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Insurreição Comunista de 1935
em Natal e Rio Grande do Norte

Lauro Reginaldo da Rocha - Bangu

 

 

 

Bangu, Memória de um Militante
Brasília Carlos Ferreira – Organizadora, 1992

 

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IV – As prisões

“PRIMEIRO DIA”

“SEGUNDO DIA”

“TERCEIRO DIA”

“QUARTO DIA”

“QUINTO DIA”

“SEXTO DIA”

“SÉTIMO DIA”

“OITAVO DIA”

“NONO DIA”

“DÉCIMO DIA”

“DÉCIMO PRIMEIRO E DÉCIMO SEGUNDO DIAS”

“A SALA DOS DETIDOS”

“A SOLITÁRIA”

“A ILHA GRANDE”


A casa onde eu morava no morro da piedade, era uma meia-água modesta, localizada numa rua discreta com quintal na frente e nos fundos. O local era de meu agrado. Sossego completo, as crianças – três nessa época – dispondo de espaço e de sol. Havia uma saleta com a estante de livros, um convite ao descanso e a meditação.

Naquele dia passei a manhã em casa reunido e completando a matéria para o jornal. Ao meio-dia já estava tudo pronto. Fui chamado para o almoço, à mesa encontrei os meninos sentados, era um prazer ver aqueles tiquinhos de gente compenetrados, procurando manejar os talheres como pessoas grandes. Terminando o almoço, me despedi da mulher e das crianças e saí rumo à tipografia, seguindo o costumeiro trajeto.

Na casa da rua Engenho do Mato encontrei o portão aberto. Estranhei este detalhe porque nós havíamos combinado que o portão seria mantido trancado – uma chave estava em meu poder – isto como medida de segurança, indicando “caminho livre”, e também para evitar que pessoas estranhas entrassem sem avisar e ouvissem o barulho da máquina. Pensei em não entrar, seguir em frente, o sexto sentido me alertava contra qualquer coisa de anormal, mas lembrei-me que este fato já tinha ocorrido por duas vezes, e tratara-se apenas de esquecimento. Resolvi então entrar. Subi cautelosamente os degraus. A porta de entrada estava encostada. Antes de bater olhei pela janela aberta que dava para a sala de estar. Policiais armados até os dentes estavam de tocaia, vinham acompanhando meus passos desde o portão. Esperavam apenas a minha entrada na sala e como se viram descobertos, avançaram feito loucos para a porta, de arma em punho. Num gesto instintivo tentei a fuga. Atiraram. Mas foi no justo momento em que eu pulava os degraus da descida, não me acertaram, continuei correndo, ate que fiquei encurralado, com uma cerca de arame farpado pela frente. Não era mais possível escapar, estava preso.

Fui conduzido até a tipografia. Num quarto estavam detidos Júlio, D. Alice e as crianças. Eu fui levado para o outro quarto, puseram-me numa cadeira, nela fui amarrado com as mãos para trás. A polícia resolvera manter-nos ali durante toda a tarde na esperança de que alguém mais caísse na armadilha – coisa que não aconteceu – e aguardando a escuridão da noite para conduzir-nos para a Polícia Central.

A turma que ali estava – logo vim a saber – era constituída justamente dos espancadores e torturadores da seção de explosivos: Cegadas, Pequenino, Monteiro e outros. Também aquelas caras não podiam negar. A ferocidade estava estampada nelas de maneira inconfundível. Um deles, o Cegadas, sentou-se à minha frente e iniciou uma brincadeira para ele, certamente, muito divertida: com a mão espalmada começou a bater em cima do meu coração. As cuteladas obedeciam a um ritmo determinado. No princípio não me incomodou mas com a continuação, comecei a sentir os seus efeitos. Os minutos foram passando, até que as pancadas começaram a abalar todo o meu corpo, produzindo um horrível mal-estar. Aquilo parecia não ter fim e só terminou quando o carrasco sentiu-se cansado.

Entendi que aquelas pancadas “inocentes” no órgão vital não passava de uma preparação visando quebrar a resistência física para os golpes decisivos que viriam depois. Para eles era apenas um aperitivo. À noite chegou um carro de Polícia. Eu e o Júlio fomos colocados nele, espremidos entre os “tiras”, e o veículo tomou o rumo do centro da cidade.

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“PRIMEIRO DIA”

Chegamos à Polícia Central. Fui levado à uma sala onde estavam sentados, em poltronas enfileiradas, os maiorais da polícias. Eu estava de espírito prevenido contra interrogatórios, sabia que eles iam começar a qualquer momento. Fitei um ponto qualquer no espaço, procurei nada ver nem ouvir do que se passava naquela sala. Algumas perguntas foram feitas. Elas, no entanto, chegavam aos meus ouvidos sem sentido, como se não fossem dirigidas a mim. Um indagou a origem de uma marca que havia o meu rosto, outro perguntou onde eu morava. Como nenhuma pergunta teve resposta, um silêncio total começou a reinar na sala.

Muito tempo se passou. Todos me olhavam como se nunca tivesse visto gente, até que um deles ordenou: “Podem levá-lo”.

Os mesmos que me prenderam – Cegadas, Monteiro e Pequenino – conduziram-me através de corredores e salas. Em certa altura, recebi uma pancada na nuca – um murro ou um coice, não sei bem – que me projetou de encontro a umas cadeiras. Depois uma porta se abriu e fui empurrado para uma espécie de corredor quadrado, com piso de ladrilho. Em cada parede desse quadrado havia uma porta, sendo que uma delas dava para uma privada e as outras para salas.

“- Vá tirando a roupa!” – ordenou um dos tiras.
Comecei a me despir, enquanto eles tiravam o paletó e arregaçavam as mangas. Fiquei só de cuecas.
“- Tire tudo!” – rosou o mesmo sujeito.
Fiquei completamente nú.
Eu não tinha ilusões, sabia que estava diante de uma situação decisiva, de vida ou morte. Sabia que o medo e o desespero seriam a minha ruína. Concentrei, pois, todos os meus esforços para manter a calma e não me apavorar.

Fui obedecendo às ordens sem inúteis relutâncias. Fui encostado a um canto de parede. Surgiu uma corda, amarraram meus pulsos, um braço foi esticado para um lado e amarrado na maçaneta de uma das portas e o outro braço atado a outra maçaneta da porta do banheiro. A seguir, os pés também foram amarrados. Fiquei completamente imobilizado, de braços abertos como um crucificado.

Abriram uma caixa de espetos de bambu, lisos, achatados, pontiagudos. Outros apetrechos: um alicate, um sarrafo curto para servir de macete, garrafas com líquidos, uma bacia. Um dos policiais aproximou-se e bradou: “Como é, seu f. da p., vai dar o serviço ou não vai?” ele verificou que eu não estava com nenhum desejo de dar serviço pois continuei calado.

Começou então a operação. Segurou firme um dedo de minha mão, colocou um espeto de bambu debaixo da unha e começou a bater com sarrafo, com quem crava um prego. Contraí todos os músculos, cerrei os dentes. O espeto penetrou nas carnes, ultrapassou toda a unha. É impossível descrever aquela dor, tive que sufocar um urro na garganta, o primeiro impulso foi gritar, berrar mas contive-me. Depois passaram aos outros dedos. Um a um os espetos iam sendo cravados, as unhas iam ficando levantadas e roxas, o sangue gotejando sobre o ladrilho.

Enquanto eu me mantinha em silêncio, os monstros cantavam. E acompanhavam o seu nefando trabalho ao ritmo de um estribilho que servia na época de propaganda pelo rádio dos cigarros Adelfi, como se aquilo ao passasse, para eles de um divertimento. E, na sua gíria, os espetos passaram a ter o nome dos cigarros. Havia uma ligação entre a propaganda dos cigarro Adelfi e o “trabalho” dos carrascos. As carteiras desse cigarro traziam vales que davam direito a prêmios aos fumantes e os torturadores eram também premiados pelos seus chefes, sempre que conseguiam arrancar alguma confissão de suas vítimas. Uma idéia digna de seus autores.

Todos os dedos da mão esquerda estavam cravejados com os espetos, passaram para a mão direita. O martírio não parecia ter fim. O serviço era feito porém, com calma os espetos iam ficando enterrados, não havia pressa em retirá-los, eles davam a impressão de que as unhas cresceram de repente e viraram garras.

Eu contava os dedos espetados e os que faltavam espetar, calculava o tempo em que eu tinha de me manter com os músculos e os nervos tensos e fazendo aquele esforço tremendo para não gritar. Quando os dez dedos das mãos ficaram todos enfeitados, respirei fundo e julguei ter vencido aquele primeiro “round”. Mas enganei-me porque o primeiro “round” não terminara. Com surpresa vi que eles se abaixava e começavam a meter os espetos nas unhas dos pés.

As torturas prosseguiram pela noite a dentro, o sadismo tomando as formas mais variadas: “mordidas” de alicate na barriga, torceduras dos testículos, queimaduras com ponta de charuto.

Finalmente, exaustos e suados, os algozes suspenderam as operações. Com o alicate arrancaram, uma a uma, as farpas das mãos e dos pés. Puseram numa bacia um líquido que disseram ser água vegeto-mineral, e mergulharam meus dedos nessa água, à guisa de assepsia. A seguir, fui levado para uma sala ao lado, a alguns passos apenas do local das torturas.

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“SEGUNDO DIA”

Na sala onde me colocaram puseram um investigador para me vigiar. Esse vigia sentado à minha frente, tinha ordens para me manter de pé num canto de parede, de maneira nenhuma devia deixar que eu sentasse, dormisse ou cochilasse.

No início o sentinela não teve dificuldade em cumprir sua missão. Dormir eu não podia, mesmo que quisesse. Logo após a minha retirada do “quadrado”, trouxeram para lá outras pessoas. Do canto onde eu estava ouvi vozes assustadas de homem e de mulher, choro de criança, as mesmas ordens de “tira a roupa” e, a seguir, gritos pavorosos martelaram os meus ouvidos.

