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Insurreição Comunista de 1935
em Natal e Rio Grande do Norte

Praxedes, um operário no poder

 

Praxedes: Um Operário no poder
A Insurreição de 1935 vista por dentro

Moacyr de Oliveira Filho
Editora Alfa-Omega,1985

 

 

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1. Reencontro com a História


Numa casa humilde de Mapele – uma pequena vila que faz parte do município de Simões Filho, a 30 quilômetros de Salvador, incrustada numa bonita região montanhosa de onde se avista um braço da baía de Aratu e os poderosos Centro Industrial de Aratu e Pólo Petroquímico de Camaçari – descansava, anônimo, um herói da História do Brasil.

Foi ali que fui encontrá-lo numa tarde de novembro de 1984, me esperando pacientemente deitado em sua cama, que ocupava quase todo o espaço disponível de um dos dois quartos da pequena casa. Uma casa humilde, simples, precária mesmo. Apesar de suas paredes de tijolo não caiado, nos dias de chuva o telhado representava quase nenhuma proteção para os habitantes daqueles cômodos – dois quartos, sala e cozinha. A água que caía do céu encharcava tudo o que havia dentro da pequena casa. O único lugar efetivamente seguro era exatamente onde ficava a cama. Por coincidência, o lugar onde passava a maior parte de seu tempo, descansando seu corpo de uma anemia profunda que o obrigava a se submeter a duas transfusões de sangue por mês e que, aos poucos, ia lhe tirando a vida.

Logo que cheguei, ele se levantou para me receber, surgindo por detrás da cortina surrada que fazia o papel de porta, separando o quarto da sala. Embora abatido pela doença, sua figura exalava força e segurança. A anemia não havia sido suficiente para empalidecer sua tez morena, mais para cafuzo do que mulato, sinal evidente de sua descendência indígena. Aos 84 anos, com os olhos embaraçados por uma catarata, os cabelos crespos já esbranquiçados pelo tempo, penteados para trás e presos acima da nuca pequeno coque, transformavam-no numa figura inesquecível.

Logo que o vi, tive consciência de estar diante de um verdadeiro herói de nossa história. De um símbolo da luta do povo brasileiro pela sua libertação. Um herói anônimo, até ali ainda dezenas de livros e que, apesar desse aparente papel coadjuvante, foi um dos atores principais da Insurreição Comunista de 1935, em Natal, no Rio Grande do Norte.

Depois de alguns meses de investigação, finalmente estava frente a frente com José Praxedes de Andrade, o famoso sapateiro que foi um dos principais líderes do movimento insurrecional de Natal e membro do Governo Provisório que durante 4 dias ali se instalou. Acabavam ali, naquele momento, os seus 49 de clandestinidade.

Desde que conseguiu escapar depois da derrota da Insurreição em 1935, Praxedes viveu anônimo, clandestino, incógnito. Aproveitando-se de uma incrível coincidência, ele trocou de nome e, desde 1938, vivia como Eduardo Pereira da Silva. Seu único documento era uma carteira profissional tirada nessa época, que o acompanhou até a morte. Como Eduardo Pereira da Silva, Praxedes casou 4 vezes, teve 8 filhos e 7 netos, trabalhou como sapateiro até meados da décadas de 70 – quando a doença o afastou da atividade política e do seu ofício de modelador de calçados. Seu último ato político foi ajudar a campanha dos candidatos do PMDB nas eleições de 1978.

Durante todo esse tempo, passados quase 50 anos e duas anistias, Praxedes nunca tentou recuperar sua verdadeira identidade, temendo sofrer represálias pela sua participação destacada no movimento insurrecional de 1935. Afinal, ele sabia o que os militares, até então os donos do poder no país, pensavam desse movimento. Conhecia de perto o ódio que o Estado Militar nutria por aqueles homens que, inebriados pelo slogan “Pão, Terra e Liberdade”, levantaram-se em armas na tentativa de construir um Brasil mais justo, mais livre e mais humano. Na verdade, Praxedes (ou Eduardo) não confiou nas anistias de 1945 e de 1979 e preferiu permanecer no anonimato como Eduardo Pereira da Silva a apresentar-se como o verdadeiro José Praxedes de Andrade, arriscando-se a sofrer novas perseguições.

“O primeiro documento que tive foi essa carteira profissional com o nome de Eduardo Pereira da Silva e fiquei com ele para sempre. Não tratei de mais nada. Pra quê?” – perguntava Praxedes, para responder em seguida: “Eu tenho filhos e netos registrados com esse nome. Tem um neto meu que se chama Eduardo Pereira da Silva Neto. Nunca mais empreguei o nome de José Praxedes. Por precaução, para não arrumar confusão. Virei o Eduardo Pereira da Silva e pronto. O nome não vale nada. O que vale é a minha vida. Se eu tivesse morrido, de que adiantaria meu nome? Não procurei de forma alguma recuperar meu nome verdadeiro. Tudo meu é com esse nome. Minha mulher atual é Maria Félix da Silva. Meus filhos e tudo o mais”.

Descobrir que Eduardo era o famoso sapateiro José Praxedes não foi uma tarefa muito difícil. Há alguns anos que ouvia a história de que um dos líderes da Insurreição de 1935 estava vivo. Sempre que me lembrava disso pensava comigo mesmo: “Puxa, isso deve dar uma bela história”. No entanto, os afazeres do dia-a-dia nunca me permitiam investigar mais a fundo a informação, ir atrás do famoso personagem, e a vontade de registrar para a memória política brasileira o seu depoimento ia sendo deixada de lado, amortecida pelas tarefas do cotidiano.

