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AP

 

SUSP Sistema Único de Segurança Pública Estados

Arquitetura institucional do SUSP

CAPÍTULO 1
Controle de Armas de Fogo
I - INTRODUÇÃO
1. Breve Histórico
2. Este Relatório
II – RELATÓRIO
1. Diagnóstico: Armas Brasileiras, Mortes Brasileiras
2. ARQUITETURA INSTITUCIONAL: CONSTRUINDO COM TIJOLOS VELHOS E NOVOS
2.1 Competência das Instituições de Controle de AFME
2.2 Troca de Informações
2.3. Controle Internacional
3. LEGISLAÇÃO
3.1. Panorama Jurídico Sobre a Matéria: a Lei Anterior
3.2. Estatuto do Desarmamento
3.2.1. Principais Modificações Trazidas pelo Estatuto do Desarmamento
3.2.2. Regulamentação do Estatuto do Desarmamento
3.2.3 Pontos Polêmicos a respeito do Estatuto do Desarmamento
3.3. Convergência de Leis e Cooperação Regional
3.4. Protagonismo do Brasil em Nível Internacional
3.5. Implementação de Acordos Internacionais
3.6. Regulamentação do “Brokering”
3.7. Proposta de Regulamentação de Importação, Exportação, Comércio e Gestão de Estoques
4. OUTROS ATORES DA POLÍTICA DE CONTROLE DE ARMAS
4.1. Sociedade Civil Organizada
4.2. Conscientização
4.3. Pesquisas
4.4. Campanhas
4.5. Projetos de Parceria para Mobilização da Sociedade Civil Organizada
4.6. Congresso Nacional
4.7. Comissão Parlamentar Mista Especial
4.8. Ministério Público
4.9. Força Tarefa
4.10. Corregedorias de Polícias
4.11. Ouvidorias de Polícias
5. RECOMENDAÇÕES GERAIS
5.1. Produção de Armas de Fogo
5.2. Estoque e Destruição de AFME
5.3. Treinamento
5.4. Práticas de Avaliação

CAPÍTULO 1

Controle de Armas de Fogo

I - INTRODUÇÃO

1. Breve Histórico

O Grupo de Trabalho de Controle de Armas de Fogo (GTCAF) teve uma dinâmica diferente das demais equipes, uma vez que foi imediatamente solicitado a participar no processo de discussão e votação da nova lei de controle de armas – o Estatuto do Desarmamento, no Congresso Nacional. Essa participação imediata só foi possível porque ambas instituições, cujos especialistas são membros das organizações não-governamentais – Viva Rio e Sou da Paz –, desenvolvem há anos trabalhos voltados para esse objetivo. Esta situação peculiar nos deu a grata satisfação de vermos várias de nossas propostas se corporificarem em artigos e dispositivos do Estatuto do Desarmamento, cumprindo quase de imediato o que é o objetivo em médio prazo do Projeto Arquitetura Institucional do SUSP, isto é, propostas de implementação do Programa de Segurança Pública do Governo Federal. É verdade que, ao lado da mencionada satisfação, enfrentamos também algumas decepções, ao sermos derrotados em várias propostas de mudança da lei pela influência do lobby da indústria de armas e munições. Mas essa é a realidade política, e desde o início trabalhamos, por recomendação da Coordenação do Projeto, com propostas “ideais” e propostas “possíveis”.

A explicitação da conjuntura em que operamos, e o resultado da ação de assessoria que desenvolvemos no Congresso Nacional paralela ao metier de pesquisa, podem ser visualizados através dos vários documentos anexados a este relatório, como o Estatuto do Desarmamento; os vários documentos apresentados pelas ONGs à Câmara Federal e ao Senado durante os seis meses do processo de debate e votação do Estatuto; nossa resposta à Ação de Inconstitucionalidade apresentada pelo PTB ao STF contra o Estatuto (a ser votada); e nossa proposta de regulamentação do Estatuto à Comissão de Regulamentação, criada pelo Ministério da Justiça (em processo).

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2. Este Relatório

O presente relatório tem como finalidade informar sobre o progresso do Grupo de Trabalho de Controle de Armas de Fogo (GTCAF), dentro do marco do projeto “Arquitetura Institucional do Sistema Único de Segurança Pública” (SUSP), solicitado pelo Ministério da Justiça por intermédio da sua Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP). O objetivo final do GTCAF é fortalecer o controle de armas de fogo, munições e explosivos (AFME) em função dos objetivos do Plano Nacional de Segurança Pública (PNSP) do Governo Federal; sua meta específica é contribuir para a diminuição da criminalidade violenta e redução da magnitude do crime organizado no país, levando-seem conta o contexto de conflito e a necessária cooperação com os países vizinhos no controle internacional das armas de fogo.

As sugestões deste relatório foram feitas tendo em vista especialmente o ponto 3.1 do PNSP, que estabelece a necessidade de coordenar esforços estaduais e nacionais na esfera da segurança pública através do SUSP; e o capítulo 15 do SUSP, em que são estabelecidas as linhas gerais para uma política de controle de armas de fogo no Brasil. Considerou-se particularmente o que foi estabelecido no ponto 3.1.4 do SUSP, que estabelece a necessidade de integrar e coordenar em nível federal a informação e a inteligência policiais. Levou-se em conta, ademais, as mudanças trazidas pela recentemente votada Lei nº10.826 (‘Estatuto do Desarmamento’), já em vigência, bem como a presente etapa de sua regulamentação e implementação.

Cabe esclarecer que os membros do GTCAF participaram de uma maneira ou de outra no processo de elaboração do Estatuto e acompanharam o processo de votação. De  alguma maneira, então, parte das medidas legais e de controle sugeridas aqui já está expressa na nova lei, e se buscará que o mesmo suceda com a sua regulamentação. Este relatório apresenta recomendações para uma política nacional de controle efetivo de AFME. Especificamente, são apresentadas aqui sugestões de políticas para:

  • Controle da oferta doméstica de AFME nos mercados lícito e ilícito;
  • O controle dos estoques (civis, do patrimônio militar e policial e das armas apreendidas) de AFME;
  • Redução da demanda (posse, porte e uso) de AFME.

O trabalho será dividido em cinco capítulos (vide Índice). Ao final de cada um dos capítulos, será feito um breve comentário sobre o padrão mínimo e o padrão ideal viável para cada produto proposto.

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II – RELATÓRIO

1. Diagnóstico: Armas Brasileiras, Mortes Brasileiras.

O Brasil é o segundo maior produtor de armas de fogo de pequeno porte das Américas (o primeiro são os Estados Unidos)1 . Em 2001, o Brasil produziu quase 250 milhões de reais só em armas de pequeno porte2 . O país tem legislação e instituições dedicadas ao controle de armas. Mesmo assim, uma quantidade enorme de armas produzidas e vendidas legalmente acaba entrando no circuito ilegal. Tomemos por exemplo os Estados de Rio de Janeiro e São Paulo, que em conjunto concentraram no ano 2000 o índice de 50.51% dos homicídios, e 51,10% dos homicídios com arma de fogo cometidos no Brasil.3 . Só no período de 1999 a 2003, as polícias (civil e militar) do Estado do Rio de Janeiro apreenderam quase 43.000 armas de produção nacional (ver tabela a seguir).

Armas brasileiras apreendidas no Estado RJ, 1999-2003

  Quantidade Porcentagem

TAURUS

24142 56,2 %

ROSSI

13109 30,5 %

INA

1473 3,4%

IMBEL

1075 2,5%

CBC

856 2,0%

CASTELO

689 1,6%

BOITO

630 1,5%
LERAP 323 0,8%
URKO 169 0,4%
CARAMURU 118 0,3%
ITAJUBA 99 0,2%
URU 36 0,1%
BERETTA (licença) 8 0,0%
CHAPINA 5 0,0%
NÃO CONSTA 201 0,5%
OUTRA 32 0,1%
Total 42965 100%

Fonte: Governo do Estado do Rio de Janeiro, Secretaria de Segurança Pública, dados sobre armas de fogo e granadas brasileiras apreendidas no Estado do Rio de Janeiro no período 1999-2003, em parceria técnica com Viva Rio e ISER, Julho 2003, disponível em www.desarme.org

No mesmo período, entre 1995 e 2003, no Estado de São Paulo, a polícia apreendeu quase 300.000 armas de fogo e a análise por amostragem aponta para dados muito semelhantes. Cerca de 80% das armas apreendidas com criminosos têm sua origem no mercado brasileiro legal, sendo que apenas a Taurus responde pela produção de 59%.

Ao mesmo tempo, o Brasil é o país industrializado do mundo onde mais se mata com armas de fogo4 . A simples presença e disponibilidade de armas de fogo não são por si responsáveis por esses números altíssimos. As causas da violência são múltiplas, complexas, e muitas vezes históricas, entre elas a pobreza, exclusão social, falhas institucionais, distribuição de renda perversa, políticas sociais ineficientes e ineficazes, urbanização acelerada, aparelhos policiais, judiciários e prisionais obsoletos e contaminados pelo crime, súbito crescimento das facções do narcotráfico e a tradição de confronto violento entre policiais e “marginais”.

No entanto, é alarmante o papel central que as armas de fogo têm na questão da violência no Brasil: 64,3% dos homicídios no país no ano 2000 foram cometidos com armas de fogo5 , enquanto no município do Rio de Janeiro, cerca de 65% das mortes de jovens masculinos (15 a 29 anos) foram por armas de fogo, mais que todas as outras causas juntas, inclusive causas naturais6 . Na cidade de São Paulo, 91% dos homicídios foram cometidos com armas de fogo em 2003. A nossa violência com armas de fogo é uma epidemia que afeta principalmente os homens jovens, com escolarização incompleta (abandonaram os estudos no ensino elementar), em áreas urbanas do país.

Taxa de mortalidade por PAF (projétil de arma de fogo), por faixa etária e sexo, ano 2000, Brasil:

Fonte: DATASUS. Análise: ISER

Média de anos de estudo e taxas de mortes por PAF em cidades de 100.000 até 499.999 habitantes, ano 2000, Brasil:

Fontes: IBGE, DATASUS. Análise: ISER

Em São Paulo, especificamente, os números também revelam que portar arma de fogo é comportamento nitidamente masculino (96,6 % dos indiciados). O porte ilegal de arma também apresenta forte queda linear de acordo com o aumento da idade do portador (ver tabela abaixo). Quanto ao grau de instrução, 78% dos indiciados por porte ilegal de arma tinham até o primeiro grau (ensino fundamental).

As armas de fogo acabam funcionando como um amplificador da violência, o meio pelo qual as tensões sociais se manifestam através de enorme número de mortos e feridos. Mesmo não sendo a causa primária da violência, o acesso fácil a armas de fogo, principalmente através de um maciço mercado ilícito, parece ser uma condição necessária para a explosão da violência, gerando a insegurança que afeta o Brasil. Isto fica muito claro nos gráficos e mapas a seguir.

Tendência das taxas de mortes por PAF (projétil de arma de fogo), Município e Estado do Rio de Janeiro e Brasil, 1979-2001:

Evolução do acautelamento (apreensão e guarda) de armas apreendidas no Estado do Rio de Janeiro 1950-2001:

Fonte: Divisão de Fiscalização de Armas e Explosivos (DFAE), Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, Secretaria de Segurança Pública, Análise: Viva Rio/ ISER.

 

Evolução da apreensão de armas no Estado de São Paulo, entre 1995 e 2003:

Armas de fogo apreendidas - Estado de São Paulo - 3 trim. 1995 ao 2 trim. 2003

Fonte: Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo

Armas por 100.000 habitantes em unidades da federação, ano 1998, Brasil:

Fonte: KHAN, Tulio ‘Armas de fogo: argumentos para o debate’, Revista ILANUD, nº16 2001. Mapa: ISER

Percentagem de homicídios por arma de fogo por unidade da federação, ano 2000, Brasil:

Fonte: DATA-SUS. Análise: ISER

Qual é a base dessa oferta? Por muitos anos, presumiu-se que esse mercado ilícito era abastecido principalmente por armas longas e estrangeiras contrabandeadas através de fronteiras semi-abertas. Isso é verdade para armas longas automáticas, de uso militar, e granadas de mão, cada vez mais demandadas pelas facções do narcotráfico que operam nas grandes cidades.

Fuzis de assalto, metralhadoras e submetralhadoras apreendidos no Estado do Rio de Janeiro, por país de fabricação:

Fonte: DFAE-PCRJ-SSP-RJ. Análise: Viva Rio/ ISER

Fonte: DFAE-PCRJ-SSP-RJ. Análise: Viva Rio/ ISER

Distribuição das granadas apreendidas, por país de origem:

Fonte: SSI-SSP-RJ/ Análise: Viva Rio/ ISER

No entanto, pesquisas recentes realizadas pelo Viva Rio/ISER no Estado do Rio de Janeiro mostram que, na verdade, a maioria das armas apreendidas em situação ilegal é composta por pistolas e revólveres produzidos por empresas brasileiras 7 .