A porta que dava para o “quadrado” estava aberta e eu a dois passos dela. Os gritos e os soluços eram tão perto que me abalavam os nervos, podia ouvir perfeitamente as batidas do sarrafo nos espetos de bambu, era como se estes estivesse penetrando em minha própria carne. As gargalhadas dos tiras, os deboches e os palavrões vinham de roldão com o gemido das vítimas e me invadiram os sentidos, sem que eu pudesse fugir daquele inferno, eu tinha que suportá-lo, até quando, não sabia. Perdi a noção do tempo, todas as janelas estavam fechadas, as luzes acesas, não podia distinguir a noite do dia. Distinguimos o dia da noite pela visão: luz e sombra. Agora outros sentidos entraram em função para a divisão do tempo. As horas de silêncio correspondem ao dia. E quando as carnes começaram a ser dilaceradas no “quadrado”, quando os gritos, os ais e as gargalhadas enchem o espaço, é porque a noite chegou.

Mas, o suplício não sofre intermitência. Durante a noite ele é violento, brutal, arrasador. De dia o sofrimento é lento, morre-se aos poucos pela fome, pela sede. Morre-se devagarinho, de pé, as carnes se consumindo, o corpo diminuindo e afinando até ficar um esqueleto, a pele colada aos ossos.

De vez em quando me vem um pensamento que procuro afastar: a mulher e os filhos. Não sei o que está havendo com eles mas não posso pensar neles, sei que qualquer sentimentalismo é perigoso, o melhor é mudar as idéias para outra coisa, fazer de conta que eles não existem, muito embora isto muito me custou.

Os dedos estão dormentes, não há dor localizada em nenhum ponto, porque é o corpo todo que me dói. Aperto os dedos e das unhas sai um sangue preto, pisado com mau cheiro.

Não sentia fome ainda mas a sede ia aumentando cada vez mais, percebi que ela ia se tornar uma obsessão, no meu maior tormento. Procuro também afastar do pensamento a palavra água, mas é impossível. No mictório ao lado, deixaram a descarga automática funcionando, o barulho da água chega aos meus ouvidos como o som de uma cascata, sem parar.

Começo a sentir as pernas bambas. Mas sou forçado a continuar de pé, sob a ameaça de uma correia larga que o investigador empunha, à minha frente.

O tempo foi se escoando até que a noite chegou, pois alí estava a turma de espancadores para confirmá-la. Fui novamente levado ao “quadrado”. Agora, os apetrechos são outros: uma enorme palmatória, maços de jornais, indicando que novas formas de torturas iam ser postas em prática.

Fui amarrado de forma a deixar as mãos livres para receber pancadas de palmatória. Esta passou a funcionar pelo braço dos espancadores, o revezamento era feito quando um se sentia cansado. As mãos ficaram inchadas, redondas. Depois passaram a bater nas nádegas, até deixar em carne viva. Por último, fui amarrado numa cadeira, esta foi deitada ao solo, deixando-me com os pés para cima. Reiniciaram as palmadas, agora na sola dos pés.

Nessa noite estava presente um rapazinho ainda moço, de uns 18 anos presumíveis, que estava treinando para espancador. Quando iniciaram a pancadaria, esse rapaz ficou de tal forma excitado que dava gargalhadas feito louco, fingia soltar foguetes, imitava o seu chiado e estampidos, pulava, subia nas portas feito macaco, saltava lá de cima ao solo, tornava a subir, tornava a pular, dava gritos histéricos, num espetáculo inédito, coisa nunca vista nem imaginável.

A pancadaria continuava, minhas carnes começavam a rachar, e o desgraçado do tarado a gritar e a pular como um possesso. A seguir fui amarrado em forma de crucificado, trouxeram os jornais, acenderam tochas e começaram a me chamuscar como que pela um porco. O cheiro de carne chamuscada e de cabelos queimados encheu o “quadrado”. Acenderam fogueiras aos meus pés, o calor tremendo e a fumaça me asfixiavam, a sede aumentou, a garganta ressecou. Os carrascos iam alternadamente lá fora, para respirar. Eu não podia sair dali. Estava sendo assado vivo.

E o miserável histérico a pular e gritar delirantemente.

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“TERCEIRO DIA”

Comecei a sentir uma dor de cabeça esquisita, insuportável. Era um peso bem na nuca que aumentava gradativamente, como se qualquer coisa estivesse comprimindo e esmagando o meu cérebro. Pensei em traumatismo e na possibilidade de vir a perder o uso da razão. E fiquei desejando que a loucura viesse, na ilusão de que ela me tornaria insensível às dores e ao sofrimento.

Mas o meu raciocínio continuava a funcionar, ora atabalhoadamente, ora com perfeita lucidez, o corpo resistindo de tal forma as torturas, que me surpreendia. Nunca imaginara que o meu físico raquítico pudesse suportar tanta pancada, sem comer, sem beber e sem dormir. Quantas vezes desejei perder os sentidos, um desmaio qualquer que me aliviasse por alguns momentos. Mas, nada de vertigem. Até a velha bronquite que outrora tantas noites de sono me roubara, desapareceu.

A fome começou a me atormentar. O estômago passou a latejar, comecei a sentir umas batidas enjoadas e persistentes nesse órgão, como se para ele tivessem se transferido as batidas do coração. Já devia estar chegando a noite, quando me trouxeram um prato de comida. Era farofa com carne seca. Antes de começar a comer, pedi água. Disseram-me: “Coma. Depois vem água”. Fiquei desconfiado daquele depois. A sede era maior do que a fome, eu sabia que não ia poder engolir aquela farofa sem água, com a boa ressecada, sem saliva.

Tentei comer. Ao por na boca a primeira colherada, compreendi que me haviam armado uma cilada: a comida era puro sal, tentavam aumentar minha sede ao máximo, ao desespero. Botei fora a comida que estava na boca e afastei de mim o prato. Os investigadores trocaram entre si olhares irônicos, como se quisessem dizer: “Que pena! Não caiu”. Eles não compreenderam porém uma coisa. Se em vez de farofa fosse água com sal, talvez eu tivesse bebido, tal era a sede que me atormentava.

Mais tarde fui levado ao “quadrado”. Amarrado, com os braços em cruz, aguardei os acontecimentos.

Vi, no chão, a caixa com os espetos de bambu, o sarrafo, o alicate, a bacia e as garrafas, o material para o suplício das unhas. Como eu já havia passado por aquela espécie de tortura, julguei que aqueles apetrechos não estavam a mim destinados. Entretanto, a sala de torturas é uma caixa de surpresas, nunca se pode prever o que vai acontecer. Logo pude constatar o meu engano, os “adelfis” estavam ali à minha espera.

O rito infernal ia se repetir, preparei-me para enfrentá-lo. Começaram a cravar os espetos sob as unhas, reabrindo as feridas, fazendo espirrar sangue e pus. Em vez de contrair os músculos, relaxei-os por completo e gritei com toda a força que me restava. E verifiquei que esta era uma forma melhor de suportar o martírio.

Quando os espetos foram cravados em todos os dedos das mãos, começaram a praticar uma nova variação de tormento. Com alicate retorciam os espetos nas feridas, de modo a que a parte mais larga das farpas ficassem para cima. As unhas ficaram, assim, suspensas ao máximo, restando presas apenas os dois cantos laterais. Depois as farpas foram retiradas dos dedos das mão e novamente cravadas nos dedos dos pés, repetindo o que haviam feito no primeiro dia. Com a inovação do retorcimento do bambu.

Novas fogueiras de jornais foram acesas – parecia que o desejo dos monstros era me assar em fogo brando – o calor aumentava a sede, aquela sede que se tornara idéia fixa.

Depois passaram a puxar o órgão sexual com o alicate e a torcer os testículos. Essa forma de tortura ocasionava dores horríveis. Os órgãos estavam inflamados, eu temia pelas conseqüências. Lembrei-me do que aconteceu com o companheiro Ceará – uma das vítimas desses brutais espancamentos – que ficou urinando por um buraco, em conseqüência e pancadas nos órgãos genitais.

O curioso é que os carrascos deixaram de fazer perguntas, certamente por julgá-las inúteis, diante do meu silencio, pois todas as que fizeram ficaram sem respostas.

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“QUARTO DIA”

Os novos métodos de tortura que a polícia estava pondo em prática eram considerados por ela própria como científicos. Os algozes recebiam ordens para evitar lesões físicas ou aleijões que pudessem, mais tarde, “dar na vista” e produzir provas “visuais” irretorquíveis nas vítimas. Só que esses métodos freqüentemente falharam. E quando um ficava louco, quanto outro punha termo à vida ou quando um terceiro – num gesto instintivo – tentava a fuga ou resistia à prisão era alvejado impiedosamente pelas costas, a “ciência” dos métodos tornava-se uma irrisão. E tais “falhas” eram consideradas apenas como acidentes lamentáveis mas, sem importância.

Dentro dessa orientação “científica”, havia um médico acompanhando os trabalhos, com a missão de avaliar a nossa resistência física ou fazer soerguer as forças a um corpo que baqueasse. O médico que nos assistia – o doutor Mariozinho – era um sujeito pequenino, franzino. Ele veio me examinar. Olhou-me pegou no meu pulso, auscultou. E concluiu que meu estado físico era excelente, que eu era uma resistência fora do comum.

Esse elogio, noutra oportunidade, muito me teria desvanecido. Mas naquela ocasião, ele queria dizer que eu estava em condições de suportar as torturas e que estas podiam continuar sem perigo.

Eu sempre tive um grande respeito a admiração aos médicos, sempre achei nobre o honroso e seu mister de salvar vidas e diminuir os sofrimentos da humanidade. Mas ali estava um empenhado justamente ao contrário, em prolongar os padecimento de seus clientes. E essa era mais uma estranha revelação da “caixa de surpresas” da Polícia fascista do “Estado Novo”.

Enquanto o clínico me examinava, o meu raciocínio divagava. Esse médico consegue entrar com facilidade em nosso organismo, vai ao coração, aos pulmões, pode vasculhar tudo por dentro. Mas há um ponto onde ele não conseguirá penetrar: no nosso pensamento. Isto porque, se ele conseguisse adivinhar o que estou pensando a seu respeito, na certa eu levaria agora mesmo, mais um bofetão ou um pontapé.

