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Insurreição Comunista de 1935
em Natal e Rio Grande do Norte

Lauro Reginaldo da Rocha - Bangu

 

 

 

Bangu, Memória de um Militante
Brasília Carlos Ferreira – Organizadora, 1992

 

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II – Buscando caminhos

A liga Operária – As primeiras escaramuças

Naquela época o mundo passava por grandes transformações. A crise provocada pela primeira guerra ocasionou uma onda geral de greves e de lutas populares. A revolução soviética, por sua vez, surgiu como um estímulo e uma esperança. As grandes massas trabalhadoras de todos os países tinham agora um rumo certo a seguir, organizavam-se sindicatos por toda a parte, o anarquismo cedia lugar a criação de poderosos partidos políticos da classe operária: os Partidos Comunistas.

Na nossa cidade esse movimento teve repercussão imediata. Um punhado de idealistas, tendo à frente Raimundo Reginaldo, Oscar Amaral, Lindolfo Arruda e outros, lançou as bases da Liga Operária que evoluiu rapidamente, construindo sede própria, criando um grupo escolar para filhos dos associados e organizando biblioteca. Essa Liga transformou-se mais tarde numa sociedade de simples beneficência, mas no início ela desempenhou papel importante na formação da consciência política dos trabalhadores. Ali realizavam-se grandes manifestações e nas comemorações de Primeiro de Maio, hinos revolucionários, como “A Internacional” de Eugene Pottier e Pierre Degeyter, eram cantados como se fossem simples canções populares. “O Trabalho” jornal da Liga Operária, era um semanário que disseminava idéias e apesar de sua orientação confusa, foi um desbravador, um pioneiro das lutas sociais.

Iniciou-se, então, uma campanha por aumento de salários para os trabalhadores da estrada de ferro, que tinham nível de vida baixíssimo, em regime de vales, em condições desumanas de trabalho. Durante essa campanha, meu irmão Rochinha (Alexandre Reginaldo Rocha), junto com o padeiro Chico P. Macaco, organizou uma crítica carnavalesca focalizando a exploração. Um representava o papel do diretor, outro fantasiou-se de capataz e os demais componentes do grupo representavam uma turma faminta de “cassacos” da estrada. A crítica fez grande sucesso, mas o sargento Antenor, chefe de destacamento policial, recebeu instruções para acabar com ela. E o fez à sua maneira violenta. De revólver em punho atacou o bloco de foliões, dando-se o choque inevitável do qual ele, o arbitrário agente da lei, saiu levando desvantagem.

No dia seguinte chegou à cidade uma numerosa força da Polícia Militar, comandada pelo tenente Laurentino. Essa força, armada até os dentes, em formação de combate, efetuou o assalto a uma imaginária fortaleza – que nada mais era do que a humilde residência de minha mãe, que nada tinha a ver com as ocorrências. Com a aproximação da tropa, minha mãe e minha irmã fugiram pelos fundos, abrigando-se os soldados arrobaram as portas à coices de fuzil, quebraram móveis, potes e panelas, num verdadeiro ato de vandalismo.

De nada valeram nossos protestos. Eu, que aprendera na escola que “o lar é um asilo inviolável”, passei a ver até que ponto valem as leis, comecei a ter as primeiras aulas práticas – e muito mais verdadeiras que as recebidas na escola – de que tanto as leis como as autoridades estão sempre à serviço das classes dominantes. O entrevero terminou com a nossa prisão, onze membros da família Reginaldo nas grades, eu no meio deles. E esse foi o meu “batismo de fogo”, aos 15 anos de idade.
No meu fraco entendimento, eu achei que aqueles vândalos cometeram um grave erro. Para mim sempre foi claro, lógico e racional que a fome não se mata com coices de fuzil, e sim com alimentos. E o alimento continuou a não chegar às mãos dos famintos.

Aqueles que nasceram em berço de ouro, aqueles que desconhecem a miséria, não poderão nunca compreender o verdadeiro sentido desta palavra, FOME. Eu não me refiro, é claro, a uma fome ocasional mas, à fome do dia a dia, imposta pela escassez freqüente, continuada e pela ausência total, por longos períodos, de alimentos indispensáveis à nutrição e à sobrevivência. Eu a conheço muito bem, ela viveu ao meu lado. Eu a vi estampada nas faces de outros, como se eu estivesse diante de um espelho. Aquele olhar parado, os olhos fixando um ponto qualquer no espaço, sem nada ver, aquele ar apalermado de faces encovadas, o pensamento divagando à toa, ora fixando-se, angustiado, em imaginárias iguarias, ora não se fixando em nada, como se o cérebro tivesse parado. E de repente vem aquela reação, aquele desejo de investir, de quebrar tudo, esse desespero que muitas vezes levou os flagelados a atacar mercados, a avançar contra as bancas dos “marchantes” e deixar, num minuto, as suas pedras-mármores limpas, sem qualquer vestígio de carne.