Armas apreendidas por tipo na última década no Estado do Rio de Janeiro:

Fonte: DFAE-PCRJ-SSPRJ. Análise: Viva Rio/ ISER

Tipo de arma: evolução das apreensões no Estado do Rio de Janeiro por tipo de cano e por década (Nos anos 80, dez armas curtas para cada arma longa; nos anos 90, cinco armas curtas para cada longa):

Fonte: DFAE-PCRJ-SSPRJ. Análise: Viva Rio/ ISER

Mais relevante ainda: 33.1% das pistolas e revólveres Taurus apreendidos no Estado do Rio de Janeiro entre 1950 e 2003 tiveram registro legal prévio, ou seja, migraram de proprietários legais para uma situação ilegal.8

Quando analisado o caso de São Paulo, verificamos relação semelhante. Das ocorrências de crimes com porte ilegal de arma em 2003 nos distritos de grande concentração de ocorrências criminais, 66% das armas utilizadas eram revólveres, 20% pistolas e 10% armas de brinquedo. Percebe-se, portanto, que ínfimos 4% eram de armas que não tinham sua origem no mercado legal e nacional.

Essas revelações têm implicações importantes para a política nacional de segurança pública, particularmente quando se consideram os seguintes fatos:

1) O Brasil é o maior produtor de armas da América do Sul, e o segundo maior produtor de armas de pequeno porte no Hemisfério Ocidental, perdendo somente

para os EUA. A indústria brasileira de armas produz um leque amplo de produtos, desde armas de caça até armas de guerra e artilharia, e tem conseguido espaço significativo no mercado internacional. Até em países com produtores nacionais, empresas brasileiras têm conquistado fatias expressivas do mercado. O exemplo mais importante é o do mercado norte-americano, no qual Brasil é a terceira fonte de importação de armas curtas (depois de Áustria e Alemanha)9 .

2) Já existe uma legislação que visa a controlar a produção, venda, transporte, importação e exportação de armas, embora seja deficiente e esteja em processo de reforma. Há várias instituições voltadas para esse controle, principalmente a CONARM e o SINARM - Sistema Nacional de Controle de Armas, do Ministério de Justiça; e o Departamento de Fiscalização de Produtos Controlados do Exército – DFPC, do Ministério da Defesa.

A migração de armas registradas (por usuários privados individuais e coletivos) para os circuitos ilegais não é a única forma de desvio. Existem outras maneiras de desvio de armas e munições brasileiras nas fronteiras internas e através das fronteiras externas.

Estudos recentes baseados em pesquisa de campo e na comparação de estatísticas de importação e exportação de armas do Brasil para o Paraguai demonstram um importante padrão de triangulação de armas brasileiras de lojas de vendas de armas de fogo localizadas em território paraguaio: até 2002, a venda de armas para turistas estrangeiros era legal e permitida mediante a simples apresentação de uma fotocópia da cédula de identidade.

Devemos considerar ainda que até 2002 o calibre 9mm (de uso restrito no Brasil) era permitido para uso civil no Paraguai10 . Entre 1997 e 2000, aproximadamente 7000 armas de fogo (principalmente pistolas e revólveres) e dezenas de milhares de munições brasileiras foram exportadas para o Paraguai, um país com somente 6 milhões de habitantes e com uma das rendas per capita mais baixas da América Latina. Uma combinação de “pressão” diplomática, medidas governamentais e mobilização da sociedade civil brasileira, somada à boa vontade de alguns legisladores e funcionários paraguaios, levou a uma moratória informal na importação de armas e munições do Brasil em 2000 (com vigência de três anos) e à mudança da legislação paraguaia de controle de armas. O mercado cinzento da triangulação de armas brasileiras para o Paraguai parece estar diminuindo significativamente desde então e, de fato, em 2002 e 2003, não foram registradas importações do Brasil e, em 2001, importou-se apenas 17 pistolas.11 Porém, a Bolívia ainda não tem uma legislação adequada de controle de armas e o Uruguai ainda não controla a venda de armas de fogo em zonas fronteiriças com o devido rigor.

Existe também a questão do desvio e/ou roubo de armas dos excedentes e inventários das forças militares e policiais. Por exemplo, entre 1999 e 2003, a polícia apreendeu no Rio de Janeiro um total de 16 fuzis de assalto e 90 sub-metralhadoras produzidas no Brasil. E durante janeiro e novembro de 2002, foram apreendidas 291 granadas de mão da indústria brasileira. Como chegou esse material de uso exclusivo das Forças Armadas às mãos do crime organizado? Foi um desvio direto? Foram armas previamente exportadas para países limítrofes?

Considerando que uma parte da produção nacional de armas está mergulhando na ilegalidade, é fácil concluir que o que falta é controle. E, se considerarmos que já há legislação e instituições de controle, concluiremos então que uma resposta mais eficiente se faz necessária. As armas legalmente produzidas entram no mercado ilícito através de brechas no sistema de controle de armas já existente.

A nova legislação estabelece que a Polícia Federal, através do Sistema Nacional de Armas (SINARM), cadastrará (além das licenças de posse e porte das armas registradas e aprendidas) as armas produzidas, importadas e vendidas no país, assim como os vendedores, importadores e exportadores – informação que antes era reservada apenas ao Departamento de Fiscalização de Produtos Controlados do Exército. Isto permitirá, ao menos no papel, fechar o ciclo da informação policial sobre o caminho que seguem as armas brasileiras desde a saída da fábrica. Também o fato de que agora o controle do porte e a posse de armas é uma prerrogativa federal, e não de cada estado, possibilitará a centralização e a melhor administração dos dados.

Quem e como são controladas as exportações? De acordo com a nova lei, o SINARM continua sem registrá-las, e vemos que a triangulação para terceiros países continuará a ser um problema. Devemos considerar também que ainda está pendente a questão de atiradores, colecionadores (que podem ter em casa grandes quantidades de armas automáticas) e caçadores, que continuam sendo casos à parte monitorados somente pelo Exército (que não tem poderes de investigação e nem de repressão de ilícitos com armas de fogo). De outro lado, existem os vícios da falta de cooperação e intercâmbio de informação entre organismos de controle. Se a cooperação não é facilitada e estimulada mediante  meios técnicos (redes de computação) adequados, e claros protocolos de intercâmbio, como se assegurar, por exemplo, que os produtores passem a mesma informação, e em forma simultânea (e se possível em tempo real), ao Exército e também à PolÍcia Federal?

Como garantir que a Polícia Federal, que deve controlar o fluxo ilegal de armas na fronteira, tenha informações sobre armas importadas e exportadas pelo Brasil para países limítrofes? Esta última reflexão nos leva à questão da cooperação internacional e, sobretudo, à cooperação com nossos vizinhos. Temos mencionado a questão do Paraguai, que continua sendo um ponto de triangulação ilegal de armas automáticas por conta da corrupção oficial, da falta de capacidade e controle aliada à presença de grupos criminais transnacionais (brasileiros, chineses, árabes) em seu território. Isto sem contar que, tanto o Paraguai como a Bolívia (que não tem lei de controle de armas, somente uma fraca portaria ministerial), contam com portos e depósitos franqueados no Brasil (Santos para o Paraguai e Bolívia e Paranaguá para Bolívia), isentos de fiscalização brasileira.

Quanto à Colômbia, temos o problema do tráfico de munição e armas brasileiras para as FARC (muitas das quais passam antes pelo Paraguai, cujo retorno em pagamentos dá-se em forma de cocaína). Ainda na região norte, outra via do tráfico ilícito transnacional é através do “Paraguai do Caribe”, o Suriname, onde, pelos mesmos motivos do Paraguai, existe um intenso tráfico de armamento automático para o crime organizado no Brasil.

Não menos importante, um tema que aflige toda a América Latina: o desvio e tráfico de material e armas das forças armadas e polícias. 11% do total dos fuzis de assalto e submetralhadoras apreendidos pela polícia fluminense nos últimos dez anos são de fabricação argentina, e 23,4% das granadas de mão apreendidas pela polícia fluminense também foram fabricadas no país vizinho. Existem evidências de que essas armas saíram dos inventários do exército argentino e de forças policiais e penitenciárias desse país12 .

Outra fronteira que exige maior controle é a com o Uruguai. A não mais que um quilômetro dela, do lado uruguaio, o comércio oferece, em meio a outros produtos, armas de fogo e munições de uso proibido pela legislação dos dois países, à venda sem controle e sem que se exija nenhuma documentação do comprador. Nos pontos em que cidades se dividem em territórios pertencentes a um ou outro país, os transeuntes passam sem controle com esses produtos, introduzindo no Brasil armamento proibido.

Definitivamente, o Brasil não pode se dar ao luxo de não ter sólidas, consolidadas e operativas interfaces de cooperação entre agências dentro e fora de suas fronteiras. A situação hoje é bastante desalentadora:

· Existe um enorme descompasso entre a política externa e interna: enquanto a Presidência e o Ministério da Justiça assumem uma posição firme pelo controle doméstico e internacional do comércio de armas, outros ministérios colocam-se timidamente nos circuitos internacionais. Sistematicamente, o Brasil não tem enviado representantes, ou tem enviado representantes de terceira linha das embaixadas para as reuniões do Grupo de Controle de Armas do Mercosul, onde se planejam políticas, conjuntas e regionais, de controle do comércio lícito e ilícito de armas e munições. A lógica de determinados ministérios ainda é de exclusiva defesa dos interesses comerciais de empresas brasileiras, não importando se tais negócios se sobrepõem à segurança dos brasileiros, relegada a uma quase fatalidade. A maioria dos acordos bilaterais assinados pelo Brasil na área de controle de armas e munições fica no papel, engavetada, ou não é ratificada, e portanto não pode ser implementada.

· É precário o controle do tráfico de armas na fronteira sul do Brasil (Bolívia, Paraguai, Argentina e Uruguai). A Interpol (o link com as polícias dos outros países do mundo) é burocrática, lenta e não é politicamente independente. As oficinas locais são representadas por polícias nacionais que acatam antes de tudo as ordens dos seus governos (Se um assunto é espinhoso, não se coopera).

Em 2003, o DPF (Departamento de Polícia Federal) criou uma divisão especial dedicada à repressão ao tráfico ilícito de armas, que recentemente instalou-se nos seus escritórios, mas que ainda não construiu interfaces nacionais e internacionais de cooperação.

Certamente, não é fisicamente possível controlar inteiramente 16.000 km de fronteira seca, mas o intercâmbio de informação em operações conjuntas, e a coordenação de operações de perseguição nas fronteiras quentes, contribuiriam para coibir o tráfico ilícito de armas.

Por último, resta a questão do precário controle dos estoques de AFME no Brasil. Sabemos quantas AFME existem e onde estão? Estão em condições seguras? Não:

· Os estoques militares não são submetidos à supervisão externa do Congresso Nacional, como sucede nos países de democracia avançada;

· Os estoques policiais, via de regra em condições precárias, tampouco são submetidos à supervisão externa;

· Os excedentes de armas das polícias e das Forças Armadas não são sistemática e regularmente destruídos;

· As informações sobre estoques tanto dos civis como da Força Pública não estão inteiramente informatizadas e nem são compartilhadas adequadamente com os órgãos de controle;

· Os estoques de armas e munições das empresas de segurança privada são precariamente fiscalizados, e desvios são constantes. Só no Rio de Janeiro, inquérito da Assembléia Legislativa apontou o desvio de mais de 13.000 armas dessas empresas.

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2. ARQUITETURA INSTITUCIONAL:

CONSTRUINDO COM TIJOLOS VELHOS E NOVOS.

2.1 Competência das Instituições de Controle de AFME

Cabe esclarecer que tanto a Lei n.9437/97 (anterior) como o Estatuto tratam somente de armas de fogo e munições, não tratam de explosivos. Portanto, o controle de todas as operações feitas com pólvoras e explosivos recai sobre o decreto n.3665/00, da Divisão de Fiscalização de Produtos Controlados do Exército, que apenas pode penalizar mediante multas e sanções administrativas. Faz-se necessária a elaboração de legislação específica de fiscalização de pólvoras e explosivos, que contemple sanções penais e complemente o Estatuto do Desarmamento. Está-se fazendo um esforço para que, pelo menos na regulamentação do Estatuto, se introduza controle mais efetivo sobre esses produtos.