O doutor foi embora mais sua visita agravou o meu estado de nervos. As esperanças de que as torturas pudessem ter um fim próximo se desvaneceram. Agora eu já sabia que as torturas iam continuar por muitos dias, pois o médico não acabara de concluir que o meu estado físico era excelente?

Tive a impressão de que o peso na nuca aumentara vários quilos, a cabeça parecia estourar.

A descarga do mictório continuou a funcionar ininterruptamente, o ruído da cascata enchia os meus ouvidos. A fome ia diminuindo – ela só me atormentou até o terceiro dia – enquanto que a sede ia aumentando. Tinha vontade de gritar água! água! mas me contive. Eu não devia dar demonstração de fraqueza e de desespero. Continuei de pé no canto da parede, oscilando, me firmando ora num pé, ora noutro, eu tinha que jogar o peso do corpo numa perna enquanto a outra descansava. Procurei me distrair espremendo as unhas, dedo por dedo, fazendo sair um pus fedorento, que estava sempre se renovando.

Senti um estremecimento quando ouvi os primeiros passos no “quadrado”. Era a turma de espancadores que chegava com as novas vítimas. A sinfonia dantesca enche o ar. É uma repetição dos mesmos palavrões, gargalhadas e gemidos.

A mistura das gargalhadas com os gemidos me causa uma estranha sensação, a inconseqüência dos sons me desconserta. Naquelas circunstâncias, a manifestação simultânea dos dois sentimentos diametralmente opostos – a dor e o prazer – era mais uma revelação da “caixa de surpresas”, eu jamais vira ou imaginara coisa igual.

Depois que cessaram aqueles gritos, chegou a minha vez. Naquela noite, com o diagnostico do médico declarando que eu ainda estava em bom estado físico, os tarados caíram sobre mim com verdadeira volúpia. Um torcia um braço, outro torcia um dedo, outro apertava a garganta, pareciam urubus na carniça. Quando eu arquejava e as pernas cambaleavam, eles suspendiam as operações. Depois que eu reanimava, eles recomeçavam, procurando sempre os pontos mais sensíveis, as articulações, os órgãos genitais, os pulmões e o coração.

A imaginação criadora dos verdugos é fértil. Eles estão sempre a descobrir pontos vulneráveis no organismo e a cada descoberta exultam como se tivessem descoberto um tesouro. Isto aconteceu quando eles descobriram um calo, muito sensível, no meu pé. Com um cabo de vassoura passaram o resto da noite a bater sobre o calo. É impossível descrever o que senti. Dessas pancadas originou-se um tumor entre os dedos, o pé inchou, ficou redondo como uma bola.

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“QUINTO DIA”

Pelos meus cálculos os torturadores chegaram mais cedo. A simples presença dos monstros nos causa um inexprimível estado de apreensão de desassossego. Ficamos na expectativa de que um golpe traiçoeiro nos seja desferido a qualquer momento e nos sentimos completamente indefesos.

Monteiro aproximou-se e repetiu a pergunta que me fizeram desde o primeiro dia: “Onde é que você mora?”Permaneci calado.

O Pequenino, rindo, largou esta bomba: “Não é preciso dizer. Já estivemos lá, na sua casa, na rua tal. Sua mulher está perto de ter criança. Quando ela nos viu entrar na sua casa, com as metralhadoras nas mãos, teve um ataque de nervos, quase que aborta, tivemos que chamar o médico às pressas” E continuou a dar detalhes sobre a casa para demonstrar que não estava mentindo.

Senti uma coisa esquisita pelo corpo, como se o sangue tivesse parado nas veias. Há pouco eu me indagava que espécie de golpe eu ia receber e este acabava de ser desfechado, fria e bruscamente, naquela notícia acachapante. O coração passou a bater desordenadamente, o torniquete que me comprimia o cérebro parecia ter dado várias voltas. Tive vontade de dizer: Miseráveis! Torturem-me! Cortem-me em pedaços! Mas, não mexam na minha família. A custo me contive, eu não podia perder a calma nem topar “provocações” tinha que aparentar indiferença. E continuei imóvel mudo.

Agora eles podiam a qualquer momento, trazer a minha mulher e os filhos para a sala das torturas, como já fizeram com outros. Com o estado adiantado de gestação e os nervos abalados em que se encontrava, a mulher não resistiria a uma tal prova. Restava a esperança de que a polícia, com seus métodos científicos, não quisesse correr os riscos e as responsabilidades da morte de uma parturiente em tais circunstâncias, com a conseqüente repercussão que poderia ter na opinião pública. Essa esperança todavia me parecia frágil e eu me sentia agora num estado da maior aflição.

Aos meus ouvidos chegava o som de uma cachoeira. Donde vinha esse barulho? E eu me lembrava: é a descarga do banheiro, ao lado. Eu sentia que ia acabar enlouquecendo. A boca estava ressecada, a garganta me ardia. Passei a estudar um meio de por fim a tudo isso. Sabia que estava um segundo ou terceiro andar. Mas, as portas e janelas estavam fechadas. O “tira” continuava sentado à minha frente, não arredava o pé.

Procuro afastar do pensamento a idéia do suicídio. Espremo os dedos, o pus fedorento nunca para de sair das feridas. É isto o que faço sempre que procuro afastar um mau pensamento, aperto e solto rápido as pontas dos dedos, o líquido purulento dá uns estalinhos esquisitos sob as unhas.

Do “quadrado” chegam os primeiros sinais de atividade. Preparo o espírito para enfrentar mais uma noite de terror.

Quando se aproxima a hora das torturas todos os nosso sentidos se aguçam, o instinto nos coloca na situação de um animal acuado, fisicamente sem nenhuma chance de defesa. Moralmente, porém, há um escudo com o qual nos protejamos: e a convicção de que nos batemos por um ideal justo e humano, a certeza de que o nosso sacrifício não será em vão e que o regime de iniqüidades em que vivemos terá fatalmente que ruir, mais cedo ou mais tarde, diante da avalanche dos que têm fome de pão e sede de justiça. Esta convicção, em nenhum momento, me abandonou.

Quando os gritos cessaram, chegou a minha vez, fui levado ao “quadrado”. Os meus pés deslizam sobre uma massa pastosa. É o sangue ainda quente dos companheiros que me antecederam.

Mais uma vez fui amarrado às maçanetas das portas. Os carrascos reiniciam as torturas vasculhando as feridas das unhas. As farpas de bambu são espetadas e reviradas, as gotas de sangue e pus das mãos e dos pés vão se juntar às poças já existentes no ladrilho. O ar está impregnado de um cheiro sufocante de coisa podre, suor e fumo. Quase não posso respirar.

De vez em quando sinto uma picada nas pernas ou nos braços, o corpo estremece: são as pontas de cigarro ou de charuto acesas que são encostadas à minha pele. Essas queimaduras deixam marcas passageiras mas feitas de surpresa, abalam ainda mais os nervos já em frangalhos.

As bolhas e pequenas chagas vão se multiplicando pelo corpo, como se tivéssemos sido atacados de varíola. Cada hora, cada minuto que passa, sentimos que um pouco de nossa vida se consome e se esvai.

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“SEXTO DIA”

Depois que saí do “quadrado” fui acometido de um acesso de sono. De pé no canto da parede desandei a cochilar, a cabeça pendia irresistivelmente para frente, como se eu perdesse de repente os sentidos. Um estalo forte como um tiro me despertou bruscamente. Esse estampido era produzido por uma larga correia que o investigador sentado à minha frente, vibrava sobre a mesa. A primeira pancada me produziu um susto tal que o corpo todo estremeceu. O “tira” achou graça.

A dor de cabeça atingiu o máximo. O peso na nuca tornou-se uma coisa louca, insuportável. A vigília forçada de vários dias, as torturas, a fome, a sede, os sobressaltos, o cansaço, tudo isto acumulado, chegou a um ponto que as últimas reservas de resistência física iam se esgotando. A cabeça novamente pendeu para frente, para a semi-inconsciência. Nova pancada, novo sobressalto.

Faço um esforço sobre humano para não cochilar, pois as pancadas na mesa funcionam como se fora na minha cabeça. Mas não tenho forças para impedir os cochilos. Então a cena se repete, numa seqüência interminável de cochilos, pancadas e despertar assustado, cochilos, pancadas, cochilos, pancadas...

As pernas tremem, cambaleio, mas consigo a custo me manter em pé. Não consigo porém manter a cabeça firme. E o tormento continua. A pancada e o susto que abala todo o meu corpo só poderiam ser evitados se fosse possível impedir o sono.

A cabeça pende mais uma vez. Num segundo sonho com um estimulante, um remédio fantástico que me mantém acordado e me salva da tortura. Nova pancada me faz estremecer e me traz à realidade da vida ou melhor, à realidade da morte. Sinto a cabeça como se ela não fizesse mais parte do meu corpo, como se fosse uma coisa à parte, nela se concentrando todas as dores, todas as reações e as últimas pulsações.

Escutei os “tiras” dizerem que estávamos na semana santa, revivia-se o martírio de Cristo. Então eu pensei: Talvez tudo isto esteja acontecendo em nome dos ideais cristãos. Eles vivem falando em “ideais cristãos”, será que eles interpretam e aplicam os ideais cristãos desta maneira, arrancando unhas, matando lenta e cruelmente as pessoas? E a frase ideais cristãos ficou no meu juízo, girando sem querer sair.

Naqueles momentos a sonolência sobrepujou a todas as demais sensações – a sede, as pontadas no estômago, as dores nas pernas, as queimaduras. Cada vez que a cabeça pendia para a frente era como se eu caísse num vácuo. A queda não era o pior, mas o medo da pancada fazia com que eu a temesse e fizesse todo esforço para evitá-la.

O “tira” estava atento, aguardava apenas o momento em que minha cabeça descambasse para desfechar o golpe fatídico. Eu não tinha forças para me conter, as pancadas e as quedas no abismo vão se amiudando, o meu cérebro não agüentava mais, parecia que ia estourar.

Procurei decifrar o semblante do “vigia”, o riso de gozo e de ironia estava sempre presente no seu rosto, não consigo distinguir nenhum vestígio ou traço de humanidade. Terá ele família, filhos?