A fome costuma completar, em poucas horas, o trabalho que as lideranças revolucionárias levaram longos anos lutando para conseguir, o de levar as massas populares a se decidirem a lutar e até mesmo a empreender o assalto final pela tomada pelo poder.

A história universal está cheia de exemplos. Foi a fome quem levou o povo francês a enfrentar os canhões e derrubar a bastilha. Foi a fome que derrubou o poderoso império dos czares, na Rússia. Foi a fome quem levou o povo chinês a expulsar de seu solo os exploradores estrangeiros, levando-os de roldão para fora do continente, implantando mais um poderosíssimo estado socialista no mundo. A fome desconhece a razão, leva ao desespero e o desespero não teme a força. Num certo sentido a fome é um grande general.

Entretanto, a teoria e a prática nos ensinavam que esse general, por si só, era inconseqüente, que ele jamais solucionaria de vez os problemas do povo trabalhador, se ficássemos à sua espera, na expectativa de soluções espontâneas e milagrosas. As revoluções mencionadas acima, tanto a revolução burguesa, na França, como as revoluções socialistas na Rússia e na China, não teriam sido vitoriosas se não tivessem sido dirigidas por organizações poderosas e por grandes líderes, que lhes deram uma orientação política justa e adequada.

Nós achamos que era necessário e urgente criar organizações partidárias e de massas (sindicatos e outras) capazes de preparar, orientar e dirigir as nossas, lutas, desde as pequenas e imediatas até as grandes e decisivas. Assim pensando, criamos a primeira célula da Juventude Comunista, sob a orientação do professor Raimundo Reginaldo. Esta célula foi constituída no seu início, por Lauro, Saraiva, Mariano e Soares. Pelos meus cálculos, isto ocorreu em fins de 1924 ou começo de 1925, quando eu tinha de 15 para 16 anos de idade. Este foi o ponto de partida para um longo e paciente trabalho no terreno da organização.

Alguns anos depois, enquanto eu participava da reorganização do Partido em Fortaleza-CE (1929 a 1931), em Mossoró-RN era criado o primeiro Comitê Regional do P.C., por iniciativa de Antonio Reginaldo Sobrinho, meu irmão.

A notícia de nossa prisão e da depredação da casa de minha mãe se espalhou até as localidades vizinhas. A partir desses acontecimentos, começamos a ser procurados por pessoas que desejavam conversar e conhecer nossas idéias. O mais procurado era Raimundinho, por ser o mais velho e o mais capacitado a dar esclarecimentos.

Certo dia meu irmão Luizinho (Moba) trouxe à minha presença um senhor de Areia Branca, cidade próxima a Mossoró, que desejava conversar comigo. Todo o seu jeitão era de um camponês. Mas aquele calo no ombro e as rachaduras nos pés definiam, sem margem de dúvidas, tratar-se de um salineiro. Iniciando o “papo”, ele começou dizendo que era católico e queria saber se as nossas idéias eram contra a religião.

Eu respondi com outra pergunta: - Como podemos ser contra a religião, se nossa mãe -Luiza da Rocha- é católica fervorosa e, diariamente, antes de pegar a máquina de costura, vai à missa, na Matriz da cidade, como é do conhecimento geral? Na nossa família há católicos, protestantes e materialistas. Nós somos, pois, pela liberdade de crenças e se algum dia alguém quiser tolher a sua liberdade de ser católico, venha nos procurar que lutaremos ao seu lado, sem qualquer vacilação.

