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Insurreição Comunista de 1935
em Natal e Rio Grande do Norte

Praxedes, um operário no poder

 

Praxedes: Um Operário no poder
A Insurreição de 1935 vista por dentro

Moacyr de Oliveira Filho
Editora Alfa-Omega,1985

 

 

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10. O Governo Popular Revolucionário

Na manhã do dia 24 de novembro, a luta ainda continuava no Quartel de Polícia, único foco de resistência que ainda não havia sido vencido pelos rebeldes, o que só ocorreria no começo da tarde. Mesmo assim os revoltosos eram senhores da situação em toda a cidade. Logo cedo, assim que retorna do quartel, Praxedes se reúne com o secretariado do partido, formado por ele, José Costa e João Galvão. Dessa reunião participam, também, João Lopes – o “Santa” –, assessor do Comitê Central; Lauro Lago, José Macedo e o sargento Quintino. A Reunião foi realizada na casa de um ferroviário da Estrada de Ferro Central do Rio Grande do Norte, que era membro do partido, e teve o objetivo de definir a composição do Governo Popular Revolucionário.

Praxedes garante que o governo definido pelos rebeldes tinha mais um nome além dos que constam na maioria dos livros sobre a Insurreição de 1935. Esse nome era exatamente o de João Lopes, assessor do Comitê Central do Partido, e que usava os codinomes de “Santa” e “Maranhão”. Segundo Praxedes, “Santa” foi escolhido para presidente do Governo Popular Revolucionário, que era integrado, ainda, pelo sargento Quintino Clementino de Barros, secretário de Defesa; pelo ex-diretor da Casa de Detenção, Lauro Lago, secretário do Interior e Justiça; pelo tesoureiro dos Correios José Macedo, secretário de Finanças; pelo advogado João Galvão, secretário de Viação, e pelo sapateiro José Praxedes, secretário de aprovisionamento.

Esse depoimento de Praxedes esclarece o mistério da participação de “Santa” no movimento insurrecional. O chefe de polícia de Natal, João Medeiros Filho, em seu livro de 82 horas de subversão cita o nome de “Santa” sem conseguir identificá-lo e confundindo-o com um certo “Bluche”, este, sim, figura que não é citada em nenhum outro depoimento, mas parecendo uma invenção do próprio João Medeiros para valorizar a sua atuação, na medida em que atribui a esse certo “Bluche” a autoria de um bilhete com a ordem para fuzilá-lo¹.

Essa versão, aliás, é levantada no livro Vertentes, de autoria de João Maria Furtado, juiz de direito da Comarca de Baixa Verde, na época da Insurreição de 1935, que afirma: “Há duas alternativas: ou esse ‘Bluche’ fora, assim encoberto, um agente provocador do governo e este não tinha interesse em identificá-lo ou esses bilhetes foram ‘fabricados’ para dar elevo à atuação do autor do livro na qualidade de chefe de polícia. . . E mesmo alguns dirigentes revolucionários usaram pseudônimos como “Buda” e “Santa” em ordens de requisições, etc.”².

Também o brasilianista Robert Levine não consegue identificar com precisão a figura de “Santa”, especulando que ele poderia ser o próprio João Galvão, um dos membros da Junta: “Acredita-se mesmo que fosse ele (João Galvão) o “Santa”, que correspondia com o Comitê Central do PCB no Recife nos dias que se seguiram à revolta³.

Praxedes, no entanto, é categórico: “ ‘Santa’ era o codinome do mestre de obras João Lopes, membro do Comitê Central, que foi o principal dirigente do movimento e, por isso mesmo, escolhido por nós para ser o presidente da Junta de Governo. ‘Santa’ veio comigo para Natal no final de junho de 1935, enviado especialmente pelo Comitê Central para nos ajudar na preparação da insurreição”.

