121 (homicídio);

· Quanto ao tamanho da pena, 15,7% dos presos foram condenados a penas de 1 a 4 anos; 20,2% dos presos foram condenados a penas de 5 a 8 anos; e o restante, ou seja, 64%, foram condenados a penas de 9 anos ou mais, o que indica o rigor do Judiciário na aplicação de uma legislação, por si mesma rigorosa;

· Em 17% dos estados não há controle do término de pena dos presos e, o que é pior, entre os estados que o fazem cerca de 32% não têm esse controle informatizado, o que nos leva a supor que muitos presos permanecem privados da liberdade para além dos prazos legais, não apenas no que se refere a penas cumpridas, como à obtenção do livramento condicional;

· Apenas 17,3% dos presos estão envolvidos em alguma atividade educacional.  Levando-se em conta que 70% dos presos não terminaram o 1º grau e que cerca de 10% são analfabetos, é óbvio que os sistemas penitenciários não parecem estar interessados em alterar esse quadro. Ademais, considerando que 83,3% dos estados mantêm convênios com as Secretarias de Educação para o desenvolvimento de atividades educacionais, o quadro resulta ainda mais absurdo;

· Apenas 26% dos presos estão envolvidos em atividades laborativas o que, no mínimo, limita a possibilidade da remição da pena pelo trabalho (um dia trabalhado = menos três dias de pena), o que se constitui em direito do preso, além de refletir a histórica incompetência do Estado brasileiro em prover trabalho ao preso. E, o que é pior, em muitos estados menos de 10% dos presos trabalham. Se muitos cometeram crimes por jamais terem aprendido um ofício ou, por inúmeras circunstâncias da vida, jamais terem desenvolvido o gosto pelo trabalho, os sistemas penitenciários fazem muito pouco para mudar tal estado de coisas;

· Apenas 20% dos presos condenados em regime semi-aberto trabalham fora dos muros, mas 76% têm autorização para visitar suas famílias;

· 70% dos presos recebem visitas e 27 % recebem visita íntima. Vale ressaltar que 36% dos estados afirmaram que autorizam visitas íntimas entre parceiros homossexuais.

· Há mais de 2.000 presos comprovadamente portadores do vírus HIV+ no sistema penitenciário brasileiro. Considerando-se que, de acordo com orientação da Organização Mundial de Saúde, a checagem obrigatória é vedada, pode-se imaginar que este número seja muito mais alto;

· Cerca de 88% dos estados informaram que há distribuição regular de material de higiene nos seus sistemas penitenciários e 40% sustentam que distribuem vestuário e roupa de cama. Vale ressaltar que em nossas visitas a diferentes estados foi constatado que, mesmo aqueles que eventualmente distribuem tais itens, não o fazem regularmente.

· Aproximadamente 50% dos sistemas penitenciários estaduais não contam com creches para os filhos pequenos de mulheres presas, o que contraria a Lei de Execução Penal;

· Em 60% dos estados há censura à correspondência, em desrespeito à Constituição Brasileira;

· Em 82,6% dos estados há servidores desviados de função, o que aponta para uma grave distorção dos sistemas penitenciários. Historicamente, se realizam muito mais concursos para agentes de segurança penitenciária do que para as áreas administrativa e técnica (advogados, psicólogos, assistentes sociais, médicos, etc). O resultado são carências profundas em determinadas áreas que acabam supridas por quem fez concurso para agente de segurança penitenciária e revela aptidão para tal ou qual tarefa, ou mesmo possui diploma universitário que permite o exercício desta ou daquela profissão dentro dos muros;

· Nos diferentes sistemas penitenciários, policiais militares participam das atividades de formas diversas. Em 45,8% dos estados, policiais militares dirigem os sistemas penitenciários e em 66,7% dos casos há policiais militares dirigindo unidades prisionais. Em cerca de 80% dos estados é a polícia militar que faz a escolta de presos e em todos os estados, à exceção de São Paulo, são policiais militares que se responsabilizam pela segurança externa das unidades;

· Apenas 20% dos estados contam com Escolas de Formação Penitenciária, o que revela o absoluto descompromisso com a formação e a capacitação continuada do pessoal penitenciário;

· Em 70,8% dos sistemas penitenciários não há planos de cargos e salários, o que aponta para o improviso em que se dá a gestão prisional;

· Apenas 16,7% dos estados contam com Patronatos, indicando que a questão do egresso não é considerada uma questão importante. Muito ao contrário, os sistemas penitenciários apenas se ocupam daqueles privados da liberdade, e se ocupam mal, como está demonstrado pelos números aqui relatados, não havendo qualquer compromisso em apoiar quem sai da prisão;

· Em 66,7% dos estados já se encontra a terceirização de uma série de serviços, notadamente daqueles relacionadas com a feitura e distribuição de alimentação aos presos.

· Em 68% dos estados há projetos em parceria com a sociedade civil;

· Em 72% dos estados os sistemas penitenciários identificam e separam presos por facções, indicando que o Estado está longe de exercer controle efetivo sobre as unidades prisionais. E, o que é pior, sabe-se que, freqüentemente, a identidade com determinado grupo acaba por materializar-se a partir da provocação do gestor prisional;

· 39% dos estados não têm Conselhos da Comunidade e, onde tais Conselhos existem, os mesmos são atuantes, fazendo monitoramento das unidades prisionais, em apenas 52% dos casos;

· Em 28% dos estados não existe Defensoria Pública, sendo a assistência jurídica aos presos muito comprometida;

· Em 24% dos estados os castigos e recompensas não estão regulamentados.

· Em apenas 88% dos estados havia, em novembro de 2003, CTCs constituídas de acordo com a LEP;

· Houve mais de 4.000 fugas no sistema penitenciário brasileiro no ano 2003;

· 303 presos foram assassinados por outros presos nos sistemas penitenciários estaduais. Ora, considerando-se que homens e mulheres privados da liberdade encontram-se sob a responsabilidade do Estado, é gravíssimo constatar que as mortes acontecem em proporções alarmantes e rigorosamente nada se faz, não se ouvindo falar de indenizações às famílias desses presos;

· 50% dos sistemas penitenciários não contam com Corregedorias, órgão de controle interno por excelência, que deveria necessariamente fazer parte da estrutura de qualquer sistema penitenciário estadual. Considerando-se os níveis de corrupção e violência, de irregularidades e ilegalidades de toda ordem, que grassam nas prisões do país, é indesculpável que não se trate de criar Corregedorias para lidar com tais problemas.

· 36% dos estados alegaram ter Ouvidorias, o que, no mínimo, é surpreendente, se levarmos em conta os dados do ítem anterior. Ouvidorias são órgãos de controle externo e seriam necessárias análises cuidadosas sobre o funcionamento de tais Ouvidorias para que as mesmas pudessem ser consideradas efetivos órgãos de controle externo, ao invés de estratégias dos próprios sistemas penitenciários, com independência muito limitada e relativa;

· 91,7% dos sistemas penitenciários estaduais contam com detectores de metal em suas unidades e 8,3% com bloqueadores de telefones celulares. A grande quantidade de detectores de metal, basicamente de portais para tal fim, estão a indicar a possibilidade de revisão dos métodos empregados na revista dos visitantes, sempre humilhantes e vexatórios;

· Em cerca de 30% dos estados as revistas dos visitantes não se encontram regulamentadas, o que, obviamente, dá margem a muita arbitrariedade.

3. Requisitos para uma Política Penitenciária

3.1. O Estado e a Política Penitenciária

A política penitenciária no Brasil, enquanto política pública, é responsabilidade do Estado, inserindo-se nas chamadas “políticas de segurança pública”. E, para se compreender os dilemas da política penitenciária é preciso rever, mesmo que brevemente, como se constituiu o Estado brasileiro, especialmente no século XX. É preciso que nos voltemos para a história recente do Brasil, principalmente dos anos 1930 até hoje, período em que ocorrem grandes mudanças no cenário brasileiro, decorrentes das condições mais gerais do desenvolvimento do capitalismo mundial.

Nos anos 1930, o Brasil era um país eminentemente rural, com 70% de sua população vivendo no campo, vinculada à produção agrícola e pecuária. Cinqüenta anos mais tarde, constatava-se o inverso: 70% da população habitava as cidades e 30% o campo. Assim, até 1930, a economia brasileira centrava-se na produção e comercialização de produtos agrícolas. A partir de então, a industrialização nas grandes cidades transforma o país, em 1980, na oitava economia do mundo. O Brasil torna-se uma potência industrial média, produzindose ao longo do século uma mudança radical no perfil da sociedade: gradualmente, a força de trabalho desloca-se do campo para as cidades, confluindo em cinturões urbanos de migrantes, a grande maioria se inserindo no mercado industrial, trazendo consigo o analfabetismo, o desraizamento cultural, ao lado da expectativa de uma vida melhor na cidade grande. Entretanto, o grande sonho foi sendo cotidianamente desmontado, com a gradativa ausência do Estado na promoção de acesso daquela população e de suas gerações descendentes a direitos sociais básicos como educação, saúde, habitação e saneamento, entre tantos outros. Para se compreender o caos urbano dos “cinturões de pobreza”, formados nos últimos cinqüenta anos, é preciso lembrar o Estado que tínhamos e qual o seu legado.

A marca fundamental do Estado brasileiro no período 1920-1980 é seu caráter desenvolvimentista (lembremos o governo JK e os “cinqüenta anos em cinco”), conservador, centralizador e autoritário. O Brasil não vivenciou o chamado Estado do Bem Estar (Welfare State) europeu. O Estado brasileiro se notabilizou como promotor do desenvolvimento, buscando consolidar o processo de industrialização e tornar o Brasil uma grande potência. Implícito, pois, estava o papel do Estado de promover a acumulação privada na esfera produtiva.

Na sua função desenvolvimentista, o Estado não buscava alterar a qualidade das relações na sociedade, marcada desde o período colonial pela escravidão, pelo autoritarismo das administrações públicas e das elites em relação à população. Do ponto de vista político, o Estado não alterou as relações de exploração entre as classes, de subjugação dos pobres à lei, e da distribuição de benesses às elites dirigentes e aos mandatários da economia. A essência das políticas públicas gestadas pelo Estado está voltada para o crescimento e a acumulação econômica, acompanhando o movimento do capitalismo internacional, nos seus avanços e crises.

E, ao lado de seu caráter desenvolvimentista, o Estado brasileiro revela-se profundamente centralizador e conservador. Vem de longe a tradição do Estado brasileiro de assumir muito mais o objetivo de crescimento econômico e, muito menos, o da proteção social do conjunto da sociedade. O Estado centralizador busca fazer, produzir, conservando as relações sociais estabelecidas. Não se construiu um Estado regulador das relações sociais, proposto a dialogar e negociar com a sociedade. E, além de centralizador é, também, autoritário: tivemos duas longas ditaduras – o período Vargas e a ditadura militar inaugurada com o golpe de 1964.

Considerando seu caráter autoritário, o Estado não necessitou legitimar-se perante à maior parte da sociedade. As questões sociais decorrentes, desde o início do século passado, do processo de industrialização e da prioridade econômica, foram se acumulando e tratadas, na maior parte das vezes, como “caso de polícia”. As ditaduras produziram uma vertente ideológica de “segurança pública” caracterizada pelo combate aos “subversivos” à ordem oficial instituída, transformando-se, ao longo das últimas décadas, em “combate aos pobres”. O chamado Estado fazedor promoveu o desenvolvimento da infraestrutura de portos, rodovias, telecomunicações e siderurgia, área que exige investimento substantivo, para oferecer ao setor produtivo privado as bases para sua expansão. Além de implementar e conservar tal infraestrutura, acabou por privatizar grande parte daquilo que foi construído com recursos públicos.

Ao lado da grande tarefa desenvolvimentista, o Estado fazedor ocupou-se, diante de circunstâncias conjunturais, de regular os interesses contrários a seu projeto. No Governo Vargas, por exemplo, o Estado estabeleceu as regras de convivência entre capital e trabalho, regulamentando tais relações através da legislação trabalhista. A criação de inúmeros órgãos de assistência ao operariado, como o SESC, SENAI, SESI, Institutos de Aposentadorias e Pensões (embrião do INSS), são o legado getulista concebido para dirimir conflitos nasrelações dos trabalhadores com o patronato.

Ao longo dos últimos vinte anos, acentuaram-se as chamadas políticas compensatórias, de reparação e atendimento às necessidades básicas de sobrevivência da população pobre, das quais são exemplo o ticket do leite no Governo Sarney, cestas básicas, cheque cidadão, vale gás, e tantos outros, sem que se tenham constituído políticas públicas que realmente contribuíssem para alterar significativamente a condição de vida desses indivíduos.

A partir de 1988 temos uma Carta Constitucional com proposições inclusivas de toda a população, por exemplo, na questão da saúde, com acesso universal à rede pública, ao contrário do que acontecia anteriormente, quando os recursos de saúde estavam destinados ao cidadão trabalhador com vínculo empregatício. O Sistema Único de Saúde, como política pública, trouxe a possibilidade de tratamento da população, sem qualquer categorização, e a Carta de 1988, promulgada ao longo do período de redemocratização do país, propõe as bases para um novo Estado Democrático de Direito. A sociedade brasileira recupera na década de 1980 um conjunto de direitos civis e políticos que possibilita a mobilização e luta pelo acesso a direitos sociais e pela busca da diminuição da distância que separa as classes, as regiões e os bairros de uma cidade, como se fossem mundos excludentes quanto à qualidade de vida e condições de sobrevivência.

Assim, torna-se claro que, para o Estado Democrático de Direito se consolidar, é muito significativa a luta pela efetividade das leis. Enfrentamos o desafio de fazer com que as leis não se efetivem apenas para os pobres quando se trata, por exemplo, de puní-los ou enquadrar suas ações ilícitas. A efetividade de um regime democrático, pautado sob o ponto de vista formal, no seu aparato legal, avança no sentido de estabelecer não apenas quem são os portadores de direitos de cidadania, mas garantir o acesso universal e includente a esses direitos. E a garantia do acesso aos direitos requer a gestão de mecanismos de controle social para a sua efetivação.

Guilhermo O’Donnell3 discute a não efetividade das leis nos países da América Latina e sustenta que o que a população conhece é “o Estado Democrático que pode estar presente na forma de prédios e funcionários pagos pelos orçamentos públicos. Mas, o Estado legal está ausente: qualquer que seja a legislação formalmente aprovada existente, ela é aplicada de forma intermitente e diferenciada”.

Ao longo da década de 1980, sob a égide da liberdade política, parte da população passa claramente a reivindicar direitos. Do ponto de vista econômico, ingressamos na década de 1990 com dois terços da população fora do mercado formal de trabalho, vivendo também o país a grande crise mundial do capital e seus corolários: a globalização, a reestruturação produtiva e a financeirização da riqueza, com a agudização das questões sociais. Tudo isto, evidentemente, perpassado pela hegemonia da ideologia neoliberal. Alguns ditames prevalecem, tais como: “Quanto menos Estado e quanto mais mercado melhor”, ou ainda: “Quanto mais individualidade e quanto menos coletividade melhor”. Dentro desta ótica neoliberal redefine-se o papel do Estado: este recolhe-se da produção. Há menos Estado na regulação e, portanto, há mais presença do mercado. Em conseqüência, o Estado enxuga a sua responsabilidade na promoção e gestão de políticas públicas e, em substituição, mais mercadorias e serviços substitutivos surgem no mercado. A saúde pública transforma-se na mercadoria “Planos de Saúde”, a educação tratada como mercadoria, é acessada através da variedade de cursos pagos. O Sistema Penitenciário,  igualmente, já encontra na sua gestão serviços vendidos ao Estado por empresas privadas.

No Brasil, nos estados do Paraná, Acre e Ceará os governos compram os serviços de custódia e assistência aos presos de empresas “executoras” da pena privativa de liberdade. O Estado se desonera, pois, de sua função precípua, contrariando inclusive a legislação internacional. A ausência, ou quiçá, a fragilidade das políticas penitenciárias, como instrumentos do Estado para operar a Lei de Execução Penal no Brasil se reportam, pois, aos diferentes aspectos cultuados ao longo da história do Estado brasileiro na condução das políticas públicas: autoritarismo e maus tratos físicos de um lado, escassez de investimentos públicos em programas de capacitação profissional, de educação formal, de trabalho e ocupação da mão de obra ociosa de outro, além da falta de manutenção dos prédios das prisões e da capacitação continuada dos funcionários, do abandono da assistência à saúde, jurídica e material. Portanto, as prisões reproduzem, no seu interior, a mesma irresponsabilidade do Estado em relação à população como um todo, quadro agravado em relação aos presos face ao fato de sofrerem da exclusão moral peculiar aos transgressores das normas sociais. Insista-se que o Estado mínimo brasileiro tornou estrutural a exclusão social de grande percentual de nossa população. São mais de 40 milhões de brasileiros vivendo abaixo da linha da pobreza. Tal conjuntura acelera ainda mais a histórica concentração de renda em nosso país, onde 1% dos mais ricos detém mais de 35% de nossas riquezas, enquanto os 10% mais pobres detém somente 1,1% da riqueza nacional. Esta imobilidade social sistêmica faz da população mais pobre uma massa de sub-cidadãos, sem possibilidade de se empregarem.

Nasce uma nova “classe perigosa4 , aqueles que sobraram da sociedade de mercado. Essa massa de excluídos é formado por pobres, sendo uma maioria de jovens não brancos, que sem direitos sociais, vai superlotar delegacias de polícia, manicômios, abrigos de menores, ruas e presídios. Segundo Zigmunt Bauman, “a pobreza não é mais um exército de reserva de mão de obra, tornou-se uma pobreza sem destino, precisando ser isolada, neutralizada e destituída de poder”.5

A década de 90 traz grandes avanços democráticos para o Brasil, porém a conquista da democracia não resolve, sozinha, os entraves econômicos e sociais mais agudos da sociedade. Foi neste período que o Brasil se consolidou como país mais desigual do mundo. A ideologia dos modelos de segurança pública, por exemplo, continuam pautados pela necessidade de preservação da ordem excludente, através de rígidos instrumentos de controle social. A manutenção da ordem vigente se foca na necessária visibilidade de um inimigo público. O que passamos a assistir é a mais absoluta criminalização da pobreza. Como diz Loic Wacquant6 , “a manutenção da ordem de classe e a manutenção da ordem pública se confundem”.

Manter isolados os novos inimigos públicos da sociedade é sinal de eficácia do sistema penal, consolidando-se atrás das grades a pena de morte social. As prisões são sempre reflexos das sociedades que as produzem e o abandono e ausência de políticas públicas são espelho da relação do Estado com as populações pauperizadas.

3.2. As Instituições da Execução Penal

A Lei 7.210 estabelece quem participa da execução penal: O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), o Juízo da Execução Penal (as Varas de Execuções Penais), o Ministério Público, o Conselho Penitenciário local, o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), os Departamentos Penitenciários locais (na esfera estadual), o Conselho da Comunidade e os Patronatos. À exceção do último, todos estes órgãos têm, entre outras funções, a de fiscalizar a aplicação da Lei de Execução Penal, o que raramente é feito. Nem os órgãos federais, nem os órgãos locais que participam da execução penal, visitam regularmente as unidades prisionais, cobrando das autoridades responsáveis pelos sistemas penitenciários a implementação da lei.

Se nos detivermos nas funções precípuas do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e no Departamento Penitenciário Nacional, ambos da esfera do Poder Executivo Federal e inseridos no Ministério da Justiça, perceberemos que a relação entre ambos se consolida na LEP. O primeiro é responsável por propor a política criminal e penitenciária e pela inserção de metas e prioridades dessa política nos planos nacionais de desenvolvimento. O Departamento Penitenciário Nacional, por seu turno, é o órgão executor da política estabelecida pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Cabe lembrar o que o Plano Nacional de Segurança Pública, do então candidato Luiz Inácio Lula da Silva, recomenda em relação ao Departamento Penitenciário Nacional/DEPEN (pág. 74): “aprimoramento do Departamento Penitenciário Nacional transformando-o em órgão que realmente cumpra suas finalidades, com dotação financeira e recursos humanos adequados. De acordo com a Lei de Execução Penal (Capítulo VI, Seção 1), o DEPEN é órgão executivo da Política Penitenciária Nacional com responsabilidade, entre outras, de fiscalizar periodicamente os estabelecimentos penais(o que nunca é feito) e de “assistir tecnicamente as unidades federativas na implementação dos princípios e regras estabelecidos neta Lei” (o que é absolutamente ignorado).”

Em relação ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, diz o Plano Nacional de Segurança Pública (pág. 74): “aprimoramento do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) no sentido de que cumpra suas finalidades. De acordo com a Lei de Execução Penal, o CNPCP tem a responsabilidade de propor a política criminal e penitenciária do país e, no entanto, seus membros passam a quase totalidade do tempo .... emitindo pareceres sobre projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional que raramente se transformam em realidade. Uma de suas obrigações, a de fiscalizar os estabelecimentos prisionais do país, é ignorada.”

Ora, tanto o DEPEN, quanto o CNPCP, têm a obrigação de fiscalizar as unidades prisionais do país, cobrando adequação à Lei de Execução Penal. Evidentemente, o poder de coerção desses órgãos só poderá ser efetivo quando o governo federal puder dispor de verbas significativas para a área. É preciso prover o DEPEN de recursos humanos e materiais adequados, além de verbas consideráveis para auxiliar os estados, não só na construção de unidades prisionais, mas, principalmente, no assessoramento técnico da gestão prisional, para que se possa pensar no estabelecimento de uma política penitenciária respeitadora dos direitos dos presos, orientada por Brasília.