O visitante riu, parecendo satisfeito com a resposta. E apresentou outra dúvida: “- Dizem que vocês são pela violência. Acontece que a minha religião cristã prega a paz e a harmonia entre os homens”. – Então empatou, respondi, porque nós também não temos prazer nenhum em brigar. Somos todos trabalhadores, ordeiros, chefes de família. Só brigamos quando somos obrigados e encurralados, em nossa própria defesa ou em defesa de uma causa justa. O nosso sonho é que, num futuro próximo, haja um mundo de paz e felicidade para todos. Nós achamos que não haverá paz na terra enquanto houver o sistema capitalista e por isto lutamos contra ele. Acho justo que devemos lutar pela paz, porque a paz é harmonia, é tranqüilidade para pensar, para trabalhar, para produzir, para amar, para bem usufruir todas as coisas belas da vida. Mas, nem sempre este bem precioso que é a paz pode ser mantido sustentado. Vivemos num mundo de agressões e chega o momento em que a paciência enche e enche tanto, que temos de tomar uma atitude antes que o saco estoure.

A violência é a característica básica do capitalismo, este regime que nos é imposto pela força. Uma paz alicerçada na desigualdade e na injustiça, uma paz imposta pela tirania, uma paz humilhante e desumana, uma paz de cemitério, esse tipo de paz é difícil fazer com que o povo acate e suporte. Essa acusação de que somos desordeiros é antiga, mas, vem sempre com o endereço errado. Vamos analisar as coisas direitinho, para vermos que são os desordeiros.

Através de uma longa e penosa experiência temos observado o seguinte: quando a pobreza tem fome e pede pão, acaba levando pau. Não é isto o que acontece? Quando o operário faz greve, vem a polícia e baixa o cacete, prende e espanca. Os cárceres estão sempre cheios. Os sindicatos são invadidos, os comícios são dissolvidos a bomba de gás e a bala, operários, camponeses, estudantes e populares são presos, torturados e assassinados.

Quem pratica tanta violência, tantos crimes? Somos nós? É esta a paz que devemos aceitar? “ – Mas vocês não pretendem tomar o poder?” Tornou a perguntar o nosso interlocutor. – Nós achamos que o regime que aí está é um regime injusto e cruel, que já caducou, e que deve ser substituído por um governo popular capaz de realizar reformas radicais destinadas a acabar com a pobreza e o atraso de nosso povo. Se os homens que estão de cima não gostam de desordem e de violência, é muito simples, entreguem o governo ao povo e está tudo resolvido, na paz, no amor e na concórdia. “- E vocês acham que eles vão entregar tudo de mão beijada?” – Há muita gente que acredita nessa hipótese. Para lhe ser sincero, eu, pessoalmente, não acredito. Que me desculpem, mas acho essa hipótese uma besteira. Olhemos para o mundo e vejamos o que aconteceu ou está acontecendo em toda face da terra. O sistema capitalista sabe mais que ninguém que os seus dias estão contados. Mas, luta encarniçadamente, ferozmente, desesperadamente, para se manter no poder. Não é isso o que acontece? Podemos ainda ter ilusão?

Depois de uma longa conversa nos despedimos – eu e o católico – em boa paz e harmonia.

As idéias marxista-leninistas atingiram em cheio a família Reginaldo. Como uma semente plantada em solo fértil, elas nasceram, cresceram e se expandiram com uma força extraordinária. Raimundinho foi o primeiro a recebê-las e propagá-las. E eu o irmão mais moço, ainda criança fui o segundo a aceitá-las, com um entusiasmo e uma alegria de que descobre um novo mundo. Logo a seguir aderiram, o Toínho, depois Jonas, o Glicério, os outros irmãos e vários descendentes. Apenas um se manteve contrário, foi Joãozinho (João Reginaldo da Rocha, “João da Mata”). Mas, foi uma resistência peculiar, como veremos nos fatos que vou relatar.

Em 1924-25 os outros irmãos já estavam casados, somente eu e ele ainda estávamos solteiros, morando com nossa mãe. Joãozinho, vez por outra, puxava conversa comigo sobre política, ora fazendo perguntas, ora contestando. Eu procurava sempre esclarecer as questões por ele formuladas, de acordo com o meu entendimento. E as nossas relações continuavam sem quebra da cordialidade.

Mas, num certo dia, ele “me chamou às falas” sobre a estante de livros que eu mantinha na sala. Nessa estante estavam meus livros de estudo (escolares), os livros marxistas e os de literatura em geral. Joãozinho achava que havia na estante livros perigosos (obviamente os marxistas), e que deviam ser retirados dali sem perda de tempo, levados para outro local ou mesmo destruídos, antes que a polícia viesse confiscá-los.