Definida a composição do governo, Praxedes é indicado para fazer a proclamação oficial do novo governo ao povo de Natal. “Depois da reunião, eles me escolheram para fazer a proclamação do governo. Fomos para a Praça do Mercado, em frente ao quartel do 21º BC e ali mesmo, na porta do quartel, eu subi na murada e li a proclamação do Governo Popular Revolucionário. O povo estava todo na praça e, depois da proclamação, saudou o novo governo com gritos de ‘Viva a Revolução’, ‘Viva o Governo Popular Revolucionário’, ‘Viva Prestes’. Foi uma verdadeira festa. Durante a reunião que definiu o governo nós resolvemos fazer umas faixas com os dizeres: ‘Pão, Terra e Liberdade. Todo apoio ao Cavaleiro da Esperança’. Mas não houve tempo e a coisa foi feita sem faixa mesmo” – conta Praxedes.

Segundo o relato de Praxedes, todos os nomes que integravam o governo eram membros do partido: “Todos eram da direção do partido e por isso mesmo foram escolhidos para compor o governo. Não tinha ninguém da ANL e muito menos de João Café, que ficou fora do movimento. Era só gente do partido”. Esse depoimento desmente algumas versões segundo as quais a revolução não teria passado de uma farra, como afirma Glauco Carneiro, em seu livro História das Revoluções Brasileiras: “. . .e o cidadão pacato que passeava com a mãe pelo centro de Natal tornara-se Ministro de Viação do único governo comunista implantado no Brasil”, numa referência a João Galvão que, na verdade, era membro do secretariado do partido4. Referindo-se a essas versões históricas sobre aqueles dias de novembro de 1935 – algumas mentirosas, outras distorcidas, outras equivocadas –, Praxedes, que participou diretamente de todo o movimento, desde a sua preparação até o final da resistência, desabafou, cunhando uma frase sábia: “É, meu caro” – disse ele. “A História é uma sujeita ingrata e mentirosa”.

Com relação à não-participação dos correligionários de Café Filho na insurreição, a versão de Praxedes é confirmada pelo próprio João Café Filho que, em seu livro de memórias, registrou assim a Insurreição de Novembro: “Meu representante político em Natal era Kerginaldo Cavalcanti. Reuniu em casa do jornalista Sandoval Wanderley os principais responsáveis pelo nosso grupo, ficando deliberado, no primeiro dia da sedição, que nenhum dos nossos correligionários participaria dela, decisão aprovada por mim, pessoalmente, pouco depois. Em outro trecho de suas memórias, Café Filho deixa claro seu antagonismo com os comunistas, como sustenta Praxedes, ao afirmar: “Ao tomar conhecimento da insurreição, reagi com ceticismo. Ou a notícia era improcedente, ou havia um equívoco na interpretação do fato. Parecia absurdo que os comunistas do Rio Grande do Norte, tão escassos, pudessem realizar uma façanha daquela envergadura. Como Chefe de Polícia, por duas vezes, observara de perto as suas atividades. Cheguei, não raro, a ter pequenos atritos com eles por causa de suas habituais manobras subversivas”5.

Depois de proclamado o Governo Popular Revolucionário, seus membros dirigem-se para a Vila Cincinato, palácio residencial do Governo do Estado, que já estava ocupado desde a madrugada pelos rebeldes. “Nós fomos nos reunir para discutir as primeiras medidas que iríamos tomar. Fomos direto para a Vila Cincitato, que já estava ocupada pelo nosso pessoal, todos fardados, como havíamos combinado”, – lembra Praxedes.

Nessa primeira reunião, o Governo Popular Revolucionário editou seu primeiro decreto, destituindo o governador Rafael Fernandes e dissolvendo a Assembléia Constituinte do Rio Grande do Norte. O decreto tinha apenas dois artigos que diziam o seguinte: “1º – Em virtude de não ser encontrado, em parte alguma deste Estado, o governador sr. Rafael Fernandes Gurjão, fica o mesmo destituído de seu cargo, que não pode mais exercer. 2º – Por não consultar maus aos interesses do povo e do Estado, fica dissolvida por este ato a Assembléia Constituinte do Estado do Rio Grande do Norte, ficando assim os srs. deputados destituídos de seus mandatos, sem remuneração de espécie alguma”.