Quanto às propostas de competências dos órgãos de controle de AFME, com a legislação anterior ao Estatuto do Desarmamento (as derrogadas Lei n.º 9437/97 e seu decreto regulamentador n.º2222/97, bem como o ainda vigente Decreto n.º3665/00), o Brasil não tinha um verdadeiro sistema de controle de armas de fogo. De fato, o “sistema” que se pretendeu criar com aquela legislação, ainda em vigor, é mais uma superposição de instituições, cargos, regulamentos e resoluções do que um sistema integrado e coerente com o combate ao tráfico ilícito de armas. O controle da oferta de AFME e da fiscalização das armas de uso privado, de militares, policiais e colecionadores, estava totalmente a cargo da DFPC (Exército), e o controle da demanda de armas (registro, porte, segurança privada) estava a cargo do SINARM (Polícia Federal), que atuava como registro dependente dos dados das polícias estaduais e das secretarias de segurança pública dos estados. Todos esses órgãos competiam entre si. Principalmente a DFPC e o SINARM, posto que não havia, nem na prática e nem no papel, protocolos e mecanismos obrigatórios monitorados para o intercâmbio de informação.

Por um lado, o Exército (que não tem poder de polícia, tampouco tem a autoridade, os meios e as funções típicas da segurança pública) fiscalizava a aplicação da legislação concernente à produção: a venda dos fabricantes aos comerciantes e exportadores; a importação; a exportação e a venda direta da fábrica para as Forças Armadas e forças policiais; e policiais e militares, enquanto usuários privados e colecionadores de armas. Ao mesmo tempo, apenas o Exército centralizava toda a informação, que não chegava aos órgãos de outros Ministérios sobre quem recaía a responsabilidade pelo rastreamento de armas e repressão ao tráfico ilícito desses produtos, impossibilitando-os de atuar no que se refere à segurança pública.

Por outro lado, a Polícia Federal centralizava através do SINARM a informação sobre o registro de armas por particulares e de armas apreendidas. Porém, dependia das polícias estaduais para obter essa informação, que não têm sido colaborativas. O que existia, como indica a figura a seguir, era uma fragmentação e uma separação dos controles.

O Estatuto do Desarmamento sana apenas parcial e formalmente a fragmentação acima descrita. Parcialmente, pois existirá agora um duplo controle da DPFC e do SINARM sobre comercialização interna, fabricação e importação, significando um dissuasivo (ante o controle da PF e da possibilidade de sanção penal) para o desvio de armas e munições para os mercados ilegais. As exportações não estão contempladas, pelo que a PF fica desinformada quanto às armas que são exportadas para países que apresentam riscos potenciais de triangulação e reingresso ilegal. Por outro lado, até que seja regulamentado o Estatuto, não existem ferramentas de operacionalização da lei, isto é, não tem como se colocar em prática o fluxo de dados.

Não se acaba com vícios burocráticos de décadas e com interesses cristalizados, em que muitas vezes setores do governo são capturados por interesses privados, apenas com uma lei. É necessária uma nova postura, trazida pela nova orientação do novo governo, somada à fiscalização externa por agências de controle. Com isto, se garantiria a independência e conseqüente efetividade deste controle, especialmente através da cooperação entre as distintas agências envolvidas.

Na continuação, apresentamos um esquema de distribuição de competências que sujeitaria a coordenação do sistema de controle de armas às diretrizes da SENASP. A SENASP não teria mando sobre o DFPC (isso seria inviável), porém, como órgão de planejamento estratégico de segurança pública (e as AFME são um tema prioritariamente de segurança pública) teria a função, por fora da estrutura da PF, de moderar conflitos, fomentar a cooperação e sentar “na mesma mesa” que militares do DFPC, policiais do SINARM e funcionários da Polícia Rodoviária Federal (para coordenar o controle do transporte doméstico de AFME em território brasileiro) e da Receita Federal (para coordenar o controle da entrada e saída de AFME e detectar irregularidades administrativas nos procedimentos de empresas produtoras e vendedoras de AFME). Esse esquema contemplaria também a existência de um mecanismo de fiscalização externa das atividades de controle de armas da DFPC e do SINARM através de uma comissão mista do Congresso e do Ministério Público, que poderia pedir a todo momento acesso às informações sobre as atividades de controle de AFME:

Contudo, a existência de controles externos, agenda política e, claro, competências bem definidas, não funcionarão se não existir um competente e articulado sistema de intercâmbio de informação. Articulado não apenas através de acordos entre agências (isto é, acordos que determinem qual autoridade recebe que tipo de informação, e quem pode e deve difundi-la), mas também através de meios técnicos. Sobre isto, trataremos na próxima seção.

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2.2 Troca de Informações

O resultado de todos os problemas enumerados acima é a ausência de um cruzamento de dados sobre o percurso comercial que as AFME seguem desde que saem da fábrica, e sobre as armas produzidas e exportadas com os dados de registro e de apreensão de armas.

Sem esse cruzamento de informações, não apenas o rastreamento dos desvios e das rotas de tráfico ilícito, mas também a detecção de irregularidades na venda de armas (que permita a configuração de “mercados cinzento”), tornam-se praticamente impossíveis. Portanto, as polícias, e em particular a Polícia Federal, estão bloqueadas em seu propósito de reprimir o comércio ilícito de armas pequenas e para determinar, por exemplo, o volume, tipo e número de série e/ou lote das AFME exportadas para países que apresentam um risco potencial de triangulação como, por exemplo, Paraguai, Colômbia e Suriname.

Quando se trata de obter informações rápidas e confiáveis para resolver e/ou prevenir crimes, a vontade política e um bom quadro institucional não bastam. É preciso também dispor de meios técnicos. Neste sentido, sugerimos o desenvolvimento e a implementação e desenvolvimento de um Sistema de Controle de AFME (SCAFME) para o intercâmbio de informações, cuja base de dados principal estaria no já existente SINARM. [Projeto  nesse sentido está sendo desenvolvido, sob a coordenação do Viva Rio, dentro do convênio “Parcerias com o Terceiro Setor na Segurança Pública”, firmado entre essa entidade, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e o Ministério da Justiça.]

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2.3. Controle Internacional

Aqui todo argumento técnico é insuficiente. O que mais falta nesse aspecto é a vontade política do governo de promover a sintonia entre o Ministério de Justiça e o Ministério das Relações Exteriores. O controle de AFME foi definido pelo poder executivo como prioridade  política número 1 de segurança pública. Então, todos os órgãos com res-ponsabilidade sobre o problema, em diferentes ministérios, têm que se adequar à política traçada pelo governo devendo incentivar a cooperação com nossos vizinhos no controle internacional de AFME. Enquanto o Ministério da Justiça tem tomado, desde a administração anterior, uma clara postura em prol do controle do comércio (legal e ilegal) de AFME na região, outros ministérios têm adotado uma posição tímida e passiva, muitas vezes interpretada como obstrutiva pelos países vizinhos e, sobretudo, pelos países da área MERCOSUL.

Na terceira Reunião do Grupo de Trabalho de Armas de Fogo do Mercosul (GTAFM)13 , realizada em Junho de 2003, em Assunção, no Paraguai, foi acordada a urgente necessidade de se estabelecer um mecanismo ágil e operativo de troca de informações e consulta sobre armas de fogo, munições e explosivos. O ponto na agenda foi sugerido pela Argentina, justamente devido às reclamações do governo do Estado do Rio sobre as armas de assalto e granadas argentinas encontradas sob o poder de traficantes nesse Estado. O Paraguai apoiou a iniciativa da Argentina em virtude do intenso tráfico no território paraguaio de armas de fogo e munições para as facções criminosas no Brasil. Nessa reunião, todos os países do Mercosul enviaram delegações com representantes de relevância no assunto ou com conhecimento sobre o tema. Porém, o Brasil só enviou o segundo secretário da sua Embaixada em Assunção, fato que foi recebido por representantes dos outros países como um gesto de desinteresse. Nos dias 11 e 12 de Setembro de 2003, os governos argentino e brasileiro fizeram em Buenos Aires uma reunião bilateral sobre circulação e tráfico ilícito de armas de fogo, munições, explosivos e outros materiais relacionados, sobre as legislações dos dois Estados na matéria e sobre a troca de informações sobre contrabando, rotas e organizações criminais. Foi discutido também o estabelecimento de mecanismos de consulta, troca de informação e cooperação judiciária segundo as normas internacionais aplicáveis. Integrantes deste GTCAF assessoraram gratuitamente os funcionários do Ministério da Justiça - SENASP (interessados em cooperar com Argentina).

O resultado dessa reunião foi um “Memorando Bilateral de Entendimento para o Estabelecimento de um Mecanismo Permanente de Troca de Informações Sobre a Circulação e o Tráfico Ilícitos de Armas de Fogo, Munições, Explosivos e Outros Materiais relacionados”. O documento estabelece pontos de contato nos dois países e procedimentos para a troca de informações. Os memorandos de entendimento têm a característica de não precisarem de acordo dos Congressos para entrar em vigência. Porém, a pedido dos representantes do Brasil, o memorando só entrará em vigor após a troca de protocolos, já que a delegação brasileira argumentou que tinha que se informar se um Memorando deve ser aprovado pelo Congresso. Esse fato foi interpretado pelos argentinos como uma forma de adiar a entrada em vigor do documento. Os protocolos (notas reversais) ainda não chegaram.

Mais tarde, na IV Reunião do Grupo de Trabalho Sobre Armas de Fogo e Munições do Mercosul, Bolívia e Chile, realizada no dia 17 de Novembro de 2003, em Montevidéu, tratou-se justamente do estabelecimento de um mecanismo ágil para troca de informações sobre circulação, manufatura e tráfico de armas de fogo, munições e partes. Além de representantes dos governos da Argentina, Bolívia, Chile, Paraguai e Uruguai, compareceram à reunião um representante do Centro Regional das Nações Unidas para a Paz, o  Desarmamento e o Desenvolvimento na América Latina e o Caribe (UN-Lirec) e um representante do Viva Rio, precedente importante para a futura participação da sociedade civil nesses encontros, como é recomendação da ONU.

Como resultado, foram aprovados dois projetos de memorando de entendimento que, se fossem referendados pelos países (isto é, se o Brasil estivesse presente para referendar) e aplicados, seriam extremamente importantes para o combate ao tráfico ilícito de armas na região (ver cópias impressas):

  • MEMORANDUM DE ENTENDIMIENTO PARA A TROCA DE INFORMAÇÕES SOBRE A FABRICAÇÃO E O TRÁFICO ILÍCITOS DE ARMAS DE FOGO, MUNIÇÕES, EXPLOSIVOS E OUTROS MATERIAIS RELACIONADOS ENTRE OS ESTADOS PARTES DO MERCOSUL.
  • MEMORANDUM DE ENTENDIMIENTO PARA A TROCA DE INFORMAÇÕES SOBRE A FABRICAÇÃO E O TRÁFICO ILÍCITOS DE ARMAS DE FOGO, MUNIÇÕES, EXPLOSIVOS E OUTROS MATERIAIS RELACIONADOS ENTRE OS ESTADOS PARTES DO MERCOSUL, BOLÍVIA E CHILE.

Em verdade, esses dois memorandos têm textos quase idênticos, porém o segundo incluiu Bolívia e Chile como estados associados. Esse memorando segue basicamente as mesmas linhas de ação que o documento bilateral Argentina-Brasil e expande a cooperação ao resto dos países do Mercosul da seguinte forma:

  • Estabelece pontos focais de contato, que por sua vez são o ponto de comunicação com as autoridades de aplicação, isto é, as autoridades nacionais de controle, repressão do tráfico e manufatura ilícitos de armas de fogo, bem como as autoridades da Inteligência sobre esses assuntos.
  • Estabelece um formulário padrão a ser utilizado pelos pontos focais para solicitar informações.

O Brasil não enviou representante governamental, fato que foi considerado pelos representantes dos outros governos como um constrangimento que adiará a implementação dos mecanismos acordados durante a reunião. As reuniões do GTAFM são, precisamente, segundo as práticas do MERCOSUL, lideradas pelos Ministérios de Relações Exteriores.

Existem, porém, vários exemplos de criatividade e boa vontade de outras agências de governo que mostram que a cooperação é possível. Por exemplo, membros deste GTCAF conversaram com funcionários da Inteligência e das Forças Armadas colombianas que se mostraram muito agradecidos pela cooperação prestada pelos seus pares brasileiros que compartilharam valiosa informação coletada pelo Sistema de Vigilância da Amazônia (SIVAM) sobre vôos e movimentos ilegais.

A troca de informações é coordenada por uma mesa de inteligência tripartite sediada em Tabatinga, na tríplice fronteira entre Peru (Iquitos), Colômbia (Letícia) e Brasil (Tabatinga). Existe também uma cooperação estreita (porém sem “guarda chuva” político, nem marco legal formal entre as Polícias Federais brasileira e argentina; se dá pela troca de correios eletrônicos criptografados. Esta troca, na realidade, deveria ser feita pelo SISME (Sistema de Informações de Segurança do Mercosul), aprovado pelo Conselho do Mercosul, em 1998, porém nunca implementado.