Senti imediatamente que estávamos, eu e ele, sendo vítimas do chamado terror cultural, e eu não estava com disposição de me curvar gratuitamente a esse tipo de pressão. Calmamente eu procurei explicar que todos os livros que ali estavam tinham sido comprados legalmente nas livrarias, com muito sacrifício financeiro. Que eu desconhecia qualquer edital expedido pelas autoridades policiais classificando os livros em perigosos ou não perigosos. Que as mesmas autoridades constituídas permitiram que se editassem os livros e os vendessem livremente. Se depois de tudo isso a polícia sem qualquer esclarecimento e sem nenhum aviso, viesse à nossa casa para confiscá-los, isto seria uma violência inqualificável e, como tal, devia ter o nosso repúdio.

Argumentei ainda, que se os livros eram perigosos em nossa casa, também seriam em qualquer local onde fossem levados. E que não seria justo transferir um risco desta ordem para as costas de um parente ou amigo. Quanto a eu mesmo destruir os meus livros, isto eu não faria “nunca”! O assunto ficou nesse pé. Mas, Joãozinho não se conformou. Dias depois ele veio a mim e disse que se os livros não fossem retirados da casa, ele os queimaria.

Nesta altura lembrei-me de tudo o que eu tinha lido sobre história da inquisição, suas fogueiras e suas crueldades, e respondi com firmeza: - Está muito bem. Vamos então fazer um acordo, quando eu não estiver em casa, você pode queimar meus livros. Depois, quando você não estiver em casa, eu pego os seus móveis (ele estava se preparando para casar), levo seus móveis para o quintal e faço uma fogueira. Ficaremos quites, elas por elas.

Depois dessa discussão eu procurei meus irmãos mais velhos – Jonas e Toínho – e narrei todos os fatos. Eles me disseram que iam falar com Joãozinho, para eu ficar tranqüilo. Ele não queimaria nenhum livro e os livros continuariam onde estavam. Não sei o que eles disseram a Joãozinho. Sei que apenas ele nunca mais tocou no assunto. E nossa amizade continuou como se nada tivesse acontecido.

Este episódio, contado assim destacado do conjunto de toda nossa história, daria uma idéia falsa da personalidade desse Reginaldo. Ele jamais foi uma reacionário, um desleal, um desfibrado. Muito ao contrário. Nunca exigimos dele qualquer participação em nossa atividade política, mas nas horas difíceis quando vinha o acocho, ele estava sempre ao nosso lado, compartilhando conosco de tudo que desse e viesse. Era nessas ocasiões que ele mostrava a sua calma e a sua coragem, a sua solidariedade e a sua altivez. Nunca nos abandonou nas horas difíceis. Sempre que íamos presos, lá estava ele também no xadrez, do nosso lado, calmo e tranqüilo, preso somente por nos defender.

Tempos depois cheguei a conclusão de que toda aquela confusão sobre os meus livros não passou de um blefe, Joãozinho nunca teve a intenção de concretizar suas ameaças. Ele estava apenas querendo nos proteger, de forma errada, mas sincera, da feroz repressão que se desencadearia mais tarde sobre nós.

O fato que passo a relatar veio fortalecer esta minha conclusão. Em fins da década de 30 eu e Joãozinho – ambos casados – estávamos morando em Fortaleza. Certo dia, estávamos trabalhando numa oficina no centro da cidade, de portas fechadas, por ser domingo. Alguém bateu e Joãozinho foi atender. Era a polícia política que me procurava, com ordem de prisão.

Sem abrir a porta, Joãozinho mandou que os “tiras” aguardassem, foi até onde eu estava e disse: “- é a polícia, fuja, rápido”. E como eu me recusasse a fugir, ele foi me empurrando para uma porta dos fundos que dava para outra rua, dizendo que era a mim que procuravam e não a ele, que ele não estava implicando em política, enquanto eu estava, que os “tiras” não tinham visto a mim e portanto não tinham certeza da minha presença, que eu era mais útil aqui fora do que atrás das grades. E com essa conversa foi me levando até a porta dos fundos.

Depois de me empurrar para a rua, trancou o portão por dentro e foi calmamente se apresentar aos policiais que esperavam na porta da frente. E como a estória que contou aos “dito-cujos” sobre meu paradeiro, não convenceu, acabou sendo preso no meu lugar. Por aí se pode tirar uma conclusão sobre o caráter do meu irmão Joãozinho, o João da Mata, aquele que outrora ameaçou tocar fogo nos meus livros.