Não é possível admitir, por exemplo, que recursos do Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN) sejam contingenciados, por ser esta uma verba que legalmente está destinada, com exclusividade, ao sistema penitenciário. Como também lembra o Plano Nacional de Segurança Pública, no ano 2000 mais de R$ 200 milhões do FUNPEN foram contingenciados, em flagrante desrespeito à legislação. Por outro lado, estabelece o Projeto (pág. 74) que devem ser impostas condições específicas e rigorosas na liberação de verbas federais para os sistemas penitenciários: “Os estados deverão demonstrar que estão desenvolvendo esforços, por exemplo, na área do respeito aos direitos humanos e aos direitos sociais, combatendo a tortura e os espancamentos e oferecendo condições mínimas de subsistência para a população carcerária”.

Em relação aos outros órgãos da execução penal, vale lembrar que tampouco seus representantes fiscalizam, regularmente, as unidades prisionais. Embora não se pretenda, aqui, discutir com maior detalhe a atuação desses órgãos, é importante ressaltar que, com o advento da Lei 10.792, de 1º de dezembro de 2003, os Conselhos Penitenciários locais deixam de ter qualquer responsabilidade sobre a concessão de livramentos condicionais.

Assim sendo, ficam dezenas de profissionais que atuam nesses conselhos, pelo país afora, com tempo ocioso que pode ser dedicado, quase que integralmente, à fiscalização dos sistemas penitenciários. Mais adiante, no Capítulo 5, voltaremos ao tema da fiscalização e suas vantagens.

4. A Execução Penal: o Lugar dos Custodiadores

4.1. A Gestão Prisional

O mandato da sociedade relativo à forma de punição instituída pela pena privativa de liberdade encontra, no aparato político ideológico e burocrático do Estado, as condições necessárias para gerenciar os sujeitos confinados dentro dos muros das prisões. Este mandato vai se alterando de acordo com o quadro de criminalidade do país. Na última década, o clamor público pelo endurecimento das penas e dos regimes prisionais tem sido uma constante no cenário brasileiro e os meios de comunicação têm contribuído para o aumento da sensação de insegurança. Principalmente os crimes cometidos por adolescentes e jovens adultos recebem extensa cobertura na mídia e são utilizados para reforçar a necessidade do agravamento das medidas sócio-educativas e das penas. E, como dizem os juristas, o resultado é a edição de novas leis que, no seu conjunto, podem ser definidas como “legislação do pânico” que nenhum impacto têm sobre as taxas de criminalidade.

Na década de 1990, surge, por exemplo, a Lei dos Crimes Hediondos: penas mais altas e rigor maior na concessão de benefícios legais, como o livramento condicional. Em 2003, o movimento para endurecer os regimes disciplinares é vitorioso, culminando com a edição da Lei nº 10.792, de 1º de dezembro daquele ano, que inclui o Regime Disciplinar Diferenciado, já experimentado em vários estados. Isto tudo posto, o grande desafio que se impõe aos sistemas penitenciários no Brasil resume-se ao seguinte: como a gestão prisional pode pugnar pela garantia dos direitos fundamentais constantes na legislação internacional e nacional, num espaço institucional coercitivo e autoritário?

A primeira questão que se coloca à gestão prisional é de que ela administra uma relação de custódia, vivida por presos e custodiadores em três regimes de pena: o fechado, o semi-aberto e o aberto. Face à esta diferenciação dos regimes, a gestão prisional adquire funções específicas, embora evidencie-se, em todos os regimes, o dilema da falta de autonomia dos presos na relação com seus custodiadores. Estes, agentes do Estado, estão presentes para garantir a ordem, utilizando-se dos instrumentos de disciplina e de vigilância direcionados ao produto esperado pela administração pública e pela sociedade: a segurança individual e coletiva, intra e extra-muros. Para a obtenção desse produto, a gestão prisional trabalha sobre um grande tabuleiro composto por “peças” burocráticas: uma imensidão de portarias, regulamentos, ordens de serviço formais e um conjunto de crenças e valores que agilizam procedimentos informais, reforçando a cultura prisional.

Como contraponto à falta de autonomia dos presos, surge outro fenômeno: a organização dos presos em facções, à revelia da administração pública ou com seu “consentimento”. É o lado perverso da conquista de autonomia: os presos se auto-denominam membros de determinada facção. Dentro do grupo, constróem regras típicas de disciplina,  prêmios e castigos, além de estabelecerem formas peculiares de governo que, freqüentemente, colidem com os interesses da gestão prisional ou propiciam alianças espúrias com os custodiadores.

A separação dos presos por facções foi instituindo ao longo dos anos uma forma oficiosa de classificação e, em alguns estados do Brasil, passa a ser o critério fundamental para a lotação dos presos nas unidades prisionais. Esta delicada questão tem sido um grande desafio para os gestores, uma vez que são legalmente responsáveis pela integridade física dos presos. Romper, pois, com esta auto-classificação de pertencimento às facções significa, de um lado, não compactuar com uma forma de organização com raízes ilegais, de outro, expor os custodiados à morte e à violência. A organização das facções com sua conexões extra-muros veio contribuir com novas formas de interação entre funcionários e presos, estabelecendo vínculos de interesse financeiro e agravando formas de maus tratos e violência letal.

Tal quadro, é importante lembrar, agrava o autoritarismo, já que a gestão prisional não carrega, em si, nenhuma tradição de participação democrática dos presos nas decisões dos gestores. Os presos, obrigados a cumprir rotinas diárias impostas ( a hora do banho de sol, a hora da visitação, a hora do atendimento dos serviços técnicos, por exemplo), vão criando suas próprias formas de burlar as normas oficiais. Não raro, esta burla se realiza com a aquiescência de funcionários, seja em troca de favores e de informações privilegiadas, ou através de dinheiro. Em todas estas circunstâncias, o funcionário corrompido/corruptor, rompe com seu papel de custodiador, colocando em risco a própria gestão prisional – a vida do coletivo, seja de presos ou de companheiros. Diante deste quadro em que grassa a corrupção, o produto final esperado - a segurança individual e coletiva intra e extra-muros – resulta altamente fragilizado, a despeito da existência de adequado aparato físico ou tecnológico na unidade prisional.

A gestão prisional, pois, além das dificuldades mencionadas, tem sob sua responsabilidade= cotidiana administrar a burocracia do confinamento de presos provisórios, condenados ou em medida de segurança, no sentido de satisfazer desde necessidades humanas básicas (vestir-se, alimentar-se, higienizar-se, ocupar-se) até necessidades existenciais, afetivas e sexuais. Tudo isto requer uma gama de recursos, providências e estratégias muito especiais, sendo tal gestão bastante diferenciada daquela vivenciada pelos cidadãos livres, que mantém autonomia e responsabilidade, essenciais para resolver os problemas cotidianos. O administrador desse elenco de situações é o gestor e executor da custódia, na figura de diretores, chefes e funcionários. Situações corriqueiras, de caráter doméstico, como o mau funcionamento na confecção e distribuição da alimentação ou no fornecimento da água, não são apenas incômodos ou desconfortos, mas podem ser estopim de incidentes prisionais de proporções imprevisíveis.

Outra questão importante de que se ocupa a gestão prisional refere-se à disciplina e às condições de trabalho dos funcionários. É preciso determinar quem se desempenha mais efetivamente em cada área de responsabilidade, como criar acesso aos espaços de poder, como administrar o espaço do poder, como e quando punir os funcionários faltosos, como usar punições previstas na legislação ou constante do rol oficioso. Trata-se, por vezes, de administrar interesses diversos como, por exemplo, negociar a carga horária para compatibilizar o trabalho na prisão com outros empregos ou serviços autônomos. São inúmeras as necessidades dos funcionários e os gestores necessitam de competência técnica e habilidade para encaminhar as soluções mais adequadas.

Não raro, os espaços de gestão são ocupados a partir da pressão de grupos políticopartidários, não contando a maioria dos estados brasileiros com planos de cargos e salários que disciplinem o acesso dos funcionários aos cargos superiores e intermediários de gerenciamento. Predominam ainda os critérios de relações amistosas, clientelistas ou de revesamento dos mesmos sujeitos em cargos distintos.

Na gestão dos trabalhadores das prisões tem-se ainda demandas significativas, face à especificidade do trabalho, tal como a formação profissional dos agentes de segurança, ainda inexistente no Brasil como requisito para admissão, assim como a capacitação continuada de todos os profissionais, visando seu desenvolvimento. Outra questão presente nos vários sistemas prisionais no Brasil refere-se à constituição de parcerias com organizações da sociedade para administrar as penas: são instituições religiosas, universitárias, organizações não-governamentais ou públicas, que permitem ampliar a transparência, a permeabilidade quanto à vida intramuros. São organizações parceiras na prestação de serviços de cultura e lazer, assim como no acolhimento de egressos ou de famílias de presos. Estas parcerias se distinguem radicalmente das formas de terceirização instaladas nos últimos cinco anos em sistemas prisionais, como o do Paraná: o Estado abre mão de sua prerrogativa de uso legítimo da força e do poder de coerção, outorgando-a à iniciativa privada.

O trabalho prisional, voltado à ocupação e capacitação dos presos, tem-se revelado, do ponto de vista administrativo e burocrático, praticamente inadministrável pela gestão prisional. Em geral, tal atividade está entregue a fundações, fundos e até organizações da sociedade, sem que os gestores diretos da custódia tenham poder decisório sobre os tipos de atividades de trabalho, escoamento dos produtos para o mercado, reaplicação do capital auferido pela venda dos produtos, etc. A estrutura administrativa de órgãos como as fundações implica, em tese, numa agilidade maior nos negócios, no entanto, a convivência difícil destes órgãos paralelos com o poder decisório dos gestores prisionais têm obstaculizado a dinamização do trabalho prisional. Outro desafio de gestão se refere à mudança de perfil da população prisonal, ou seja, nos últimos dez anos a população se juvenilizou, trazendo para o ambiente prisional as características subjetivas próprias do sujeito recém saído da adolescência: impaciência, onipotência, dificuldade de obedecer às regras. Por outro lado, a população de funcionários, sobretudo no que se refere aos agentes de segurança, também se juvenilizou: ter 18 anos completos passou a ser a exigência dos concursos públicos. São jovens custodiadores guardando jovens presos!

No que tange à custódia dos presos provisórios, a gestão prisional no Brasil não só deixa muito a desejar no sentido de não cumprir o que está prescrito nas “Regras Mínimas para o Tratamento de Reclusos”, (Regras 84 a 93), como expõe dramaticamente os presos a toda sorte de violências. Nas cadeias públicas insalubres, a falta de acesso às várias assistências legais é a regra. As Regras Mínimas denominam preso preventivo “toda pessoa detida ou presa em virtude de lhe ser imputada a prática de uma infração penal, detida sob custódia da polícia ou em outro estabelecimento, mas que ainda não tenha sido julgada e condenada”. De fato, cada estado brasileiro mantém um grande contingente de “presos preventivos” fora da gestão prisional dos sistemas penitenciários, alojados sob a administração das delegacias e cadeias públicas, excluídos das oportunidades de assistência que lhes são devidas, por vezes cumprindo integralmente suas penas nessas condições ilegais de custódia.

Situações cotidianas específicas implicam em cuidados especiais da gestão prisional: as mulheres presas, grávidas ou aquelas que têm junto de si seus bebês. Tanto a legislação internacional ( Regra 23), quanto a LEP (Art. 89), dedicam atenção especial às parturientes, às mães e bebês, prevendo-lhes locais especiais com cuidados específicos. Tal condição sempre apresenta dilemas, pois a gestão prisional no Brasil não tem sob sua responsabilidade recursos hospitalares para parturientes, o que demanda o deslocamento da presa grávida e das respectivas escoltas para a rede pública de saúde. Também a manutenção de creches junto às unidades femininas implica numa estrutura de recursos materiais e humanos diferenciada, nem sempre disponíveis à administração penitenciária. Como se pode perceber, a gestão prisional representa um grande desafio, que nem sempre tem como norte uma política penitenciária consistente, a nível estadual ou federal. O trabalho aqui apresentado, visa detalhar os pontos até aqui discutidos. No entanto, vale lembrar algumas responsabilidades dos gestores prisionais, tanto a nível micro, quanto a nível macro.

A nível micro, é necessário enfatizar que o gestor prisional local, ou seja, os diretores de unidades prisionais, têm a obrigação legal de conceder, regularmente, audiências aos presos. Por outro lado, as reuniões de equipe são instrumentos de que dispõe o gestor prisional para diluir feudos profissionais, em conflitos de objetivos de trabalho. Tratar das diferenças, dar visibilidade às contradições inerentes à execução da pena, são atribuições do gestor, no seu papel de mediador dos conflitos. A posição de gestor da unidade prisional, face ao acúmulo de responsabilidades, nem sempre favorece a aproximação física, a circulação pelas dependências da unidade, a checagem das condições de higiene e de satisfação dos presos e funcionários. Andar, observar e conversar são formas acessórias essenciais para conhecer, avaliar e decidir com maior segurança sobre as situações em curso.

Os gestores dos órgãos de administração penitenciária superior devem construir canais de comunicação com os gestores das unidades finalísticas – presídios, penitenciárias, casas de custódia, centros de recuperação, etc - através de reuniões periódicas, de despachos individuais e de visitas. De acordo com o tamanho da estrutura burocrática estadual do sistema prisional, os gestores da administração superior devem escolher os instrumentos mais eficazes de comunicação com os órgãos da base. Vale ressaltar que quanto mais verticalizada a estrutura burocrática, mais dificuldades para conhecer, avaliar e decidir com vistas a propor mudanças e a sensibilizar o governo face à necessidade de obtenção de recursos. A administração superior necessita criar mecanismos que dêem visibilidade à problemática das prisões junto ao governo. A publicização dos dados acerca da população presa, da população de funcionários e a busca de parcerias na sociedade para o fomento da pesquisa, auxiliam a dar transparência à vida intra-muros e à construção de argumentos para obtenção dos recursos humanos e financeiros que propiciem mudanças na qualidade de vida de presos e funcionários.

4.2. Segurança e Assistência: Duas Áreas em Conflito?

O cotidiano da vida prisional, aos olhos de um observador atento, mas desprovido de conhecimentos acerca desta realidade, assemelha-se ao jogo de “cabo de guerra”: de um lado, os agentes de segurança, com sua atenção voltada para as ações de manutenção da ordem, em que o desassossego para a consecução de tal objetivo é trazido pelo outro profissional, estabelecido na outra ponta do jogo, que são os profissionais da assistência. Estes, por sua vez, reclamam freqüentemente dos empecilhos ao seu trabalho, trazidos pelos agentes., O conflito está posto e, no discurso de ambos os grupamentos, parece insolúvel: uns se colocam como guardiães da segurança coletiva e individual, os outros como trabalhadores das diversas formas de assistência7 , na busca de capacitar o preso para sua futura reinserção social. Lembrando Chauvenet8 , os agentes teriam um papel “sujo”, enquanto os profissionais da assistência, um “bom” papel. Esta discriminação mútua aponta, inicialmente, para uma divergência de finalidades quanto à presença destes grupamentos na execução da pena privativa de liberdade: enquanto os técnicos das diversas formas de assistência necessitam movimentar os presos de suas celas em diferentes horários para participarem de atividades educativas, religiosas, médicas e tantas outras, os agentes, responsáveis pela circulação, retirada e escolta dos presos no espaço da unidade prisional, entendem que os primeiros perturbam a rotina com atividades em demasia e, por vezes, “desnecessárias”. No jogo de “cabo de guerra” entre a autoridade e o poder de agentes e   técnicos, figura a direção da unidade como mediadora, interpretando para os subordinados o que considera mais exeqüível em cada momento. No entanto, pode-se apreender esta realidade cotidiana de outra forma: a execução da pena forjou uma outra forma de punição diferenciada do suplício em praça pública, no qual o ato de punir se concretizava com a ação do carrasco.9 Modernamente, os profissionais envolvidos com a execução penal estão no exercício da custódia: isto significa uma ação de guarda, proteção dos presos sob responsabilidade dos agentes do Estado, sob determinadas condições reguladas pela legislação internacional e nacional, em que a reprodução da vida seria impossível sem a ação efetiva de ambos os grupamentos profissionais. As necessidades humanas oriundas da vida em confinamento são específicas e demandam a inserção diferenciada do pessoal penitenciário10 na execução das penas privativas de liberdade. As contradições postas aos objetivos perseguidos por agentes e profissionais da assistência não podem ser identificados com os objetivos do jogo mencionado: todos se debruçam sobre o exercício de um objeto comum – a custódia.

Portanto, as ações de guarda e proteção dos presos não fluem se não estiver em jogo um duplo movimento: ao mesmo tempo que se depende das rotinas de vigilância (abrir e fechar cadeados, as revistas corporais e de ambientes , as escoltas) para assegurar a ordem e a segurança do ambiente, também a satisfação dos presos quanto às suas necessidades vai depender da ação dos profissionais da assistência. É possível, pois, perceber que uma “cadeia segura” não é só aquela em que todos os equipamentos e agentes de segurança cumprem bem suas finalidades, mas sobretudo onde os presos têm acesso a seus direitos de assistência e se sentem contemplados na sua condição de sujeitos submetidos às leis e à ação de custódia do Estado. Basta lembrar as reivindicações mais freqüentes manifestas pelos presos em rebeliões no Brasil: maior acesso à assistência médica e jurídica, tratamento respeitoso a seus visitantes, alimentação suficiente e de qualidade.

Ressalte-se que as competências do pessoal penitenciário vinculado à área de segurança penitenciária não estão definidos, nem sequer mencionados na Lei de Execução Penal. Já em relação aos profissionais das assistências – assistentes sociais, médicos, religiosos, educadores - , há diretrizes gerais estabelecidas, acrescidas daquelas relativas à assistência material. Lacuna significativa diz respeito aos psicólogos, que são apenas mencionados na constituição das Comissões Técnicas de Classificação. Para discutir a capacitação do profissional penitenciário, é fundamental que se entenda a questão de ofícios e profissões inseridos na custódia. Os ofícios se revestem de práticas baseadas no conhecimento empírico, que subsidia, por exemplo, o agir dos agentes de segurança e se acumula ao longo das diferentes gerações. É um conhecimento transmitido oralmente, com vistas a solucionar situações imediatas e rotineiras. Portanto, caracterizase pela baixa sistematização e pelo acentuado pragmatismo. Poucas são as ações do cotidiano dos agentes que aparecem escritas. Quando isto ocorre, são normas administrativas expressas sob a forma de portarias ou resoluções, emitidas por autoridade administrativa, visando disciplinar algum assunto na esfera da ação de vigilância. Na transmissão oral entre as gerações de agentes de segurança reproduzem-se os diferentes “vícios” da cultura prisional. A repetição das ações ao longo do tempo, sem nenhum respaldo teórico-metodológico face à ausência de sistematização teórica, propicia a cristalização das “verdades” inquestionáveis diante de qualquer pergunta de um estranho à área. Algumas práticas violadoras da legislação são exemplares no que diz respeito à proteção de direitos legais dos presos, como o hábito arraigado do uso da “tranca” (cela de isolamento), sem nenhum processo disciplinar que o respalde, a intimidação dos presos novatos, ou, ainda, a crença inquestionável de que a técnica mais eficaz para evitar a entrada de drogas e armas seja a revista amiudada das partes íntimas dos corpos dos visitantes.

Na perspectiva de fiscalização e controle da ação anti-ética dos agentes, não se conta  com nenhum órgão na sociedade voltado a seu monitoramento, por se tratar de um ofício, ao contrário das profissões providas de Conselhos Profissionais. Por último, o ofício de agente de segurança, como outros na área da segurança pública, não dispõe de qualquer requisito de profissionalização para ingresso no cargo, uma vez que não existe no Brasil política educacional neste âmbito. A profissionalização possibilita maior sistematização teórico-prática, além de referencial ético-político, com consecução clara de objetivos profissionais. As profissões, portanto, dispõem do aparato referido. Os profissionais da assistência, a partir de suas diversas formações profissionais, estão referenciados em seus Códigos de Ética, sob fiscalização de seus respectivos Conselhos Profissionais, e têm sua tradição teórica construída sobre o acervo das diferentes correntes de pensamento teórico de suas disciplinas. No jargão prisional, o termo “técnico” sempre se reporta aos profissionais das assistências, nunca aos agentes, o que significa que não são reconhecidos, por exemplo, como “técnicos da segurança penitenciária”.

Para se alterar este quadro, a contribuição governamental mais significativa se refere à profissionalização dos agentes de segurança como pré-requisito ao ingresso no serviço público. Isto requer a instituição de um aparato educacional profissionalizante, sob o comando do Ministério da Educação, concomitante à criação de legislação de reconhecimento da função de agente de segurança penitenciária, como tem ocorrido com outros ofícios que foram transformados em profissões, tema que será discutido mais adiante, no Capítulo 5.