Quanto à Guiana Francesa, falta uma cooperação estreita com os nossos vizinhos franceses. Por via da Guiana Francesa, o Brasil é vizinho da França. Seguramente, um acordo de troca de informações poderia ser assinado com esse país para a repressão e a prevenção do tráfico de armas na fronteira nordeste do Brasil. Uma recomendação de caráter técnico: o Paraguai e a Bolívia contam com depósitos e portos franqueados em território brasileiro. Por lei internacional, os containeres com destino a um terceiro país não podem ser abertos para inspeção (a menos que haja uma  ordem judicial em particular). Já é notório que a franquia do porto de Paranaguá, cedido pelo Brasil ao Paraguai, é utilizado pelo crime organizado para entrar com containeres cheios de AFME escondidos entre a carga. Esses containeres por vezes podem “se perder” na rota para o Paraguai. Recomenda-se, então, que se autorizem apenas certos portos e aeroportos para a entrada e saída de AFME, e que nos demais portos e aeroportos não autorizados para este tipo de carga, incluindo-se os acessos e saídas a portos e depósitos franqueados a terceiros países, se instalem scanners IOSCAN, que permitem “radiografar”, com alto grau de precisão, os containeres sem necessidade de abri-los. Este controle deveria estar a cargo da PF mediante protocolo de cooperação com a Receita Federal.

Por último, membros deste GTCAF promoverão nesse semestre um seminário dos países do Mercosul, Bolívia e Chile sobre a implementação do plano de ação da ONU sobre o tráfico ilícito de armas de pequeno porte e armas leves. O seminário poderia organizar-se segundo as seguintes linhas (que dariam origem a painéis de trabalho):

  • Convergência de normas e leis do Mercosul;
  • Procedimentos de exportação: exportação e circulação para analisar possíveis problemas e furos de segurança;
  • Processos de implementação nacional do plano de ação da ONU.

É fundamental que o Itamaraty receba orientação clara para colaborar com a implementação do seminário que conta com o apoio dos governos dos outros países do Mercosul.

Como objetivo máximo pode se estabelecer a assinatura (mas também a implementação) de memorandos de entendimento multilaterais similares aos memorandos Mercosul também com os países andinos e com as Guianas.

Como objetivo mínimo, podem-se estabelecer acordos bilaterais com todos os vizinhos do Brasil para dar um “guarda chuvas” formal e legal para cooperação na área de inteligência, e para promover e possibilitar uma eficiente cooperação judiciária entre Brasil e seus vizinhos.

De nada serve conhecer as rotas e os atores do tráfico (e nossas autoridades federais conhecem) se eles não podem ser extraditados e presos.

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3. LEGISLAÇÃO

3.1. Panorama Jurídico Sobre a Matéria: a Lei Anterior

A Lei n.9.437/97, em vigor até quase o fim de 2003, conhecida também como Lei do SINARM, criou pela primeira vez em nosso país um sistema nacional de armas (SINARM), inserido no âmbito da Polícia Federal, que hoje fornece instrumentos e informações para uma política nacional de armas de fogo. Com a lei, ao SINARM ficou a competência de identificar características e a propriedade de armas de fogo, mediante cadastro; cadastrar as armas de fogo produzidas, importadas e vendidas no país; cadastrar as transferências de propriedade, extravio, furto, roubo, e outras ocorrências suscetíveis de alterar os dados cadastrais, identificar as modificações que alterem as características ou o funcionamento de arma de fogo; integrar no cadastro os acervos policiais já existentes; e cadastrar as apreensões de armas de fogo, inclusive as vinculadas a procedimentos policiais e judiciais.

A mesma lei, focada na necessidade de um maior rigor no controle de armas, disciplinou também matéria sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição no país para civis, como sanções penais para condutas ilícitas nesta área, inovando ao instituir o porte ilegal de armas como crime, antes considerado juridicamente mera contravenção penal.

A referida lei foi considerada uma conquista, pois refletiu, à época, uma preocupação social com os efeitos nefastos da criminalidade letal causada pelas armas de fogo, e possibilitou avanços no debate e na própria política de segurança pública. Contudo, como era já esperado e devido a seu escopo e alcance limitados, a lei não esgotou todas as questões referentes ao uso de armas por civis, e o debate prosseguiu na sociedade e no próprio Legislativo, visando a um aprimoramento constante do sistema e das normas para o controle de artefatos desta natureza.

No entanto, a Lei n.9437/97 regulava apenas parte das atividades que envolviam as armas de fogo. Em verdade, outras atividades que resvalavam à esfera civil e que tocavam o controle global da circulação de armas tinham e continuam a ter boa parte da sua base legal residida no Decreto n.3.665/00 – Regulamento de Fiscalização de Produtos Controlados ou, mais comumente conhecido como R-105.

O R-105 estabelece regras para a fiscalização, daí o nome de Regulamento de Produtos Controlados, de armas de fogo, munição, explosivos e outros materiais pelo Exército (e não pela Polícia Federal). No governo passado, houve uma divergência entre o Ministério da Justiça e um setor do Exército sobre este assunto, pois o último alegava que armas, munição, explosivos e outros materiais de mesma natureza são questões de segurança nacional e não devem ser compartilhadas com quem quer que seja por se tratar de segredo de Estado. Ora, embora seja compreensível que o Departamento de Fiscalização de Produtos Controlados, do Ministério da Defesa, tenha formas estratégicas de cuidar do assunto, não podemos negar também que esses números e estatísticas devam ser compartilhados com o Ministério da Justiça, viabilizando os trabalhos desta pasta que tem o dever de implementar uma política nacional de segurança pública, que cruza estrategicamente com as questões de desvio de armas de fogo e afins.

É problemático que, contrariando a lei maior, o decreto R-105 determine uma série de poderes e atribuições às autoridades militares que correm paralelos aos poderes e competências instituídos pela Lei dos civis. O decreto determina, sem qualquer correspondência com o fio lógico estabelecido na lei dos civis, o que é e o que não é cabível às autoridades militares nas autorizações para funcionamento de fábricas, exportações, importações, comercialização, transporte, trânsito de armas pelo território nacional, bem como nas expedições de credenciais de colecionador, caçador e atirador (duas categorias de civis que sempre estão a salvo das restrições a que os demais civis estão sujeitos).

O problema não consiste em haver concomitantemente uma lei para as regras de registro e porte de armas, elaborada por civis, e um decreto feito pelo Comando do Exército para as regras da movimentação global de armas e para o acesso que os militares têm a elas. A questão reside substancialmente no fato de que os referidos instrumentos seguem princípios nitidamente distintos e as informações não são compartilhadas. Prova disso é que o que tocava aos civis na Lei n.9.437 era de razoável rigor (tendo sido aumentado agora pelo Estatuto), ao passo que o que é determinado aos militares, seja no âmbito de suas tarefas, como no de suas prerrogativas, impede a fiscalização por parte da Polícia Federal, a quem cabe afinal, por lei, o dever de investigar e reprimir o desvio de armas, munições e explosivos para o mercado clandestino. Verifica-se que a discricionariedade do oficial militar é muitas vezes arbitrária, como no caso da classificação de quem é ou não atirador ou caçador, ou na concessão de armas para oficiais que podem ter, cada um, uma arma de cano curto, uma arma de caça de alma lisa e uma arma de caça de alma raiada, podendo comprar três novas armas (uma de cada espécie) a cada dois anos; não mencionando aqui que podem adquirir ainda munição para cada armamento a cada seis meses. Ou seja, cada oficial das Forças Armadas, da ativa e mesmo da reserva, pode ter um verdadeiro arsenal em casa ao fim de dez anos, e não há qualquer razão apresentada até hoje que justifique esta concessão.

Considerando-se que, antes de tudo, o militar é um cidadão, sujeito, portanto, às “fraquezas” que podem acometer os civis, e que esse excesso de armas e munições de uso privado (frise-se “de uso privado” e não em serviço), pode desviar-se para o mercado clandestino, é inadequado, do ponto de vista da segurança pública, que tais produtos não sejam informados à Polícia Federal, para bem exercer sua função de reprimir o seu tráfico ilegal. O mais grave é que, também os policiais contem com privilégios quase tão exagerados quanto os dos militares, setor muito mais sujeito à contaminação pelo crime organizado.

Embora o R-105 continue a ser uma legislação problemática, por manter uma série de privilégios injustificáveis ao Comando do Exército, há de se reconhecer que a substituição da Lei n.9.437/97 pelo Estatuto do Desarmamento, em 23 de dezembro de 2003, deu margem para a mitigação de parte dos poderes militares, através de um maior compartilhamento de informações. Como veremos a seguir, avançamos ao transferir ao SINARM, órgão da polícia federal, informações sobre o controle de comercialização e importação de armas, antes restritas ao Exército. Contudo, o mesmo não se deu em relação às informações sobre exportação.

Perdemos também a oportunidade de tirar do Comando do Exército, previsto pelo artigo 3, parágrafo único da Lei n. 10.826, a prerrogativa do registro naquele órgão militar das armas de fogo de uso restrito. Este é um dispositivo já contido no R-105 que dificulta o rastreamento de armas, impedindo que informações desta natureza integrem o cadastro nacional, mormente quando se sabe que são estas armas as preferidas pelo crime organizado.

Na avaliação das regras de exportação, importação e comercialização, o R-105 dá prioridade ao rigor na fiscalização das importações e comercialização, nesta ordem. O controle do que sai do país é bastante frouxo, seguindo a tendência dos outros países do MERCOSUL de se importar apenas com o que circula em território próprio. Por exemplo, pistolas e revólveres (as armas mais utilizadas em homicídios no Brasil) exportados pelo Brasil são classificados pelo DFPC do Exército, e assim registrados no Ministério de Indústria e Comércio, como espingardas e rifles de caça etc., segundo uma nomenclatura fixada pelo DFPC (art. 180 do R-105). Daí a necessidade desse tipo de classificação não ficar sob o exclusivo controle de uma instituição, mas de a responsabilidade ser compartilhada com outros órgãos (DPF), de maneira a se evitarem erros ou manipulações como esses. Tal procedimento dificulta o seu controle, impossibilitando a eventual necessidade de seu rastreamento, e subtraindo informações essenciais para o estabelecimento de uma política de verdadeira fiscalização sobre produtos relevantes para a segurança pública.

Contudo, entendemos que a superveniência do Regulamento, que esmiuçará determinadas regras do Estatuto do Desarmamento, possa colaborar ainda mais com os avanços de linhas gerais trazidos pela Lei n.10.826, que trataremos a seguir.

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3.2. Estatuto do Desarmamento

A Lei n. 10.826, conhecida como Estatuto do Desarmamento, foi promulgada em 23 de dezembro de 2003, após intenso e contínuo debate sobre o controle de armas em nossa sociedade, e longo processo de deliberação em ambas casas do Congresso Nacional. Neste capítulo, abordaremos as principais modificações trazidas pela nova lei, seus pontos polêmicos, e sua regulamentação.

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3.2.1. Principais Modificações Trazidas pelo Estatuto do Desarmamento

  • SINARM

A nova legislação manteve o Sistema Nacional de Armas, dada sua inegável importância como cadastro e referência sobre armas e munições presentes em território nacional, além de acrescentar-lhe algumas atribuições, aprimorando ainda mais o sistema ligado à Polícia Federal.

Dentre as novas atribuições do SINARM trazidas pelo Estatuto estão a competência de cadastrar junto ao sistema os produtores, atacadistas, varejistas, exportadores e importadores autorizados de armas de fogo, acessórios e munições (inciso IX), bem como os armeiros em atividade no País, além de lhes conceder licença para exercerem a atividade (inciso VIII).

A preocupação em ter o registro de todos os atores presentes no cenário do comércio de armas parece ser bastante pertinente, tendo em vista que o que se objetiva é um maior controle na política de armas.

Para o SINARM também foi destinada nova atribuição referente ao banco de dados e características de armas de fogo, sendo este encarregado de cadastrar a identificação do cano da arma, as características das impressões de raiamento e de microestriamento de projétil disparado, conforme marcação e testes obrigatoriamente realizados pelo fabricante (inciso X). Juntamente com esta medida, está a responsabilidade do SINARM de cadastrar as transferências de propriedade, extravio, furto, roubo e outras ocorrências suscetíveis de alterar os dados cadastrais, inclusive as decorrentes do fechamento de empresas de segurança privada e de transportes de valores. Todas estas atribuições conferidas ao cadastro nacional visam ao estabelecimento de um sistema que possa rastrear a origem de armas e munições que tenham sido desviadas de seus iniciais proprietários cadastrados, identificando assim as rotas ilegais que são criadas para abastecer o mercado clandestino, o pequeno infrator, bem como o crime organizado.