A primeira medida tomada pela Junta de Governo foi determinar a desativação de todos os faróis que funcionavam nas costas de Natal. “Mandamos desligar todos os faróis. O Batipari, ao norte, na fronteira com a Paraíba; o dos Três Reis Magos, na entrada do porto de Natal; e o do Cabo de São Roque, o Olhos D’Água e o Touros. Com isso nós evitamos a possibilidade de um ataque pelo mar. Com os faróis desligados nenhum navio teria condições de se aproximar de Natal” – explica Praxedes. Ao mesmo tempo, a Junta determinou que as duas corvetas mexicanas que estavam ancoradas no porto não poderiam sair e mandou uma tropa vigiar o cais. “Não permitimos que os navios mexicanos saíssem porque eles poderiam alertar as autoridades e também porque nós poderíamos usá-los em caso de necessidade”, explica Praxedes.

Ainda no terreno das ações preventivas, a Junta de Governo tomou medidas rigorosas para evitar a ação de provocadores, agitadores e sabotadores contrários ao movimento. “Espalhamos homens de nossa confiança por toda a cidade para evitar saques, assaltos e ações desrespeitosas à dignidade humana. Não queríamos que ninguém fosse desnecessariamente perturbado. As ordens eram rigorosas: quem fosse pego fazendo alguma coisa errada seria imediatamente preso” – conta Praxedes.

A Junta de Governo divulgou um comunicado, intitulado “Aos revolucionários em armas”, onde apelava para que a ordem fosse mantida. O comunicado dizia o seguinte: “O Comitê Popular Revolucionário faz um apelo a todos os camaradas em armas, e ao povo em geral, para que respeitem os adversários, na sua pessoa e na propriedade, não cometendo excessos de qualquer natureza, guardando às famílias o máximo respeito, procurando garantir os comerciantes, em especial os pequenos. Os responsáveis por depredações ou agressões responderão por elas perante o órgão competente do Comitê. Qualquer fato que contrarie essa recomendação será interpretado como ato de rebeldia e desacato ao próprio Comitê, ao qual deverão ser trazidas quaisquer reclamações dos prejudicados, para as devidas providências. Nossa estrondosa vitória não justifica vinganças indignas na grandeza do ideal que a inspirou”.

Além desse comunicado, a Junta de Governo expediu um outro aviso ainda mais duro, na tentativa de conter os boatos e os excessos que pudessem vir a ser praticados. Dizia esse novo comunicado: “Tendo chegado ao nosso conhecimento que alguns elementos terroristas, a serviço dos inimigos do povo, andam espalhando pela cidade boatos alarmantes no intento de atemorizar as famílias, e nos incompatibilizar com o povo, resolvemos tomas as seguintes medidas: Serão punidos com o máximo rigor todos os que foram pegados (sic) espalhando boatos de qualquer natureza tendentes a implantar o desânimo e o terror entre as famílias. Serão presos e punidos com o máximo rigor todos os que forem pegados (sic) na prática de atos atentatórios a moral e ao decoro público. Será preso todo e qualquer indivíduo que transite pelas ruas em visível estado de embriaguez”.

Apesar desse esforço, uma atitude violenta do povo não pôde ser contida: a invasão e depredação da sede dos integralistas. É Praxedes quem conta: “Desde a manhã do dia 24 que os integralistas começaram a espalhar boatos alarmistas pela cidade. O povo, sem nenhuma determinação nossa, invadiu a sede deles e arrebentou tudo. As paredes foram pintadas com ofensas a Plínio Salgado, as cadeiras quebradas, a escrivaninha do presidente deles também foi toda pintada. Enfim, fizeram uma esculhambação danada. Mas foi só esse incidente mais grave que ocorreu. As nossas patrulhas ficaram o tempo todo nas ruas para garantir a ordem e o respeito às pessoas. No geral as pessoas entenderam nossas determinações. Não houve nenhum abuso como alguns tentam espalhar por aí”.

Com efeito, esse relato de Praxedes é parcialmente confirmado pelo historiador Hélio Silva, que em seu livro sobre a Insurreição de 1935 afirma: “A população confraternizava com os rebeldes. Era mais uma festa popular, um carnaval exaltado, do que uma revolução. Houve excessos como sempre acontece. Casas comerciais foram despojadas de víveres, roupas e utensílios domésticos que aquela gente não podia comprar. Houve populares que, pela primeira vez, comeram presunto. Posteriormente falou-se em violências de todos os matizes. Espalharam que os revolucionários haviam violentado as moças da Escola Doméstica, estabelecimento de alto padrão, criado pelo governo José Augusto. Os pais das moças e o bispo Marcolino Dantas desmentiram tal acusação”6.