4.3. Instrumentos da Segurança Penitenciária: a Disciplina e a Vigilância

A utilização eficaz dos instrumentos de vigilância e disciplina são, teoricamente, garantidores de que a custódia dos presos se efetive de modo a produzir segurança no ambiente prisional, na comunidade circundante, além de garantir a integridade física de presos, visitantes e funcionários. Sabemos, no entanto, que esta ordem e segurança são frágeis, sendo a custódia operada pelos agentes constituída de um processo de trabalho pautado por emergências e riscos. Os instrumentos da segurança são utilizados exatamente na perspectiva da previsibilidade e na correção de fatos graves.

4.3.1. As Atividades de Vigilância

As atividades de vigilância requerem um permanente estado de alerta que seguidamente é acompanhado da sensação de medo. Este estado de alerta, em que a audição e a observação têm papel fundamental, tende a se transformar numa atitude de desconfiança e suspeita: o agente, em geral, desconfia não só dos presos, mas de seus próprios companheiros de trabalho. Também a vida pessoal do agente se reveste dos mesmos sentimentos: determinados lugares públicos de lazer são evitados, as formas de acesso à moradia alteradas, informações sobre seu trabalho não são divulgadas a vizinhos e parentes. Os agentes vão construindo formas auto-defensivas para não serem identificados no seu ofício. Os instrumentos de vigilância mais comuns, utilizados nas prisões brasileiras e, também, encontradas em outros países são:

· A revista de objetos, ambientes e pessoas;

· A distribuição de agentes em “postos de serviços”, que cobrem espaços físicos específicos e determinados números de presos;

· A utilização de registros diários por escalas de plantão, de ocorrências, sejam rotineiras ou ocasionais, no chamado “livro de ocorrências”;

· A escolta de presos que se locomovem internamente no espaço físico do estabelecimento, naquelas áreas onde usualmente o preso não deva transitar sozinho ou, nos espaços externos quando deve ser levado à presença do juiz ou a consultas médicas externas;

· A ronda noturna;

· O uso de algemas, armas e carros;

· A realização de “conferes”, ou seja, a contagem rotineira diária, pela manhã e à noite, do número de presos custodiados no estabelecimento, assim como conferes especiais após tentativas de fugas ou rebeliões;

· A custódia de bens de valor financeiro significativo trazidos pelo preso ao ingressar no estabelecimento ou ofertado por seus visitantes;

· A vistoria das grades.

Alguns dos instrumentos de vigilância assinalados mostram claramente seu caráter invasivo da intimidade do preso: as revistas de sua cela, de sua cama, de seus objetos, de seu corpo. Assim, o desempenho do agente está fortemente vinculado às atividades cujo limite quanto ao uso de seu poder coercitivo sobre o preso não só está dado pela legislação, mas, sobretudo, pelo sentido ético sobre o qual se fundamenta seu agir. De forma análoga, por exemplo, o médico estabelece com seu paciente uma relação em que o exame do corpo obedece a rotinas pautadas na ética médica. Portanto, as tarefas de vigilância não podem ser descontextualizadas, nem vistas como mera burocracia, mero hábito aprendido e repetido pelas gerações de agentes, sem a reflexão necessária sobre seu conteúdo técnico e ético-político.

4.3.2. A Ação Moralizadora da Disciplina.

Em todos os espaços onde convivem pessoas há formas de funcionamento coletivas e individuais, pautadas em normas disciplinares. Nos espaços de trabalho, lazer, negócios e de convivência familiar, sempre existem formas consensadas em que direitos e deveres são exercidos, expressando o desenvolvimento da sociabilidade no grupo e, em última instância, a moral dos sujeitos em determinado contexto e época. Podemos dizer que na prisão existem expressões concretas da moral na vida coletiva que reproduzem formas morais da sociedade, mas que adquirem feições características da vida em confinamento. Destas expressões da moral podemos salientar a linguagem, com seu glossário típico, assim como os preconceitos manifestos através de atitudes dogmáticas, movidas pela intolerância e pelo irracionalismo.

Em alguns espaços coletivos, as regras disciplinares construídas pelos sujeitos revelam participação efetiva de todos e a busca por deveres e direitos consensados. É o caso de assembléias de grupamentos profissionais ou de partidos nos quais o ritual de funcionamento não precisa ser expresso necessariamente por regulamentos escritos. Os sujeitos incorporam as normas disciplinares como forma de convivência necessária à interação na coletividade.

Noutros espaços da vida, as regras disciplinares são dispostas num aparato legal, como ocorre com a disciplina a ser seguida pelos jogadores de futebol, de volley, de tenis ou de outras práticas esportivas. Tais regras permitem presenciarmos torneios internacionais entre representantes de culturas, língua e etnias diversas, sem que tenhamos qualquer dificuldade de compreensão do desenrolar da atividade esportiva, pois as regras disciplinares representam o elo que facilita a disputa e o entendimento entre os esportistas. Assim, podemos perceber que regras disciplinares são consensadas de modo mais democrático em alguns espaços, com participação expressa dos sujeitos envolvidos ou, então, são construídas através de seus representantes, como nas confederações esportivas.

As primeiras regras disciplinares na vida do sujeito são consensadas na família, que expressam a moral através da cultura familiar das gerações parentais. Tanto a autoridade paterna quanto materna contribuem de forma decisiva na construção das regras com vistas à educação de seus filhos. Em continuidade, os sujeitos vão vivenciar na escola novas regras disciplinares, fundadas na moral da sociedade e na disciplina pedagógica orientadora da relação de ensino-aprendizagem.

A relação de custódia instituída na prisão está fundamentada por regras disciplinares inscritas desde 1955 na “Regras Mínimas de Tratamento dos Reclusos” e se estende pelas legislações específicas de cada país. Não são regras consensuais negociadas entre custodiadores e custodiados. Seu parâmetro legal prevê direitos e deveres a partir da ótica do legislador, circunscrito na produção das leis num determinado período histórico, considerando as pressões e demandas da sociedade e dos representantes do Estado no intuito de compatibilizar direitos fundamentais dos presos com requisitos de segurança individual e coletiva. Sabemos que, graças ao Direito, cujas normas contam com o poder coercitivo do Estado, consegue-se que os sujeitos aceitem, voluntária ou involuntariamente, a ordem social juridicamente formulada e, assim, se enquadrem no estatuto social em vigor.

Na prisão, o termo “disciplina” é corrente e adquire um significado especial dentro da relação de custódia, tal como expressa o Art. 44 da LEP: “A disciplina consiste na colaboração com a ordem, na obediência às determinações das autoridades e seus agentes e no desempenho do trabalho”. Tanto na LEP, como no cotidiano das prisões, a disciplina é tida como instrumento moralizador, que visa adequar o comportamento dos sujeitos a uma ordem determinada, em que a obediência, a hierarquia e a tradição são valores essenciais que concorrem para a manutenção daquela ordem. Basta que examinemos com mais vagar tanto as faltas graves (as únicas previstas pela LEP, já que as médias e leves pertencem às legislações estaduais), como as sanções, recompensas e todo o procedimento disciplinar. Tais aspectos, apreciados na cultura prisional, acabam por provocar formas esdrúxulas, tais como a prática contumaz e banalizada do uso de cela de isolamento, muitas vezes durante o tempo cronológico imposto pelo custodiador. Outros rituais dessa cultura são reconhecidos como exemplos de disciplina, tal como o preso colocar as mãos para trás e baixar a cabeça diante da autoridade ou de visitantes. Fitar os olhos ou apertar a mão do outro seguidamente são gestos que podem significar desrespeito ou intenção de aproximação, reprováveis dentro da relação subordinada implícita à custódia. Disciplinar, pois, adquire para os custodiadores o sentido corriqueiro de “cobrar”: significa reafirmar para o preso que a correlação de forças entre ele e seu custodiador é mesmo desigual e pode ser exacerbada, seja através da repreensão brusca, seja através de maus tratos físicos.

Assim, a cultura prisional forjou uma determinada disciplina, que mais do que seguir os requisitos das leis, repousa sobre uma relação política de sujeição e domínio. Em oposição, seria desejável que a disciplina pudesse ser para o preso um exercício de responsabilidade consigo mesmo e de respeito ao outro, no sentido da revisão daqueles valores que outrora garantiram seu ingresso na criminalidade.

O papel disciplinador exercido pelos trabalhadores das prisões se concretiza junto aos técnicos de forma diferenciada da ação dos agentes de segurança penitenciária. No entanto, para todos, talvez, a ação disciplinadora seja a questão mais crucial da relação de custódia pela fragilidade que desnuda: custodiado e custodiador estabelecem forçosamente uma relação de convivência, sem escolhas mútuas, mas de caráter compulsório, pautada por uma cultura em que disciplinar significa apenas adequar os sujeitos àquela ordem. Ora, de que ordem estamos falando? O ócio generalizado, por exemplo, resultado da falta de postos de trabalho dentro da prisão poderia ser compreendido como imensa desordem provocada pelos agentes do Estado. Por outro lado, quando o preso trabalha num dos postos existentes, respondendo, assim, aos requisitos disciplinares que concorrem para a ordem, qualquer deslize de comportamento pode ser computado como infração, acarretando imediato desligamento do trabalho. Esvaziado de seu sentido de desenvolver habilidade e responsabilidade, o trabalho adquire o objetivo restrito de ser instrumento de premiação e castigo.

4.3.3. Mudanças Importantes na Legislação

Como já foi ressaltado, tanto a legislação internacional, quanto a nacional, são omissas no que se refere às competências específicas da área da segurança penitenciária. Por isso mesmo, vale propor alteração na Lei de Execução Penal de forma a definir a questão. Há necessidade da introdução de um capítulo para descrever tais competências,que poderia ser o seguinte:

Capítulo XXX

Da Segurança Penitenciária:

Artigo 1. Com o sentido amplo de preservar e proteger pessoas - presos, funcionários, visitantes e cercanias das unidades – a segurança penitenciária visa ações de vigilância que propiciem um ambiente favorável ao desenvolvimento das atividades cotidianas e da boa convivência de todos aqueles envolvidos na execução penal.

Artigo 2. A vigilância dos ambientes internos das unidades compete ao grupamento de agentes de segurança penitenciária, parte integrante do pessoal penitenciário (Art. 76 e 77 da atual LEP).

Artigo 3. As ações de vigilância devem ser adaptadas às condições físicas da unidade, ao regime de pena, ao perfil e quantitativo de presos, à rotina de visitação e de atividades estratégicas, observando-se formas de conduta funcional pautadas nos parâmetros dessa Lei e da legislação internacional.

Artigo 4. A administração penitenciária deverá se apropriar de equipamentos tecnológicos de vigilância que garantam a segurança das unidades, reduzindo as práticas aviltantes de invasão da privacidade dos presos e visitantes.

Artigo 5. Os agentes de segurança penitenciária deverão, nas capacitações necessárias às diferentes funções, ser introduzidos ao conhecimento relativo a pessoas portadoras de doença mental e dependência química, internadas nos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico.

Continuando, nessa linha de proposições, a alteração do Artigo 44 da atual Lei de Execução Penal também deve ser considerada. Para tanto, sugerimos a seguinte redação:

Artigo 44. A disciplina prisional visa superar o binômio “prêmio- castigo”, contribuindo para uma convivência coletiva harmônica e constitui-se no compromisso de todos – pessoal penitenciário, presos e visitantes – para o exercício responsável das atividades diárias e do respeito a todas as pessoas.

4.4. Instrumentos da Assistência: Questões Gerais

Com a promulgação da Constituição Federal, em 1988, encontramos a assistência social, integrante da seguridade social, entendida como um conjunto de ações prestadas “a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social”. Ainda que o texto Constitucional não se atenha explicitamente às pessoas que cumprem penas privativas de liberdade, (Art. 203), podemos depreender que “a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice se reportam, no mínimo, aos familiares dos presos e presas, e a estas, mais propriamente. A Lei Orgânica de Assistência Social ( LOAS, Lei no. 8742, de 7/12/93) dispõe sobre a Assistência Social, tal como colocada na Constituição Federal. O Art. 1º da LOAS define que:

“A Assistência Social, direito do cidadão e dever do Estado, é política de seguridade social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas”.

Na Lei de Execução Penal, de 1984, portanto, anterior à Constituição Federal, o sentido de assistência social é mais restrito e se expressa como sinônimo da ação dos profissionais de Serviço Social junto aos presos e seus familiares. No entanto, as assistências enunciadas pela LEP nos Art. 10 e 11 incluem os âmbitos da saúde e das assistências jurídica, educacional, social, religiosa e material. Note-se a falta de referência à assistência psicológica. Refletindo-se sobre a compatibilização dos textos da Constituição, da LOAS e dam LEP, é possível deduzir que:

1. A assistência é um direito do preso provisório, do condenado e do portador de medida de segurança;

2. Os familiares e pessoas de referência dos presos estão cobertos pela prerrogativa constitucional de que a assistência é direito de todos, “para garantir o atendimento às necessidades básicas”;

3. As mulheres presas, na sua condição de mães, assim como seus filhos, são portadores do mesmo direito constitucional à assistência, tal como já se fazia anotar na LEP, conforme o Art. 89 – “a penitenciária de mulheres poderá ser dotada de seção para gestante e parturiente e de creche com a finalidade de assistir ao menor desamparado cuja responsável esteja presa”;

4. A assistência é um dever do Estado e está consubstanciado nas leis citadas, embora  o dever do Estado na proteção e garantia desse direito venha se exercendo com extrema fragilidade e inconsistência. Face à qualidade da vida cotidiana dos presos na maior parte das unidades prisionais e delegacias, percebe-se que a assistência ainda é um direito formal, necessitando adquirir urgente efetividade.

Dentre as assistências nomeadas em lei, a assistência material dirige-se à satisfação de necessidades básicas como higiene pessoal, vestuário, sapatos, limpeza do ambiente e roupas de cama e banho. As demais áreas de assistência a serem providas dependem sobretudo da alocação de recursos humanos – médicos, dentistas, assistentes sociais, agentes religiosos, professores e pedagogos - assim como de diretrizes técnicas e políticas sobre a natureza e finalidade do trabalho desses profissionais.

Na cultura prisional não é incomum a rotulação do “bom papel” atribuído aos profissionais da assistência, como assinalado anteriormente, quando se mencionou o “jogo do cabo de guerra”. No entanto, as contradições inerentes ao papel profissional dos técnicos de assistência na prisão se produzem dentro do binômio assistir/custodiar: assegurar condições que garantam a integridade física e psicológica dos custodiados, concomitante à manutenção da ordem e segurança. Como já mencionado, é freqüente ouvirem-se queixas intermináveis dos técnicos quanto aos obstáculos que as questões relacionadas à segurança penitenciária impõem a seu agir profissional. Tais queixas revelam dificuldades reais, mas traduzem, por vezes, uma visão fatalista e, portanto, acrítica, de que na hipótese de se removerem “os obstáculos” referentes à segurança penitenciária ter-se-iam as condições ótimas para as assistências se concretizarem de modo eficaz.

As questões acima remetem à necessidade constante de reflexão acerca da identidade profissional dos técnicos no campo da execução penal, certamente com contornos distintos daquela construída em outros campos de trabalho, onde inexiste a privação da liberdade impondo limites à rotina diária de vida.

4.4.1. Propostas Específicas para a Área das Assistências

Uma série de propostas visando o aperfeiçoamento das práticas profissionais de assistência são absolutamente viáveis e não dependem de qualquer alteração legislativa. Neste sentido estão colocadas as sugestões que se seguem.

Com o objetivo de melhor articular os Conselhos Profissionais com os órgãos de monitoramento da execução penal e com as administrações penitenciárias, propriamente ditas, as seguintes ações são recomendadas a nível federal e estadual:

Nível federal: os diferentes Conselhos Federais de enfermagem, serviço social, psicologia, medicina, etc., deverão se responsabilizar pela articulação com o CNPCP e DEPEN quanto a ações que lhe dizem respeito no âmbito da política penitenciária, em relação ao desempenho das respectivas áreas profissionais da assistência, assim como de diretrizes nacionais para este campo de ação profissional. Paralelamente, os órgãos referidos devem se valer da assessoria dos Conselhos Federais para o aprimoramento das ações profissionais de assistência.

Nível estadual: os diferentes Conselhos Regionais, articulados com os Conselhos Federais, deverão acompanhar as ações profissionais de suas respectivas áreas de assistência no âmbito dos sistemas penitenciários.

Os seguintes temas devem, necessariamente, ocupar a agenda dos Conselhos Regionais:

a) Aprofundamento da discussão acerca da identidade profissional no sistema prisional, através de palestras, cursos, etc;

b) Articulação dos Conselhos com os respectivos cursos de graduação no sentido de inclusão e discussão do exercício profissional no sistema prisional;

c) Fiscalização das condições de trabalho dos profissionais de suas respectivas áreas.

4.4.2. Pensando a Área da Saúde

A Lei de Execução Penal, em seu artigo 14º, preceitua o dever do Estado no que tange à saúde do preso, insistindo que a assistência à saúde é direito, tanto a de caráter preventivo como a de caráter curativo, compreendendo o atendimento médico, farmacêutico e odontológico. No entanto, é omissa quanto ao atendimento psicológico, o que nos leva à proposição contida no final deste item.

Nos Anexos ao presente trabalho pode ser encontrada uma proposta detalhada para a área da saúde no sistema penitenciário, mais especificamente para a criação de uma Divisão de Saúde, no âmbito do DEPEN. De qualquer forma, algumas recomendações mais gerais, constantes de tal Anexo, merecem ser enfatizadas:

· Não se deve negligenciar o padrão de qualidade na assistência à saúde do preso, considerando-se, sempre, a assistência proporcionada aos cidadãos livres;

· O livre acesso aos cuidados de saúde nas unidades prisionais deve ser garantido, recomendando- se que a triagem dos casos para atendimento seja feita por pessoal qualificado;

· É dever do profissional de saúde respeitar o direito do paciente/preso decidir livremente sobre sua saúde, a não ser em caso de iminente perigo de vida, sendo vedado o tratamento compulsório;

· Os presos provisórios e condenados devem ter garantido o acesso às informações referentes à sua condição de saúde, aos procedimentos e medicamentos prescritos;

· O profissional de saúde que atua no sistema penitenciário não deve abrir mão de sua independência profissional, pautando suas decisões e procedimentos no bemestar da pessoa assistida;

· O profissional de saúde que atua no sistema penitenciário deve buscar conhecer tanto a legislação de saúde, como aquela que se relaciona com a execução penal a fim de poder promover o bem-estar do paciente e assegurar melhor qualidade na prestação dos serviços de saúde às pessoas sob seus cuidados.

Como mencionado anteriormente, vale propor uma pequena mudança legislativa no Artigo 11, inciso II, da LEP, acrescentando as palavras física e mental quando há referência à assistência à saúde. Já no Artigo 14, há necessidade de que se acrescente o atendimento psicológico após a menção que se faz ao atendimento médico, farmacêutico e odontológico.

4.4.3. Pensando a Área da Educação e do Trabalho

Qualquer possibilidade de futura reinserção do preso no mundo livre, afastado do crime, passa pelas oportunidades que lhe sejam oferecidas nas áreas de educação e do trabalho, embora se saiba que de nada adiantará ter o preso aprendido um ofício, se não houver programas efetivos de apoio ao egresso penitenciário, tema que será discutido mais adiante. O Estado brasileiro tem sido historicamente incompetente para prover educação e trabalho ao preso. Constroem-se unidades prisionais sem espaço para oficinas de trabalho. Constroem-se unidades prisionais sem escolas. Existem escolas que não ensinam. A educação para o trabalho é absolutamente ignorada, quando existem recursos do Fundo do Amparo ao Trabalhador (FAT) que podem ser utilizados para tal finalidade.

Aqui, novamente, é bom lembrar o que diz o Plano Nacional de Segurança Pública, defendido pelo então candidato à Presidência da República, Luiz Inácio Lula da Silva. Na área da educação, lembra o documento, em sua página 76, a necessidade da “criação de grupo de trabalho no Ministério da Educação visando desenvolver conteúdos programáticos e linha metodológica especificamente destinados à educação do preso e, a partir daí, (o governo federal deve) incentivar os estados a utilizarem tais recursos e auxiliar financeiramente a implantação dos cursos”.

Quem conhece escolas em prisões sabe da urgência da efetivação de propostas como essas. É fundamental que currículos específicos sejam desenvolvidos para a população presa e que se elaborem metodologias adequadas às necessidades muito particulares desses indivíduos. Tudo isto só poderá ser feito com o empenho do governo federal, evidentemente.

A revisão da Lei de Execução Penal, no que se refere à remição pelo estudo, é outro tema que demanda urgentíssima atenção. Em alguns estados as Varas de Execução já vêm aceitando que se computem dias/horas dedicados ao estudo para efeito de remição. No entanto, tudo ainda se dá de maneira informal, o que deve ser evitado com a revisão da legislação. Por outro lado, o mesmo Plano Nacional de Segurança Pública (pág.75) também aponta caminhos na área do trabalho prisional, sugerindo “a abertura de linhas de crédito específicas para estímulo ao trabalho prisional e o apoio, por intermédio de incentivos fiscais (federais, estaduais e municipais) aos pequenos e médios empresários que ocuparem a mão de obra do preso em regime fechado, semi-aberto e mesmo do egresso penitenciário”. Correta proposição. No entanto, há que se atentar para a necessidade de revisão da Lei de Execução Penal, especificamente de seu Artigo 28, parágrafo 2º, se desejarmos, de fato, proteger o trabalho do preso da exploração de empresários que, estimulados por isenções fiscais, vierem a estabelecer oficinas em unidades prisionais. O Artigo 28, parágrafo 2º, da referida lei, diz que o trabalho do preso não está sujeito ao regime da Consolidação das Leis do Trabalho. Tal fato, como lembra Alvim, “cria incentivo à ganância do empresariado privado, à medida que o livra, nas contratações, do rol de direitos embutidos na legislação trabalhista, em cabal desrespeito à igualdade constitucional”. Ademais, tal disposição legal, “ao negar a possibilidade de contrato trabalhista, contradiz o artigo 28, caput, que enfatiza a finalidade produtiva, portanto, profissionalizante” do trabalho prisional.11 Enfim, a necessidade de o trabalho do preso ser protegido pela legislação trabalhista é algo que precisa ser revisto com urgência.