Temos, ainda para o SINARM, a competência de informar às Secretarias de Segurança Pública dos Estados e do Distrito Federal os registros, autorizações e renovações de porte de armas de fogo, emitidos pela Polícia Federal, conforme nova regra estabelecida pelo inciso III do artigo 1 do Estatuto. Segundo a lei, o cadastro deve ser mantido atualizado para consulta. Cabe esclarecer que, pelo regime da lei anterior, o porte era concedido pelas Secretarias de Segurança Pública dos Estados, que deveriam comunicar ao SINARM as decisões decorrentes desta prerrogativa. Com a nova lei, esta norma ficou invertida, passando a ser de competência da Polícia Federal a concessão dos portes de armas de fogo e do seu registro junto ao sistema nacional de armas, embora esteja prevista a necessidade desta transmitir as referidas informações às Secretarias de Segurança Pública dos Estados, uma vez que os Estados federativos são os encarregados constitucionalmente pela preservação da ordem pública e da proteção das pessoas e do patrimônio (artigo 144 da Constituição Federal).

  • PORTE DE ARMAS DE FOGO

A concessão de porte de armas de fogo passou a ser, como mencionado acima, centralizada pela Polícia Federal, não sendo mais de competência das polícias estaduais, como era feito sob o regime da Lei 9.437/97. O porte, em função de atividade profissional relacionada à segurança pública e privada, bem como a esportistas e caçadores, ficou determinado pelo artigo 6 da nova Lei do Desarmamento, sendo o porte de colecionador conferido pelo artigo 9 da mesma lei.

O porte para civis ficou terminantemente proibido em todo o território nacional. A sua concessão só é permitida se houver comprovação de efetiva necessidade por ameaça à integridade física. É digno de nota que a lei não determina o que caracteriza a “efetiva necessidade”, ficando a definição a cargo do Regulamento, que será tratado em capítulo mais à frente.

  • COMPRA, POSSE E REGISTRO DE ARMAS DE FOGO

A compra de armas e a sua posse também receberam tratamento mais rigorosos com a vigência da Lei n.10.826. A compra de armas só pode ser feita por maiores de 25 anos, e o interessado deve preencher todos os requisitos estabelecidos pelo artigo 4 da Lei, que  determina que o comprador deve declarar a efetiva necessidade de ter uma arma, comprovar idoneidade, ocupação lícita e residência certa, capacidade técnica e aptidão psicológica. O Regulamento fica responsável por esmiuçar estes requisitos e procedimentos determinados no referido artigo, como veremos a seguir. Toda arma de fogo deverá ser cadastrada junto ao SINARM e deverá ter seu registro renovado a cada três anos no mínimo.

  • MEDIDAS DE IDENTIFICAÇÃO

Avanço digno de nota do Estatuto do Desarmamento está não só na restrição do acesso de civis às armas de fogo, tanto na sua posse como no seu porte, mas também nas novas medidas de identificação estabelecidas pela lei.

Como já apontado no diagnóstico deste trabalho, não basta que o “cidadão de bem” tenha o seu acesso à arma restringido, quando muitas vezes a circulação descontrolada das armas de fogo se dá por desvios das próprias fábricas, das forças de segurança pública ou privada, ou através da triangulação que se dá com o reingresso das armas em território nacional após a sua exportação para além das fronteiras. O Estatuto do Desarmamento teve a preocupação de fechar o cerco em torno da questão, abordando o problema por diferentes frentes. Mesmo porque, se se fecham alguns canais de desvio, os demais canais não bloqueados passarão a ser mais utilizados. O bloqueio dos diversos canais utilizados pelo tráfico ilícito de armas e munições tem que ser total, sem exceções, ou será inócuo.

Aliado às inovações cadastrais constantes do banco de dados balístico do SINARM descritas acima, como as referentes às impressões de raiamento e de microestriamento de projétil disparado, a Lei n. 10.826 criou outras formas de manter o controle sobre os dados de armas e munições. O artigo 23 da Lei n. 10.826 tratou deste ponto ao determinar que todas as munições comercializadas no país deverão estar acondicionadas em embalagens com sistema de códigos de barras, gravado na caixa, visando a possibilitar a identificação do fabricante e do adquirente. O mesmo artigo firmou que aos órgãos concedidos o porte de armas, conforme determinado pelo artigo 6 da lei, serão expedidas autorizações de compra de munição com identificação do lote e do adquirente no culote dos projéteis. E por fim, determinou-se que as armas de fogo fabricadas a partir de 1 ano da data da publicação do Estatuto conterão dispositivo intrínseco de segurança e de identificação, gravado no corpo da arma, exclusive para os órgãos previstos no artigo 6.

Dado todo este cuidado em abordar o controle de armas de forma global e ampliada, verifica-se que não há como subsistir o argumento de que a Lei do Desarmamento restringe apenas o acesso dos cidadãos “de bem” às armas, restando livre acesso dos bandidos às mesmas. A implementação das medidas de identificação constantes da Lei n.10.826 poderá de fato minar boa parte da clandestinidade das rotas das armas de fogo.

  • CRIMES E PENAS

Dentre todas as alterações trazidas pelo Estatuto do Desarmamento, as referentes aos crimes e às penas são as que têm recebido maior destaque na mídia. A legislação penal especial, introduzida pela promulgação da Lei n. 10.826, entra no sistema penal agravando grande parte das penas previstas para condutas relacionadas às armas de fogo. Vejamos as principais modificações.

A posse irregular de arma de fogo de uso permitido passa a ter pena de detenção de 1 a 3 anos, e multa, sendo que era previamente estipulado para esta conduta a pena de detenção de 1 a 2 anos e multa. Ademais, o porte ilegal de arma de fogo de arma de uso permitido, já criminalizado pela Lei n. 9.437, passa a ser apenado com reclusão de 2 a 4 anos e multa, tornado-se crime inafiançável. Anteriormente, a pena era apenas de detenção de 1 a 2 anos e multa. Ressalve-se que a impossibilidade da hipótese de fiança, vista como  símbolo de impunidade por grande parte da população, gerou aplausos da sociedade e daqueles que pregam penas mais rigorosas.

Contudo acredita-se que a inafiançabilidade deste delito não será levada à risca, embora possa exercer no imaginário coletivo uma grande pressão psicológica. O sujeito preso pelo porte ilegal de arma de fogo não terá o direito à fiança, mas duvida-se que este seja mantido preso, mesmo que temporariamente, tendo em vista as já conhecidas situações precárias dos distritos policiais e a resistência até mesmo de alguns operadores do direito.

No começo deste ano, segundo publicado no jornal Diário da Manhã de Goiânia, o juiz Ricardo Teixeira Lemos, plantonista de Piracanjuba (a 85 km de Goiânia), colocou em liberdade, sem pagamento de fiança, dois réus detidos por porte ilegal de armas. Segundo consta, o juiz já havia decidido no mesmo sentido em outros dez casos semelhantes em Aparecida de Goiânia, onde também é plantonista. A decisão de Ricardo Teixeira contou com o apoio do Ministério Público, que se posicionou favorável ao livramento condicional sem fiança nos casos em que o réu não é reincidente e não tem antecedentes criminais.

O Diário da Manhã divulgou que os infratores foram autuados em flagrante, respectivamente, nos dias 8 e 11 de janeiro. Um fora preso na praça central de Piracanjuba com uma espingarda no interior do seu veículo e o outro detido com uma arma calibre 32, alegando ter a mesma com ele porque fora assaltado recentemente. Em conclusão, verificase que, embora a lei seja bastante clara quanto à sua inafiançabilidade, a controvérsia está posta e há quem se ponha de forma contrária à sua aplicação.

O Estatuto do Desarmamento, seguindo o modelo posto pela lei que lhe precedeu, diferenciou posse e porte de arma legal da posse e porte de arma de uso restrito. Pela lei, cabe somente ao Comando do Exército a autorização, excepcional, para a aquisição de armas de fogo de uso restrito (artigo 27).

A posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito foi apenada pelo Estatuto com reclusão de 3 a 6 anos e multa, sendo insuscetível à liberdade provisória. A Lei n. 9.437 previa para esta hipótese uma pena de reclusão de 2 a 4 anos e multa, verificando-se assim um recrudescimento penal bastante evidente. A escolha do legislador foi infeliz em tentar impedir a concessão de liberdade provisória, pois a prisão preventiva sempre foi medida jurídica excepcional, aplicada apenas quando esta fosse imprescindível, segundo o artigo 310 do Código de Processo Penal, para garantir a ordem pública ou econômica, ou por conveniência da instrução criminal, para assegurar a aplicação da lei penal, quando houvesse prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.

Por fim, dentre as alterações mais importantes promovidas pelo Estatuto do Desarmamento, destacamos a criação da tipificação penal do tráfico internacional de arma de fogo, sendo este a ação de importar, exportar, favorecer a entrada ou saída do território nacional, a qualquer título, de arma de fogo, acessório ou munição, sem autorização da autoridade competente. A punição para esta conduta está prevista na reclusão de 4 a 8 anos, e multa, sendo insuscetível de liberdade provisória. A pena é aumentada da metade se a arma de fogo, acessório ou munição for de uso proibido ou restrito. Embora haja certa preocupação com a severa dosagem da pena imposta pelo artigo 18, a tipificação desta conduta é pertinente, na medida que cuida de um problema sério das armas, que é o cruzamento de fronteiras por meio do tráfico internacional.

Verificamos com as modificações acima mencionadas que o Estatuto do Desarmamento seguiu uma orientação pelo recrudescimento das penas, seguindo uma tendência do Direito Penal iniciada na década de 90. Infelizmente, não entendemos como eficaz o aumento desmedido das penas, tendo em vista que acreditamos que o controle de armas não perpassa o “terror penal” de penas mais rígidas e longas. Pelo contrário, entendemos que este quadro só tende a se agravar com penas de privação de liberdade desproporcionalmente longas, impactando diretamente o já falido sistema de execução  penal brasileiro – pernicioso e inimigo de todos os anseios de uma sociedade justa.

Entendemos como problemática a corrida legislativa desvairada pelo aumento das sanções penais, pois se mostra populista, pouco eficaz e catalisadora de uma cascata de injustiças que quebram com o sistema penal pátrio, retirando-lhe harmonia e coerência. Quando comparadas as penas instituídas por leis especiais com as constantes do Código Penal, verificamos com freqüência uma discrepância em relação à proporcionalidade estabelecida em uma legislação e outra. Como conseqüência temos leis que não guardam proporcionalidade com o sistema. O processo legislativo conturbado traz para a realidade jurídica uma lei que, na área penal, não se insere de forma harmônica com o sistema. A título de exemplo, imaginemos uma situação. Um sujeito, que é segurança privada de uma empresa qualquer, cede ao insistente apelo de um amigo para guardar por dois dias em sua casa uma arma de fogo de uso restrito, até que este possa resolver uns “problemas”. O aceite do sujeito faz com que este incida na conduta de “manter sob sua guarda” arma de fogo de uso restrito, agravado pelo fato de ele ser segurança de uma empresa (artigo 20).

Pego pela polícia, o sujeito é preso, sendo insuscetível a sua liberdade provisória. Conforme a legislação proposta pelo Estatuto do Desarmamento, a pena, que é em abstrato de 3 a 6 anos, pode chegar até 9 anos, devido à sua condição de segurança privada. O estupro, previsto pelo artigo 213 do Código Penal, usado como exemplo aqui para fins de comparação entre a lei especial e o Código Penal, prevê reclusão de 6 a 10 anos. Ora, sendo assim, é possível que um indivíduo que tenha cometido o crime de estupro saia com uma pena de 6 anos enquanto a lei especial dá margem para uma atribuição de pena de 9 anos para aquele que aceitou manter sob sua guarda por dois dias uma arma de fogo de uso restrito de um amigo.

A discrepância entre os ditames de uma lei e outra é tão grande que o acusado de estupro pode aguardar em liberdade seu julgamento, sendo que àquele que teve sob sua guarda uma arma de uso restrito a mesma prerrogativa não é assegurada. Verifica-se, portanto, a quebra da proporcionalidade, princípio basilar para a aplicação do Direito Penal.

Contudo, a aplicação, na parte penal da lei, dos equívocos tradicionais do processo legislativo em nosso país não invalida a enorme relevância social da lei 10.826. Fruto de um árduo processo de discussão de mais de cinco anos no Congresso Nacional, o Estatuto do Desarmamento certamente representa uma vitória da população brasileira e contém fortes instrumentos não penais para coibir com inteligência e investimento preventivo os crimes com armas de fogo no país.