A questão dos gêneros alimentícios é explicada de outra forma por Praxedes. Segundo ele, não houve saque às lojas mas, sim, uma requisição de alimentos feita pela Junta de Governo. “O assédio do povo faminto era muito grande e então eu, como secretário de aprovisionamento, determinei que nossa gente fosse ao armazém de um português chamado Manoel Machado e requisitasse mantimentos para o Palácio do Governo. E isso foi feito. Os mantimentos foram recolhidos e distribuídos ao povo lá no Palácio mesmo. O povo fez fila e cada pessoa levava uma ração, com um quilo de arroz, feijão, farinha, açúcar e carne. Não me lembro de ter visto ou sido informado de qualquer saque a estabelecimentos comerciais. Se houve, não tive notícia na época. Só sei dessa requisição de mantimentos ao armazém do Machado que foi feita oficialmente pela Junta de Governo. Alguns historiadores garantem, inclusive, que a Junta tomou providências para manter o comércio aberto e confirmam a versão de Praxedes de que foram colocadas patrulhas nas ruas para manter a ordem. “. . .Impediu (a Junta), na segunda-feira da revolução, que o comércio cerrasse as portas e postou soldados à porta das lojas para garanti-las contra o saque”7.

O próprio José Praxedes de Andrade, na qualidade de Secretário de Abastecimento Público, emitiu um comunicado aos comerciantes disciplinando a sua atividade durante a insurreição. Com o título “Aos senhores comerciantes”, o comunicado dizia: “Estanto já constituído o Comitê Revolucionário, aclamado pelo povo em praça pública, dirige-se este aos senhores comerciantes, no sentido de pedir-lhes que normalizem a vida da cidade, abrindo as suas casas comerciais a fim de que o povo não sofra mais tempo a falta de gêneros de primeira necessidade. Esperamos ser atendidos neste nosso apelo, mesmo porque de outro modo nós nos sentiríamos impotentes para conter o povo nos assaltos que porventura tenha necessidade de fazer ao comércio para munir-se do necessário à sua vida. Atendidos, porém, garantiremos o livre funcionamento de todo o comércio, ao qual procuraremos beneficiar diminuindo os impostos de comum acordo com os senhores comerciantes aos quais oportunamente convidaremos para nos dar sugestões sobre o assunto”.

Além de mantimentos, a Junta requisitou automóveis para a sua locomoção e para a movimentação de tropas. “Todos os carros particulares foram requisitados pelo governo. Deixamos todos os proprietários sem carro. E só podia ser assim. Como é que nós iríamos transportar tropas sem carro? Carros, caminhões, requisitamos tudo. Quem cuidou disso foi o João Galvão. Só não requisitamos o carro do bispo que era para não bulir com a igreja. Mexer com religião é uma coisa danada. Quem tiver a cabeça não bole não, porque se sai mal” – diz Praxedes. Além dos carros, o governo revolucionário também requisitou combustível. “Os postos ficaram abertos para nos atender. Não faltou gasolina durante todo o movimento”, afirma Praxedes.

Apesar de pouco tempo em que ficou no poder, o Governo Revolucionário tomou duas medidas de ampla repercussão nas camadas populares, além da distribuição de alimentos gratuitos ao povo: decretou a reforma agrária e a distribuição de terras improdutivas aos camponeses, anunciada no momento da proclamação do governo e baixou o preço das passagens dos bondes de cinqüenta para vinte réis.