As pancadas tornaram-se mais freqüentes, há um ferreiro batendo o malho numa bigorna, a bigorna é meu cérebro. Cheguei a um ponto em que não conseguia mais coordenar nenhum pensamento. Em certos momentos não sabia onde eu estava nem o que estava acontecendo.

Alguém veio tirar-me daquela aflição. Seguro por um braço fui levado, como um sonâmbulo, para a sala de torturar. Lá estava o trio sinistro à minha espera, com todos os apetrechos para a outra forma de suplício. Todos os meus sentidos passaram a “estado de alerta”, milagrosamente despertos da letargia que há pouco me prostrava.

Os inquisidores recomeçaram a manipular num corpo que é quase um esqueleto, onde a dor está generalizada, mas onde eles descobrem sempre pontos nevrálgicos. Remexem mais uma vez, as feridas. Chafurdam-se no pus com volúpia. E, ao som das gargalhadas e do deboche, conseguem dar continuidade ao seu trabalho nefando, em mais uma noite de terror.

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“SÉTIMO DIA”

Nos momentos de crise eu achava que tudo ia acabar. Caía no desânimo e chegava a desejar que a morte viesse o quanto antes para por termo ao martírio. Depois vinha a reação. Pensava nas coisas bela da vida, no lar, nos filhos, no despontar de um dia radiante, o sol iluminando campos verdejantes, imaginava multidões desfilando, felizes, na grande festa da vitória. E voltava aquela esperança de que eu tornaria ao mundo dos vivos. E o organismo reagia, parecia readquirir as forças perdidas, eu lutava para viver.

A descarga do mictório mais uma vez rouba-me o devaneio. A sede faz-me delirar. Imaginei todos os meios de fazer chegar aos lábios ao menos umas gotas d’água. No banheiro não há pias nem torneiras. A descarga do mictório espalha a água no azulejo, não há meio de apará-la com as mãos. Além do mais, quando vou á privada, um “tira” me acompanha a dois palmos de distância.

Morrer de sede vendo a água se derramar aos meus pés tem qualquer coisa de diabólico. Sou acometido de súbitos e estranhos desejos como o de rolar pelo chão, rir, gargalhar, mas ainda tenho forças para reprimir os desvairados impulsos. E começava a pensar, com essa capacidade de auto-domínio, se eu vier a ficar louco, certamente serei do tipo calmo, silencioso. Terá isso algum sentido, alguma lógica?

Tive de repente uma idéia. Eu poderia aproveitar minha própria urina para matar a sede. Eu estranhava o fato de ainda ser possível urinar não sabia donde vinha aquele líquido avermelhado, se eu há sete dias não bebia nem comia. Era o processo de desidratação, concluí depois.

A urina era pouca e eu passe a retê-la, por economia, aguardando um momento de descuido do “vigia” para apará-la com a mão e beber. Esse momento chegou, afinal. O investigador afastou-se por um minuto, eu enchi a mão e bebi em rápidos goles. O líquido quente e salobro deixou um gosto esquisito na boca.

Por alguns instantes aquele latejar insuportável no estômago diminuiu. A sede porém não passou. Ao contrário exacerbou-se. A obsessão pela água continuou a me atazanar o juízo.

O efeito calmante da urina quente no estômago foi passando, as batidas enjoadas voltaram. Agora eu tinha que esperar o líquido juntar na bexiga e o investigador se descuidar. Esse descuido era hipotético. Eu fazia um esforço para definir meus atos, queria saber se estava agindo como uma pessoa sã ou se já estava fora do meu juízo. E chegava à conclusão de que minhas reações eram normais, eu não podia agir de outra maneira.

Era impossível continuar com aquela sede, eu tinha que beber água de qualquer maneira. Do mictório era impossível. Restava o vaso da privada. Sim no vaso da privada estava a solução. Eu tinha noção exata dos riscos que ia correr. Certamente não ia escapar de uma infecção. Isto demonstra que meu raciocínio ainda regula, pensava eu. Mas, não importa o que virá depois. Qualquer morte é preferível à morrer de sede. Resta agora aguardar uma oportunidade, esperar um descuido do investigador.

Direi ao “tira” que preciso ir à privada, ele me acompanhará e se colocará a dois passos de distância, mas haverá um momento em que ele dera as costas e eu aproveitar esse momento. Não sei porque não tive essa idéia antes. Nojo? Nessas alturas, quem sou eu prá ter nojo, se estou a um passo da cova, onde serei devorado pelos vermes? Foi assim que aquela idéia repugnante nasceu e se robusteceu na minha cachola. Só restava o momento de pô-la em prática.

O investigador que veio render ao que estava de vigia, fez esta revelação surpreendente: “Hoje não vai ter sessão de esculacho, é Sexta-Feira da Paixão”.

Trocando em miúdos, isto queria dizer que a sala de torturas não ia funcionar nesse dia, em sinal de respeito a crucificação de Jesus Cristo. O cúmulo da hipocrisia!

Imaginei o Cegadas ajoelhado aos pés de um padre confessando os seus pecados, dizendo que torturou crianças, que colocou uma dessas crianças de 4 anos de idade, junto com o pai e a mãe – todos completamente nus – num corredor quadrado, arrancando-lhe as unhas e praticando as mais torpes sevicias. E o padre, naturalmente surpreendido e horrorizado com a revelação, ficaria hesitante por não dispor de meios nem de autoridade para punir tão nefando crime. E acabaria dando alguns conselhos ao monstro recomendando-lhe, como penitência, rezar alguns padre-nossos e ave-Marias...

Que me perdoem os católicos. Não quero ser irreverente. Quero apenas ser fiel ao meu relato e dizer como funcionava o meu raciocínio, naquelas circunstâncias.

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“OITAVO DIA”

Na noite anterior – Sexta-feira da paixão – graça aos ideais cristãos da polícia fascista, não fui levado à sala das torturas. Não fiquei sabendo se lucrei ou se perdi com a benevolência religiosa dos tiranos, pois o meu desejo era que terminasse logo o suplício, qualquer que fosse o fim a mim destinado: viver ou morrer.

O “quadrado” deixou de emitir os seus gritos e gemidos infernais, o silêncio emendou com o da noite, até o dia seguinte. Agora só ouço a voz que vem de dentro de mim com uma força irresistível: ÁGUA! Tenho que beber água de qualquer maneira! A sede está me deixando louco.

Torno a pensar no vaso da privada. Já fui algumas vezes até lá, com o propósito de beber água, mas o investigador que me acompanha não dá oportunidade, fica grudado como um carrapato. Tenho que ter cuidado para não despertar suspeitas, o melhor é esperar a mudança da guarda.

Os acessos de sono são, agora, intermitentes. Nos intervalos surgiu um novo fenômeno até então desconhecido: a cabeça tomba repentinamente para a frente, mas de maneira rápida, numa sacudidela incontrolável. Creio que é uma conseqüência dos cochilos e dos sustos produzidos pelas pancadas da correia de couro sobre a mesa. As sacudidelas transformaram-se num cacoete insistente e penoso. Mas, tiraram ao vigia a oportunidade e o prazer de estalar a sua correia, pelo menos até que outro acesso de sono volte a me atacar. Só o aperto na nuca não me larga e continua a progredir. As dolorosas pulsações e a peso na nuca são duas coisas difíceis de descrever, eu nunca havia sentido nada na vida que se assemelhasse àquilo.

O doutor Mariosinho é um médico atento ao “seu serviço”, tem vindo diariamente me examinar e suas conclusões são sempre as de que eu ainda possuo reservas suficientes para continuar a suportar os suplícios. E repete os elogios às minhas qualidades de nordestino resistente, acostumado a agüentar as durezas da vida. Talvez ele pense que o nosso corpo esteja revestido de uma couraça protetora toda especial, que nos torna invulneráveis e insensíveis. O médico policial é uma espécie de batedor da “turma do esculacho”: vem sempre na frente. Depois do seu “diagnóstico”, fui levado ao “quadrado”.

Os espancadores reiniciaram o seu trabalho com certa apatia, como se realizassem uma tarefa demasiadamente corriqueira. Depois foram se reanimando, como que estimulados por um estranho e cruel sentimento que aos poucos desperta e se agita em seu íntimo. Dentro em pouco são acometidos de verdadeira exaltação.

Os carrascos dão vazão ao seu sadismo, vão se revesando na pancadaria. Com a desidratação do organismo, o meu hálito se tornara insuportável. Parecia que estava poder por dentro. Percebi que o meu cheiro incomodava até mesmo os espancadores – eles que estavam habituados a lidar com a podridão e que pareciam sentir-se bem em revolvê-la. Passei a usar o meu mau hálito como auto-defesa, à moda maritacaca: disfarçadamente jogava o bafo na cara do algoz mais próximo. Ele recuava tonto. É tudo que posso fazer com vocês no momento, dizia comigo mesmo.

Em algumas ocasiões os “tiras” davam mostras de cansaço, faziam uma pausa, e o silêncio reinava por alguns minutos. Surgia, então, da sala vizinha – de onde comandava as operações – o detetive Veras e vinha incentivar seu sequazes: “Baixa o pau nesse f.d.p.! Ele está bancando o “queixo duro”, mas aqui não tem disso não. Ou ele fala ou vai ficar mudo pra sempre”.

A voz de comando era obedecida incontinenti, os monstros caiam sobre mim feito um furacão; socos, pontapés nas canelas, membros retorcidos, o mundo girava, o terreno fugia sob meus pés. O meu corpo transformara-se numa carcaça; mas o massacre prosseguia.

O que mais me revoltava eram os apelos à deleção: “Fala Bangu! Fala e te daremos água, cessaremos as torturas! “Eu pensava, Ah! Se eu ao menos pudesse dizer alguns palavrões! Nem isso eu podia dizer, para desabafar. Eu tinha que “engolir” os insultos calado, minha única resposta era o silêncio. Apenas o silêncio.

Na oitava noite de torturas. Paguei o dobro pelo “descanso da Sexta-Feira da Paixão.