  • ENTREGA DE ARMAS E INDENIZAÇÃO

Os artigos 31 e 32 do Estatuto do Desarmamento previram que possuidores e proprietários de armas de fogo poderão a qualquer tempo entregá-las à Polícia Federal, mediante recibo e indenização, nos termos do regulamento da lei. Aos proprietários e possuidores de armas não-registradas, presumir-se-á a boa-fé, podendo estes também ser indenizados. Caberá ao Regulamento determinar como essas indenizações serão feitas.

Propostas para as indenizações constam de capítulo à frente específico sobre a regulamentação da lei. A inédita previsão de indenização para a entrega de armas mostra a consciência do legislador sobre os riscos de manter um grande estoque de armas de fogo e a realidade sócioeconômica das regiões onde a maior parte das armas está concentrada.

Como se sabe, uma arma de fogo pode ser utilizada por décadas. Neste sentido, o aumento do controle sobre a entrada de novas armas no país não resolve por completo o problema da violência armada. Há que se levar em consideração o enorme estoque existente, grande parte já na ilegalidade, e que não seria afetada pelas novas normas de posse e porte.

Neste sentido, ao indenizar as armas que forem entregues, o Poder Executivo cria um mecanismo de reforço positivo para todos aqueles que desejarem se desfazer de suas armas. O pagamento efetivo também evita a venda de armas para o mercado paralelo por aqueles que sejam convencidos pelos argumentos ou que temam as conseqüências da lei. Os moradores de regiões mais pobres não podem simplesmente abrir mão, gratuitamente, de algo que tem claro valor comercial. Com a indenização, o governo evita o abastecimento do mercado paralelo.

  • REFERENDO

O Estatuto do Desarmamento, dentre suas grandes inovações, previu um referendo, em outubro de 2005, que pede à sociedade brasileira que decida sobre a proibição da comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional, salvo para as entidades previstas no artigo 6 da Lei n.10.826.

A possibilidade de acabar definitivamente com o comércio de armas de fogo no país representa talvez o maior avanço do Estatuto, na medida em que definitivamente “secaríamos” uma das maiores fontes de entrada de armas que são usadas para cometer crimes no país.

Como se viu anteriormente, as armas legais são as maiores fontes do uso ilegal de armas, representando cerca de 75% das armas utilizadas em crimes no Brasil. O referendo também serve como importante marco de qual sociedade a população deseja. A escolha por um país sem armas marca a aposta em uma sociedade que coletiva e pacificamente resolve seus problemas e que reconhece a falência do modelo hobbesiano do “todos contra todos”.

O fato de o referendo ser inédito em nosso país impõe alguns desafios. O primeiro deles é a criação de um Decreto que regule as condições de votação, definindo data, redação do texto da cédula eleitoral, regras sobre boca de urna, disposição do tempo de propaganda na TV, entre outras. Mister também definir maneiras claras de se evitar a prevalência do poder econômico das indústrias no processo, garantindo uma disputa democrática e igualitária, e um debate concentrado na escolha entre uma sociedade armada, ou desarmada, como a mais segura para seus cidadãos.

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3.2.2. Regulamentação do Estatuto do Desarmamento

Quando a Lei n.9.437/97 entrou em vigor, cabia ao Executivo regulamentá-la por Decreto, visando ao detalhamento das regras e procedimentos que regeriam as normas previstas na Lei. A legislação anterior previa, por exemplo, em seu artigo 5, que o proprietário, possuidor ou detentor de arma de fogo, tinha o prazo de 6 meses, prorrogável por igual período, a critério do Poder Executivo, a partir da data da promulgação da lei, para promover o registro da arma ainda não registrada ou que teve a propriedade transferida, ficando dispensado de comprovar a sua origem, mediante requerimento, na conformidade do regulamento. Assim, a lei concedia uma anistia com prazo de 6 meses, prorrogáveis por mais 6, a partir da promulgação da lei, para que as pessoas regularizassem suas armas.

Contudo, questões surgiram quanto à contagem do tempo da anistia. Tinha ficado a cargo do Regulamento a forma pela qual este e outros procedimentos se dariam. De acordo com o texto da lei, o Poder Executivo teria o prazo de sessenta dias a partir da vigência da legislação para regulamentar a Lei n.9.437, e assim os procedimentos estariam claros para a sua efetiva implementação.

A dúvida que surgiu foi se o período para a anistia mencionado acima se iniciava com a promulgação da lei, conforme estava determinado em seu próprio corpo, ou a partir do Decreto que a regulamentava. O senso comum apontaria para a decisão de que seria a segunda opção, já que o registro antes da regulamentação seria impraticável, pois não se saberia como proceder. No entanto, este não foi entendimento unânime e houve quem defendesse a contagem do período de anistia a partir da promulgação da lei. O resultado foi muito ruim dado que, com a diminuição do prazo, muitos que poderiam ter tido suas armas registradas deixaram de fazê-lo, prejudicando a política de controle de armas que busca solucionar a questão do estoque de armas não cadastradas em nossa sociedade.

A Regulamentação da Lei de 97 só entrou em vigor a 8 de maio daquele ano, quase 2 meses e meio após a promulgação da lei, quando o Decreto n. 2222 foi baixado pelo Presidente da República. O processo pelo qual se deu a regulamentação da Lei n. 9.437 revela que uma lei não regulamentada é problemática, pois torna-se inoperável. Foi assim com a lei anterior, e essa situação tem que ser evitada com a nova lei para que não sejam frustrados os avanços conquistados pela nova legislação. O Estatuto do Desarmamento, Lei n. 10.826, foi promulgada em 22 de dezembro de 2003, e até então, mais de 2 meses após a sua entrada em vigor, sua regulamentação não foi concluída. São vários os pontos da Lei do Desarmamento que dependem do Regulamento do Executivo. Eles tangem aspectos, para citar apenas alguns, referentes a: cadastro mantido pelo SINARM, aquisição, registro, certificado e porte de arma de fogo, armas utilizadas em entidades desportivas, cobrança de taxas, indenização, destruição das armas, munições e acessórios, dentre outras.

Enquanto não há regulamentação, incorremos no risco de termos uma lei morta. Prova disso são as decisões judiciais que têm pipocado pelo país afora. Na data de 20 de janeiro deste ano, foi concedida pelo juiz Marcel Citro de Azevedo, na 12a Vara da Justiça Federal de Porto Alegre, uma liminar suspendendo a eficácia do inciso III, do artigo 4 da Lei n. 10.826/03, que exige requisitos ainda não regulamentados, o que vem impedindo a venda de armas de fogo em território nacional. Ficou decidido pelo juiz, que dada a falta de regulamentação, o Decreto 2222/97 deve ser aplicado, mantendo-se os usos em prática anteriores à Lei n. 10.826/07. O magistrado afirmou que “a inércia do Poder Executivo não pode inviabilizar a atividade profissional do impetrante” que é comerciante de armas14.

Vimos que a necessidade de se regulamentar o Estatuto do Desarmamento é urgente, evitando que este fique esvaziado e sem força política. Uma comissão interministerial foi constituída no dia 05 de fevereiro deste ano para regulamentar o Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826, de 22 de dezembro de 2003). A portaria publicada no Diário Oficial da União naquela data foi assinada pelos Ministros da Defesa e da Justiça, criando uma comissão que terá até 60 dias para elaborar proposta de decreto sobre o registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição no país.

A comissão poderá convidar representantes de áreas do governo federal e da sociedade civil para oferecerem subsídios à proposta de regulamentação. Depois de concluída, estará disponível para consulta pública, no site do Ministério da Justiça, para recebimento de sugestão, pelo prazo de 15 dias corridos, medida que reputamos como fortemente democrática.

A comissão é coordenada pelo Ministério da Justiça (MJ), por intermédio da secretária de Assuntos Legislativos, Ivete Lund Viégas, sendo parte da comissão, pelo MJ, o secretário nacional de Segurança Pública, Luiz Fernando Corrêa; o diretor da Polícia Federal, Paulo Lacerda, e o consultor jurídico Luiz Armando Badin. O Ministério da Defesa será representado pelo secretário de Logística e Mobilização, Major-Brigadeiro Antonio Hugo Pereira Chaves; consultor jurídico, Artur Vidigal de Oliveira, e Comando do Exército, General-de-Brigada Engenheiro Militar José Rosalvo Leitão de Almeida.

A sociedade civil organizada, que tem participado de todo processo de construção de uma política de controle de armas mais eficiente e avançada, já manifestou seu interesse em subsidiar informações que possam contribuir para o Regulamento. A proposta de Regulamento elaborada pelos Institutos Sou da Paz e Viva Rio foi encaminhada ao Ministério da Justiça (anexa), e trata ponto a ponto dos artigos da lei que devem ser regulamentados, aprofundando-se no seu contexto, proposta e justificativa.

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3.2.3 Pontos Polêmicos a respeito do Estatuto do Desarmamento

O processo de deliberação do Estatuto do Desarmamento foi recheado por debates acalorados, tocando de diversas maneiras pontos polêmicos principalmente no que concerne à constitucionalidade ou não da lei promulgada em fins de 2003. Duas ações diretas de inconstitucionalidade foram propostas perante o Supremo Tribunal Federal – uma pelo Partido Trabalhista Brasileiro (ADIn 3112), anexada, e outra pelo Partido Democrático Trabalhista (ADIn 3137), em tudo semelhante à primeira.

Veremos os principais pontos levantados contra o Estatuto, constatando que os mesmos não merecem acolhimento, dado que estão a serviço dos interesses lobistas das indústrias de armas, que procura se furtar de uma política de maior controle no país.

Para os representantes das armas, a restrição do porte de arma de fogo aos integrantes das forças armadas e dos diversos órgãos de segurança pública, às empresas de segurança privada e aos integrantes de entidades de desporto cujas atividades demandem o uso de armas, posto pelo artigo 6 do Estatuto do Desarmamento, violaria o direito do cidadão à vida (artigo 5 caput da CF), à segurança (artigo 5 caput da CF cc. 144), à propriedade (artigo 5, caput da CF), e ao direito adquirido (artigo 5, XXXVI da CF).

Ora, a Constituição Federal não determina em qualquer parte do seu corpo que estes direitos sejam assegurados pelo uso de armas de cidadãos comuns. Aliás, isto seria muito estranho; afinal, a razão primeira para a realização do contrato social, através do qual criamos nossos Estados, é a garantia da paz, que tem como pressuposto a monopolização dos meios da violência por uma autoridade legítima. Pelos ensinamentos de Hobbes, constatamos que a razão pela qual superamos o Estado de Natureza é porque tememos nossos vizinhos. A possibilidade de que nossas vidas ou bens sejam destituídos por outras pessoas nos mobiliza a transferir para o Estado todos os meios de que dispomos para injuriar terceiros.

A afluência de armas junto ao corpo social, em casos extremos, coloca em xeque a própria existência do Estado, sendo assim natural que as constituições não reconheçam um direito fundamental per se de portar arma, mas deferindo à legislação ordinária, em circunstâncias especiais, a sua autorização. No Brasil, esta autorização está circunscrita à discrição da Administração.

Argumenta-se que o interesse em andar armado encontra-se respaldado pelo direito geral da liberdade e da propriedade, na medida que pode amparar o direito à vida e à segurança. Contudo, verificamos que, embora intuitivamente possamos considerar que a arma amplia a segurança e protege a vida, os fatos demonstram o contrário. Como já demonstrado, as armas apenas potencializam desfechos fatais a conflitos intrínsecos de qualquer sociedade. Entendemos que as armas de fogo não apenas reduzem a segurança pública, como ampliam a possibilidade de que seu portador – ou daqueles que com ele convivam – sejam vítimas do potencial de violência fatal que lhes é inerente.

Segundo a Constituição, segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio (artigo 144 CF). Espera-se, portanto, que o Estado opere legitimamente, no máximo de sua capacidade, dentro dos limites que lhe foram estabelecidos pelo direito, para assegurar a integridade das pessoas e do patrimônio.

Por outro lado, às pessoas também são conferidas responsabilidades (deveres) para com o direito à segurança, novamente numa relação de reciprocidade simétrica. A obrigação de abstenção de violar é proporcional à obrigação de não colocar em risco a integridade dos direitos dos demais por intermédio de ações ou omissões.

É inserido neste contexto que o Estatuto do Desarmamento restringe o porte de armas para a população comum, determinando outras providências para que seja assegurado um maior controle na circulação de armas e munições. Desta forma, ao restringir o acesso à arma de fogo, o Estatuto não está limitando o direito à vida e à segurança, como pretendem  os defensores das armas, mas aumentando a segurança geral e diminuindo o risco de morte.

Segundo ponto polêmico que merece destaque é o levantado por pessoas descrentes dos avanços que o Estatuto do Desarmamento possa promover. Essas alegam que na esteira da proliferação de legislações que emergem como salvações milagrosas para as questões problemáticas da segurança pública brasileira, o Estatuto é um pedaço de papel a mais.