Nessa época, um líder começava a despontar no cenário político norte-riograndense: o advogado João Café Filho. O seu prestígio, todavia, ainda estava restrito aos meios operários de Natal e a gente miúda das cidades mais desenvolvidas do Estado. Ele se apresentava como elemento da oposição à velha oligarquia perrepista, representativa dos privilegiados grandes fazendeiros do café, da qual o povo brasileiro já estava mais do que farto.

O sr. Café filho ligou-se a massa operária, através dos sindicatos, tomando posição em defesa de seus anseios e reivindicações. Com sua palavra fácil e seus discursos inflamados, não foi difícil que seu prestígio se expandisse e se firmasse no meio da classe trabalhadora e de outros setores da população. Por todos estes motivos, seria demasiado sectarismo de nossa parte se não procurássemos fazer frente-única com o novo líder ou se simplesmente ignorássemos a sua existência.

Certo dia tivemos a notícia de sua vinda a Mossoró. Essa notícia chegou com uma antecedência de apenas algumas horas, era nosso desejo preparar uma recepção condigna, mas o tempo era curto, pouco se podia fazer em cima da hora. Procuramos apressadamente reunir os componentes da banda de música local, convidamos o maior número de companheiros e amigos e fomos esperá-lo na praça da Matriz.

Recebemos o líder com abraços e vivas, enquanto foguetes espoucavam no ar. Formou-se em cortejo que o acompanhou até a residência de meu irmão Raimundo Reginaldo, no bairro Doze Anos, onde o visitante ficou hospedado por algumas horas. Ali estava, em nossa casa humilde, o homem que haveria de ser o Presidente da República, sem que nós pudéssemos imaginar que tal coisa um dia viesse acontecer.

Acreditamos que os tradicionais chefões da política oficial também nem sequer sonharam com esta eventualidade. Caso contrário, ninguém lhes tiraria a primazia nem o prazer de serem os hospedeiros do ilustre visitante. E em vez da indiferença e mesmo da hostilidade com que assistiram a passagem do líder populista pela cidade, os maiorais da política teriam feito a ele a mais rica e calorosa recepção, com flores, tapetes, e rapapés e tudo o mais de que são hábeis e experientes.

Quanto a nós, não permitiriam sequer que nos aproximássemos. Aliás, esta proibição seria perfeitamente desnecessária, porque nós, neste caso, de foram alguma chegaríamos perto. Mais adiante, noutros capítulos destas memórias, veremos as guinadas que este mundo dá, e de que maneira fomos recompensados pelas ações de cortesia que praticamos.

Em 1925, aos 17 anos, integrando a 2º Turma que se formara, terminei o curso da Escola Normal e recebi o grau de professor.

Muito embora fosse grande meu contentamento pelo sucesso alcançado, eu me sentia fraco de conhecimentos, era como se apenas tivesse transposto um obstáculo, restando muito a caminhar. Mas, a realidade era que aquele diploma na mão, significava que eu nada mais tinha a fazer do que sair por aí a fora a espalhar instrução, baseado naqueles precários conhecimentos adquiridos.

No ano seguinte parti para esse destino, por ter sido nomeado professor de uma Escola Isolada na cidade de São Miguel, lá nos limites do Rio Grande do Norte com os Estados do Ceará e Paraíba. Naquele tempo os meios de transportes eram precários, tive que viajar em lombo de burro, com um grupo de “comboeiros”, numa viagem longa e fatigante.

A cidadezinha de São Miguel, situada em cima de uma serra, tinha o aspecto clamo e simpático das cidades do interior. Ao penetrar nas primeiras casas, encontrei vestígios deixados pela Coluna Prestes que por ali passara havia pouco tempo. Dentre estes vestígios, recordo-me de uma frase zombeteira escrita na parede da sede dos Correios por um sargento da Coluna, que dizia: “Os negalistas, digo, legalistas fugiram vergonhosamente” E seguia-se a assinatura do sargento, cujo nome o tempo me apagou da memória.

Lamentei profundamente que na passagem da Coluna Prestes por São Miguel eu não estivesse presente. Tive a sensação de ter chegado atrasado a um almejado encontro. Caso eu estivesse presente a Coluna, provavelmente, teria conquistado mais um soldado.

Nessa época já pertencia à Juventude Comunista. Certamente iria expor minhas idéias a Prestes e a outros líderes da Coluna. Mas, esse meu encontro com Prestes viria se realizar muitos anos depois, conforme será relatado mais adiante.