4.5 As Comissões Técnicas de Classificação

A Lei 10.792 de 1º de dezembro de 2003 muda substancialmente a destinação das Comissões Técnicas de Classificação, na medida em que as libera das obrigações referentes à confecção de exames criminológicos para fins de benefícios legais. Fica mantida a CTC para realização do exame criminológico inicial com vistas à classificação dos condenados. Ou seja, os profissionais que, até então, se dedicavam à elaboração de pareceres, basicamente para livramento condicional e progressão de regime, deverão estar  agora apenas envolvidos com os programas individualizadores da pena e com a prestação das assistências, de maneira mais geral.

É ainda prematuro discutir o destino das Comissões Técnicas de Classificação, na medida em que se sabe que em alguns estados, tanto juízes, quanto administração penitenciária, continuam solicitando que os técnicos elaborem exames criminológicos. Por outro lado, embora a Lei 10.792, enfatize que é de responsabilidade do diretor do estabelecimento prisional a imposição das sanções disciplinares, acredita-se que isto não elimina a possibilidade de as Comissões Técnicas de Classificação continuarem opinando sobre essas mesmas sanções, embora haja quem argumente que os profissionais que integram as CTCs estejam dispensados deste papel.

De qualquer forma, vale acentuar que, sobretudo, psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais poderão dedicar mais tempo ao atendimento das necessidades individuais dos presos e à participação nas discussões sobre o cotidiano das unidades prisionais nas quais atuam. Mais ainda, está na hora de as CTCs começarem a desempenhar um papel que é seu e que jamais foi assumido: o de assessorar a administração penitenciária com vistas ao aperfeiçoamento da gestão prisional e, sobretudo, o de construir estratégias para lidar com o conflito inerente à pena privativa de liberdade, ou seja, a contradição entre custodiar, punir, assistir e proteger.

Algumas práticas, já implementadas em sistemas penitenciários pelo país afora, devem agora ser muito incentivadas, como por exemplo:

1. Reuniões periódicas (semanais, quinzenais ou mensais), agendadas pela Direção da unidade prisional, de caráter técnico-administrativo, para discutir os problemas do cotidiano da unidade, buscando as propostas de cada área profissional (psicologia, serviço social, saúde, administração, segurança).

2. Reuniões periódicas da direção com uma única área profissional no sentido de debater o trabalho da área no contexto da micropolítica da unidade.

3. Reuniões de equipes de profissionais da mesma área profissional com sua chefia imediata (chefia de segurança com seus subordinados, chefia de serviço social com os assistentes sociais ou chefia da área assistencial, quando houver, com os seus subordinados).

Essas reuniões, que podem ser vistas como mero instrumento burocrático, podem, na verdade, constituírem espaços privilegiados de troca de experiência e de discussão acerca das finalidades da pena privativa de liberdade,de tal forma que permita a técnicos das áreas profissionais distintas repensarem seu papel de custodiadores. Por outro lado, tais reuniões contribuem para horizontalizar a gestão prisional, colocando as direções das unidades como facilitadores desse processo.

5. Controle externo e interno

5.1. Entendendo o Monitoramento e as Formas de Controle Externo

O sistema prisional, por sua própria natureza, tem como principal característica o isolamento do indivíduo. Este isolamento, no entanto, deve obedecer a determinadas regras e limites para que se evitem violações de direitos humanos, muito comuns quando é suprimida a liberdade. A maioria das violações de direitos nos centros de detenção resulta da falta de transparência que permeia este universo, o que muitas vezes impede que o próprio Estado tome conhecimento da gravidade de tais violações.

O monitoramento do sistema prisional deve ser realizado de forma permanente e continuada por representantes da sociedade civil organizada e por todos aqueles órgãos cuja responsabilidade de fiscalizar as prisões e centros de detenção encontra-se contemplada na Lei de Execução Penal.

Evidentemente, a melhor maneira de se efetuar o monitoramento é por meio de visitas in loco, onde podem ser documentados abusos e irregularidades e, de maneira geral, as principais funções do monitoramento devem ser:

· A prevenção

A fiscalização regular das unidades, realizadas por pessoas de fora do sistema, certamente contribui para a proteção dos presos. Aceitas ou toleradas, tais visitas representam um mecanismo de controle de razovável eficácia que pode evitar a ocorrência de violações;

· A proteção direta

As visitas proporcionam a oportunidade de resposta imediata a determinados problemas vivenciados pelos presos, em relação aos quais as autoridades não se tenham pronunciado;

· A documentação

As visitas exercem importantíssimo papel na documentação de informações sobre o sistema penitenciário, permitindo não somente transparência, mas principalmente justificativas para propostas que visem mudanças;

· O suporte ao preso

O contato direto com alguém privado de liberdade, por si só, pode significar valioso suporte moral;

· O diálogo com as autoridades

As visitas tornam possível estabelecer diálogo direto e permanente com as autoridades, objetivando a colaboração mútua e a procura de alternativas para a solução de problemas detectados.

Pode-se dizer, então, que o monitoramento envolve o exame regular de todos os aspectos da detenção e sua importância reside na possibilidade de que, através de sua ação, as autoridades responsáveis pela área possam ser chamadas a cumprir o que determina a lei. Ressalte-se que o monitoramento terá sempre mais eficácia na medida em que as denúncias estiverem acompanhadas de propostas concretas. Ou seja, o caráter propositivo do monitoramento é condição primeira de seu sucesso.

5.2. O Monitoramento e a Legislação

Tanto a legislação internacional, como a Lei de Execução Penal, referem-se claramente aos mecanismos de controle das prisões. A breve análise dessa legislação é importante para se perceber a distância entre os dispositivos legais e a realidade do sistema penitenciário brasileiro.

5.2.1. Legislação Internacional

Uma série de acordos e tratados internacionais, dos quais o Brasil é signatário, dispõem sobre questões relativas ao monitoramento e inspeção dos sistemas penitenciários, além de ressaltar o direito dos presos em apresentarem queixas. Antes de mais nada, proporcionar ao preso um mecanismo eficaz de comunicação com a autoridade responsável pelo sistema penitenciário é fundamental e está contemplado no Art. 2 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos: Cada Estado signatário do presente Pacto compromete-se a:

a) Garantir que toda pessoa, cujos direitos e liberdades reconhecidas no presente Pacto hajam sido violados, possa dispor de um recurso efetivo, mesmo que a violência tenha sido perpetrada por pessoas que agiam no exercício de funções oficiais;

b) Garantir que toda pessoa que interpuser tal recurso terá seu direito determinado pela competente autoridade judicial, administrativa ou legislativa ou por qualquer outra autoridade competente prevista no ordenamento jurídico do Estado em questão e a desenvolver as possibilidades de recurso judicial;

c) Garantir o cumprimento, pelas autoridades competentes, de qualquer decisão que julgar procedente tal recurso.

E, mais ainda, o Princípio 33 do Conjunto de Princípios para a Proteção de Todas as Pessoas Sujeitas a Qualquer Forma de Detenção ou Prisão, estabelece o seguinte:

1. A pessoa detida ou presa, ou o seu advogado, têm o direito de apresentar um pedido ou queixa relativos ao seu tratamento, nomeadamente no caso de tortura ou de tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, perante as autoridades responsáveis pela administração do local de detenção e a autoridades superiores e, se necessário, para autoridades competentes de controle ou de recurso;

2. No caso de a pessoa detida ou presa ou o seu advogado não poderem exercer os direitos previstos no nº1 do presente princípio, estes poderão ser exercidos por um membro da família da pessoa detida ou presa, ou por qualquer outra pessoa que tenha conhecimento do caso;

3. O caráter confidencial do pedido ou da queixa é mantido se o requerente o solicitar;

4. O pedido ou queixa devem ser examinados prontamente e respondidos sem demora injustificada. No caso de indeferimento do pedido ou da queixa ou em caso de demora excessiva, o requerente tem o direito de apresentar o pedido ou queixa perante autoridade judiciária competente ou outra autoridade. A pessoa detida ou presa ou o  requerente nos termos do nº 1 , não devem sofrer prejuízos pelo fato de terem apresentado um pedido ou queixa. Os documentos internacionais também são muito claros quanto à necessidade do monitoramento ou inspeção das unidades prisionais por inspetores/monitores independentes. Vejamos o que diz o Conjunto de Princípios para a Proteção de Todas as Pessoas Sujeitas a Qualquer Forma de Detenção ou Prisão dispõe em seu princípio 29:

1. A fim de assegurar a estrita observância das leis e regulamentos pertinentes, os lugares de detenção devem ser inspecionados regularmente por pessoas qualificadas e experientes, nomeadas por uma autoridade competente diferente da autoridade diretamente encarregada da administração do local de detenção ou da prisão, e responsáveis perante ela;

2. Uma pessoa detida ou presa deve ter o direito de comunicar-se livre e confidencialmente com as pessoas que visitam os lugares de detenção ou prisão de acordo com o parágrafo 1 do presente princícipio, tudo sujeito a condições razoáveis que garantam a segurança e a boa ordem desses lugares.

5.2.2. Lei de Execução Penal

A Lei de Execução Penal é muito clara quando se refere aos órgãos que devem fiscalizar e/ou inspecionar os sistemas penitenciários. Em primeiro lugar, cabe ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, entre outras responsabilidades, a de “ inspecionar e fiscalizar os estabelecimentos penitenciários....”(art. 64,VIII). Por seu turno, cabe ao Juiz da Execução “inspecionar, mensalmente, os estabelecimentos penais, tomando providências para o adequado funcionamento e promovendo, quando for o caso, a apuração de responsabilidade.(art. 66,VII). Deve, ainda, o Ministério Público visitar mensalmente os estabelecimentos penais.(art. 68, parágrafo único) Os Conselhos Penitenciário dos estados também estão obrigados a “inspecionar os estabelecimento penais” (art. 70, II), e o  Departamento Penitenciário Nacional também deve “inspecionar e fiscalizar periodicamente os estabelecimentos e serviços penais”(art. 72, II). Finalmente, o Conselho da Comunidade, deve “visitar, pelo menos mensalmente, os estabelecimentos penais existentes na comarca, entrevistando presos e apresentando relatórios mensais ao juiz da execução(art. 81,I,II e III) .

Ora, se todos esses órgãos procedessem a fiscalizações e inspeções regulares das unidades prisionais, certamente as irregularidades e ilegalidades estariam sendo melhor combatidas. Por outro lado, a criação de um Fórum Permanente que congregasse representantes dos diferentes órgãos responsáveis pelo trabalho de fiscalização/e ou inspeção seria muito útil e contribuiria para o aperfeiçoamento dos sistemas penitenciários.

Entre os órgãos de monitoramento externo já existentes, os Conselhos da Comunidade apresentam potencial muito significativo e sua criação deveria ser estimulada. É urgente, no entanto, a criação de Ouvidorias para os sistemas penitenciários. São esses temas que trataremos a seguir.

5.3. O Conselho da Comunidade

No ano de 2000, recebemos no Brasil a visita de Sir Nigel Rodley, Relator Especial das Nações Unidas para a tortura. Suas constatações caracterizaram a tortura no Brasil como sistemática, disseminada e impune. No relatório apresentado em 2001, Nigel Rodley fez inúmeras sugestões ao governo brasileiro, dentre elas a necessidade de se garantir o monitoramento permanente das instituições penais, através do acesso irrestrito de organizações não governamentais de direitos humanos e da garantia de recursos e estrutura necessários para o funcionamento dos Conselhos da Comunidade, assim como das Ouvidorias e dos Conselhos Estaduais de Direitos Humanos. Ganha destaque o fato de o Brasil, no ano de 2003, ter assinado o Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura da ONU, que prevê a criação de um órgão internacional para monitoramento das prisões e obriga os governos a criar instrumentos nacionais com o mesmo objetivo.

Investir em um órgão que tenha autonomia e estrutura para monitorar o sistema penal é criar condições para combater a ação do Estado que se afasta de seu papel legal e, como bem lembra Foucault, “cada luta se desenvolve em torno de um foco particular de poder. Designar esses focos de poder, denunciá-los, falar deles publicamente, forçar a rede de informações institucional, nomear, dizer quem fez, o que fez, denunciar o alvo é a primeira inversão de poder, é um primeiro passo para outras lutas contra o poder”.12

O artigo 80 da Lei de Execução Penal, prevê a existência de um Conselho da Comunidade em cada comarca. Segundo a LEP, o Conselho deve ser composto por um representante da associação comercial ou industrial, um advogado indicado pela OAB e um assistente social. Afirma-se, em parágrafo único, que em falta de representação prevista, ficará a critério do Juiz da Execução a escolha dos integrantes do Conselho. De pronto, deveria ser garantida maior representatividade para o Conselho. A participação das universidades, ONGs grupos religiosos e outros conselhos profissionais como o de psicologia e medicina, por exemplo, deveriam ter o mesmo destaque dos órgãos hoje citados na LEP. Outro aspecto importante quanto ao funcionamento dos Conselhos da Comunidade, que deveria ser revisto, é a relação dos mesmos com o Juízo da Execução. Havendo desinteresse do Juiz de Execução da Comarca na criação do Conselho da Comunidade, o mesmo deveria ser criado a partir de iniciativas de membros da sociedade civil organizada. O artigo 81 da LEP prevê as obrigações do Conselho da Comunidade: visitar, pelo menos mensalmente, os estabelecimentos penais existentes na comarca; entrevistar os presos; apresentar relatórios mensais ao Juiz da Execução e ao Conselho Penitenciário; diligenciar a obtenção de recursos materiais e humanos para melhor assistência ao preso ou internado, em harmonia com a direção do estabelecimento. Em relação a essas últimas tarefas percebe se forte inspiração assistencialista supondo-se que o Conselho possa suprir a ausência do Estado e a falta de políticas públicas para a área.

Tendo em vista que o Conselho da Comunidade é o único órgão da execução penal composto por representantes da sociedade civil organizada, é fundamental que suas possibilidades de monitoramento sejam estruturadas e efetivadas. Algumas propostas concretas para viabilização do perfil fiscalizador do Conselho da Comunidade seriam:

· Encaminhamento dos relatórios de visitas do Conselho da Comunidade aos órgãos federais da execução penal;

· Criação de um Fórum Nacional de Conselhos da Comunidade, viabilizando o intercâmbio de experiências e informações da ação dos Conselhos;

· Produção de diagnósticos das condições das unidades visitadas, inclusive avaliando as condições de trabalho dos profissionais da segurança e da área técnica;

· Autorização para utilização de máquinas fotográficas durante as visitas do Conselho da Comunidade às unidades prisionais;

· Incorporação da responsabilidade de visitar e fiscalizar as cadeias públicas e delegacias;

· Notificação aos Conselhos das Comunidades das operações de revistas, a fim de que num curto espaço de tempo os conselheiros tenham acesso aos presos e verifiquem sua condição física e mental;

· Padronização dos modelos de relatórios de visitas, facilitando a unificação das informações a nível nacional. Neste sentido o Conselho da Comunidade do Rio de Janeiro produziu modelo que foi construído a partir dos questionários utilizados pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal, do questionário do Centro de Europeu de Prevenção à Tortura. Por fim, a LEP não faz qualquer menção a recursos administrativos e financeiros que viabilizem o adequado funcionamento dos Conselhos da Comunidade, com o conseqüente cumprimento de suas obrigações. A autonomia e independência dos Conselhos ficam, na prática, comprometidas pela falta de estrutura. Os governos estaduais, auxiliados pelo governo federal, devem disponibilizar recursos financeiros para que os Conselhos da Comunidade contem com instalações adequadas e equipamentos, assim como pessoal de apoio e viaturas para as visitas. Verbas também deveriam ser asseguradas para viabilizar a participação de representantes dos Conselhos em eventos organizados por outros estados (seminários, conferências, etc.), de maneira a fortalecer redes de defesa dos direitos dos presos. Por fim, os Conselhos da Comunidade deveriam dispor de recursos para realizarem pesquisas e publicações.

5.4. As Ouvidorias

Mecanismos de controle externo, na área da segurança pública, vem se popularizando em muitos estados brasileiros, com a criação de Ouvidorias das polícias estaduais e municipais. No entanto, na área do Sistema Penitenciário, tal prática ainda está longe de se tornar realidade. Com exceção de São Paulo e de Pernambuco, os sistemas penitenciários ainda são absolutamente refratários a qualquer tentativa de criação de órgãos de controle externo. No entanto, sabe-se que a sensação de segurança da população depende muito do grau de confiança depositado no poder público e na qualidade dos serviços prestados e que essa confiança aumenta quando governantes e servidores públicos conduzem seu trabalho com transparência, desenvolvendo canais de comunicação com a população.

Se atentarmos para o que sugere o Plano Nacional de Segurança Pública, do então candidato Luiz Inácio Lula da Silva, para a área do Sistema Penitenciário, percebe-se que houve preocupação particular de enfatizar a necessidade do controle externo. Fala-se,  claramente, da criação da “Ouvidoria-Geral do Sistema Penitenciário Brasileiro, no Ministério da Justiça, e estímulo à criação de Ouvidorias nos sistemas penitenciários estaduais, por meio de ajuda técnica e financeira.” E, mais ainda, insiste-se que “a partir de um determinado momento, os estados que não tiverem implantado suas Ouvidorias, não receberão verbas” (federais, evidentemente). Louve-se a recentíssima iniciativa do Ministério da Justiça de criar a Ouvidoria-Geral do Sistema Penitenciário. Espera-se que tal Ouvidoria funcione, como acontece em tantos outros órgãos federais, com um número 0800 à disposição da população. Desta forma, o Ministério da Justiça poderá monitorar o que acontece nos sistemas penitenciários estaduais e cobrar dos estados o respeito à lei.

Por outro lado, os estados também devem criar suas Ouvidorias, disponibilizando um número 0800 para o recebimento de queixas. E, mais ainda, principalmente nos estados, as Ouvidorias devem ter caráter também pró-ativo, de forma a não se restringir ao monitoramento de casos individuais, buscando a punição de funcionários que se comportam de forma ilegal ou irregular, mas deve envolver-se com o monitoramento mais amplo dos sistemas penitenciários, buscando formular propostas para problemas estruturais.

5.5. As Corregedorias

As Corregedorias são órgãos de controle interno no âmbito dos sistemas penitenciários que objetivam combater irregularidades e ilegalidades, principalmente a violência e a corrupção. É importante que as apurações das Corregedorias sejam sempre muito céleres e seus resultados amplamente divulgados de forma a combater a sensação de impunidade. Constatou-se, no levantamento realizado para este trabalho, que cerca de 50% dos estados não contam com Corregedorias e constituem comissões de sindicâncias, toda vez que há necessidade de investigar o desvio de comportamento de funcionários, o que é absolutamente inaceitável. A criação de corregedorias em todas as unidades da federação é urgente e algumas recomendações para tal encontram-se a seguir.

Deve ser de competência das Corregedorias dos Sistemas Penitenciários dos Estados:

a) Verificar o cumprimento das normas e diretrizes fixadas para o Sistema Penitenciário, apurando, através de sindicâncias, as irregularidades que vier a constatar ou lhe forem submetidas;

b) Prestar esclarecimentos aos diversos órgãos dos Poderes Judiciário e Executivo, bem como a outras instituições, sobre a instauração e tramitação das sindicâncias relativas aos servidores nelas envolvidos;

c) Manter as autoridades superiores do sistema penitenciário informadas das atividades de corregedoria;

d) Analisar e emitir parecer em todas as sindicâncias instauradas e concluídas nas suas unidades administrativas e prisionais dos sistemas penitenciários;

e) Controlar, através de publicação em informativo oficial, a instauração de todas as sindicâncias, acompanhando a tramitação das mesmas, até sua conclusão e/ou encaminhamento à autoridade competente;

f ) Proceder a revisão das sindicâncias, pesquisando novos fatos apresentados pelo peticionário e elaborando relatórios conclusivos;

g) Desenvolver atividades correcionais nos órgãos dos sistemas penitenciários, principalmente através de análise de relatórios de supervisões ou inspeções realizadas;

h) Apurar infrações e sua autoria, desde que imputadas a servidores dos sistemas penitenciários;

i) Avaliar, de forma sistemática, nova legislação, decretos e/ou portarias que entrem em vigor, de forma a adequar seu trabalho às novas regras, inclusive apreciando a validade jurídica de regulamentos introduzidos pelas autoridades da área;

j) Estar sempre em contato com os órgãos externos de monitoramento das prisões, principalmente o Conselho da Comunidade e os órgãos responsáveis pela fiscalização do sistema prisional, de acordo com a Lei de Execução Penal. Considerando as diferenças estruturais dos Sistemas Penitenciários dos estados federativos brasileiros, que apresentam quantitativos funcionais e efetivo carcerário diversos, exigindo, inclusive, legislações específicas, seria difícil definir o número de servidores indispensável ao funcionamento modelar de uma Corregedoria.