Este é um argumento ingênuo, pois na verdade nem esta, nem qualquer outra lei, será capaz de solucionar a segurança pública do país. O que conta é que esta deve ser, dentre outras tantas, uma medida dentro de um conjunto enorme e harmônico de ações, que trate de questões jurídicas, nacionais e internacionais, bem como medidas como redução de desigualdade, diminuição de desemprego, reforma urbana, agregação familiar, modernização e reforma do sistema de justiça, dentre outras. Ressaltemos, contudo, que poucas iniciativas do Congresso Nacional têm tamanho potencial de reduzir o número de homicídios em nosso país, realmente impactando positivamente a segurança e o respeito ao direito à vida das famílias brasileiras.

Observação: Para maior detalhamento dos pontos fortes e críticos do Estatuto, ver os vários documentos apresentados pelas ONGs ao Congresso Nacional, anexados.

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3.3. Convergência de Leis e Cooperação Regional

A convergência de legislações (leis, decretos, regimentos, portarias, etc) dos países da América do Sul se faz necessária por motivos óbvios: não havendo correspondência entre os princípios, não haverá como controlar a atividade de grupos criminosos transnacionais, pelo simples fato de que seus agentes migrarão de país em país à caça das fraquezas em seus sistemas legais. Em outras palavras, o que um criminoso não pode fazer no Brasil, mas sabe que o pode na Bolívia, ele faz lá. Essa observação, claro, estende-se aos mecanismos de controle de armas de fogo e munição, tendo em vista que todos são previstos em leis e/ou decretos.

No sentido de harmonizar as legislações dos países do MERCOSUL e associados, o Grupo de Trabalho de Armas de Fogo tem estudado as divergências entre elas, comparandoas entre si, e uma a uma com os documentos internacionais que estabelecem parâmetros de excelência no controle da circulação de armas e munição.

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3.4. Protagonismo do Brasil em Nível Internacional

No momento em que a comunidade do MERCOSUL tem se mostrado disposta a melhorar seus instrumentos de controle e redução de oferta de armas de fogo e munição, setores responsáveis do governo brasileiro têm-se mostrado pouco interessado em acompanhar esses debates, como foi mencionado. Contudo, representantes deste grupo de trabalho, convidados por outros governos, têm comparecido a essas reuniões, fortalecendo a presença de especialistas civis no assunto, e dando mais legitimidade à participação brasileira nesse debate.

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3.5. Implementação de Acordos Internacionais

O Brasil geralmente assina os acordos firmados na OEA e na ONU, mas raramente os ratifica. O único a ser ratificado até agora foi a Convenção Interamericana Contra A Fabricação e o Tráfico Ilícitos de Armas de Fogo e Munição da OEA. De fato, pouquíssimas determinações desse acordo foram implementadas até agora, exceção feita à previsão de exigência de certificado de usuário final para liberação de exportações (feita no R-105) e na exigência de marcação das armas exportadas para forças públicas de outros países (feita pelo Departamento de Fiscalização de Produtos Controlados, do Comando do Exército, na portaria n.22 de Novembro de 2000).

Uma das determinações mais graves da Convenção Interamericana, do Regulamento Modelo da Comissão de Controle de Abuso de Drogas (também da OEA) e do Protocolo  contra o Tráfico Ilícito de Armas e Munição, da ONU, é o controle sobre os corretores de armas (brokers). Na convenção, essa determinação é tácita, mas nos outros dois documentos é explícita e, muito embora não tenham sido ratificados pelo Brasil (apenas assinados), já poderíamos implementar essa medida. Este grupo de trabalho argumentou com vários senadores e deputados pela aprovação de regras de controle dos brokers quando do debate e da votação do Estatuto do Desarmamento na Câmara e no Senado, havendo conseguido sua aprovação na Câmara (emenda do deputado Aloysio Nunes Ferreira), mas não tendo obtido êxito na votação final do Senado.

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3.6. Regulamentação do “Brokering”

Quanto ao problema da corretagem internacional ilícita de armas, mais conhecida como brokering, devemos reconhecer o aparente descaso que o Brasil tem tido com a implementação dos acordos internacionais sobre segurança que subscreveu. Nestes casos, é comum o Brasil assinar tais acordos no âmbito da ONU e da OEA, por exemplo, mas depois não os ratificar, o que impede sua implementação. O único documento ratificado até hoje foi a Convenção Interamericana Contra A Fabricação e o Tráfico Ilícitos de Armas de Fogo e Munição da OEA, mas ainda há muitas determinações que não foram implementadas. Este é o caso de uma de suas exigências mais relevantes, que, por sinal, também consta do Regulamento Modelo da Comissão de Controle de Abuso de Drogas (também da OEA) e do Protocolo contra o Tráfico Ilícito de Armas e Munição, da ONU, ambos subscritos pelo Brasil: o controle sobre os corretores de armas (brokers).

Como dissemos, o Estatuto não tipificou o brokering ilícito. Apesar de aprovado pela Câmara de Deputados, no Senado, o relator do projeto, senador César Borges, entendeu que não há muita diferença entre o broker ilícito e o traficante e manteve somente o crime “Tráfico Internacional de Armas”.

Sendo assim, enquanto não se aperfeiçoa a nova lei com a tipificação do broker ilícito como crime específico, sugerimos a promoção de cursos de capacitação em identificação do brokering ilícito para agentes e delegados da Polícia Federal e, posteriormente, para juízes e promotores (que seriam convidados do Ministério da Justiça).

É importante que esses profissionais entendam a importância que o broker ilícito tem no cenário das transações internacionais ilegais de compra e venda de armas; é necessário que ao menos considerem defini-lo como traficante, dada a letra do Estatuto. Nesses cursos, difundir-se-ia a já considerável literatura que há a respeito, comentando as normas internacionais sobre o problema, e que salienta o erro de se considerar esses agentes apenas como coadjuvantes no cenário do tráfico ilícito, quando são na verdade facilitadores de operações criminosas. E os facilitadores, como o próprio Estatuto diz, devem ser considerados condenados e punidos. Quanto àqueles que operam como brokers lícitos, deveriam ser incluídos no cadastro do SINARM na categoria “atacadistas”, de forma a que a Polícia Federal possa exercer um controle eficaz sobre suas atividades, inclusive para diferenciá-los dos corretores que operam de forma ilícita.

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3.7. Proposta de Regulamentação de Importação, Exportação, Comércio e Gestão de Estoques

Este grupo de trabalho considera que o ideal seria a centralização das informações sobre exportações de armas de fogo e munição também no SINARM (importação e comércio, com o advento do Estatuto, já passaram a ser feitas por aquele órgão). O mesmo valeria para a gestão dos estoques das Forças Públicas. Não sendo possível isto, tendo em vista os mandamentos expressamente contrários do Estatuto, o ideal é que em tempo de sua regulamentação possamos assegurar-nos que o SINARM será comunicado trimestralmente das movimentações a que se referiu.

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4. OUTROS ATORES DA POLÍTICA DE CONTROLE DE ARMAS

Uma eficaz política de controle de armas depende do envolvimento de toda a sociedade brasileira. A aprovação da lei pelo Legislativo e a sua regulamentação e implementação na esfera administrativa pelo Executivo não são, por si só, suficientes para a eliminação de armas de fogo nas mãos de civis.

O real combate às armas só se dará quando a sociedade como um todo estiver bem informada sobre os efeitos danosos causados pela circulação irrestrita de armas e possa assim participar como aliada nesta batalha. À sua revelia, entendemos que são grandes as chances da nova legislação se tornar inócua e, em curto prazo, lei morta.

O envolvimento de toda a sociedade, contudo, apresenta obstáculos. A disseminação de informação pode ser um processo custoso e lento, bem como a disponibilização de instrumentos que permitam à sociedade ingressar como colaboradora numa política de controle de armas.

Para se enfrentar tais dificuldades, algumas estratégias devem ser adotadas. O presente capítulo trata, portanto, de elencar atores que, em colaboração com o Executivo, devem ser mobilizados para atuar conjuntamente na política de controle de armas.

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4.1. Sociedade Civil Organizada

O Plano Nacional de Segurança adota um conceito amplo de controle social, reservando para a sociedade civil na política de segurança pública papel que vai além do de encaminhadora de reclamações.

Como sociedade civil organizada compreendemos, latu sensu, organizações não governamentais, entidades, associações, agremiações, clubes, fóruns temáticos, imprensa, mídia, etc. A sociedade civil organizada tem tido um papel cada vez mais relevante no cenário das políticas públicas do país, desde a sua democratização. Tem ela participado, cobrado, influenciado diretrizes e colecionado conquistas. Desta forma, vemos a sociedade civil organizada como ator imprescindível na atuação pelo controle de armas. A sua inclusão na política pela redução das armas de fogo deve se dar através de duas frentes: conscientização da população e a implementação de projetos de parceria para mobilização da sociedade civil organizada.

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4.2. Conscientização

Como bem levantado pelo Grupo de Trabalho de Controle Externo e Participação Social, “o controle social depende de informações” e, “antes de qualquer outra coisa, é necessário garantir os meios ou instrumentos que possibilitem à sociedade a ter acesso a todo um conjunto de dados e informações”. Para que a sociedade civil organizada opere como colaboradora da política de controle de armas, é necessário que ela seja informada sobre a relevância do assunto e sobre o que dizem as normas que a regulam, i.e., a legislação em vigor.

O item “1.1. Conscientização” propõe-se, portanto, a tratar de estratégias para esta ampliação de informação. São duas as atuações para possibilitar conhecimento com respaldo e responsabilidade:

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4.3. Pesquisas

As pesquisas sempre são a base necessária de qualquer avanço, pois oferecem informações e dados sobre os quais podemos fazer análises que são fundamentais para novas diretrizes numa política de segurança pública, inclusive adotando políticas preventivas. Não poderíamos deixar de fazer referência ao capítulo sobre programas de prevenção do crime e da violência do Grupo de Trabalho de Prevenção em Segurança Pública, que revela  conclusões interessantes sobre as questões de segurança pública que surgiram de diversas pesquisas. É indiscutível a relevância desses estudos.

Entendemos que a quem se propõe uma ação de mobilização, cabe a responsabilidade pela constante busca de novas informações, que sejam bem fundamentadas, além de manter o constante monitoramento dos dados, para que seja possível uma atualização das informações diante das alterações dinâmicas de nossa vida social. Assim sendo, é de fundamental importância para a implementação de uma política de controle de armas a realização de pesquisas que monitorem a opinião nacional sobre AFME, bem como outras que rastreiem as alterações fáticas conquistadas pela nova legislação e sua aplicação. O resultado destas pesquisas irá claramente subsidiar futuras campanhas de conscientização da sociedade civil organizada, contribuindo para o aperfeiçoamento das políticas de controle implementadas pelo poder público.

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4.4. Campanhas

As campanhas nacionais possuem um efeito catalisador grande para uma eficaz adesão da sociedade civil organizada junto a determinada política pública a ser empregada. No que concerne ao tema do desarmamento, a título de ilustração, podemos apontar importantes campanhas realizadas por organizações, como o Viva Rio e Instituo Sou da Paz, que mobilizaram a opinião pública e levaram a pauta do Congresso até a população.

As campanhas propostas visam a levar informação, incluindo dados sobre:

  • Os prejuízos resultantes da circulação de armas;
  • As penas previstas pela Lei nº 10.826 para aqueles que incidirem nos crimes envolvendo armas de fogo;
  • O processo de recadastramento;
  • A entrega voluntária de armas;
  • A indenização;
  • O referendo de Outubro de 2005.

Uma vez munida destas informações básicas, a sociedade civil organizada poderá atuar como difusora dessas mesmas informações e poderá, então, iniciar sua atuação como colaboradora na implementação da política de controle de armas, que será abordada no ponto a seguir.

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4.5. Projetos de Parceria para Mobilização da Sociedade Civil Organizada

Este item dá conta da mobilização da sociedade civil organizada visando a sua colaboração junto à política de controle das armas. Entendemos que a ela, com apoio governamental, cabe o papel difusor e fiscalizador oriundo do exercício da cidadania, em uma democracia participativa.

Entendemos que seja interessante apontar representantes da sociedade civil organizada, espalhados geograficamente pelo território nacional, para atuar como multiplicadores de informação e atuação em nível regional. Com base em experiências anteriores, vimos que a sociedade civil organizada tem um histórico de ações bem sucedidas na celebração de parcerias locais com as Guardas Municipais, as Polícias Comunitárias, a Ordem dos Advogados Local, Centros Acadêmicos, Escolas da Rede Pública, entre outras, favorecendo a implementação de uma política de controle de armas. Estas práticas deverão ser estimuladas a fim de que a sociedade civil organizada possa ser um ator aliado da política pública empregada pelo Executivo.