No meu curto período de professorado uma coisa me desagradou seriamente: não receber os meus vencimentos em dia. O pagamento ao funcionalismo estava com um atraso de 3 meses. Não é que me faltasse nada – o crédito vigorou perfeitamente e sem restrições – mas isto me tirou uma certa independência de atitude que sempre procurei manter. Certa vez, a pessoa que me hospedara em sua casa e me franqueara tudo o que viesse a precisar, pediu-me para que assinasse um telegrama dirigido a certo político da capital. Não era nada de grande importância, tratava-se apenas de felicitações por aniversário e eu por amizade e gratidão assinei. Mas, não gostei. Quando eu felicitar alguém por alguma coisa, mesmo que seja um aniversário natalício, quero ter minhas razões para isto. E, sobretudo, deve ser por livre e espontânea vontade. É uma questão de temperamento e princípios.

Logo no início das aulas esbarrei com uma grande dificuldade: a falta de alunos. À escola só comparecia um pequeno número de crianças, filhos de negociantes e artífices do centro da cidade. Só havia no lugar uma escola particular, por sinal de freqüência também não muito grande. Onde estariam, então, os outros meninos? Resolvi percorrer os arredores da cidade à cata de alunos e pude verificar a causa daquela ausência – POBREZA. Os filhos dos lavradores pobres, uns não podiam comparecer às aulas por falta de roupa e calçados, outros por terem que ajudar os pais no trabalho e assim melhorar ou garantir o sustento.

Contra o regulamento escolar, resolvi permitir que os meninos comparecessem com a roupa que tivessem, de chinelos ou descalços. Isto trouxe uns poucos alunos mas, não resolveu a situação. Uns, provavelmente não compareciam por constrangimento, o mais certo porém, e que os pais não podiam abrir mão da indispensável ajuda de seus filhos na luta pelo pão. Diante desse estado de coisas passei a compreender que a luta contra o analfabetismo era um problema muito mais sério do que a princípio me parecera. Não era possível resolvê-lo sem que se elevasse o padrão de vida do povo, o mal era de conteúdo essencialmente econômico-social. E aí começava outro problema muito mais profundo e complexo.

Percebi que a pobreza e o analfabetismo andavam sempre de mão dadas, que onde havia maior pobreza era justamente onde havia maior atraso, mais analfabetismo. Ambos os males, produtos de uma sociedade sub-desenvolvida, jamais seriam resolvidos sem que houvessem as transformações revolucionárias, cuja plataforma estava sendo lançada na ordem-do-dia, nos grandes centros urbanos do país.

Por outro lado, eu mantinha a minha vontade de continuar os meus estudos, e estava convencido de que isto não seria possível se eu continuasse naquela vidinha sacrificada e de resultados escassos que eu seguia.

A decisão foi tomada. Abandonei o ensino, voltei para Mossoró e passeia a trabalhar com meu irmão João Reginaldo, na pintura da propaganda. Matriculei-me no Colégio Diocesano, visando fazer os preparatórios para ingressar numa faculdade.

Os nossos rendimentos deveriam dar para alimentação, roupa, outras despesas indispensáveis e para pagar as mensalidades, livros, etc, do curso programado.

Quanto ao trabalho profissional em si, não havia dificuldades. A sua natureza se enquadrava perfeitamente à nossa vocação artesanal. De modo que inicialmente tudo corria bem, os compromissos iam sendo pagos em dia, sem problemas.

Depois vieram os períodos de crise de trabalho, complicando tudo. E dos meios de que lancei mão, numa luta inglória para manter de pé meus ilusórios planos, não escapou sequer o cabo da enxada. Logo das primeiras chuvas, lá estava eu, no roçado de Chico Freire, jogando ao solo sementes de milho e de feijão, na esperança de uma boa safra.

As minhas ilusões de desvaneceram. A Faculdade que eu sonhava fechou suas portas para mim, porque não tive dinheiro para pagar meus estudos. Mas eu descobri que havia outra Faculdade também muito útil e importante, gratuita, sem barreiras, sem restrições, sem móveis, sem paredes, sem professores catedráticos e sem diplomas. Suas salas de aula eram a praça pública, as ruas, os campos. Sua sede, nosso imenso Brasil, o mundo, o espaço infinito. Seus professores, o povo, a humanidade, a vida! Eu já estava matriculado nessa Faculdade e não me apercebera. Muito aprendi nela. E continuo aprendendo.