No entanto, para que este órgão desempenhe seu papel, dispondo de condições similares em todos os Estados, deve ser estabelecido um número mínimo de Comissões Permanentes de Sindicância, tomando-se por base o quantitativo de unidades prisionais, o efetivo carcerário e o número de profissionais ali lotados. É de fundamental importância que as Corregedorias mantenham, através de Escolas de Formação Penitenciária, cursos permanentes de sindicância, com obrigatoriedade de presença daqueles que dirigem ou pretendem ser Diretores dos estabelecimentos prisionais, bem como de seus principais auxiliares, já que a maioria das apurações é feita pelos servidores das próprias unidades, local de origem dos fatos geradores das mesmas.

Pelo despreparo dos membros das Comissões, os procedimentos apuratórios, em sua grande maioria, são eivados de vícios, fazendo com que sua duração se estenda demais, gerando descrença, ineficácia e ineficiência do trabalho, estimulando a crença na impunidade. Em razão da obrigatoriedade de apuração, pela autoridade administrativa competente, de qualquer irregularidade havida no âmbito do serviço público, e visando à uniformidade e padronização dos atos praticados e das medidas adotadas, a sindicância terá que estar adstrita a normas legais e gerais a toda Federação, respeitadas as legislações específicas de cada Estado. Contudo, atenção especial deverá ser dispensada no sentido de se evitarem divergências de interpretação e conflito de dispositivos legais, argumento utilizado para a anulação de procedimentos apuratórios.

Algumas medidas que deveriam ser adotadas quando da implantação de Corregedorias:

· Criação de cargos para as Corregedorias. Tanto o cargo de Corregedor, quanto aqueles de seus auxiliares, devem fazer parte de estrutura própria das Corregedorias, independente da estrutura dos sistemas penitenciários;

· Manutenção, nas Corregedorias, em ordens alfabética e numérica, de arquivo atualizado com relação dos servidores punidos e/ou que estejam envolvidos em procedimentos apuratórios, visando ao fornecimento de subsídios funcionais aos demais órgãos do Sistema;

· Publicação trimestral, em informativo próprio, de listagem das sindicâncias instauradas no período, bem como do estágio em que se encontram as anteriores, possibilitando aos dirigentes e demais servidores total transparência e crença na seriedade das investigações das falhas ocorridas no Sistema;

· Promoção de palestras e cursos nas Escolas de Formação Penitenciária a partir de problemas constatados nas sindicâncias de forma a prevenir futuras ilegalidades;

· Agilização das várias assistências nas unidades, com base em denúncias recebidas, contribuindo para o melhor funcionamento das unidades prisionais.

6. Capacitação de Pessoal

As Regras Mínimas para o Tratamento dos Recusos, documento da ONU que data de 1955, é bom que se lembre, já estabeleciam que a formação profissional propriamente dita, anterior ao ingresso nos cargos, e a capacitação continuada, ao longo do desempenho de suas atividades, são absolutamente indispensáveis para o pessoal penitenciário.

“1. O pessoal deve possuir um nível intelectual adequado;

2. Deve freqüentar, antes de entrar em funções, um curso de formação geral e especial e prestar provas teóricas e práticas;

3. Após a entrada em função e ao longo da sua carreira, o pessoal deve conservar e melhorar os seus conhecimentos e competências profissionais, seguindo cursos de aperfeiçoamento organizados periodicamente” 13

Já se salientou, anteriormente, que dentre o pessoal penitenciário há os portadores de profissões e os de ofícios. A formação profissional anterior ao ingresso nos cargos diz respeito, portanto, ao pessoal das áreas técnicas, que praticam “as assistências” previstas na LEP. Para habilitarem-se aos concursos públicos, uma das exigências se refere ao registro nos Conselhos Profissionais. Quanto ao pessoal da área de segurança, inexiste uma política pública de educação profissionalizante de segurança penitenciária.

Mesmo assim, pode-se verificar que ainda são muito limitadas as iniciativas dentro dos cursos de graduação, no Brasil, de introdução de disciplinas que possibilitem o acesso a estágios na área do sistema prisional ou a conteúdos teóricos que problematizem a temática das prisões. Ainda que as formações profissionais sejam generalistas até determinada etapa dos cursos superiores, e depois se abram num leque de especializações, muito escassas são as inserções de temáticas nas universidades referentes ao campo da execução penal.

Seguidamente, comenta-se que a universidade brasileira tem sido pouco sensível, nas suas linhas de pesquisa e extensão, à questão da segurança pública, em especial à área de estudos  do sistema prisional. Há, portanto, a necessidade de uma política de fomento à pesquisa nessa área, que deveria ser estimulada por órgãos como a CAPES e o CNPq. O enfoque também deve se dirigir a cursos de especialização que aglutinem profissionais das diversas áreas, num esforço de coletivizar a discussão das práticas profissionais no campo da execução penal.(vide Plano Nacional de Segurança Pública). É importante assinalar que uma variedade de temas, fundamentais para a formação dos profissionais que atuam na área, são constantemente esquecidos, como por exemplo, a função da prisão na sociedade; a relação da criminalidade com a prisão; a produção da criminalidade; a construção das identidades profissionais no campo da execução penal; e a inserção diferenciada de cada profissão. Estas são questões básicas que constituem um núcleo comum de conhecimentos, tanto para detentores de profissão como de ofícios.

Em relação aos ofícios, como o de agente de segurança penitenciária, a formação mínima exigida para ingresso no cargo é a escolaridade de 2º grau. A percepção usual em relação ao exercício da segurança penitenciária é de que os agentes desempenham uma função essencialmente pragmática, em que o conhecimento necessário se constrói na experiência adquirida no cotidiano. Esta é uma constatação restrita às tarefas residuais dos agentes, quer seja a movimentação dos presos, sua escolta, o manuseio de instrumentos de vigilância. No entanto, o desempenho essencial dos agentes de segurança se refere à sua responsabilidade formal na ação disciplinadora junto aos presos. Como já se disse, é nesta relação entre custodiador e custodiados, perpassada pela ação moralizadora da disciplina, no âmbito da cultura prisional, que estão postos os maiores desafios e dilemas à ação dos agentes. É exatamente nesta relação que se verifica grande parte dos episódios de violação à integridade física e psicológica dos presos, assim como os conseqüentes incidentes prisionais. Portanto, a ação disciplinadora, nas formas hoje existentes na cultura da prisão, se naturalizou, banalizando ações violentas, e permitindo que os presos reafirmem que a presença do Estado nas suas vidas significa o desrespeito e a infração às garantias legais.

Alterar a cultura de violência institucional existente, da qual os agentes são em grande parte atores consensuais, supõe, por parte da Administração Pública, um compromisso que é político com investimentos muito significativos na formação profissional, instituindo- se uma política de formação profissionalizante, alavancada pelo Ministério da Educação (Vide Plano Nacional de Segurança Pública). Em tal formação profissional, inicialmente de nível técnico, segurança penitenciária poderia ser concebida como uma proposta de formação continuada, composta por graduação e pós-graduação. A formação curricular, nesta hipótese, trabalharia com conteúdos básicos que contemplem, como já mencionado, a discussão sobre as formas de punição contemporâneas, sua relação com a criminalidade, as contradições da punição e da reinserção e sua operacionalidade, a legislação penal e de execução penal e a respectiva inserção e identidade profissional dos agentes neste contexto. Já na área de formação de habilidades para o exercício profissional, pode-se destacar temas específicos como, por exemplo, o uso da força, o manuseio de armamentos, o controle de incidentes prisionais, a direção defensiva, procedimentos administrativos diversos e tantos outros.

No sentido que se dá à formação profissional, visa-se colocar a ação dos agentes dentro dos parâmetros legais em que se inscreve a custódia no Estado Democrático, buscando substituir uma cultura de violência, impregnada de vingança, alimentada pelo preconceito em relação aos presos e aos próprios agentes, por uma cultura de respeito ao preso e à valorização do funcionário, em que este possa se inserir como um agente de disciplina, fundada em valores éticos de responsabilidade e respeito à convivência coletiva. O Brasil tem urgência em fundar uma nova imagem de seus agentes da lei, que possa espelhar para a população, valores de credibilidade, confiabilidade e proteção. A capacitação, portanto, é constituída pelas ações pedagógicas e pela proposição de conteúdos programáticos que possam propiciar atualização e desenvolvimento aos trabalhadores dos sistemas penitenciários. Tais ações podem se desenvolver através de Escolas

Penitenciárias nos estados. É importante destacar, no entanto, que a política de capacitação das Escolas de Formação não supre por si só as questões mais gerais e pontuais dos trabalhadores. De fato, só uma política de recursos humanos, ainda tímida e até inexistente em muitos estados da federação, pode instituir várias frentes de abordagem das questões relativas ao trabalho, tais como a saúde do trabalhador, o plano de cargos e salários, a revisão constante das condições de trabalho e a própria política de capacitação. Querer resolver a insatisfação, o imobilismo, a indisciplina dos trabalhadores através da capacitação, como única alternativa, é uma perversão. Na verdade, não se constrói um ambiente pedagógico de sensibilidade à necessidade de aprendizagem num clima de profunda insatisfação com as condições de trabalho. Destrói-se a credibilidade na capacitação, desmerecendo seu valor, na medida em que ela não alterar, por si só, posturas descompromissadas, violentas ou ideologicamente conservadoras dos trabalhadores da prisão.

As propostas de capacitação operam num campo delimitado: ora informando sobre novas questões em debate (veja-se, por exemplo, o debate sobre justiça terapêutica, diminuição da idade de responsabilidade penal e regime disciplinar diferenciado) na conjuntura atual, ora aprofundando temáticas desafiantes relativas aos presos como a dependência química, o abuso sexual, etc.

6.1. Recomendações na Área da Formação Profissional

Na área da formação profissional, as recomendações são as seguintes, também incorporando sugestões do Plano Nacional de Segurança Pública:

1. Quanto às profissões em que é requerido o nível superior: (Serviço Social, Direito, Psicologia, Medicina, Odontologia, Enfermagem, Nutrição, Terapia Ocupacional, e Pedagogia, principalmente).

a) Inclusão de disciplina nos respectivos cursos de graduação que abranja:

· A questão da economia lícita da criminalidade e o elo indissociável com a prisão, assim como a legislação internacional/nacional acerca da punição e proteção dos presos.

· A discussão acerca da relação entre a cultura brasileira marcada pela ideologia elitista, conservadora, relacionada a questões da história da formação da sociedade brasileira, com rebatimentos substanciais na cultura da impunidade, da violência institucional, do clientelismo, do autoritarismo, etc;

b) Incentivo ao fomento de pesquisas no sistema prisional pela CAPES e CNPQ com a concessão de bolsas de iniciação científica e especialização atreladas à linhas de pesquisa sobre criminalidade e prisão, buscando publicizar os relatórios de pesquisas, colocando tal material bibliográfico ao alcance do público diretamente interessado na questão prisional: pessoal penitenciário, professores de universidades e de ensino médio, pesquisadores e administradores;

c) Valorização de carga horária e de conteúdos nos cursos de Direito de conhecimentos acerca de execução penal, buscando capacitar mais efetivamente os futuros advogados, defensores e promotores públicos;

d) Incentivo a bolsas de estágio para alunos de graduação em projetos de extensão em diversas áreas disciplinares com vistas a tornar mais permeável e visível a execução das penas, assim como capacitar profissionalmente estudantes que potencialmente possam contribuir com o campo da execução penal;

e) Mapeamento através de órgãos como CAPES e CNPq, de pesquisadores e de produções acadêmicas referentes ao campo da criminalidade e execução penal, visando a criação de um banco de dados;

f ) Incentivo ao aumento do número de bolsas de mestrado e doutorado para estudantes com projetos de pesquisa significativos na área de execução penal.

g) Criação de cursos de especialização junto às faculdades de Direito, Psicologia, Serviço Social, Sociologia e Ciência Política visando formar acervo de produção acadêmica num enfoque multidisciplinar, estabelecendo parcerias entre as universidades e os órgãos das administrações penitenciárias estaduais.

2. Quanto à profissionalização de sujeitos que venham a se candidatar a empregos na área de segurança pública e, em especial, à função de agente de segurança penitenciária:

a) No sentido de transformar o atual ofício de agente de segurança penitenciária em profissão, criar, com o concurso do MEC e das Secretarias Estaduais de Educação, cursos profissionalizantes em dois níveis:

· Nível Médio – correspondente à finalização do Ensino Médio, (com expedição de diploma de 2º Grau) como “técnico de segurança penitenciária”. Além das disciplinas convencionais de português e matemática, tal currículo aprofundaria os conteúdos de história e geografia, principalmente no que se refere às questões mais significativas da história e geografia políticas brasileira, buscando ressaltar os problemas da desigualdade social e da cultura (cultura da violência, da impunidade, autoritarismo, burocratismo).

· Nível de Graduação

6.2. Recomendações na Área de Capacitação Profissional

Na área da capacitação profissional as recomendações são as seguintes:

1) Dotar os órgãos estaduais de administração penitenciária de Escolas de Formação, voltadas para capacitar o público interno – o pessoal penitenciário. Tais escolas necessitam ser implantadas para se incumbirem da ambientação dos trabalhadores recém ingressos nas prisões, seja oriundos de concursos públicos ou de requisições administrativas, assim como da capacitação continuada, no sentido de oferecer atualização técnica aos diferentes segmentos funcionais. Evidentemente, tais Escolas não podem ser mantidas no improviso, como ocorre em alguns Estados. É preciso  que tenham orçamento próprio, corpo docente capacitado, tanto fixo como complementado por professores “visitantes”, assim como propostas pedagógicas concretizadas em currículos escolares, etc;

2) A ambientação deve se voltar a estagiários, novos técnicos e novos agentes de segurança recém ingressos, assim como voluntários que estão inseridos em atividades religiosas, culturais ou de lazer, parceiros de programas de trabalho e de assistência a egressos. A ambientação visa inserir, de forma mais segura e produtiva, novos atores no contexto prisional;

3) A capacitação continuada busca instrumentalizar o pessoal penitenciário com novos conhecimentos, organizar e sistematizar o conhecimento empírico adquirido na prática cotidiana e oferecer novas habilidades diante do desafio do acelerado desenvolvimento tecnológico, tornando a participação dos trabalhadores das prisões mais produtiva, tanto no desempenho que lhes é requerido, como na construção de sua auto-estima.

A capacitação continuada é uma estratégia que acentua o elo do trabalhador com a prática que exercita e sua sistematização teórico-metodológica.É importante ficar claro que não existe um fazer acabado, soberano e inquestionável, mas sujeito a reformulações face à disposição de refletir e refazer a prática cotidiana na dinamicidade da vida institucional;

4) Revisão das práticas de gestão prisional destinada aos gestores inseridos nas diversas instâncias da estrutura organizacional: direções, assessorias, chefias intermediárias e de vínculo direto com a população de funcionários;

5) Capacitação de pessoal das diversas áreas para o exercício da supervisão técnica aos grupamentos profissionais. A figura do supervisor se coloca como aquele que possibilita no cotidiano discutir com seus pares os conflitos institucionais existentes, os objetivos das ações e elaboração e avaliação dos projetos e outros pontos trazidos como uma necessidade pelos supervisionados. A capacitação formulada pelo Programa das Escolas se constitui em eventos – cursos, seminários, por exemplo, enquanto que a supervisão acompanha o desempenho dos profissionais cotidianamente. Formar supervisores, como uma atribuição das Escolas, requer que as Administrações Penitenciárias creditem aos programas de Supervisão o objetivo de desenvolvimento contínuo dos trabalhadores, assim como estabeleçam o fluxo de comunicação dos profissionais da ponta, que atuam junto aos presos e familiares com as assessorias e direções superiores.

7. Gestão de Pessoal

7.1. Recrutamento e Seleção

7.1.1. Recrutamento

Ao nos reportarmos à gestão de pessoal, teceremos alguns comentários acerca de recrutamento e seleção do pessoal penitenciário, assim como sobre planos de cargos e salários. Foram fonte de análise os documentos encaminhados pelos sistemas penitenciários de alguns estados. Face à avaliação do material colhido, apresentaremos algumas proposições que não podem ser vistas de forma dissociada da capacitação profissional de pessoal, ítem já discutido anteriormente.

Iniciamos pelas condições de recrutamento realizado majoritariamente por órgãos públicos, para preencher cargos da organização administrativa do Estado. Vale lembrar  que, em pelo menos três estados onde existem unidades terceirizadas (privatizadas), o recrutamento e seleção se fazem através de empresas privadas. Deve–se notar que não existe no país uma política de recrutamento e seleção orietadora dessas atividades operadas pelo estado. Portanto, não é surpresa encontrarmos uma diversidade de critérios de recrutamento e seleção, sem que se tenham fundamentos claros para tal, mesmo levando em conta a diferente dimensão de sistemas prisionais nos estados. O que importa salientar é que as funções de trabalho na custódia e na assistência têm uma mesma finalidade em diferentes cenários, uma vez que regidas pela mesma Lei de Execução Penal. Chamamos atenção, como mencionado no item 4.3.3, que os gestores do sistema penitenciário no Brasil não encontram nenhum parâmetro legal que oriente a área da segurança penitenciária.

Para facilitar a compreensão desta diversidade que aparece nos critérios utilizados pelos estados, listamos algumas categorias constantes dos editais de concursos públicos. Quanto ao recrutamento, as exigências para inscrição variam a cada ano no mesmo estado e de estado para estado, conforme descrito abaixo:

· Idade mínima

A maioria dos estados exige a idade mínima de 18 anos para admissão aos variados cargos dos sistemas penitenciários. Entretanto, observou–se variações entre editais de anos diferentes, no próprio estado: ora exigem 18 anos, ora 21 anos. Apenas um estados não limita a idade mínima para admissão ao cargo de agente penitenciário, porém exige a escolaridade de ensino superior completo, o que faz supor que a idade mínima esteja em torno de 20 anos, pelo menos.

· Carteira de habilitação

Todos os editais exigem a carteira de habilitação para motorista, indiferentemente dos cargos.

· Altura mínima

A altura mínima exigida na maioria dos estados é de 1,65cm para homens e 1,60cm para mulheres, no cargo de agente penitenciário. Entretanto há variações entre editais do próprio estado, quanto à altura das mulheres: uns exigem1,60cm e outros 1,55cm.

· Vagas destinadas aos portadores de necessidades especiais

A maioria dos editais garante um percentual de vagas para os portadores de necessidades especiais, como determina legislação específica, porém os candidatos serão avaliados por ocasião do exame médico quanto à adequação da deficiência à função a ser exercida. Entretanto, observa–se nos editais de alguns estados, a expressa proibição de inscrição aos portadores de necessidades especiais, justificadas pela incompatibilidade  com a função de agente penitenciário.

· Incidência de vagas

A maioria dos concursos se destina ao preenchimento de vagas para o cargo de agente penitenciário. Alguns estados realizaram concursos para cargos na área das assistências, porém o número de vagas oferecido foi bastante reduzido. Cabe salientar que em alguns estados da federação não existem profissionais da área das assistências, sendo as mesmas prestadas por profissionais cedidos de outros órgãos do estado ou por agentes penitenciários com formação acadêmica na área específica, desviados de função.

Observa–se que em nenhum dos editais foram oferecidas vagas para cargos na área da assistência jurídica. Levando-se em conta que muitos estados não contam com Defensorias Públicas, é muito grave tal constatação.

· Escolaridade:

Quanto ao nível de escolaridade, a maioria dos estados exige o ensino médio completo para o cargo de agente penitenciário e o curso técnico para áreas específicas, como por exemplo, auxiliar de enfermagem. Para cargos administrativos e de serviços gerais é exigido  o ensino fundamental completo ou incompleto, ou o ensino médio completo, conforme a função. Apenas um estado, após a criação do Plano de Cargos e Salários, passou a exigir o ensino superior completo para o cargo de Agente Penitenciário. Na área das assistências é exigida a graduação plena, com os registros nos respectivos Conselhos Regionais.

7.1.2. Seleção

As etapas de seleção dos candidatos variam entre os estados, porém a prova escrita, objetiva, é comum a todos, diferenciando-se apenas nas disciplinas e nos conteúdos exigidos. Em alguns estados, na prova para o cargo de Agente Penitenciário, constam as disciplinas de Português, Matemática, História, Geografia e conhecimentos específicos.

Em outros estados, são exigidas apenas as disciplinas de Português, Matemática e Conhecimentos Específicos para o cargo de agente penitenciário. Para os cargos da área das assistências, uma única exigência é geral: a de conhecimentos específicos da área de atuação. Cabe destacar que na maioria dos estados, os editais não exigem conhecimentos no campo da Criminologia e da Justiça Criminal, ou mesmo, execução penal. Apenas alguns editais para concurso de agente penitenciário incluíram tais exigências. Na maioria dos estados, a pontuação mínima exigida na prova objetiva é de 50 pontos para todos os cargos. Observou-se, entretanto,que em alguns estados, em anos diferentes, esse critério se modificou, apenas para o cargo de agente penitenciário, passando a exigirse a pontuação mínima de 60 pontos. Todos os editais analisados incluem prova de aptidão física para o cargo de agente penitenciário, de caráter eliminatório, realizada, na maioria dos estados, nas Academias de Polícia Civil ou Militar.