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4.6. Congresso Nacional

O Legislativo, na figura do Congresso Nacional, tem demonstrado uma preocupação real com a questão das armas em nosso país, sendo fruto do seu empenho, a legislação de  1997 - Lei nº 9.437, e mais recentemente o Estatuto do Desarmamento - Lei nº 10.826/03. Deputados e senadores cumprem assim o dever de legislar matérias de alta relevância para a segurança pública do país. Vemos, contudo, que as suas funções representativas podem ir além da elaboração de leis, para assumir também um papel fiscalizador e de pressão sob os mecanismos previstos na legislação. Estão inseridas dentro deste aspecto funcional do Congresso Nacional as questões relativas à Comissão Parlamentar Mista Especial sobre AFME, que tratamos no item a seguir.

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4.7. Comissão Parlamentar Mista Especial

A Constituição da República Federativa do Brasil, em seu artigo 58º, prevê que o Congresso Nacional tenha comissões permanentes e temporárias que, em razão da sua matéria, possam, além de discutir e votar projeto de lei, também:

  • Realizar audiências públicas com entidades da sociedade civil;
  • Convocar Ministro de Estado para prestar informações;
  • Receber petições, reclamações, representações ou queixas de qualquer pessoa contra atos ou omissões das autoridades ou entidades públicas;
  • Solicitar depoimento de qualquer autoridade ou cidadão; bem como
  • Apreciar programas de obras, planos nacionais, regionais e setoriais de desenvolvimento e sobre eles emitir parecer.

O papel desta Comissão torna-se mais destacado uma vez que uma série de informações relativas à produção e exportação de armas ainda é tratada como assunto de segurança nacional e, portanto, de maneira sigilosa. A falta de transparência acaba dificultando a formulação de políticas de controle e dando margem a eventuais abusos e desvios. Por se tratar de um organismo com poderes de fiscalização destas informações, certamente terá mais elementos para auxiliar na formulação e no acompanhamento de políticas nesta área.

Ao trabalhar em sigilo, sempre que se tratar de matérias que envolvam problemas de segurança nacional, ou sigilo comercial que proteja a competitividade de empresas nacionais, esta Comissão preservará a confidencialidade necessária, sem deixar de controlar uma “caixa preta”, que pode se prestar a abusos, desvios e corrupção. É assim em outros parlamentos como, por exemplo, na Suécia, sem que as exportações de armas desse país sofram prejuízos, resguardando-se a segurança pública.

Diante dos poderes concedidos pela Magna Carta, foi criada pelo Congresso Nacional, em julho passado, uma Comissão Parlamentar Mista Especial sobre AFME. Cabe agora aos partidos políticos representados no Congresso designarem seus representantes nesta Comissão. Propusemos aos seus formuladores, diante da novidade deste tipo de Comissão, uma avaliação da experiência de outros países com tradição nesse tipo de atividade como, por exemplo, as Comissões de Controle do Comércio de Armas dos parlamentos da Suécia, Estados Unidos, Canadá, Espanha, entre outras. Estamos assessorando nossos parlamentares a respeito, já tendo mantido contato proveitoso com várias dessas Comissões. No caso da Comissão criada pelo Congresso Brasileiro, uma proposta de atuação conjunta entre o Executivo e a Comissão deve ser elaborada, a fim de que esta seja também inserida como ator de fundamental importância na implementação da política de controle de armas.

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4.8. Ministério Público

O Ministério Público é instituição independente e permanente da administração da Justiça, e a ele cabe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Dentro deste quadro, figura, portanto, a referida organização como peça chave de qualquer esforço em mudar uma realidade, pautada pelo cumprimento da lei.

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4.9. Força Tarefa

Dentre seus poderes, a requisição de diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial entram como exercício de suas atribuições. A possibilidade de realização de investigações diretamente pelo Ministério Público tem sido muito questionada, embora no nosso entender, seja não só compatível com o nosso ordenamento, devido a sua independência e autonomia, como também só vem a contribuir para a solução de crimes.

O Ministério Público, ultimamente, vem montando estruturas de força tarefa para se debruçar sobre investigações de relevante interesse público. Como apontado pelo Grupo de Trabalho que cuida do Controle Externo e Participação Social, alguns Ministérios Públicos criaram grupos especiais de atuação no controle externo da atividade policial, sendo eles: Alagoas, Amazonas, Ceará, Distrito Federal e Territórios, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Paraíba, Paraná, Rio Grande do Sul e São Paulo.

Estas iniciativas certamente têm muito a contribuir para solucionar crimes envolvendo policiais com AFME.

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4.10. Corregedorias de Polícias

Tendo em vista que as Polícias (Militar, Civil e Técnico-Científica) deveriam ser figuras centrais para a redução da circulação ilegal de armas de fogo em nossa sociedade, vimos como necessária a inclusão também de suas Corregedorias como atores colaboradores desta política. (As corregedorias são os órgãos internos das corporações responsáveis pela análise, investigação, encaminhamento e apuração de desvios de condutas cometidos por policiais).

Vale ressaltar que a entrada em vigor da Lei 10.826 deverá reduzir drasticamente as armas de fogo nas mãos de civis. Estas, como se sabe, acabavam migrando para os criminosos com bastante facilidade. Diante deste novo quadro, as armas em poder de policiais passarão a ser seu novo foco, estimulando a corrupção, os desvios e a venda de armas por policiais.

Neste sentido, é fundamental que os órgãos fiscalizatórios investiguem e punam os responsáveis.

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4.11. Ouvidorias de Polícias

As ouvidorias começaram a ser criadas em alguns Estados da Federação em meados da década de 90, refletindo o desenvolvimento e amadurecimento da organização social, como revela o relatório do Grupo de Trabalho sobre Controle Externo e Participação Social.

As ouvidorias de polícias são autônomas e independentes, sem qualquer ligação orgânica com a Polícia Militar, Civil ou Técnico-Científica. Elas são criadas para funcionarem como porta-vozes da população em atos irregulares praticados por policiais, registrando, encaminhando e acompanhando denúncias. As ouvidorias não têm competência para apurar as denúncias, contudo têm o poder de acompanhá-las, garantindo agilidade e rigor nas apurações. Mais uma vez, esta ação torna-se imprescindível pelos mesmos motivos apontados no item anterior. Além disso, as ouvidorias podem também elaborar ações propositivas, formulando análises e propostas decorrentes das informações recebidas pela população, assegurando que as políticas públicas sejam moldadas à realidade, à prática, e às demandas da sociedade.

É claro que as ouvidorias apresentam uma série de dificuldades; contudo, algumas medidas deveriam ser estimuladas, como apontado pelo Grupo de Trabalho que cuida deste assunto, possibilitando que muitas áreas, dentre as quais a do controle das armas de fogo, possam ser beneficiadas pela elo da sociedade com suas ouvidorias.

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5. RECOMENDAÇÕES GERAIS

Neste capítulo abordaremos algumas medidas complementares necessárias ao sucesso de uma política de controle das armas de fogo, aqui apenas mencionadas. São medidas relacionadas às áreas de produção, estoque, destruição, treinamento e avaliação.

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5.1. Produção de Armas de Fogo

· Padronização de métodos e tecnologia de marcação de AFME:

Está em curso no âmbito das Nações Unidas o debate para a construção de uma política internacional de marcação de armas de fogo, munições e explosivos. O Brasil participa deste debate e seria muito importante que adotasse as medidas internacionais de maneira a facilitar o controle e a produção de informações sobre as armas brasileiras que são exportadas, bem como as armas estrangeiras importadas pelo nosso país. Medidas claras de marcação destes artefatos facilitam sua identificação e seu rastreamento, inibindo o tráfico ilícito destas mercadorias e identificando os atores envolvidos neste processo.

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5.2. Estoque e Destruição de AFME

  • Modernização das instalações dos estoques do patrimônio das Forças Públicas de Segurança:

É uma realidade no Brasil a existência de armas de fogo das forças de segurança pública que acabam chegando ao mercado ilegal. Inúmeros são os episódios em que armas de uso restrito são encontradas com grupos criminosos, ou em que a mesma arma é apreendida várias vezes pela polícia.

Sofremos ainda esporadicamente com assaltos a depósitos de armas das Forças Armadas. Este quadro tende a se agravar após a aprovação do Estatuto do Desarmamento, em função da maior dificuldade de se obter uma arma. Isto posto, é fundamental dotar as instalações onde as armas são armazenadas de mecanismos simples e modernos de controle, como circuito interno de TV, e informatizar e fiscalizar todo o estoque de armas em poder das forças públicas. Desta maneira, inibi-se a ação criminosa e evita-se o trânsito destas armas para a ilegalidade.

  • Modernização e ampliação da segurança e do controle dos depósitos das armas acauteladas no Poder Judiciário:

As armas apreendidas que estão envolvidas em processos criminais ficam sob o poder da Justiça, armazenadas nos Fóruns ou em departamentos da polícia. Normalmente ficam sob condições precárias de segurança. Pelos mesmos motivos expostos acima, seria importante dotar também estes depósitos de mecanismos de segurança para evitar assaltos e desvios deste estoque, além de se criar as condições para que os estoques e arsenais sejam analisados por especialistas.

  • Regulamentação do processo de destruição e destinação final de armas apreendidas:

A intensificação da apreensão de armas pelas polícias e da entrega de armas por parte da população impõe que seja estabelecido um eficiente mecanismo de destruição destes excedentes o mais rápido possível. A presença de estoques grandes atrai a ação de criminosos e dificulta a garantia de que estas armas de fato sairão de circulação.

Atualmente a responsabilidade pela destruição de armas é de exclusividade do Exército Brasileiro, que adota diferentes métodos, dependendo da região. Seria fundamental ampliar a capacidade de destruição de armas nos altos fornos ou mecanismos igualmente efetivos, sempre garantindo que as informações da arma possam ser devidamente retiradas antes da conclusão do processo.A possibilidade de contar com esta informação facilitará o rastreamento da origem das armas, fornecendo importantes instrumentos para que possam ser identificados pontos  de desvio e contrabando. Alguns países, como o Canadá, por exemplo, dispõem de equipamentos específicos para retirar o “DNA” da arma em um curto espaço de tempo, permitindo que os resultados estabelecidos acima sejam alcançados com toda a segurança.

Em nosso entendimento, todas as armas apreendidas ou recolhidas devem ser destruídas, mas setores das polícias acreditam que parte destas armas poderia ser incorporada aos arsenais das forças de segurança. Caso se decida por este caminho, é fundamental que seja regulamentado como se daria esta transferência, quais as armas que seriam aproveitadas e como estas informações seriam agregadas ao SINARM.

A ONU incentiva os governos a promoverem, em parceria com as ONGs especializadas, destruições públicas de armas, como forma pedagógica de levantar o debate sobre os riscos do uso de armas. Nesse aspecto, algumas ONGs brasileiras têm obtido sucesso junto a governos estaduais e ao Exército em promover esses atos públicos. O Brasil foi pioneiro na América do Sul nessa iniciativa, e ONGs brasileiras colaboraram para que esse exemplo fosse seguido por outros países da região.

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5.3. Treinamento

  • Treinamento dos distintos operadores do sistema de controle, em todos os níveis da federação:

Para garantir uma melhor qualidade na implementação da política de controle de armas de fogo há que se investir no treinamento dos operadores do sistema. Uma das áreas fundamentais é a análise das armas apreendidas, uniformizando os registros e o tipo de informação coletada. Neste sentido, está sendo produzido, através de convênio entre o Viva Rio, PNUD e Ministério da Justiça, o Manual de Treinamento para a Identificação e Rastreamento de Armas de Fogo, que poderá ser utilizado pelas polícias Federal e Estaduais.

Além disso, deve ser feito o investimento na capacitação e sensibilização das áreas de produtos controlados e de informações das polícias estaduais para que compartilhem os dados que hoje estão fora do SINARM e que contribuam para a integração efetiva do sistema.

O objetivo aqui é criar um sistema de informações que permita o armazenamento nacional de todas as armas de fogo apreendidas no Brasil através de uma interface web. Desta forma, todas as informações ficariam centralizadas, o que garantiria maior controle nacional, uma maior segurança contra perda e uma maior facilidade na geração de relatórios consolidados.

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5.4. Práticas de Avaliação

A implementação do amplo programa de controle de armas de fogo proposto neste trabalho, e preconizado pela nova legislação, depende intrinsecamente da ação dos órgãos públicos responsáveis. Para que esta ação alcance os resultados esperados, é importante desenvolver mecanismos e indicadores de avaliação, tanto da performance destes órgãos, como do impacto das medidas adotadas.

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