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“NONO DIA”

Naqueles dias amargos, quando as forças pareciam querer me abandonar, eu procurava coordenar minhas idéias e pensava nos milhões de injustiçados que há por esse mundo afora. E no meio dessa multidão imensa eu distinguia caras bem conhecidas, gente do meu sangue, e sentia que não estava me sacrificando por uma causa estranha, ela me pertencia de corpo e alma. E nessas ocasiões eu me sentia desejo de viver para lutar por essa causa e para ver a sua vitória. Era isso o que me dava ânimo para resistir e viver.

A luta entre a vida e a morte estava travada, era difícil prever qual seria a vitoriosa. Sempre que eu fazia um esforço para raciocinar, a dor de cabeça aumentava, eu sentia uma sensação esquisita, parecia que qualquer coisa se rompia no meu cérebro, algo como um véu e envolvia, amortecendo-o, paralisando-o. Impossível era saber quanto tempo durava esse estado de letargia.

Quando, afinal, as idéias iam voltando e se aclarando, era como se eu tivesse saído de um pesadelo.

Dirigi-me ao reservado, acompanhado pelo investigador. Sentei-me no vaso da privada e aguardei o momento. Mas o vigia não se afastava da porta, a um passo de distância. Em dado momento ele virou as costas, fazendo menção de se retirar. Aproveitei o ensejo, levantei-me rápido e, com as duas mãos em concha, apanhei um punhado d’água do vaso. No momento em que levava a boca, recebi um bofetão, por trás. Era o investigador quer voltava no justo momento. A água se espalhou pelo meu rosto, frustrando o meu intento.

Voltei para o canto da sala, para o meu lento suplício. Foram-se as minhas esperanças de chegar aos lábios gotas d’água mesmo poluída. Continuei de pé, não sei, não compreendo como as pernas conseguem sustentar o corpo, e aguardo a hora de ser levado mais uma vez ao “quadrado”. A hora chega, a cena se repete.

O meu físico tornou-se um esqueleto insignificante, os “tiras” se aproveitam disto para me apelidarem de “Pequenino”. Fico revoltado com o gracejo, ao me lembrar que um dos torturadores de alta estatura tem a mesma alcunha. Mas nada posso fazer para impedir essa forma sui generis de sadismo, que é a dos algozes se divertirem às custas de suas vítimas.

Descrever as torturas dessa noite seria repetir noites já descritas: os espetos nas unhas, o remexer de feridas purulentas, as torções de membros descarnados.

O rapazinho histérico que pulava e gritava durante as torturas não mais apareceu. Teria sido recolhido por algum hospício? A ausência do bufão parecia ter tirado a inspiração aos carrascos, estes agem pachorrentamente, a sua lentidão prolonga o meu sofrimento, melhor seria que tudo acabasse de uma vez. Fico pensando que essa fleuma é calculada, que ela faz parte dos “métodos científicos” ensinados pelos nazistas e de que os policiais nativos se vangloriam.
Sinto que a morte está rondando, a qualquer momento um golpe falso pode produzir o fim. Não é isto o que me apavora e sim o fato de que a agonia se prolongue, é sobre-humano o esforço que faço para me manter em pé.

De vez em quando minhas pernas cambaleiam, meu corpo fica suspenso pelas cordas que prendem meus pulsos, as mãos, inchadas, ficam roxas, quase negras. Isto me obriga a realizar um esforço enorme para sustentar nas pernas e aliviar a dor dos pulsos. Por fim, as últimas reservas de resistência física se esvaem, meu corpo descamba definitivamente, até ficar inerte. O meu esqueleto é arrastado até a sala contígua.

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“DÉCIMO DIA”

Mais uma vez fui atado ao “pelourinho”. As torturas recomeçaram. Os carrascos se esforçam para imprimir maior inspiração ao seu mister, mas isto vai se tornando cada vez mais difícil diante da minha fraqueza, do meu estado pré-agônico.

Por sua vez, o tal monstrinho histérico – o que gritava, ria, pulava e rolava no chão durante o massacre – continuou desaparecido. Sua ausência parece ter diminuído o entusiasmo dos espancadores, tornando-os de tal forma fleumáticos que os seus chefes de vez em quando irrompiam de supetão no “Quadrado” para estimular seus asseclas, para evitar arrefecimentos.

As torturas prosseguem com maior ânimo, inexoráveis, o esqueleto insistindo teimosamente, os meus gritos transformados em longos gemidos arquejantes, incontroláveis, entravam pela noite a dentro, pareciam não ter fim.

De repente houve uma correria na sala vizinha. Ouvia-se uma pancada na janela, barulho de vidros partidos caindo no chão. Gritos fortes vibraram no espaço: “Abaixo a ditadura fascista! Viva Luís Carlos Prestes! Os “tiras” passavam correndo feito loucos, sons desconexos, confusão, agarra-agarra. Senti que uma coisa muito grave estava acontecendo.

O tumulto foi aos poucos diminuindo até chegar a um silêncio total. Em segundos a notícia se espalhou: Joaquim Câmara Ferreira – o companheiro Jurandir – que vinha sendo torturado, aproveitou um descuido do “tira” que o vigiava, correu para uma janela partiu com um soco o vidro e cortou os pulsos, ao mesmo tempo que gritava as frases acima descritas.

Foi operado na mesma hora, ficando fora de perigo de vida. A morte que lhe aguardava muito mais pavorosa viria muitos anos depois, quando foi massacrado sob torturas pela Polícia de São Paulo.

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“DÉCIMO PRIMEIRO E DÉCIMO SEGUNDO DIAS”

Vou perdendo a noção do tempo e das coisas. Os meus sentidos se embotam. As vezes tenho dificuldade em saber que parte do corpo me dói, onde estou, o que está havendo. Quando a mente se aclara, sinto que está se esvaindo o que me resta de existência, que minha vida está por um fio, a qualquer momento os prognósticos do doutor Mariosinho poderão ir “pro beleléu”. Os “tiras” já não insistem para que fique de pé durante o dia – insistência que agora seria improfícua, a não ser que arranjassem um meio de escorar o meu esqueleto.

Desperto constantemente de um estado de inconsciência, como se acordasse de um sono profundo, e fico em dúvida se tive um desmaio ou se simplesmente dormi. Acredito que esses intervalos de inconsciência são momentâneos, mas a recuperação dos sentidos traz de volta as dores, a angústia, a apreensão.

Ouço vozerio na sala vizinha. Os torturadores chegaram. Ordenam que me levem ao “quadrado” dos suplícios. Faço esforço para caminhar mas o estado de fraqueza me faz cambalear, os tiras me seguram pelos braços. Me carregam. Me amarram nas maçanetas das portas, fico dependurado pelas cordas, oscilando como um pêndulo. As torturas recomeçam. Param quando sentem que preciso ser reanimado. Reiniciam depois, para depois parar e depois recomeçar.

No 12º dia chegou ao fim. Entrei em agonia. Fui estendido de costas ao chão. Perdi os sentidos. Não sei quanto tempo permaneci nesse estado de coma. Também não sei o que fizeram para que eu voltasse à vida. Ao que parece, esta voltou lentamente. Aos poucos fui recuperando os sentidos.

Primeiro vi umas sombras que se moviam confusamente. Depois verifiquei que estava deitado no chão e em volta de mim estavam os espancadores e seu estado-maior, todos de cócoras, me olhando com curiosidade. O doutor Mariosinho estava mais perto, ergueu minha cabeça e passou a despejar lentamente uma xícara de leite na minha boca, o líquido desceu aos poucos na garganta, aos poucos fui me reanimando.

Depois de permanecer nesse estado por muito tempo, o doutor Mariosinho segurou meu pulso e ao cabo de alguns segundos sentenciou: “Não adianta insistir. Este não agüenta mais”. Outro chefe me ordenou, aborrecido: “Levem esse queixo-duro para a sala dos detidos”.

Dois “tiras” me ergueram e me carregaram, através de salas e corredores, para o local indicado. E me deitaram no chão de uma solitária, onde só cabia uma pessoa.

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“A SALA DOS DETIDOS”

A sala dos detidos da Polícia Central não era bem uma sala. Era uma série de cubículos separados por um corredor. Esses cubículos estavam superlotados de presos políticos, todos em regime de incomunicabilidade. A insegurança e o terror eram a constante entre esses presos, pois a qualquer momento alguém podia ser retirado para interrogatórios, dos quais quase sempre voltava todo rebentado, quando voltava.

Certa vez vi caminhar vagarosamente pelo corredor, seguro por dois investigadores, um corpo descarnado de um rapaz franzino, ainda jovem, quase não se agüentando em pé. Era Pascacio, um operário pernambucano companheiro inteligente, firme, um caráter a toda prova. Diziam que ele estava sendo submetido às torturas e o seu estado de nervos ultrapassou os limites do suportável. Foi ao banheiro, apanhou uma lata de soda cáustica inexplicavelmente esquecida lá e bebeu o seu conteúdo. Não morreu na hora. Mas o estômago devolvia todo alimento que ingeria, e seu corpo foi afinando, as carnes se consumindo, até sucumbir, depois de longo sofrimento.

Quanto ao meu estado físico, a recuperação começou. A alimentação fornecida aos presos era horrível: mas os companheiros faziam chegar ao meu cubículo um reforço de frutas e outros alimentos mais leves, de acordo com meu estado de fraqueza. Aos poucos fui recuperando as forças até chegar ao meu estado normal.

Para tratar dos doentes – os cubículos da sala de detidos formavam um amplo hospital – a polícia dispunha de “enfermeiros” ou melhor dito, de “tiras” arvorados nessa função. As equimoses, feridas, tumores e unhas semi-arrancadas eram tratadas por esses enfermeiros para evitar, o mais possível, que deixassem marcas e aleijões denunciadores.

O companheiro Jorge da Silveira Martins, advogado, neto do Ministro de Estado nos anos finais do Império, teve um desequilíbrio nervoso e passava dias e noites gritando. O Silveira, que lá fora vivia a defender gratuitamente a todos os que necessitavam dos seus serviços profissionais, era agora também vítima das torturas que ele tanto combatera e denunciara.