A prova de títulos para os cargos da área das assistências se constitui na segunda etapa do processo seletivo. Em alguns estados, a prova de títulos também é exigida para os cargos de agente penitenciário e para serviços gerais. Esta etapa tem o caráter classificatório. O exame médico, de caráter eliminatório, é exigido para todas as categorias profissionais. Os portadores de necessidades especiais são avaliados conforme sua deficiência e função a ser desempenhada. O exame psicotécnico, ou avaliação psicológica, não é comum a todos os estados, mas naqueles em que aparece tal exigência, o mesmo tem caráter eliminatório. Cabe destacar que em todos os estados, o Curso de Capacitação Profissional, na verdade, uma das etapas do processo seletivo, é exigido apenas para o cargo de agente penitenciário e tem o caráter eliminatório. Em alguns estados também é classificatório. A carga horária dos cursos varia de 80 horas/aula a 720 horas/aula. Os órgãos que ministram o curso também diferem entre os estados: naqueles que contam com Escola de Formação Penitenciária, as aulas teóricas são aí ministradas, e as aulas práticas (defesa pessoal, utilização de armas, etc) são realizadas nas academias de polícia. Nos estados que não possuem escola, que são a maioria, o curso é ministrado pelo DEPEN ou por profissionais do próprio sistema penitenciário, ou ainda por outros profissionais de órgãos da segurança pública e professores universitários.

Observa–se que a qualidade e o nível de exigência dos cursos estão relacionados com a política penitenciária do estado e, conseqüentemente, com a infra-estrutura existente. Entre os Editais analisados observou-se que apenas dois estados incluem, entre as etapas do processo seletivo, a investigação social: o Rio de Janeiro e o Ceará.

7.1.3. Salários

Poucos foram os editais que mencionaram o valor dos salários. Entre os salários apresentados, para as diversas categorias, observa–se uma grande diversidade. A maioria oferece salários muito baixos, com exceção de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rondônia, Rio  de Janeiro e Distrito Federal, onde os salários variam de R$700,00 a R$3.000,00, respectivamente. Nos demais estados, a média dos salários é de R$500,00 para as diferentes áreas. Tal diversidade está a indicar a necessidade da criação de Planos de Cargos e Salários para a área dos sistemas penitenciários, o que também deveria contar com orientação partindo do DEPEN. Por outro lado, isto também reflete a necessidade de uma política penitenciária que priorize a valorização dos servidores, possibilitando a perspectiva de ascensão profissional, aperfeiçoamento e melhoria salarial.

7.2. Planos de Cargos e Salários

Em se tratando de Planos de Cargos e Salários dos funcionários dos sistemas penitenciários no país, verifica-se que 70,8% das administrações públicas estaduais ainda não se ocuparam de elaborá-los, ou mesmo de oficializá-los. Esta é uma questão seguidamente lembrada pelos funcionários, diante de sua insatisfação com a falta de perspectivas mais promissoras de ascenção funcional. Pode-se levantar algumas questões quanto à ausência desses Planos, na maioria dos estados:

1. Seriam os funcionários das prisões vistos com algum preconceito por parte da administração pública superior, face a seu objeto de trabalho?

2. Seria o movimento sindical, na área dos sistemas penitenciários, ainda muito incipiente, isolado do movimento mais geral do funcionalismo público, no sentido de lutar por tais planos? Contribuiria para a fragilidade do movimento sindical nos sistemas penitenciários a pulverização existente de associações e sindicatos, abrigando diferentes categorias profissionais no cenário de cada estado?

3. Esta fragilidade poderia ser vista como resultado do arrefecimento do movimento sindical dos trabalhadores no país, face à precarização das relações de trabalho e da competitividade no mercado?

Na verdade, talvez a resposta a essas perguntas seja positiva. Logo, é preciso refletir sobre a falta de Planos de Cargos e Salários a partir de uma perspectiva política, e não apenas técnico-administrativa e é fundamental a participação do DEPEN para que se saia do imobilismo e se comece a discutir, com seriedade, o que provoca a falta de Planos de Cargos e Salários. É importante observar, também, que no relatório do Encontro Nacional das Escolas Penitenciárias, realizado nos dias 12, 13 e 14 de novembro de 2003, os representantes das cinco escolas existentes no Brasil não incluíram em suas propostas a necessidade e a importância de um Plano de Cargos e Salários, muito menos mencionaram a necessidade do aperfeiçoamento profissional vinculado a qualquer Plano. Percebe-se, assim, o longo caminho que ainda necessita ser percorrido para se criar uma gestão prisional baseada na competência e no conhecimento, critérios norteadores de Planos de Cargos e Salários em outros campos profissionais e instituições. Por último, cabe assinalar que, dentre os documentos analisados, encontram-se os Planos de Cargos e Salários dos sistemas penitenciários do Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul, os únicos estados que enviaram à coordenação deste trabalho tal material. Vale assinalar que esses Planos podem ser referencial para outros estados e, entre suas características positivas, estão a de se utilizarem da titulação de nível médio, superior e de pós-graduação, como critério para ascenção funcional e retribuição salarial.

7.3. Algumas Propostas

Diante do exposto, propomos a construção de uma política nacional pelo DEPEN, norteadora não só do processo de recrutamento e seleção do pessoal penitenciário, como também de planos de carreira. Tal política deve considerar os seguintes pontos:

· Conteúdo programático único para todos os cargos, inclusive para aqueles da área das assistências, versando sobre legislação específica do campo da execução  penal, do funcionamento do sistema penitenciário e do estatuto do funcionalismo de cada Estado;

· Criação do cargo de assistente jurídico e, conseqüentemente, concurso para preenchimento de vagas;

· Inclusão dos profissionais da área das assistências, recém-aprovados, ou em exercício, nos Cursos de Capacitação Profissional (ambientação e aperfeiçoamento profissional, respectivamente);

· Currículo básico para os cursos de capacitação (ambientação e de aperfeiçoamento profissional), de boa qualidade, ampliando a formação dos novos servidores para além da questão da segurança, vigilância e disciplina, de modo a permitir uma reflexão sobre a sua função enquanto custodiador;

· Criação de um Plano de Carreira, Cargos e Salários para os servidores do sistema penitenciário, que priorize a formação profissional como forma de ascensão funcional;

· Parcerias com instituições acadêmicas para realização de cursos de especialização na área da execução penal.

7.4. Saúde do Trabalhador

Na área do sistema penitenciário, um programa de saúde do trabalhador consiste em oferecer assistência médica, odontológica, psicológica e social, bom como desenvolver ações específicas de promoção da saúde e prevenção de doenças aos profissionais das unidades prisionais.

Os agentes penitenciários são os trabalhadores encarregados de revistar presos, celas, visitantes, conduzir presos, realizar a vigilância interna das unidades e disciplinar a refeição dos presos. Por terem contato direto com os internos e sendo vistos por estes como um dos responsáveis pela manutenção do seu confinamento, estes trabalhadores estão freqüentemente expostos a diversas situações geradoras de acentuado estresse. Todos os outros profissionais que labutam no sistema penitenciário, embora sem contato próximo, diário e regular com os internos, também sofrem o impacto da tensão presente no ambiente prisional. Assim, um programa de saúde do trabalhador do sistema penitenciário, deveria ter como atribuições:

· Estabelecer os padrões profissiográficos de todas as funções e cargos no âmbito do sistema penitenciário e sua aplicabilidade quando da admissão do trabalhador, garantindo-se desse modo uma efetiva aptidão física e psíquica para estas atividades laborativas.

· Promoção da Saúde e prevenção de doenças, ocupacionais ou não, tais como Hepatite B, Tétano/difteria (por meio de vacinação), HA, diabetes, DSTs, depressão, entre outras (através de informações sobre mudanças de hábitos de vida e comportamento).

· Detecção dos agravos à Saúde relacionados com o trabalho, através de:

1. Estudos epidemiológicos que visem estabelecer nexo causal entre as doenças mais comuns apresentadas pelos servidores e suas diversas atividades;

2. Inspeção periódica aos locais de trabalho avaliando suas condições físicas ambientais e conseqüentes riscos à saúde dos funcionários;

3. Permanente diálogo com o setor de Recursos Humanos avaliando as rotinas de trabalho, conflitos interpessoais, etc;

· Prevenção de acidentes de trabalho, através de palestras, folders e cartazes;

· Acompanhamento de casos de acidente de trabalho pelo serviço de assistência, em especial aos acidentes com material biológico.

· Realização de exames periódicos anuais.

· Realização de exames periciais nos casos de afastamento por doenças.

· Acompanhamento de doenças crônicas (já instaladas) e contagiosas, visando a parada de progressão das mesmas.

· Acompanhamento pelo Serviço Social dos casos de readaptação no trabalho (com redução ou não de carga horária, etc).

· Acompanhamento, através de exames mensais, dos agentes novos em fase de estágio probatório/experimental a fim de detectar doenças mentais, preexistentes/latentes, por profissionais das áreas da psiquiatria e psicologia.

8. Outros Temas

8.1. A Especificidade da Mulher Presa

Como se sabe, a prisão representa uma caricatura da sociedade em geral. Por um lado ela é um espaço que reproduz as condições de exclusão das mulheres, segundo vivenciadas no mundo de fora. Por outro lado, intensifica alguns males da sociedade em forma perversa, porque infantiliza as pessoas (ao controlar todos os aspectos de suas vidas e fazê-las dependentes de uma autoridade externa) e, ao mesmo tempo, exige delas maturidade para declará-las “ressocializadas”.

Assim, cabe lembrar que o cárcere é uma instituição totalizante e despersonalizadora, na qual predomina a desconfiança e onde a violência se converte em instrumento de troca. Essas características correspondem às prisões em geral, mas são muito mais marcantes em prisões de mulheres.

Do conjunto de pessoas que compõem a massa carcerária, a mulher não se destaca. Na América Latina, a porcentagem de presas oscila, aproximadamente, entre 3% e 9% da população carcerária. No Brasil, representa 4,33% dos presos.14 A reduzida presença numérica da mulher no sistema prisional tem provocado o desinteresse, tanto de pesquisadores como das autoridades, e a decorrente “invisibilização” das necessidades femininas nas políticas penitenciárias, que em geral se ajustam aos modelos tipicamente masculinos.15 O perfil da mulher reclusa demonstra o quanto ela integra as estatísticas da marginalidade e da exclusão: a maioria é não branca, tem filhos, apresenta escolaridade incipiente e conduta delitiva que se caracteriza pela menor gravidade, vinculação com o patrimônio e reduzida participação na distribuição de poder, salvo contadas exceções. Esse quadro sustenta a associação da prisão à desigualdade social, à discriminação e à seletividade do sistema de justiça penal, que acaba punindo os mais vulneráveis, sob categorias de raça, renda e gênero.16

8.1.1. Legislação Penitenciária sob um Olhar de Gênero

Uma leitura detalhada e focalizada na busca de referências sobre a mulher reclusa nos leva a constatar que são escassas as disposições que dela se ocupam. Existem poucas referências na Constituição Federal, na Lei de Execução Penal, que regulamenta os dispositivos constitucionais, e em alguns regimentos estaduais para os estabelecimentos prisionais. Os referidos diplomas legais regularam acertadamente a situação especial da mulher, mas o fizeram de forma demasiado tímida, sem abranger a totalidade de suas necessidades e impondo parâmetros passíveis de interpretação conservadora, em especial no que tange à formação profissional feminina na prisão. No artigo 19 da LEP, que trata da assistência educacional, menciona-se que “a mulher condenada terá ensino profissional adequado a sua condição”, sem evidenciar o significado da expressão “condição feminina”. Acreditamos que a diferença de gênero não representa critério legítimo no que concerne à organização  de cursos de formação profissionalizante diferenciados. A mulher tem ingressado em espaços de trabalho antes tipicamente masculinos, e vem tendo sucesso ao lidar com situações complexas. Dispositivos que imponham limitações baseadas em argumentos ambíguos e de múltipla interpretação devem ser objeto de concentrada atenção, porquanto se trata de situação que pode provocar abuso de poder e facilitar a transgressão do direito à igualdade.

Por outro lado, uma característica comum naqueles textos é o suposto caráter de neutralidade. Porém, entendemos que a redação de uma norma não terá tal caráter na medida em que fizer referência exclusiva ao homem, perfil que corresponde à maioria dos textos legislativos em matéria penitenciária.

Existem de fato citações sobre a mulher presa, porém os referidos documentos limitamse a regular aspectos ligados à maternidade. Nossa intenção não é, tampouco, negar a importância de uma norma a esse respeito; o que pretendemos é chamar a atenção para a identificação da mulher com um único papel, como se o universo feminino, composto por necessidades e recursos próprios e diversos, pudesse ser representado apenas pela função de mãe. Se a esse tópico somarmos a pretendida “neutralidade” na redação dos artigos da LEP nos indicativos da visita íntima, concluiremos que a norma (e a prática) nega a sexualidade da mulher quando esta se vincula ao exercício da liberdade sexual e, contrariamente, a reforça quando a mulher é identificada com o papel materno. É importante a análise de alguns temas pontuais:

· A questão da saúde

A questão da saúde representa um problema fundamental no contexto prisional feminino, porquanto ela forma parte das recorrentes demandas das mulheres presas não só em penitenciárias, mas também em cadeias públicas e distritos policiais.17 Por essa razão as políticas de saúde devem abranger tanto o âmbito dos sistemas penitenciários (que administram as penitenciárias) quanto o de segurança pública (que administra cadeias e distritos policiais).

Restringindo nossa análise ao âmbito normativo podemos asseverar que no texto da LEP (artigo 14) que trata do direito de assistência à saúde, lê-se que esse direito se efetivará com a contratação de médico, farmacêutico e odontologista — não existindo nenhuma indicação à necessidade de contratação de ginecologista, especialidade vital no controle de doenças que vitimizam as mulheres (câncer de mama, câncer de colo uterino, etc) e no acompanhamento pré-natal.

· A questão do trabalho

A maioria das mulheres presas trabalhou antes de sua prisão.18 Após o ingresso na prisão, essas mulheres continuam trabalhando, embora nem sempre realizem atividades reconhecidas oficialmente. A valoração do trabalho como meio de obtenção de liberdade conjuga-se com a importância que tem essa atividade para o trabalhador por garantir sua subsistência, e nessa interseção se confundem os interesses do trabalhador na prisão com os daquele que se encontra no meio livre. Porém, a aproximação de interesses é relativizada quando percebemos que a condição de subsistência difere da do senso comum, porquanto seu caráter utilitário não se vincula ao lucro nem ao consumo (ao menos não exclusivamente), mas à possibilidade de afastá-los da realidade e de lhes ocupar o tempo livre. O tempo ocioso pode se converter no pior inimigo do recluso, não só porque no entender das autoridades sugere vadiagem e fracasso do tratamento ressocializador, mas também porque favorece o envolvimento em ilegalidades.19 Daí a importância de proporcionar todas as condições para que o trabalho possa ser realizado no interior dos cárceres.

Por outro lado, a restrição do exercício de direitos trabalhistas prejudica às trabalhadoras presas e, especialmente àquelas que engravidam. Segundo a Consolidação das Leis  Trabalhistas (CLT), a mulher trabalhadora tem direito à licença-maternidade por 120 dias correspondentes aos períodos pré e pós-parto20 e o direito de não ser demitida nesse período, salvo justa causa expressamente comprovada. Como inexiste a possibilidade de apelar à CLT (segundo o artigo 28 da LEP) quando se trata de trabalho carcerário, a presa que presta serviços corre o risco de ser demitida e prejudicada como conseqüência de sua gravidez.

Finalmente, cabe destacar que o trabalho exercido na prisão deve se distanciar das práticas de manipulação, sometimento e de imposição de modelos conservadores de feminilidade ou de mulher “normal”, e deve passar a ser entendido como um direito de base constitucional e, ao mesmo tempo, como uma alternativa de resistência à degradação do cárcere.

· A questão da família

Um dos aspectos cruciais nas aflições provocadas pela detenção entre as mulheres presas é o distanciamento da família. Essa afirmação deve ser confrontada com os dados estatísticos que dão conta de que entre 65% e 90% das mulheres presas são mães e aproximadamente 60% são chefes de família, ou seja, representam a principal fonte de renda do lar.

Em pesquisa sobre a visita íntima, a Coordenadoria de Saúde da Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo recolheu informações dos presídios femininos do Estado de modo a identificar o contexto familiar das mulheres. Na Penitenciária Feminina da Capital21 82,87% declararam ter filhos22 , dos quais 59,12% vivem com a família da reclusa; o marido (ou ex-marido) conservou a guarda só em 6,07% dos casos. A residência dos filhos está localizada em 42,55% dos casos na capital, em 32,45%, no interior ou no litoral e na porcentagem restante, em outros estados ou países. Tais informações confirmam o abandono de que são vítimas as mulheres na prisão. Ademais, podemos deduzir que a condenação das mulheres recai não só sobre elas, mas também sobre os filhos, vítimas indiretas da sanção estatal. Esses dados sugerem a necessidade de criar presídios menores perto das localidades de procedência das mulheres presas, para dessa forma manter o binômio preso-família, e assim facilitar a reintegração, uma vez readquirida a liberdade .

· O acesso à informação

Outro fator que condiciona o cotidiano na prisão, além do silêncio, das múltiplas e pequenas regras, da monotonia, da rigorosidade da disciplina, da despersonalização e da perda de autocontrole, é a limitação do acesso à informação. Essa ignorância persistente gera desorientação e estimula, ainda mais, a docilidade como valor absoluto. Nas prisões femininas, o valor “docilidade” adquire significação especial na medida em que tenta reproduzir os padrões “femininos” como regra de conduta. A não-adequação a esses padrões provoca maior repressão por gerar o entendimento de que se pretende fugir do modelo de “mulher normal”, e pode redundar em avaliação negativa no tocante aos laudos e pareceres de técnicos. Nesse sentido, convém fortalecer um discurso crítico que incorpore a perspectiva de gênero nos cursos de formação de agentes e técnicos penitenciários.

Intensificando ainda mais a desinformação, observa-se o desconhecimento da maioria das mulheres presas sobre sua situação jurídica ou sobre processos administrativos a que esteja submetida na unidade prisional. Portanto, sugere-se implementar canais de informação sobre os direitos das presas, garantindo maior transparência de informações processuais e administrativas nos estabelecimentos prisionais (via a divulgação das regras internas ao presídio, por exemplo). Para ampliar o direito às informações processuais, deveriam ser criados mecanismos de formação e educação em direitos e cidadania às presas, no sentido de capacitá-las, não só para a compreensão de sua realidade jurídica como condenada / acusada, mas também visando sua reinserção social.

· Reintegração social

Para atingir esse objetivo é preciso promover mecanismos de sensibilização sobre a realidade prisional e sobre a necessidade de um papel ativo da sociedade na reintegração das mulheres encarceradas, seja através dos meios de comunicação, seja via a incorporação nas grades curriculares das escolas e universidades destas temáticas. Nesse contexto, devese estimular a constituição de Conselhos da Comunidade em todas as comarcas, garantindo a aproximação efetiva da sociedade civil organizada às prisões.

8.1.2. A Questão das Creches

O crescimento do número de presos no país, acarreta o aumento do número de crianças que vivem a experiência de terem seus pais ou suas mães encarceradas. Como uma população esquecida, essas crianças sofrem o impacto de políticas públicas que desconsideram suas necessidades para um desenvolvimento psicológico saudável. Os dados estatísticos da literatura internacional mostram que, quando o pai é preso, a maioria das crianças continua sendo cuidada por sua mãe. Contudo, quando da prisão materna, somente 10% das crianças continuam sendo cuidadas pelos companheiros das mães.23 Segundo dados constantes do Anexo 1 deste trabalho, atualmente no Brasil cerca de 4,1% da população carcerária é composta por mulheres e assim como os homens são jovens e com filhos.

No Brasil, quando uma mãe é presa, existem três possibilidades para a guarda de seus filhos pequenos (0 a 6 anos): em instituição de abrigo, em família substituta (que pode ser a sua família ampliada) ou no berçário e/ou creche do presídio. Os poucos e desatualizados dados brasileiros indicam que a maioria das crianças filhas de mulheres presas acaba sendo cuidada por suas avós maternas (51%).24 A guarda em presídio é bastante polêmica e complexa, talvez em decorrência do ambiente prisional e das relações estabelecidas em seu interior não serem as mais adequadas para o acolhimento da relação mãe-bebê e para o saudável desenvolvimento infantil, mas também pela delinqüência materna ferir o estereótipo da “boa mãe”.25 “Insinua-se que a mulher criminosa apresenta um real perigo para a sociedade, mais do que muitos homens perigosos e violentos, por seu potencial de influenciar seus filhos e, possivelmente, encorajá-los a atitudes criminosas” 26 A literatura internacional relata diversas experiências de creches em presídios femininos e apresenta argumentos favoráveis e contrários à permanência de crianças em seu interior.

Em outros países como Estados Unidos, Austrália, França, Alemanha a maioria das experiências de guarda de crianças em presídios são desenvolvidas durante o período de amamentação, pois várias instituições defendem a permanência da criança com a mãe nos primeiros meses de vida, por considerarem-na saudável para o relacionamento mãe-criança, reforçando laços e contribuindo para a posterior reinserção social da presa.27Um problema relatado quanto a esse tipo de guarda é a tensão entre as necessidades de um bebê e os regulamentos institucionais de um presídio, ou seja, o exercício de sua função básica de punição. Sarradet,28 que estudou as crianças que vivem em presídios na França (onde a criança pode ficar em creche no interior de uma unidade prisional, junto com sua mãe, até completar dezoito meses) afirma que, a princípio e juridicamente, a criança não é privada de sua liberdade; entretanto, no seu cotidiano, ela é apresentada a um mundo de vigilância, cheio de celas e guardas. Em resumo, a criança passa a ser encarcerada tanto quanto sua mãe, apresentando um problema de cunho jurídico.