No terreno da propaganda, a Junta decidiu editar um jornal oficial do Governo Popular Revolucionário para divulgar as notícias do movimento e as primeiras medidas tomadas pelo novo governo. O jornal recebeu o sugestivo nome de A Liberdade, tinha quatro páginas e circulou apenas uma vez, com data de 27 de novembro de 1935. O cabeçalho de A Liberdade dizia: “Enfim, pelo esforço invencível dos oprimidos de ontem, pela colaboração decidida e unânime do povo, legitimamente representado por soldados, marinheiros, operários e camponeses, inaugura-se no Brasil a era da liberdade, sonhada por tantos mártires, centralizada e corporificada na figura legendária-onipresente no amor e na confiança divinatória dos humildes – de Luiz Carlos Prestes, o ‘Cavaleiro da Esperança’ ”.
O jornal foi escrito e impresso nas oficinas da Imprensa Oficial do Estado e tinha o mesmo formato de A República, que era o órgão do Governo do Estado. De acordo com a denúncia oferecida pelo Procurador da República do Rio Grande do Norte – Dr. Carlos Gomes de Freitas8 –, participaram diretamente da redação e da impressão de A Liberdade, os funcionários da Imprensa Oficial Othoniel Menezes e Gastão Correa, identificados na denúncia como os principais redatores do jornal da Junta do Governo. Praxedes, no entanto, atribui a autoria dos principais textos a outra pessoa: o jornalista Carlos Valadares, o mesmo que chegou a Natal no final de junho de 1935, acompanhado a caravana da ANL dirigida pelo comandante Roberto Sisson. “O jornalista Carlos Valadares os ajudou muito na redação do jornal. Ele nos prestou um grande serviço. Além do jornal, Valadares foi pessoalmente à Rádio Difusora de Natal fazer uma proclamação ao povo pelo rádio” – afirma Praxedes.

A elaboração de A Liberdade registra, ainda, uma história curiosa. A primeira página continha, além do cabeçalho, dois artigos intitulados “Sob a Aleluia da Liberdade” e “Delenda Fascismo!” – e duas pequenas notas sobre os desdobramentos do movimento revolucionário em São Paulo e na Paraíba (aliás, que não se confirmaram). Nas páginas dois e três havia matérias diversas sobre o movimento em Natal, e a quarta página foi dedicada a palavras de ordem revolucionárias em letras garrafais para ocupar espaço. Mesmo assim, ficou um buraco e os redatores não tiveram dúvidas: colocaram um anúncio do popular Sal de Fructa Eno que, assim, teve uma propaganda gratuita na imprensa revolucionária9.

Logo nas primeiras horas de poder, os membros da Junta sentiram uma necessidade básica: era preciso arrumar dinheiro. “Não se pode fazer uma revolução sem dinheiro, não é mesmo?” – diz Praxedes. A Junta decidiu, então, expropriar os cofres do Banco do Brasil, do Banco do Rio Grande do Norte e da Recebedoria de Rendas. “Os cofres do Banco do Rio Grande do Norte e da Recebedoria de Rendas foram imediatamente arrombados porque não conseguimos localizar os gerentes. Já no Banco do Brasil foi diferente. O Macedo procurou, em nome da Junta, o gerente do banco, Carlyle Magalhães da Silva, que, inclusive, era simpatizante do partido (ele contribuía com o partido), e lhe pediu que entregasse as chaves da agência e do cofre. O Carlyle não aceitou. Disse que como gerente não poderia fazer isso e sugeriu que procurássemos outros meios. Nós, então, tivemos, também, que arrombar o cofre do Banco do Brasil. Quem meteu o maçarico foi o pessoal da Companhia de Força e Luz e os ferroviários da Central do Rio Grande do Norte” – recorda Praxedes.

Segundo depoimento de Praxedes, todo o dinheiro recolhido em poder da Junta de Governo se aproximava dos 15 mil contos de réis, incluindo as quantias que foram recolhidas das prefeituras do interior. “Só no Banco do Brasil tinha uns 10 mim contos de réis” – garante ele. Esse montante não confere com os dados oficiais divulgados pelas autoridades da época, segundo os quais teriam sido expropriados quase 3 mil contos de réis do Banco do Brasil, 93 contos de réis do Banco do Rio Grande do Norte e 154 contos de réis da Recebedoria de Rendas, num total de 3.200 contos de réis, em números redondos e aproximados10. Outras versões, como a do historiador Hélio Silva, com base no relato de Café Filho, deram que o total do dinheiro expropriado chegou a 3.600 contos de reis. ¹¹

De posse do dinheiro expropriado dos bancos, mais as quantias que chegavam do Interior, a Junta de Governo começava a ter condições concretas de governar efetivamente. O dinheiro era usado para pagamento do soldo dos militares e para a compra de materiais necessários. Todo o material requisitado pelo Governo Revolucionário era pago, à exceção dos mantimentos que foram expropriados do armazém de Manoel Machado. O brasilianista Robert Levine confirma isso: “A Junta pagava à vista e se requisitava qualquer material o fazia por escrito” ¹². Segundo Praxedes, “no dia 27, o Quintino enviou uma requisição pedindo 550 contos para o pagamento do soldo da tropa e outros gastos no quartel e nós mandamos o dinheiro”.