A ditadura do “Estado Novo” podia se vangloriar de que estava bem aparelhada para a repressão. Tinha salas de torturas, tinha torturadores treinados por técnicos nazistas e tinha médicos e enfermeiros para servi-los e acompanhá-los. Fabricavam aleijados, neuróticos e loucos, mas não faltavam enfermeiras, hospitais e manicômios. Tudo isto ali mesmo, dentro do próprio velho casarão da rua da Relação. Matava e fabricava suicidas, mas os cemitérios estavam lá fora para enterrá-los.

Transpor os portões dos calabouços fascistas era transpor as portas de um inferno.

A minha família criou um problema para a polícia. A mulher sem recursos de espécie alguma, em vésperas de ter filho, com três crianças sem terem para onde ir nem com quem deixar, pois não tínhamos nessa época parentes no Rio, era um embaraço. O parto era considerado perigoso, em vista das crises nervosas da parturiente, em tais circunstâncias poderia chegar ao conhecimento da opinião pública e repercutir desfavoravelmente contra o governo.

No Rio Grande do Norte os nossos parentes tomaram conhecimento rápido de nossa prisão e passaram a se movimentar no sentido de interrogar a polícia, através, dos políticos, sobre o que estava ocorrendo e sobre o paradeiro da mulher e das crianças. E a polícia encontrou a solução: mandou todos – mulher e filhos – para o Rio Grande do Norte, entregando-se ao meu sogro, que os recebeu de braços, apesar do seu minguado ordenado de Secretário da Escola Normal.

Logo depois veio a notícia, numa carta: “parto difícil, a criança nasceu morta. Aliás, morta já estava, há dias, no ventre materno, segundo a informação. Mas, a mãe estava salva! O prestígio da ditadura não fora arranhado, se é que realmente poderia ser, por tão pouco. Os policiais podiam dormir tranqüilos, não haveria recriminações.

Na “sala dos detidos” continuava a situação de terror. Num cubículo isolado, estava um baleado. Era o companheiro Martins (Honório de Freitas Guimarães).

Uma operária de são Paulo estava noutro cubículo de mulheres, com as unhas arrancadas, em estado lastimável. Magra, franzina, tinha passado pelas torturas mais cruéis, mantendo-se numa atitude digna e corajosa.

Elias Reinaldo, outro operário pernambucano, andava se arrastando apoiando em muletas improvisadas. Fora atacado de polionevrite, em conseqüência das pancadas que lhe deram nas pernas.

Matias outro mártir, ficou com a região pubiana em chagas, que viraram cicatrizes, proveniente das queimaduras com tochas de jornais, “trabalho” da trinca Cegadas-Monteiro-Pequenino. A esposa desse companheiro, com os nervos abalados, acabou pondo termo a própria vida em São Paulo. Nunca é demais repetir que a ditadura dessa época – como todas as suas congêneres – mantinha rigorosa censura aos meios de difusão, não permitia que esses crimes fossem divulgados, a não ser através de sua própria versão, manipulada, deformada.

Os dias, as semanas e os meses iam passando e não havia nenhum indício de quando a nossa situação ia se modificar. O desejo de todos era sair do “inferno” (polícia Central) e ir ao purgatório (casa de correção). Essa classificação vulgar era feita zombeteiramente pelos “tiras” e simbolicamente correspondia a realidade. Isto porque poucos tinham esperanças de ser libertados. Os que não esperavam ter essa sorte, desejavam pela menos tirar sua cadeia, grande ou pequena, em sossego.

Todavia, lá fora as coisas não andavam muito tranqüilas. A segunda guerra mundial começou. O nazismo iniciou a invasão dos países da Europa, no seu sonho de dominar o mundo. A cartada fora lançada. Qual seria a posição do Brasil nessa luta decisiva? Era essa a pergunta que todos faziam.

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“A SOLITÁRIA”

Mais de um ano passamos no inferno da Política Central, num ambiente de torturas, vilania, gritos, choros, insegurança, desespero, pressões, ameaças, crueldades, pavor, morte, suicídio. Toda essa avalanche de agonia e sofrimento que desabou sobre nós e nossa gente e que procuramos palavras para exprimir e não encontramos, tudo que dizemos parece sem sentido, confuso e distante da realidade.

Entretanto repentinamente a situação lá fora começou a mudar o rumo da ditadura. Os navios da marinha mercante brasileira começaram a ser torpedeados pelos submarinos alemães, sob o pretexto de que transportavam mantimentos para os aliados. O povo, em grandes manifestações de rua, exigia que o Brasil participasse da guerra ao lado das Nações Unidas.

Sob pressão interna e externa, o governo de Getúlio Vargas teve que se definir e a guerra contra o eixo acabou sendo declarada. A ilha de Fernando de Noronha – ponto estratégico avançado no Atlântico – teve que ser evacuada às pressas. Os presos políticos que lá estavam, na sua maioria militares da Revolução de 35, foram trazidos para o Rio e alojados na Casa de Correção. Em seguida também fomos transferidos para lá.

Desta forma, em decorrência da guerra e das grandes transformações que se operava na vida dos povos de todo o mundo, a máquina da repressão no Brasil começou a perder o seu ímpeto, como se uma mão invisível tentasse travar as suas engrenagens. Estava findo o período tenebroso para os presos que estavam na Polícia Central.

A mim e ao Matias estava reservada mais uma surpresa. Em vez de nos colocarem juntos com os demais presos políticos, nos puseram isolados numa solitária, sem qualquer justificativa, em frente ao cubículo em que estava Ari Berger. Este companheiro ficou louco pelas torturas que sofreu e pela morte de sua esposa. Ela e Olga Benário Prestes, foram entregues aos carrascos de Hitler pela polícia de Felinto Müller. Ambas foram assassinadas nos campos de concentração da Alemanha nazista.

Ari Berger passava dias e noites gritando, ficamos impossibilitados de dormir durante muito tempo, até que aos poucos fomos nos acostumando. O cárcere onde estava Berger não podia ser comparado a nenhuma jaula. A jaula do animal mais feroz permite o contato visual entre a fera e o mundo exterior. No antro em que estava Berger, nem isto era possível.

Tratava-se de um cômodo com apenas um vão alto, com grade de ferro que não permitia ver seu interior, mesmo de longe. Havia uma área ao lado, cercada por muros elevados, intransponíveis, com um portão de ferro, única entrada para os guardas. Embora nossa solitária ficasse bem em frente e nos banhos de sol pudéssemos, às vezes, chegar até o pé do paredão, jamais pudemos ver sequer a sua sombra. Podíamos acompanhar seus passos pelos ruídos. Mas vê-lo, nunca!

Durante todo o tempo que estivemos na solitária ou seja, durante muitos meses, nunca vimos entrar na prisão de Berger nenhum médico ou enfermeiro. Somente os guardas e faxineiros entravam lá, uma vez por outra, para limpeza. Quando terminou a guerra, em 1945, Berger foi anistiado, junto com todos os presos políticos e seguiu para a Alemanha Oriental. Lá foi submetido a longo tratamento de saúde. Depois soubemos de sua morte.

Do outro lado, por trás de nossa cela, ficava o pavilhão onde estavam alojados os demais companheiros. Nas horas de recreio eles jogavam futebol e sua algazarra chegava aos nossos ouvidos, nós ficávamos um pouco mais animados. Mas depois que eles silenciavam, a nossa solidão voltava mais depressiva.

Havia uma promessa de que nossa isolamento injustificável iria terminar, que breve seríamos colocados juntos aos demais companheiros mas o tempo corria e nada acontecia.

Os dias de visita constituíam uma pausa na monotonia das nossas vidas de isolamento na solitária. Nessa época eu não tinha visitas, minha família continuava no norte. Mas ficava contente só em ver a alegria do Matias, quando vinha alguém visitá-lo, de São Paulo, onde estavam morando sua companheira e sua filha.

Num desses dias como sempre, ele preparou-se, feliz, na expectativa desse encontro reanimador. A visita não veio mas veio uma carta. Uma carta não é o mesmo que uma visita, mas sempre trás notícias, palavras de carinho e de alento.

Ele abriu o envelope com sofreguidão, tirou o papel e começou a ler. Sua fisionomia foi se transtornando, ele foi ficando pálido e trêmulo, pensei que ia desmaiar. Na expectativa de mais uma desgraça, perguntei ansioso, o que tinha acontecido. Ele não disse uma palavra. Entregou-me a carta e caiu no pranto. A carta dizia que a sua esposa tinha se suicidado. Fora encontrada morta no banheiro. Que mais posso escrever neste capítulo? Qualquer coisa que eu acrescente me parece inútil.

O fim do nosso isolamento na solitária chegou, afinal. Fomos transferidos para o pavilhão em que estavam os outros companheiros e recebidos com o regozijo comum entre velhos amigos nessas ocasiões. Agora podíamos praticar esportes, ler, estudar, conversar, ter informações mais amplas do que se passava por esse mundo afora. E toda essa terapia seria utilizada por nós, avidamente, para restaurar o físico e a mente, abalados pelas torturas e pelo longo período de isolamento. Aconteceu nessa época um caso curioso, que não podemos deixar de registrar: Depois de nossa vinda para a Casa de Correção, trouxeram também os “quintas colunas – espiões nazistas apanhados em flagrante, quando indicavam, por meio de estações de rádio clandestinas, o roteiro dos navios mercantes brasileiros para que os submarinos alemães levassem-nos a pique, matando milhares de compatriotas e causando grandes prejuízos à nação.

Esses espiões e sabotadores nazistas ocupavam uma ala de um pavilhão, com o maior conforto. Cheios de dinheiro, conseguiam móveis, geladeiras, rádios e tudo mais que desejassem. Pareciam verdadeiros marajás. A cozinha do presídio lhes servia, com horário especial, no refeitório, uma comida de superior qualidade, verdadeiros banquetes, comparada com a bóia chinfrim que era servida aos presos políticos brasileiros, nacionalistas, comunistas e os próprios guardas.

A disparidade era tão chocante, que foi tirada uma comissão para ir falar com o diretor do presídio e pedir que pelo menos, nos fosse servida uma comida igual a que era servida aos “quinta colunas”. O nosso pedido foi imediatamente atendido e passamos a ter um tipo de refeição que eles chamavam de “dieta” e que muitos dos nossos jamais tiveram, mesmo quando estavam lá fora.