Do ponto de vista desenvolvimental a prisão não é o ambiente mais adequado ao desenvolvimento humano, especialmente o infantil, ainda mais no que se refere às insalubres  instalações das prisões brasileiras. Vários teóricos do desenvolvimento humano, no entanto, destacam que o contato inicial com a mãe, ou alguém que a substitua, é essencial para a formação da personalidade de crianças e para seu desenvolvimento emocional e alguns defendem a idéia de que por mais que seja traumática a separação mãe-bebê após a primeira metade do primeiro ano de vida, esses bebês se recuperam melhor e mais rapidamente se tiveram a oportunidade de desenvolver e vivenciar um importante apego emocional com a mãe ou outra cuidadora antes da separação. Na legislação brasileira são assegurados os direitos dos presos para o exercício da paternidade, especialmente o da maternidade, como se vê no quadro 1.

Quadro 1

Artigos de leis, indicações de direitos e diretrizes quanto à maternidade e/ou paternidade no contexto prisional, na legislação brasileira

Direito/Indicação Lei Artigo

Direito à amamentação

Constituição Federal –1988

Estatuto da Criança e do Adolescente –1990

Regras mínimas para o tratamento do preso no Brasil (Ministério da Justiça,1995)

Art. 5º - L- “às presidiárias serão asseguradas as condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação.”

Art. 9º -“O Poder Público, as instituições e os empregadores propiciarão condições adequadas ao aleitamento materno, inclusive aos filhos de mães submetidas a medida privativa de liberdade.”

Art.7 “são asseguradas as condições para que a presa possa permanecer com seus filhos durante a amamentação dos mesmos.”

Direito à berçário/amamentação

Lei de Execução Penal – 1984

Art. 83 - § 2º - “Os estabelecimentos penais destinados à mulher serão dotados de berçário, onde as condenadas possam amamentar seus filhos.”

Indicação de assistência à criança desamparada pela prisão

Lei de Execução Penal – 1984

Art. 89* – “Além dos requisitos no artigo anterior, a penitenciária de mulheres poderá ser dotada de seção para gestante e parturiente e de creche com a finalidade de assistir ao menor desamparado, cuja responsável esteja presa.”

Fonte: Stella (2001, 244)

Da ótica da criança, a Constituição Federal (art. 208) e o Estatuto da Criança e Adolescente (art.54) determinam que é direito da criança de 0 a 6 anos o atendimento em creche e pré-escola, sem especificar em que condições e como garantir esse direito. Em estudo descritivo sobre as creches no sistema penitenciário brasileiro, Santa Rita29 enviou um questionário para as 28 (vinte e oito) unidades30 identificadas pelo Depen como de cárcere feminino. Esse questionário foi respondido pela direção do presídio e seu objetivo era avaliar a existência ou não de creche em seu interior, bem como a infraestrutura disponível para o atendimento das crianças.

O estudo de Santa Rita verificou que: no Brasil existem 10 creches em estabelecimentos prisionais femininos atendendo 69 crianças; alguns presídios de forma improvisada atendem as crianças no período de amamentação, mesmo não contando com infra-estrutura de creche; a grande maioria das 49 crianças atendidas no sistema era composta por recémnascidos, não havendo registro de crianças com idades entre 4 e 6 anos. Quanto ao quadro de recursos humanos a pesquisa mostrou que as próprias presas e técnicas de segurança atuavam como educadoras e que somente 14% dos profissionais eram técnicos de nível superior e médio, ligados a áreas de saúde e educação, o que pode refletir em ausências de ações psicopedagógicas tanto para as crianças, como para suas mães. Com base nas considerações acima, é possível elencar algumas sugestões de atendimento a crianças pequenas, nas instituições prisionais femininas:

. Primeiramente devemos saber quantas são e onde estão essas crianças, para propor uma política pública adequada à população, incluindo os filhos de mães que se encontram presas em cadeias e delegacias;

. Devemos pensar em atendimento de qualidade para essas crianças com infraestrutura adequada, com quadro de educadores e técnicos especializados e propostas psico-pedagógicas adequadas que propiciassem o desenvolvimento integral das crianças e suas mães, bem como o fortalecimento de vínculos para posterior recuperação da guarda da criança pela mãe;

. Outra sugestão diz respeito a diferentes atendimentos conforme a faixa etária da criança. Para crianças de 0 a 3 anos que precisam de cuidados integrais, o presídio deve proporcionar o alojamento conjunto com todas as questões propostas no item anterior, onde o vínculo e a interação mãe-bebê pudessem ser fortificados. Para crianças de 3 a 6 anos é essencial que a criança entre em contato com meios sociais mais amplos, portanto essas crianças deveriam ser incluídas no sistema público de educação, onde pudessem desfrutar de políticas educacionais adequadas para o seu desenvolvimento e passar o dia, ou uma parte dele, convivendo com outras crianças e adultos fora dos muros prisionais, mas que pudessem retornar para o convívio de suas mães no alojamento conjunto no final do dia. Um dos desafios do sistema penitenciário brasileiro é o desenvolvimento de propostas e estratégias – envolvendo mães encarceradas, crianças, profissionais e administradores – que minimizem ou reduzam os impactos da prisão materna, potencialmente perversos para o desenvolvimento da criança. No universo da prisão feminina a mãe pode até ser culpada, mas as crianças não o são, embora acabem bastante penalizadas.

8.2. A Questão do Egresso Penitenciário

Para discutir a questão do egresso penitenciário, é preciso saber, antes de mais nada, em que condições os sujeitos em situação de privação de liberdade, entendidos como “produtos” de um sistema prisional complexo e ineficiente, voltam às ruas e ao convívio social. Quais as condições que têm para restabelecer vínculos primários e secundários? Atualmente a quantidade de egressos é menor do que a de ingressos no sistema prisional, especialmente em São Paulo, o que indica tempo de permanência maior desses indivíduos,  geralmente jovens, nos estabelecimentos prisionais. O que esperar daqueles que saem das prisões brasileiras todos os dias?

Em pesquisa de campo sobre egressos do sistema penitenciário, desenvolvida no Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, foram entrevistados, desde o ano dois mil até o ano de dois mil e três, cerca de duzentos homens, egressos do sistema prisional brasileiro, mais especificamente, das penitenciárias paulistas, após o cumprimento de penas que variam de três a trinta anos. Esses homens foram classificados conforme o delito praticado e o tempo de permanência em regime fechado. A maioria deles foi entrevistada em seus locais de moradia temporária ou fixa, sejam albergues ou nas casas de suas famílias. Muito embora a amostra principal da pesquisa citada reporte-se a São Paulo, egressos de outros estados também foram entrevistados para testar a possibilidade de generalização dos dados encontrados em São Paulo. Foram entrevistados egressos do sistema penitenciário de Porto Alegre, do Rio de Janeiro, de Belo Horizonte, de Salvador, de Recife e de Belém. Poucas são as variáveis que não se tornaram recorrentes nessas outras capitais, entretanto as singularidades da cultura local foram percebidas. Também foi mapeado, em todo o Brasil, projetos de apoio aos egressos do sistema penitenciário.

A realidade dos homens e mulheres que saem das prisões, aqui denominados egressos, é a pior possível. Representa o resultado da pedagogia da ociosidade, da improdutividade, do terror, e da contraditoriedade, empregada no sistema penitenciário brasileiro. A saída desses homens e mulheres da prisão dá-se sem nenhum planejamento prévio. A morosidade de encaminhamento dos processos penais e o excesso de burocracia do judiciário são fatores impeditivos da previsão de progressão de regime ou de obtenção de liberdade, dentro das penitenciárias, que por sua vez também são desorganizadas em suas assistências jurídicas. Assim, não é incomum o grito “te prepara pra sair”, quando os agentes informam aos presos que a sua saída será quase que imediata, após anos de aprisionamento.

Ainda que desejada, essa liberdade amedronta por representar o início desorganizado de vidas, das quais a sociedade cobra reorganização. Homens e mulheres migram, rapidamente, da situação de aprisionados para a situação de egressos do sistema prisional. Muitos desses egressos não chegam a avisar as suas famílias da sua saída, outros nem sequer têm família e deverão procurar, por conta própria, albergues para pernoitar. Muitos saem sem nenhum recurso, nem mesmo para o transporte e não é incomum que percorram vários quilômetros, caminhando até suas casas ou abrigos provisórios. A chegada em casa nem sempre é uma agradável surpresa para ambos os lados, egressos e famílias, principalmente por representar o aumento do custo familiar e pela dificuldade no resgate dos vínculos. A dificuldade de se localizar na cidade e o medo de coisas simples como atravessar uma rua, também são freqüentes, assim como a prédisposição paranóica que muitos têm de identificarem em rostos alheios a percepção da sua condição de ex-preso.

A criação de serviços de atendimento a egressos em todo o país é um passo importante e está previsto no Plano Nacional de Segurança Pública, do então candidato Luis Inácio Lula da Silva. A Pastoral Carcerária de São Paulo já mantém um serviço dessa natureza, implantado no ano de dois mil, contando inclusive com a mão-de-obra de um egresso no setor de atendimento. Esses serviços devem contar basicamente com profissionais qualificados nas áreas de serviço social, psicologia, sociologia e direito. No país já existem serviços dessa natureza em algumas capitais. É fundamental a expansão quantitativa e qualitativa desses serviços, muito embora seus custos sejam elevados, tendo em vista que auxílios básicos e emergenciais devem estar disponíveis, a exemplo de cestas básicas, vales transportes, material de higiene pessoal, remédios, etc. A elaboração de cadastros atualizados de albergues, de locais para retirada de documentos, de postos médicos, de postos de assistência ao trabalhador, entre outros, é o insumo básico do serviço a ser prestado. Embora,  a princípio, este tipo de prestação de serviços pareça ter um caráter assistencialista, esses locais de assistência devem ser entendidos como ancoradouros para homens e mulheres que necessitam, muitas vezes, de atendimentos emergenciais orientadores na área psicológica, jurídica, médica ou na área da assistência social. A condição de egresso do sistema penitenciário é uma condição complexa por conjugar várias demandas ao mesmo tempo, com a agravante da perda de referências, objetivas e subjetivas, para lidar com elas.

O próprio conceito de egresso também guarda complexidade. Entendido como “aquele que deixou o estabelecimento criminal onde cumpriu a sua sentença,”31 esse é também um conceito problemático. Todos aqueles que saem oficialmente das prisões podem ser considerados egressos. Entretanto, são caracterizados por diferentes tipologias de saída: alguns obtém a liberdade definitiva, outros solicitam e recebem benefícios após cumprir parte da pena em regime fechado, como é o caso dos que têm o benefício da Prisão Albergue Domiciliar – PAD ou da Liberdade Condicional – LC. Os dois últimos são benefícios atribuídos por juízes de direito, respeitando a especificidade de cada caso.

Àqueles que saem em regime de Liberdade Condicional, muitas vezes é exigido pelo juiz, uma carta de emprego. A carta pode ser exigida até mesmo antes da saída, como garantia para a obtenção do benefício, ou em até trinta dias da obtenção do mesmo. Essa carta é um documento no qual uma empresa privada, legalizada e em operação, assegura o vínculo empregatício para o preso nominalmente citado. Dada a dificuldade que os egressos e as suas famílias têm em conseguir tal documento, absurdo diante da situação econômica e da crise de emprego vivida no país, alguns juízes, atualmente, já desconsideram tal exigência, mas essa ainda não é uma postura generalizada. Além dos altos índices de desemprego que afligem a homens e a mulheres não fichados pela polícia, a manutenção dessa exigência desconsidera a possibilidade do trabalho informal, adequado às habilidades que muitos egressos possuem, como as de marcenaria, carpintaria, de serviços de pedreiro, de hidráulica, de eletricidade, entre outras.

Sem a obtenção de qualificação específica durante o período de prisão, mesmo quando os egressos têm habilidades obtidas em períodos anteriores ao aprisionamento, sofrem defasagem dos seus conhecimentos, principalmente pelos avanços tecnológicos incorporados a esses serviços e pelas diferenças administrativas e gerenciais na prestação dos mesmos. O trabalho desenvolvido no cárcere, através de empresas privadas, motivadas pelas isenções dos custos trabalhistas e previdenciários, atribui aos presos ocupados um trabalho específico dentro do processo de produção – uma especialização que não gera quase nenhuma reprodução de capital profissional, como é o caso da costura de bolas e ou da colagem de pipas e das partes específicas da produção de vassouras. É fundamental que as empresas que atuam no cárcere tenham compromisso social com a causa do preso, até à sua saída da prisão. Essas empresas deveriam ter necessariamente programas de responsabilidade social em troca das reduções que obtém nos seus custos trabalhistas. A atribuição de capacitação e de qualificação técnica, gerencial e administrativa, deveria ser um atributo mínimo para a seleção dos empreendimentos a serem estabelecidos nos cárceres.

O processo burocrático de reabilitação diante da justiça é outro entrave para aqueles que obtém a liberdade definitiva. Na maioria das vezes, sem advogado e sem recursos para acompanhar o processo burocrático, a reabilitação da condição civil torna-se lenta. O tempo de reabilitação para que os nomes dos egressos não mais apareçam em relações de indivíduos com antecedentes criminais, pode chegar a dois anos. Além de ser um processo demorado, seu trâmite é muito pouco claro para os egressos e até para as instituições que os auxiliam. Durante o tempo em que transcorrem os processos de reabilitação definitiva de seus nomes, os egressos, de modo geral, mostram-se inseguros para a procura de emprego com registro oficial na carteira de trabalho, assim como temerosos quanto às ocorrências que envolvem a polícia.

Não é raro a detenção de egressos para averiguação, em batidas policiais, por ainda constarem seus nomes nos registros da polícia e do judiciário. Principalmente para aqueles que se encontram em liberdade condicional ou em prisão albergue domiciliar e figuram nos sistemas informatizados da polícia como ainda presos, a insegurança ainda é maior, uma vez que alguns policiais, pouco informados, entendem que por constarem em registros, essas pessoas podem estar sujeitas à iminente captura.

Ao problema acima citado, a objetividade da justiça indica como solução a apresentação dos documentos oficiais de identificação do egresso: o alvará de soltura ou a carteira de liberdade condicional, assinada regularmente nas varas de execuções. A apresentação de tais documentos deveria sanar as dúvidas e evitar as detenções irregulares pela polícia. Ainda que a objetividade dessa solução seja real, o caráter subjetivo da questão pouco é tratado. A carteira de identificação da condição de homem/mulher em débito com a justiça poderia ser aceita sem maiores atribuições simbólicas negativas ao seu portador, se a sociedade confiasse na eficiência do modelo disciplinar e pedagógico das prisões. Pelo contrário, o descrédito na instituição prisional, entre outros fatores, gera diante desse documento uma tensão, tanto para quem o apresenta, como para quem a ele é apresentado. Transforma-se o documento oficial em documento estigmatizante. Rever as formas de cadastramento e de identificação do sujeitos egressos do sistema prisional brasileiro, sem reforçar as estigmatizações, é um dos pontos importantes para a melhor aceitação do egresso. Urge, também, a revisão nos procedimentos de atualização dos dados do cadastro da polícia relativos a quem já cumpriu sua pena ou que está em liberdade condicional e/ou em prisão albergue domiciliar.

A suspensão dos direitos civis de homens e mulheres, enquanto estão privados de liberdade implica, de forma objetiva, a apreensão32 dos documentos de regularidade civil, como o registro geral (RG), cadastro de pessoa física (CPF) e o título de eleitor para aqueles que tinham esses documentos antes do seu encarceramento.33 Ao saírem das prisões, entretanto, os egressos, por necessidade de auto-sustentação e algumas vezes por imposição judicial, são obrigados a imediata procura de emprego. Muitas instituições de apoio aos egressos os encaminham para os locais específicos de retirada de documentos, através de fichas de encaminhamento que de quase nada ou nada valem nos estabelecimentos públicos responsáveis por documentação civil. De modo geral, em quase todas as capitais do Brasil, os registros gerais podem ser retirados em delegacias de polícia e, em algumas capitais, eminstituição específica que reúne num só lugar vários serviços de órgãos públicos. Os egressos não se sentem confortáveis com a retirada do registro geral em delegacias de polícia, ou mesmo com a retirada desse documento em órgãos prestadores de serviços públicos gerais.

A possibilidade de negativa ou de constrangimentos nesses locais é sempre iminente. A falta de documentação gera toda uma série de problemas e o processo de sua obtenção é eivado de contradições. Em primeiro lugar, os egressos de estabelecimentos prisionais em regime de liberdade condicional ou de prisão albergue domiciliar ainda estão com seus direitos civis suspensos, daí não ser facultado aos mesmos o direito da retirada da segunda via da carteira de reservista. Àqueles que não têm o documento de reservista, não é facultada a retirada do título de eleitor e, assim, aquele que não tem o título de eleitor fica impossibilitado de se cadastrar no cadastro de Pessoa Física do Ministério da Fazenda.

Não fosse esse apenas um desencadeamento de impossibilidades, é também um desencadeamento de contradições: aos egressos34 que vivem a impossibilidade da regularização da sua documentação civil é exigida a integração ao mundo do trabalho formal, cuja porta de entrada é a regularidade documental. É necessário que políticas públicas indiquem caminhos objetivos para a minimização de pequenos problemas cotidianos que assumem dimensão muito maior quando afligem pessoas fragilizadas pela vivência do encarceramento e principalmente pela estigmatização. A regularização dos documentos civis é o primeiro passo para a retomada da cidadania e a negação desse direito é o mesmo que fomentar o retorno às atividades ilícitas. Fazer com que as Instituições públicas e/ou Organizações do terceiro setor possam prestar serviços de acompanhamento ou mesmo que sirvam como posto de retirada de documentos especificamente voltados para egressos do sistema penitenciário, pode ser uma saída no curto prazo.

Estes postos de atendimentos aos egressos do sistema penitenciário podem ser viabilizados por Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP, através de convênios com o Governo, seja na instância Federal, Estadual, ou Municipal. O importante é que estas Organizações possam ser estimuladas a incluir os egressos do sistema penitenciário nas suas ações, sejam elas da área de educação, da geração de emprego e de renda, ou da assistência social mais geral. Antes disso é fundamental o aprofundamento da discussão, na esfera jurídica, da suspensão dos direitos civis para aqueles que deixam os estabelecimentos prisionais nos regimes de Liberdade Condicional ou em Prisão Albergue Domiciliar, embora a dificuldade para a retirada dos documentos seja também uma realidade para aqueles que obtêm a liberdade definitiva.

A falta de capacitação técnica é outro entrave para a inclusão dos egressos no mundo do trabalho, além da baixa escolaridade, associada à falta de experiência no mercado formal de trabalho. Essas carências funcionam como impeditivos para a obtenção de emprego. Durante o tempo de encarceramento alguns homens e mulheres presos fazem curso de informática e/ou terminam o ensino médio e/ou fundamental, o que lhes garante maiores possibilidades ao sair. Entretanto, essas oportunidades de capacitação escolar e de capacitação técnica no cárcere não fazem parte da realidade da maioria dos homens e mulheres presos e, principalmente, urge uma reflexão séria sobre o que significa capacitar para o trabalho, no momento em que a economia mundial reduz drasticamente os postos formais de trabalho. A capacitação para o trabalho autônomo, empreendedor e sustentável, é muito  conseqüentemente de renda. O Sebrae pode ser parceiro nesse intento de promover capacitação sobre empreendedorismo para homens e mulheres presos, no final de suas penas, permitindo que vislumbrem algum futuro ao sair, que não seja o reingresso na criminalidade.

O Sebrae, o Senac e o Senai deveriam ser provocados no sentido de gerar programas de apoio à capacitação do homem preso, próximo à liberdade. Assim como a política de micro crédito deveria ser também dirigida para esses sujeitos, devidamente acompanhados por técnicos ou por estudantes de empresas juniors. Em São Paulo, a extinta COESP – Coordenadoria de Orientação aos Egressos de São Paulo – viabilizava financiamentos de até dois mil reais para egressos, visando a aquisição de máquinas, ferramentas, utensílios e matéria prima, mediante a elaboração de um pequeno projeto de auto-sustentabilidade.

Em quase noventa por cento dos casos os recursos eram bem empregados pelos egressos que montavam salões de beleza, oficinas, pequenas mercearias, etc. O programa foi extinto, deixando muitos egressos endividados, com prestações a pagar dos bens adquiridos por meio do financiamento. É fundamental que haja um cadastramento dos egressos quanto à sua formação, vocação e/ou habilidade de trabalho e que instituições do terceiro setor sejam capacitadas para recebê-los e direcioná-los na busca de ocupação, inclusive ministrando capacitações básicas, conforme as demandas dos mercados locais e, como já citado, auxiliando na retirada de documentação. A viabilização de parcerias com cooperativas de trabalho que tenham interesse em incluir egressos pode representar um diferencial importante na obtenção de ocupação rentável, assim como isenção ou redução fiscal para empresas que absorvam a  mão-de-obra de egressos cooperativados. A abertura de cooperativas de trabalho, especificamente dirigidas aos egressos, pode não ser uma idéia viável, por reforçar a estigmatização desses homens e mulheres. O setor público pode desempenhar um papel importante na geração de ocupação e renda para egressos. É importante, também, estimular novas iniciativas, principalmente do terceiro setor, para lidar com egressos e suas famílias. Não há, por exemplo, qualquer projeto que beneficie a mulher egressa e, evidentemente, a singularidade de sua condição, principalmente se ela tem filhos, exige atenção.