O Governo Popular Revolucionário era dono completo da situação. Na cidade de Natal não havia nenhum foco de resistência, depois de derrotado o Quartel de Polícia e o Esquadrão de Cavalaria, na manhã do dia 24.

Ainda na tarde do dia 24, o novo governo recebia uma manifestação pública de apoio de algumas lideranças políticas da cidade. “Às duas horas da tarde nós recebemos a solidariedade de membros da Assembléia Legislativa e da Câmara Municipal que, incorporados, foram até a Vila Cincinato, sob o comando do deputado Pedro Matos, que era simpatizante do partido, levar a solidariedade política ao movimento” – conta Praxedes.

As patrulhas organizadas pela Junta conseguiram controlar a situação, evitando saques e outras violências desnecessárias e a vida de Natal corria quase que normalmente. “O povo teve comida, teve transporte barato. Ficou todo mundo satisfeito, vivendo a vida normalmente. Os ricos, que poderiam ter nos enfrentado, não fizeram nada. Os grandes proprietários de terra, os criadores, de gado, os usineiros, enfim, a grande aristocracia local, cruzou os braços e se escondeu. O único que nos criou problemas foi o Dinarte Mariz, que mobilizou seus homens para nos atacar no interior do Estado” – relata Praxedes. Apesar desse apoio popular, ele reconhece que faltou uma participação mais ativa da massa na insurreição. “O povo mesmo não participou diretamente da insurreição. Só os militares do partido. Se nós tivéssemos tido mais tempo para consolidar o governo, talvez, essa situação se invertesse. Mas nós não tivemos tempo nem mesmo para fazer manifestações de massa, comícios e outras atividades de propaganda em defesa do novo governo” – argumenta Praxedes.

Embora alguns autores registrem a ocorrência de três assassinatos premeditados¹³, Praxedes diz desconhecer esses fatos, Ele garante ter tomado conhecimento apenas de um assassinato: o de Octacílio Werneck, funcionário da Companhia de Navegação Costeira. “Na manhã do dia 24” – conta Praxedes – “o motorista Epifânio Guilhermino estava passando pela Ribeira quando encontrou com esse funcionário da Costeira. Ele era um sujeito detestado pelos trabalhadores porque perseguia muito os salineiros de Macau, Areia Branca e Mossoró, onde era gerente das salinas, e era acusado de roubar no pagamento do pessoal. O motorista Epifânio encontrou esse cidadão de manhã cedo, desentendeu-se com ele e tocou fogo. Esse foi o único assassinato que eu tive conhecimento. Se ocorreram outros, não posso dizer nada porque não fui informado”.

Com a situação em Natal sob controle, a maior preocupação da Junta de Governo era com o deslocamento de tropas para o interior, seguindo um plano traçado com o objetivo de espalhar a insurreição para outros Estados.
__________

1. MEDEIROS, João, obra citada, págs. 19, 63 e 67.

2. FURTADO, João Maria, obra citada, pág. 146.

3. LEVINE, Robert M., obra citada, pág. 167.

4. CARNEIRO, Glauco, Histórias das Revoluções Brasileiras – Volume 2 – Edições O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 1965, pág. 418.

5. CAFÉ FILHO, João, obra citada, págs. 80/81.

6. SILVA, Hélio, obra citada, págs. 282/3.

7. LEVINE, Robert M., Obra citada, pág. 167.

8. in MEDEIROS, João, obra citada, pág. 136.

9. FURTADO, João Maria, obra citada, pág. 134.

10. MEDEIROS, João, obra citada, pág. 52.

11. SILVA, Hélio, obra citada, pág. 282, citando CAFÉ FILHO, João, obra citada, págs. 80/90.

12. LEVINE, Robert M., obra citada, pág. 167.

13. MEDEIROS, João, obra citada, págs. 16/23/122.

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