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“A ILHA GRANDE”

Fomos avisados da nossa ida para a Ilha Grande. A Ilha Grande, como presídio, tinha uma pavorosa fama. Em capítulo anterior destas memórias fizemos ligeiras referências ao pavor que a Ilha Grande inspirava aos presos comuns. Quanto aos presos políticos, meus irmãos Jonas Reginaldo da Rocha e Antônio Reginaldo Sobrinho lá estiveram por dois anos, quando vieram deportados do Rio Grande do Norte, juntamente com centenas de outros companheiros, após a revolução de 1935.

Era diretor do presídio naquela época, o famoso Canepa, que celebrizou-se pelas crueldade que infligia os presos em geral, que tinham a infelicidade de cair sob sua guarda. Presos comuns e presos políticos viviam sob regime forçado, obrigados a carregar vigas perigosamente pelas montanhas, sem ter em conta a constituição física e a saúde de cada um.

Jonas, com um pouco mais de resistência, conseguiu subsistir aos maus tratos. Toínho mais fraco, não resistiu e chegou a ser carregado nas costas pelo conterrâneo Epifânio Guilhermino que demonstrou na hora da aflição, o seu elevado espírito de solidariedade, o que fez reforçar a estima e o apreço que sempre tivemos por ele.

Toínho voltou da Ilha Grande com os nervos abalados, nunca mais recuperou a saúde, acabando seus dias tristemente, num hospício em Natal.

Entretanto, o mundo dá muitas voltas. A nossa ida agora para a Ilha Grande, já não inspirava pavor. O Brasil, como já foi dito, entrou na guerra ao lado das Nações Democráticas para combater o nazi-fascismo. Seria difícil prever qual a reação do nosso povo e dos pracinhas, após a vitória, diante da existência da ditadura do Estado Novo, com seus cárceres apinhados, com seus crimes e atrocidades. Não seria fácil fazer o povo entender essa contradição. Enquanto ele sacrificava sua vida para derrotar o nazismo na Europa, aqui mesmo em nosso país, se mantinha de pé uma ditadura implantada nos mesmos moldes nazistas. Além disto, as ruas das cidades estavam cheias de inscrições pedindo anistia e nas manifestações populares de todo o país, era esse o clamor das multidões.

O governo de Getúlio sentiu que chegara a hora de recuar. Transferiu os presos políticos para a Ilha Grande e entregou a direção do presídio ao Coronel Nestor Veríssimo, caudilho gaúcho, ex-participante da Coluna Prestes, o elemento indicado para abrir caminho à transformação democrática e à anistia.

Um transporte da Marinha nos levou à Ilha Grande. Ao desembarcar em Dois Rios, fomos recebidos na praia, por funcionários do presídio, que ali mesmo procederam a nossa identificação. Horas depois estávamos instalados nos alojamentos a nós reservados.

No dia seguinte, depois do café, os portões foram abertos e pudemos sair, ir à praia, passear pelas ruas. Só não podíamos sair da vila sem permissão.

Nos primeiros passeios ficamos conhecendo a figura curiosa do Coronel Nestor Veríssimo. Ele andava montado numa burra, pachorrento, e foi assim que o vi pela primeira vez. Gordo, estrábico, fala mansa, costumava quebrar a seriedade de algumas conversas com um palavrão chistoso. Diziam que tinha o corpo cheio de marcas de perfurações por balas. Era um tipo patriarcal, com fama de corajoso e justiceiro.

Os presos políticos da Ilha Grande (nacionalistas, socialistas e comunistas) se consultaram e tomaram uma resolução com referência a guerra que o Brasil estava enfrentando, sob a bandeira das Nações Unidas, contra o nazi-fascismo. De acordo com a resolução nós os presos políticos mencionados, nos colocávamos à disposição do governo brasileiro a fim de seguirmos, voluntariamente, para o front da guerra contra o eixo nazi-fascista. Finda a guerra, voltaríamos dispostos a cumprir normalmente, até o fim, as penas a que fôramos condenados.

O nosso oferecimento formal representava apenas uma tomada de posição, pois não tínhamos ilusões quanto a sua aceitação, não só pela absoluta falta de bases jurídicas, mas também por motivos discriminatórias de caráter ideológico, fáceis de imaginar.

A nossa decisão foi encaminhada através da direção do presídio. Entretanto, nenhuma resposta chegou até nós. Como fora previsto, a nossa proposta não foi sequer tomada em consideração.

Entre os “quinta colunas” presos na Ilha Grande havia um rapaz, brasileiro, tipão forte, carrancudo, que chamava a atenção pelos motivos de sua prisão. Ele tinha sido convocado para as fileiras do Exército e incluído no Corpo Expedicionário Brasileiro. Quando se aproximou a hora de embarcar para o front da Itália, ele deu um tiro no próprio pé, para fugir do seu dever. E de fato não embarcou, mas foi preso e processado. E se vangloriava do seu ato vergonhoso.

O Coronel Nestor Veríssimo, diretor do presídio, abriu a possibilidade de trabalho aos presos políticos. Os que voluntariamente quisessem, poderiam trabalhar, recebendo uma pequena remuneração. Essas frentes de trabalho constavam de serviços de pedreiro (construção de casas residenciais, sendo uma para hospedagem das visitas dos próprios presos políticos), carpintaria (construção de uma lancha no estaleiro existente), pintura, fabrico de carvão na mata próxima etc.

O trabalho remunerado era importante, especialmente para os que tinham família e não recebiam “montepio” ou qualquer outro rendimento. O trabalho em si permitia também, uma mudança para melhor no sistema de vida seguido até então, pois a maioria dos presos políticos vivia encerrada nos cubículos, fabricando quinquilharias, dormindo ou passando o tempo com jogos e bate-papos quase sempre inúteis.

Com o novo trabalho proposto, os presos passariam a ter uma vida mais sadia, ao ar livre, alguns teriam oportunidade de aprender uma profissão, outros de exercitar a que já possuíam. Aconteceu que certos líderes presumidos, que não tinham grande necessidades de dinheiro nem estavam muito habituados ao trabalho profissional, deram o contra. Muitos estranharam que alguém pudesse ser contra o trabalho. Uma coisa tão normal, tão necessária e mesmo imprescindível à vida do operário. Conjecturas surgidas daqui e dali atribuíam a ciúmes dos tais líderes, receio infundado de perderem o controle de seus liderados, que iam se afastar de sua proteção.

Foi convocada uma assembléia do coletivo para resolver o assunto. Nos debates, os inimigos do trabalho declararam finalmente, as razões de sua atitude. Segundo eles o trabalho proposto pelo diretor oferecia o seríssimo perigo de corromper alguns companheiros mais fracos. Por isso estavam contra. Esse conceito de fragilidade essa suspeitosa acusação lançada no ar desta maneira, indiscriminadamente, era vexatória e desconcertante.

O argumento em si era frágil demais e não foi difícil e réplica dos favoráveis ao trabalho. Disseram estes que trabalhar é um direito pelo qual lutam os povos em todo o mundo e que qualquer tentativa de impedir o exercício desse direito era uma violência. Mais grave ainda, era essa violência, quando partia de quem justamente devia defender e apoiar essa justa causa. Disseram mais, que o trabalho nunca foi meio de corrupção para o trabalhador e sim de subsistência. E sendo um meio de subsistência, tentar impedí-lo é mais do que uma violência, é uma ação desumana.

Quanto à corrupção, corrompe-se aquele que é corruptível e o corrupto, na sociedade capitalista, encontrará sempre meios de se corromper, quando bem o desejar. Se o trabalho fosse um fator de corrupção, que seria da classe operária, que vive do trabalho, seu único meio de vida? A discussão prosseguiu horas e horas a fio. Depois de três dias seguidos de calorosos debates a mesa teve que submeter o caso a votação. A maioria votou pelo trabalho. Os inimigos do trabalho não se conformaram com a derrota. Abandonaram o coletivo, mudaram-se para outra galeria e formaram um novo coletivo minoritário. Realizaram a cisão sem fundamento, desnecessária e ridícula.

Uma vez que não conseguiram “acaudilhar” a todos os companheiros, conformaram-se em ser chefes de uma minoria.

Trabalhou quem quis. Quem não quis não trabalhou. Porque ninguém foi obrigado a nada. E ninguém se corrompeu nem se desonrou para desespero dos falsos profetas. Quando houve a anistia, vi “trabalhista e não trabalhista” abraçados, na maior alegria. E mais tarde em liberdade, estavam novamente irmanados na mesma luta. As pequenas querelas desaparecem, sempre que há um ideal mais forte.

Um grupo de presos políticos em abaixo assinado, requereu ao Coronel Nestor Veríssimo permissão para que todo aquele que assim desejasse, pudesse morar com sua família na Ilha Grande. O requerimento baseava-se na existência de um antigo projeto de criação de colônias agrícolas para presidiários, no qual esta permissão estava incluída. Segundo nos informaram, o diretor do presídio levou o oficio diretamente ao presidente Vargas, tendo sido por este despachado favoravelmente.

Em vista desse atendimento, todos os presos políticos passaram a ter direito de mandar buscar suas famílias para a Ilha, com casa de graça para morar, podendo retirar semanalmente os gêneros alimentícios em espécie, correspondente à etapa a que um tinha direito como detendo. Viveriam fora do presídio, tendo apenas que se apresentar na portaria pela manhã e à tarde. E seus filhos podiam freqüentar a Escola Pública existente na vila.

Como já havia o direito ao trabalho parcialmente remunerado, ficariam assim com a subsistência garantida, modesta mais suficiente. O ofício solicitando a nossa moradia na Ilha foi assinado (se não me falha a memória) por Mauro, Brás, Azevedo, Bonfim, Epifânio Guilhermino, eu e outros.

Na margem do rio havia um velho edifício abandonado, que noutros tempos fora hospital. Nós mesmos, os futuros moradores, restauramos, pintamos e dividimos o casarão em apartamentos, cada qual escolheu o seu. O tenente França tomou posse de uma casinha desabitada que havia próximo à praia e, caprichosamente, transformou-a nem pequeno “bangalô”.