Por outro lado, é possível pensar em envolver organizações do terceiro setor, através de licitações públicas, com a capacitação de egressos penitenciários em áreas demandadas por pesquisas de mercado locais. Os cursos devem reforçar as atividades autônomas, a prestação de serviços, de maneira a estimular o empreendedorismo, o associativismo, o cooperativismo e a auto-sustentabilidade. A elaboração de um cadastro de prestadores de serviços e a sua divulgação e manutenção pelo período mínimo de um ano, devem também ficar a cargo das organizações vencedoras dos certames licitatórios.

Os egressos, contrariando o censo comum, buscam alternativas que não sejam o retorno à criminalidade, sempre de portas abertas à sua espera. As dificuldades encontradas e, principalmente, o preconceito e a estigmatização, acabam por estimular a reincidência. Atualmente, as prisões brasileiras estão abarrotadas de jovens entre dezoito e vinte e cinco anos e, muitos destes homens e mulheres, deixam os muros dispostos a não retornar ao ambiente carcerário. Tal intenção é totalmente desperdiçada pela falta de iniciativas públicas que visem oportunizar capacitações e encaminhamentos burocráticos, além de fomentar ocupação e renda.

A improdutividade do sistema penitenciário é produtiva! Produz sujeitos objetiva e subjetivamente sequelados e, por isso mesmo, gera a reincidência criminal, ampliando os índices de violência urbana. Reduzir essa produção de reincidentes é, em primeiro lugar, uma questão de organização de parcerias entre o setor público e o terceiro setor; em segundo, o estabelecimento de redes de cooperação entre entidades com diversas finalidades e a causa dos egressos; em terceiro lugar é uma questão de reordenamento das estratégias internas das penitenciárias. As penitenciárias brasileiras precisam deixar de ser “um cemitério de homens vivos” e desenvolverem estratégias de inclusão social. Sem isso o seu produto final será sempre desastroso.

9. Privatização no Sistema Penitenciário

O idealizador do panóptico, Jeremy Benthan, foi quem primeiro sugeriu a entrega das prisões a empresas privadas (1884). Fracassaram a idéia e a pretensão na época.35 Passaram-se os tempos. Com o término da “guerra fria”, desaparecido o “império do mal” da ocasião, indispondo de inimigo nítido a guerrear, os Estados Unidos elegeram para o papel as subclasses: os pobres, os negros, os imigrantes, os infratores da lei.36 Na era Reagan, quando tudo se desejava privatizar, dominante a ideologia de que a iniciativa particular realizava milagres comparativamente aos serviços públicos, combinada com a de que se impunha prender mais e mais, ressurgiu o projeto de passar para mãos mercadoras a lida com os detentos. Logo surgiram pretendentes para a missão. Explorando a tendência das pessoas a cultivar uma concepção mágica do mundo, alardeou-se sedutora propaganda, seguida de intenso lobby junto aos responsáveis pelo comando do Estado: a questão penitenciária, terrível e custoso pesadelo, com sua passagem para a área empresarial livraria completamente a administração pública de encargos a esse respeito. Os reclusos passariam a habitar alojamentos iguais aos das universidades, na mais completa disciplina e limpeza, trabalhando ordeira e produtivamente, de sorte a purgar as culpas e se acostumar a ganhar o pão de cada dia com o suor do rosto.

Assim, no embate da concorrência, duas empresas suplantaram as rivais, apossandose no novel mercado, passando o antigo monopólio estatal para o oligopólio privado. Com que resultado? Um aumento turbilhonante de presos retirados das estratos inferiores da sociedade (cerca de 2.000.000 de presos nos EEUU, quase 50% de negros, numa população livre em que pessoas de tal etnia figuram na faixa dos 13%) e uma locupletação opulenta dos exploradores da hotelaria carcerária. O dirigente de uma delas chegou a anunciar: “Se mantivermos nosso mercado acionário e a taxa de crescimento, seremos uma firma de um bilhão de dólares em 2.004”. 37 Compreende-se, a administração carcerária particular é tocada exclusivamente como um negócio que tem de gerar lucros, como se depreende do anúncio de uma corretora: “Prisões privadas: maximize o retorno de investimentos nesta explosiva indústria... ...enquanto encarceramentos e condenações permanecem em crescimento, ganhos serão obtidos - lucros do crime”. 38 Ou, num pragmatismo mais franco, diz um dos fundadores da CCA: “Você apenas vende, como se estivesse vendendo carros, imóveis ou hambúrgueres” .39

No Brasil, o sonho de privatizar a custódia de presos se concretiza em novembro de 1999, no Paraná, com a construção e instalação da Penitenciária Industrial de Guarapuava.

Tal iniciativa se deu através de uma parceria em que o Governo Federal arcou com 80% dos recursos e o Governo do Paraná com o restante, num gasto total de R$ 5,32 milhões. Esta nova política do Ministério da Justiça se estendeu ao longo dos últimos quatro anos aos estados do Acre e Ceará, ora com recursos compartilhados, ora com custos arcados somente pelo governo estadual. A posição da Secretaria Nacional de Justiça, em 2001, em relação a esta nova gestão prisional é clara e reafirma o sucesso “das condições propiciadas pela terceirização dos serviços prisionais, em que os resultados positivos que parecem despontar dependem da própria concepção do que seja a pena privativa de liberdade”.40 Muitos são os argumentos dos defensores da terceirização, obviamente movidos por referências teórico-políticas distintas quanto à execução das penas. Tanto no Paraná quanto no Ceará, a empresa inicialmente contratada para realizar os serviços de custódia, denominada Humanitas, vinha de uma fusão com uma empresa tradicional de segurança privada – a Pires Serviços de Segurança Ltda. Esta ainda é, atualmente, a maior empresa de segurança privada de São Paulo, com mais de dez mil vigilantes. Originariamente, tratavase de uma firma de serviços de limpeza que, mais tarde, passou a se dedicar a vigilância  bancária e hoteleira. Portanto, é interessante observar que a privatização dos serviços prisionais ocorre no final da década de 90, quase trinta anos depois da ditadura militar ter, após a edição da Lei de Segurança Nacional, regulamentado a segurança privada para proteger pessoas e bens patrimoniais. O que se depreende é que as empresas candidatas ao exercício da custódia de presos não tinham acumulado, até então, qualquer experiência ou especialização na área prisional.

A proposta da gestão terceirizada, tal como acontece no Paraná, repousa sob a égide da “atuação conjunta do governo, que fornece instalações e amparo legal e, da iniciativa privada, representada por duas empresas distintas: uma que responde pelas funções de guarda e assistência aos detentos e, outra, uma indústria que oferece treinamento e utiliza mão de obra dos internos para a sua produção”. Na operacionalização, portanto, desta premissa, o Estado prepara com os recursos públicos toda a infraestrutura física assim como equipamentos de segurança eletrônica a serem usados pela empresa: uma, gestora do trabalho prisional, que contribui com o capital relativo à matéria prima e máquinas, se desresponsabilizando de pagamentos de taxas, tais como, luz, água, gás e aluguel. A segunda empresa estabelece salários, seleciona pessoal, contrata carga horária, enfim, administra o pessoal penitenciário. Também as taxas não são de sua responsabilidade, mas do erário estadual. Os custos arcados pela empresa dizem respeito ainda ao pagamento do salário penitenciário dos presos, sem nenhum controle pelo Estado sobre o lucro extraído pelo empresário patrão. É exemplar a desativação do trabalho prisional iniciado na penitenciária de Guarapuava: a instalação da indústria de móveis naquela unidade se estendeu até o momento em que oferecia lucro a seu proprietário. Quando a indústria moveleira do Paraná entrou em crise, o trabalho prisional entrou em retração e a proposta “reabilitadora” esvaziou-se rapidamente. À empresa terceirizada para gerir o trabalho prisional interessava ter uma única atividade produtiva, que concentrasse toda a disponibilidade de mão de obra daquela unidade. Portanto, temos, mais uma vez presente, a tradição colonialista brasileira, de uso do Estado para beneficiar interesses privados, o que desnuda a denominada “eficácia do modelo de gestão prisional terceirizada”.

Outros pontos poderiam ser abordados: a assepsia do ambiente e a oferta contínua= de recursos materiais (artigos de higiene pessoal, roupas e sapatos de boa qualidade). Ambientados na penúria de recursos materiais e na cultura da postergação burocrática, os funcionários públicos gestores entendem que a terceirização vem resolver as velhas dificuldades da gestão tradicional, na medida em que os entraves administrativos são superados.

No seu funcionamento cotidiano, as unidades terceirizadas, estão submetidas a uma dupla gestão. De um lado, os três cargos, considerados principais – diretor, subdiretor e chefia de segurança – são ocupados por funcionários públicos, indicados pela administração penitenciária estadual; de outro, todos os demais postos de trabalho e cargos de chefia são de responsabilidade da empresa privada. Isto quer dizer que os funcionários técnicos, administrativos e de segurança estão vinculados à empresa que os selecionou, os paga, os promove ou demite. Dentro desta forma administrativa, os conflitos de gestão podem, não somente ser presumidos, como de fato acontecem. A chefia de segurança mencionada, por exemplo, tem o papel oficial de supervisionar os agentes de segurança penitenciária e comunicar os problemas verificados à gerência operacional da empresa, que também supervisiona e freqüenta diariamente a unidade prisional. Assim, no cotidiano, seguidamente uma área de atritos se estabelece: na verdade, estão em confronto, nos mecanismos de gestão, duas culturas administrativas distintas.

A direção e subdireção da unidade gerenciam a parte administrativa com as restrições impostas pela gestão de pessoal afeta à empresa. No entanto, insiste-se que a posição da Direção é tranqüila, desprovida de aborrecimentos relativos a desvios de conduta dos  funcionários, pois, seu papel é apenas comunicá-los à gerência da empresa. As substituições ou punições de funcionários são rápidas: resulta desta agilidade uma grande mobilidade de funcionários, principalmente de agentes. Poucos são os que permanecem no emprego. A substituição constante tem suas conseqüências: não há espaço de tempo necessário para se investir na capacitação dos agentes, pois o quadro está sempre se renovando. Por outro lado, surge outro problema: as atividades imediatas dos agentes os levam a crer que os mesmos não têm responsabilidade com a “política de reabilitação”, objeto de preocupação restrita dos técnicos. A dicotomia entre “o papel de reabilitação” e “o papel de manutenção da segurança” se consolida nesta ótica de gestão terceirizada. A avaliação feita pela administração penitenciária é de que os técnicos apresentam-se mais afinados com “o papel de reabilitação”, pois se lhes atribui a responsabilidade ética e de preparo técnico, uma vez que detém uma formação profissional que lhes deve permitir melhor desempenho dessas atividades. Sem dúvida, a ausência de formação profissional na área de segurança pode efetivamente concorrer para que os profissionais dessa área não se comprometam com os objetivos de reabilitação. Ademais, lembra o administrador outras questões relativas à inserção dos funcionários na gestão prisional, como os salários mais baixos do que os do serviço público.

Da ótica da disciplina, o rigor cristaliza a ordem pretendida – ausência de fugas, de rebeliões e de reivindicações dos presos. Algumas regras indicam o rigor: nenhum preso pode fumar, ou ter alimentação de qualquer espécie em sua cela (não existe a tradicional bolsa de guloseimas trazidas pela visita). Todos andam juntos em filas nos deslocamentos para o refeitório, para o trabalho, dentro dos limites geográficos traçados no chão. Todos os banhos são num único horário e o tempo de banho é programado pelo equipamento hidráulico. O acesso aos técnicos ou à Direção se faz mediante solicitação e programação da escolta interna, não havendo acesso espontâneo. Os presos que não se adaptam a este paradigma disciplinar, retornam às unidades prisionais do “sistema de gestão tradicional”. Concluindo, podemos questionar os custos financeiros da manutenção de um preso. Na gestão terceirizada, o preso custa de R$ 1.500,00 a R$ 2.000,00 reais, por mês. Ou seja, 100 a 150% a mais do que é gasto na gestão tradicional. No entanto, os custos mais altos são justificados pelos defensores da privatização pela excelência da qualidade dos serviços, o que é considerado benéfico para toda a sociedade.

Vale ressaltar, por último, que, tanto as empresas que administram as prisões referidas, como os responsáveis pela administração penitenciária nos estados em questão, classificam como “terceirização” a forma de administração das unidades prisionais hoje nas mãos da iniciativa privada. No entanto, é importante insistir que, embora algumas funções estejam, ainda, sob a responsabilidade da administração pública, o que se verifica é uma verdadeira privatização da custódia. Tudo isto é bem diferente, por exemplo, do que a terceirização na área da confecção e distribuição de alimentação nos sistemas penitenciários. O atual governo do Paraná já se manifestou contrariamente à renovação dos contratos com a firma que administra seis unidades prisionais naquele estado. Por seu turno, autoridades do Ministério da Justiça também já condenaram a chamada “terceirização” de unidades prisionais. Tanto uns, quanto outros, perceberam as limitações e custos exageradosde tal estratégia. E, principalmente, defende-se, hoje, uma questão que é política e ética: a custódia de presos é dever e responsabilidade do Estado.

É bom que se diga que, nos Estados Unidos, já existem estudos que indicam a falta

de evidências de que as prisões privadas possam acabar custando menos do que aquelas geridas pelo poder público. Na verdade, quem lucra com as prisões privadas são as companhias que proliferaram na área, cortando custos, pagando salários menores, com alta rotatividade de funcionários, tudo isto comprometendo o trabalho desenvolvido.

10. Conclusões

A avaliação que já se tinha sobre o sistema penitenciário brasileiro ganha em dramaticidade ao término deste trabalho. As prisões no Brasil são, de fato, depósitos de presos. Constatou-se o crescimento vertiginoso da população carcerária com a proliferação de novasmunidades prisionais e uma absoluta falta de planejamento e de regras básicas de gestão. A quantidade de presos abrigados em delegacias policiais pelo país afora demonstra que, a despeito do altíssimo investimento na geração de novas vagas, o quadro só se agrava. E, o que é pior, 36% dos presos em delegacias já estão condenados. O sistema penitenciário reproduz um funil: a cada mês, entra quase o dobro do número de presos que sai. Não há esforço que dê conta de tal absurdo. Só em São Paulo, como já dissemos, ingressam no sistema penitenciário mais de 1.000 novos presos por mês. Ou seja, seria necessário construir, pelo menos, duas novas unidades prisionais mensalmente, naquele estado. O endurecimento da legislação vem contribuindo para que mais infratores sejam privados da liberdade, fiquem presos por mais tempo, e o resultado só pode ser o crescimento da superpopulação.

O Ministério da Justiça tem uma tarefa gigantesca à sua frente que não se resume ao auxílio que os estados necessitam para construir novas unidades prisionais e tentar, a curtíssimo prazo, diminuir o déficit de vagas. Os estados precisam de orientação para gerir seus sistemas penitenciários. Como vimos, 25% dos estados não têm Regulamentos Penitenciários, 80% não têm Escolas de Formação Penitenciária, 70% não têm Planos de Cargos e Salários e 50% não contam com Corregedorias. Em muitos estados, atividades rotineiras das unidades prisionais não se encontram disciplinadas, como por exemplo, a revista dos visitantes, dando margem a toda sorte de arbitrariedades Isto para não falar do número insignificante de presos envolvidos em atividades educacionais ou laborativas, como ficou amplamente demonstrado. E, para completar tal quadro, de mais absoluta falta de controle do sistema penitenciário, 72% dos estados utilizam o critério de pertencimento a facções para classificar os presos e alocá-los nas diferentes unidades prisionais, o que não impediu que, em 2003, 303 presos tenham sido assassinados por companheiros dentro dos cárceres do país. Quem se responsabiliza por isso? Procuramos, ao longo deste trabalho, discutir alguns temas que precisam fazer parte das reflexões dos gestores prisionais e elaboramos uma série de propostas visando neutralizar problemas relativos a tais temas, superar deficiências e suprir lacunas. Algumas propostas dependem, unicamente, da vontade dos administradores dos sistemas penitenciários e dos diretores de unidades prisionais. Viabilizam-se através de memorandos internos, portarias, ou ofícios circulares. Algumas demandam mudanças legislativas, basicamente alterações na Lei de Execução Penal. Muitas vão depender do empenho do Ministério da Justiça em tomar para si a responsabilidade pela superação da crise do sistema penitenciário brasileiro na área da gestão e, para dar encaminhamento adequado a algumas questões, o Ministério da Justiça vai precisar se articular com outros Ministérios, como o da Educação e o do Trabalho.

Vale ressaltar que grande parte das sugestões podem ser implementadas de imediato, principalmente aquelas que dependem, unicamente, das administrações de sistemas penitenciários e unidades prisionais. Entre as sugestões para o Ministério da Justiça, imaginamos que se possam concretizar ao longo do ano em curso, na medida em que o Departamento Penitenciário Nacional acaba de passar por uma completa reestruturação. Cabe lembrar, no entanto, que não bastam mudanças da organização administrativa do DEPEN se verbas adequadas não forem disponibilizadas. Sabe-se que continuam a acontecer cortes significativos nos orçamentos, com contingenciamento das verbas do Fundo Penitenciário Nacional, o que é inadmissível. As propostas de mudanças que requerem alterações na Lei de Execução Penal podem ser encaminhadas ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária para exame e elaboração de novos textos da LEP. A título de reflexão final deste trabalho, gostaríamos de discutir a necessidade emergencial de ampliação da legislação que trata das alternativas à pena de prisão no país., O Brasil não pode se dar ao luxo de continuar encarcerando infratores no ritmo constatado neste trabalho. As prisões devem ser reservadas aos criminosos violentos e perigosos que se constituem em ameaça concreta ao convívio social. Tudo mais é desperdício de verbas públicas. Desperdício dos recursos que resultam dos impostos dos contribuintes. É preciso que se deixe a hipocrisia de lado e se admita, de uma vez por todas, que a pena privativa de liberdade tem por objetivo a punição do infrator e o isolamento do mesmo da sociedade. Ninguém é “ressocializado” através da privação da liberdade. A humanidade ainda não produziu um sistema penitenciário que transforme criminosos em cidadãos cumpridores da lei. Ao contrário, como dizia um antigo Ministro do Interior na Inglaterra, Douglas Hurd, “a prisão é uma maneira cara de tornar as pessoas piores”. Mesmo em países que investem somas fabulosas em suas prisões, provendo os sistemas penitenciários de programas de “reabilitação” muito sofisticados e inundando as unidades prisionais de técnicos nas mais variadas áreas, não se produzem níveis de reincidência baixos. A prisão gera violência, a prisão é um meio de controle social falido – todos sabemos disso. No entanto, embora o discurso das autoridades seja sempre neste sentido e, contínuamente, ouçamos Ministros da Justiça neste país insistirem na necessidade da ampliação do uso das alternativas à pena de prisão, tudo parece continuar limitado à retórica que impressiona bem, mas é vazia de projetos efetivos. Teme-se a reação popular, os políticos não querem arriscar seus mandatos e os governos, timidamente, continuam repetindo os mesmos erros. Urge que o governo federal inicie ampla campanha de esclarecimento da população sobre o custo benefício da pena de prisão. Em primeiro lugar, é preciso que a sociedade compreenda que as taxas de encarceramento não guardam nenhuma relação com as taxas de criminalidade. É preciso, sobretudo, mostrar o que custa a pena de prisão e sua absoluta ineficácia. Vimos insistindo, nos últimos anos, em alguns números que demonstram à saciedade que o Brasil, com sua gigantesca dívida social, precisando investir maciçamente em educação, saúde, geração de empregos, moradia popular, saneamento, profissionalização da força de trabalho, não pode se permitir encarcerar indiscriminadamente. Comparar os custos de presos e prisões com aqueles de manutenção de alunos em escolas, (um preso custa no país, em média, o equivalente ao custo de 16 alunos em programas de alfabetização), de construção de casas populares(em Brasília uma casa popular construída em regime de mutirão custa a quarta parte do que custa uma cela em unidade de segurança média!) é vital.

Enquanto a sociedade não entender que investindo em prisões está investindo em sua própria insegurança, não avançaremos. Estudos do Banco Mundial já demonstraram que a criminalidade violenta na América Latina só poderá ser prevenida de forma eficaz por meio, principalmente, de investimentos muito significativos na área social. Dizem tais estudos que é preciso reduzir o número de pobres nas grandes cidades, estimular a geração de empregos e propiciar crédito fácil para o desenvolvimento de pequenos negócios, além de estimular programas educacionais e de lazer que mantenham os jovens longe do crime e da violência. Enfim, como já dissemos em outro lugar, “só um maciço esforço de resgatar a dívida social o mais rapidamente possível, junto com uma profunda revisão de nosso falido modelo de segurança e justiça, é que nos permitirá vislumbrar no horizonte um país menos injusto e violento. O resto são mitos, ou demagogia de quem busca na manipulação do medo uma fonte de lucro e poder”.

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AP

 
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