Em meados de junho de 1984, o novelo começou efetivamente a ser desfiado. Numa conversa com o deputado federal Haroldo Lima, do PMDB da Bahia, hoje líder do PC do B na Câmara, as pistas de Praxedes ficaram mais concretas. Ele existia mesmo. Estava vivo, morava em Salvador e alguns sindicalistas baianos poderiam localizá-lo. Dessa conversa surgiu a idéia de procurar Praxedes, registrar seu depoimento e transformá-lo num livro. Contando com a ajuda de alguns sindicalistas baianos, nosso personagem foi finalmente localizado.

O primeiro contato com ele foi feito pelo deputado Haroldo Lima, que o procurou na sua casa de Mapele e lhe cotou do meu interesse em registrar o seu depoimento. Isso foi em setembro de 1984. Na mesma época eu estava em Salvador, participando do XX Congresso Nacional dos Jornalistas e fui preparado. Procurei ler tudo que encontrei sobre a Insurreição de 1935 e desembarquei na cidade com um gravador a tiracolo. Se tudo desse certo, gravaria logo o depoimento.

No último dia do Congresso recebi a notícia. Na conversa com Haroldo, Praxedes demonstrou interesse na idéia, mas ainda resistia. Ele se considerava um clandestino e relutava em prestar um depoimento que, afinal, o tiraria dessa longa clandestinidade voluntária. De qualquer maneira, ficou de pensar melhor no projeto e se comprometeu em dar uma resposta dentro de 10 dias. Voltei para Brasília meio decepcionado e com o gravador inútil e inativo incomodando na bagagem.

Alguns dias depois chegava a boa notícia. Praxedes havia concordado e me daria o depoimento. Aproveitei o feriado de 15 de novembro, uma quinta-feira, enforquei a sexta, emendando o final de semana, e passei quatro dias em Salvador, convivendo com Praxedes e sua família a humilde casa de Mapele. Foram quatro dias de trabalho intenso que, às vezes, tinha d ser interrompido para que Praxedes pudesse descansar e recuperar parte de suas debilitadas forças, corroídas pela doença.

O depoimento foi todo tomado na sua casa e está registrado em 10 horas de fita gravada, durante diversas sessões de conversas, regadas pelo cafezinho gentilmente servido pela dona Lilita, sua última companheira. Ao final do trabalho estávamos os dois entusiasmados. Eu, por sentir a força do material, uma radiografia precisa dos 4 dias que durou a Insurreição Comunista de 1935 em Natal e um painel de importantes momentos de nossa História. Ele porque, afinal, deixaria a clandestinidade, registrando para a História sua longa experiência de vida.

Voltei impressionado com a força interior daquele homem. Aos 84 anos de idade, muito doente, vivendo com dificuldades, inclusive financeiras, tinha uma memória prodigiosa. Suas palavras jorravam límpidas e entusiasmadas, lembrando detalhes de sua infância, descrevendo os lugares por onde passou, resgatando os turbulentos duas de novembro de 35 como se os estivesse vivendo de novo, ali na minha frente. Encontrei um homem que, embora admitindo os erros cometidos, se orgulhava de sua vida e de sua luta, não renegava seu passado e reconhecia o papel histórico desempenhado pelo movimento de 1935. Um homem que confiava no futuro de seu país e esperava, ainda, ajudar na sua construção.

Mas a vida acabou nos pregando uma peça e um dos nossos projetos não pôde se realizar. Ao me despedir de Praxedes, antes de embarcar para Brasília e pedir que o fotógrafo Nilton Vasconcelos fosse comigo até Mapele para registrar as imagens de nosso encontro, havíamos combinado a segunda etapa de nosso projeto. Depois da reunião do Colégio Eleitoral, no dia 15 de janeiro, iríamos visitar Natal. Ele ficou feliz com a idéia. Afinal, depois de sua fuga no começo de 1936 nunca mais havia voltado a Natal. Queria rever os lugares onde viveu e lutou, procurar pessoas remanescentes de sua época e falava muito em visitar o Arquivo Histórico. Queria ver os documentos, conferir com sua memória, rememorar maus uma vez suas histórias. Só fazia uma problemática exigência: não queria viajar de avião. “Nunca na minha vida entrei num negócio desses e não vai ser agora que vou fazê-lo” – dizia, brincalhão. Tentei convencê-lo, mostrando que seria muito mais rápido e confortável voar de Salvador a Natal, do que fazer a viagem de ônibus, ainda mais considerando-se a sua frágil saúde. Não fui convincente e ficamos de discutir o assunto novamente quando chegasse a hora da viagem.

Praxedes não precisou viajar de avião. Menos de um mês depois da nossa conversa, seu coração cansado parou de bater. No dia 11 de dezembro recebo um telefonema avisando que José Praxedes de Andrade havia falecido, vítima de tuberculose e problemas renais. Ele morreu sem rever Natal, mas teve tempo de deixar registrado para a História o depoimento de sua longa experiência de vida. E as fotos feitas no último dia de nossa conversa são as únicas imagens de Praxedes vivo.

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