Antes desses preparativos eu já tinha consultado, por carta, minha família sobre sua vinda para a Ilha. A resposta afirmativa veio rápida e decidida. Agora era só aguardar.

Quanto aos recursos financeiros para a viagem, ficou por conta da “campanha de ajuda aos presos políticos e suas famílias”, que funcionava no Rio e nos Estados. Graças ao trabalho formidável de solidariedade encabeçado pelos abnegados companheiros Jorge da Silveira Martins, Fernando Lacerda e muitos outros, a importância suficiente foi arrecadada e enviada ao Rio Grande do Norte.

O difícil, para minha família era realizar essa viagem por terra, já que a vinda por mar era impossível, devido aos freqüentes torpedeamentos dos navios brasileiros pelos submarinos alemães. Estradas de rodagem, praticamente não existiam e uma viagem como essa na época, era uma verdadeira temeridade.

Minha mulher, com as três crianças, resolveu enfrentá-la. Arrumou a trouxa e se pôs na estrada. O filho mais velho tinha 6 anos de idade, o menor 5 e a menina 4.

Para se ter uma idéia do feito, vamos descrever o roteiro. Essa viagem, nos dias atuais, é uma viagem comum, de ônibus, e leva 4 ou 5 dias. Naquele tempo ela foi realizada da seguinte maneira: de Mossoró a Natal, em caminhão do Correio; de Natal a Recife de trem; de Recife a Petrolina num jipão do Exército; de Petrolina a Juazeiro na Bahia de barca; de juazeiro a Pirapora em Minas, pelo Rio São Francisco de gaiola; de Pirapora a Belo Horizonte ao Rio Janeiro de trem, idem; do Rio a Mangaratiba de trem; de Mangaratiba a Abraão (Ilha Grande), de Lancha (a balalaika); de Abraão a Dois Rios de ônibus.

Com mais de 2 meses de viagem, chegaram ao presídio da Ilha Grande, a mulher e os três filhos. Magros e queimados de sol, de fazer dó. Mas chegaram. Ainda com saúde, alegres e felizes.

A minha família, da mesma forma como as outras que iam chegando, já encontrou a casa pronta, com móveis improvisados e utensílios domésticos indispensáveis. Para isto favoreceu o espírito de solidariedade e ajuda mútua e também o fato de que muitos ali eram operários especializados. Tínhamos, de boa qualidade, marceneiros, pedreiros, pintores, mecânicos, ferramenteiros, além daqueles que tudo fazem e de tudo entendem um pouco e que são utilíssimos nessas horas. Tudo de graça, pelo sistema do cooperativismo.

Para garantir e reforçar a alimentação, já havíamos iniciado a criação de galinhas, patos e cabritos. Tínhamos ao lado da casa o rio que dava alguns robalos e bem perto estava a praia, onde a pescaria de arrastão nos fornecia peixes fresquinhos, quase sempre com fartura. O leite e as verduras vinham da vacaria e da horta do presídio. Aos domingos havia uma feirinha dos caipiras, onde podíamos nos abastecer por bons preços, de frutas e algo mais que nos faltasse.

As crianças se recuperaram rapidamente da longa viagem, ficaram fortes e foram entrando para a escola, à media que iam atingindo a idade. E assim ia transcorrendo a nossa vida de presidiários, agora amenizada com as novas medidas humanizadoras.

Entretanto, à tarde, quando parávamos de trabalhar, quando o sol começava a se esconder no horizonte, é que a gente fazia esforço para afugentar a tristeza e evitar a depressão. É que, por mais que procurássemos nos convencer de que tudo ia bem, não conseguíamos sufocar os nossos anseios de liberdade.

Não estávamos com nenhuma corrente nos pés (também pudera!), os “quadrados”, as “as salas de detidos” e as “solitárias” ficaram para trás. Mas estávamos numa ilha-Prisão.

Tudo corria normalmente. No Cassino dos Guardas realizou-se uma festa dos funcionários do presídio. O Coronel Nestor Veríssimo esteve presente. Depois que tudo terminou ele sentiu-se mal. Disseram que houve qualquer complicação relacionada com seus antigos ferimentos. A doença agravou-se rapidamente. Alguns dias depois estava morto.

Em substituição ao falecido, assumiu a direção do presídio o Major Coimbra, também gaúcho. O novo diretor manteve todas as regalias instituídas pelo seu antecessor, demonstrando boa vontade no tratamento com os presos políticos. Decididamente uma aura aprazível estava amenizando nossas penas. Sá faltava a anistia. Estávamos certos de que ela não tardaria a chegar.

Nas frentes de combate da grande guerra, começou a derrocada das tropas do “eixo”.

No campo decisivo da Europa, pelo leste, a fina flor do Exército nazista era tangida de roldão pelo Exército Vermelho. Pelo oeste, com a abertura da segunda frente pelos aliados, a fuga dos outrora orgulhosos representantes da pretensa raça superior era em sentido contrário, em direção a Berlim. No sul, no front da Itália, onde combatia a valorosa Força Expedicionária Brasileira, fechava-se o grandioso cerco. Só restava às feras nazistas o seu próprio covil, onde seriam definitivamente dizimadas.

19 de abril de 1945. Foi decretada a anistia ampla para todos os presos políticos no Brasil. Quando a notícia chegou ao presídio da Ilha Grande, embora já fosse esperada, a primeira reação que nos causou foi de perplexidade. Depois a realidade foi se formando aos poucos em cada um, até se transformar numa alegria geral, transbordante, incontida. Alegria de quem se sente renascer para uma nova vida. A festa espontânea, cada qual festejou ao seu modo, sem limites de tempo ou de programação. Um transporte da Marinha foi posto á disposição do diretor do presídio, para nos levar para o continente.

A situação de Adauta, esperando o bebê para aqueles próximos dias, nos tirou a chance de viajarmos todos juntos para a liberdade. Combinamos, então, que eu iria na frente, com todos os demais anistiados, a fim de providenciar o arranjo de nossa nova residência no Rio e dar os primeiros passos na procura de trabalho. Ela continuara por uns dias na Ilha com as crianças aguardando minha volta que seria breve. Assim combinado embarquei com todos para a grande cidade.

Quando desembarcamos no Cais do Porto, uma multidão festiva nos aguardava. Os que tinham família no Rio, foram recebidos e conduzidos por seus parentes. Os que não tinham, como era o meu caso, encontraram amigos e correligionários prontos para ajudar.

À minha espera e também do jovem nordestino Ademar, estava o saudoso Saul, companheiro de lutas dos velhos tempos. Ele nos recebeu com grande alegria e, depois de palavras animadoras, nos levou até o seu carro, a sua famosa baratinha. Dentro em pouco estávamos em sua confortável residência.

A minha maior dificuldade era para alugar uma casa. Naquele tempo, os proprietários, de imóveis exigiam altas luvas por um contrato de locação e eu como é fácil de se deduzir, saíra da prisão sem um níquel no bolso.

Mas o Saul tinha uma agradável surpresa para mim. Nos terrenos de sua mansão havia uma casa vazia, com dois cômodos, e ele a pôs à minha disposição até que eu pudesse me arranjar. Nela fiquei por dois anos, quando consegui mudar para uma casa própria, adquirida com muito trabalho e muito esforço.

Quanto ao emprego, o meu plano era recorrer a uma de minhas habilidades profissionais (desenhista, tipógrafo etc.), quando fui informado por um amigo de que havia uma oficina de maquetes na Av. Venezuela, de propriedade de Zanini. Este trabalho, dizia o amigo, seria o recomendado para mim, em vista da minha facilidade em assimilar esse tipo de atividade.

Fui no dia seguinte e fiquei conhecendo Zanini – essa figura humana excepcional, esse artista e arquiteto nato, no dizer de Lúcio Costa. No fim de um ligeiro papo eu já estava empregado. A oficina era bem montada, com uns 30 operários, dividida em setores especializados: desenho, pintura, corte armação e acabamento. Comecei como desenhista, realizando tarefas. Três meses depois passei a desenhar e a dirigir a confecção das primeiras maquetes. Um ano depois, eu era o encarregado de toda a oficina. Após dois anos, quando Zanini mudou-se para S. Paulo, montei meu próprio estúdio de maquetes.

Quanto voltei à Ilha Grande alguns dias depois da Anistia, já encontrei meu novo filho que nascera no dia 1º de maio. Na primeira lancha embarcamos para o Rio, eu e toda a família.

Aí começou tudo de novo. Fomos morar na casa que o Saul nos emprestara. É claro que não havia nada dentro dela, precisávamos de móveis, utensílios domésticos, roupas e alimentos.

Eu tinha diante de mim um desafio. E passei a trabalhar com denodo e entusiasmo, dia, noite, domingos e feriados: e me sentia feliz, como se as próprias dificuldades me empurrassem para frente e me encorajassem. O meu esforço visava apenas criar os meios suficientes para educar os filhos e manter a família dentro de uma padrão de vida razoável e digno. Com o decorrer do tempo eu ia conseguindo o meu propósito, a custa do meu próprio esforço.

O Partido estava agora com nova direção, numa fase de franco desenvolvimento, facilitado pela legalidade e pela euforia criada com derrota do nazi-fascismo e pelo surgimento de novos Estados Socialistas e novas democracias. Eu tinha a impressão de que eu não estava fazendo falta ao Partido, pelo menos não me tinham procurado, até então, para as “grandes tarefas”.

Pelo sim, pelo não, procurei estabelecer contatos com alguns dos novos dirigentes a fim de “oferecer os meus préstimos” e saber se eu podia ser útil em alguma coisa. Mas, encontrava sempre grande dificuldade em falar com esses companheiros, estavam sempre muito ocupados, num entra-e-sai apressado dos seus gabinetes de trabalho nas sedes legais do curto período de legalidade do partido. Tinham sempre reuniões, encontros e tarefas muito importantes, pediam para aparecer noutra ocasião.

Com receio de que pudesse estar importunando, não mãos os procurei. Aproveitei a folga que esses “mui ativos” companheiros bondosa e tacitamente me concediam e continuei o meu trabalho de organização partindo das bases, nos bairros, que já havia começado.

Aqui começa um novo capítulo dessa história que terá desenvolvimento no segundo volume destas memórias.

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