No cenário turbulento do nordeste, uma narrativa como a que estamos fazendo não seria completa nem verdadeira se não fosse entrecortada de lances de tragédia. Isso fez parte de nossa vida e de nossa história. Vejamos o que aconteceu no ano de 1927.

Nós vínhamos do roçado com uma carroça cheia de milho verde, feijão e melancia, quando encontramos, vindos da cidade, um grupo de comboieiros que nos transmitiu a notícia alarmante de que Lampião, com seu grupo de cangaceiros, estava há duas léguas de Mossoró, vindo em direção do bairro Alto da Conceição. Enviara um emissário ao Prefeito com um ultimato exigindo dinheiro. E como não foi atendido, esperava-se a qualquer momento o ataque à cidade e dizia-se, caso vencesse “seria difícil prever as conseqüências”.

Tivemos que tocar os bois com mais pressa, para evitar que fôssemos atingidos pelo tiroteio. Nós morávamos, nessa época no bairro Doze Anos, próximo da linha férrea. Os subúrbios não estavam defendidos do ataque. Somente os pontos centrais da cidade estavam entrincheirados (casa do Prefeito, banco, comércio, etc.). De sorte que os cangaceiros, vindos pelo Alto da Conceição, teriam que passar em frente ou próximo à nossa rua para atingir seu objetivo, o centro urbano.

Entramos na cidade deserta, a quase totalidade da população havia se retirado. Descarregamos a carroça, fomos jantar e ainda estávamos à mesa quando começou o tiroteio. Eu e meu irmão Joãozinho saímos para a calçada para ver a briga. Recolhemos várias pessoas da família Eufrásio, com mulheres e crianças, que vieram se abrigar em nossa casa. Tanto a nossa casa como a deles ficava próximo à linha férrea, por onde passariam os cangaceiros, sendo que a deles era de paredes de taipa, vulnerável às balas de fuzil.

O tiroteio foi se aproximando, as balas começaram a zoar nos nossos ouvidos, até que uma encravou-se na parede, muito perto de nossas cabeças. Foi quando resolvemos entrar e fechar as portas. Alguns minutos depois os cangaceiros passaram em frente ao leito da estrada, atirando e cantando “mulher rendeira”.

A fuzilaria durou toda a noite. As mulheres e crianças acomodaram-se num quarto e os homens na sala. E assim passamos toda noite, acordados, ouvindo o pipocar intermitente. Pela manhã, cessado o fogo, saímos para ver o resultado e encontramos grupos de defensores da cidade armados de fuzis. Ficamos sabendo o resultado da refrega. O ataque tinha sido rechaçado, Lampião se retirara para os lados do Ceará, deixando morto o “cabra” Colchete que foi arrastado até o patamar da Matriz. Logo depois foi encontrado ferido com dois balaços, o famoso Jararaca, que foi preso e trazido para a cadeia. Dias depois foi retirado da prisão, alta noite, e levado para o cemitério, algemado e ali apunhalado e jogado, ainda com vida numa vala previamente cavada.

Foi voz corrente que não esperaram o seu último suspiro, este foi abafado pela terra jogada às pressas sobre o corpo agonizante. Os autores do trucidamento alegaram que o mesmo lhe aconteceria, caso os cangaceiros viessem a triunfar. A vingança estava assim, consumada por antecipação. E com esta justificativa, “os defensores da ordem e da lei”, por suas próprias palavras, se nivelaram aos que eles mesmos chamavam de bandidos.

A verdadeira história do Brasil ainda não foi contada. Com exceção de fragmentos contidos em livros esparsos, muitos deles difíceis de serem encontrados nas livrarias, o que existe de nossa história é aquela versão oficial ou oficiosa, bonitinha, superficial, “cantiga de ninar”, ensinada nas escolas. Nessa falsa história, a independência do Brasil foi obra de um gesto altruístico do imperador Pedro I, a abolição da escravatura foi um ato magnânimo da princesa Isabel, a proclamação da República foi uma dádiva que o marechal Deodoro da Fonseca, bondosamente, espargiu sobre as cabeças dos brasileiros.

O povo, com suas lutas heróicas, com seu imenso sacrifício, com suas vidas imoladas nos milhares de quilombos, na cabanagem amazônica e na cabanada do nordeste, na balaiada, na Confederação do Equador, na revolução praieira, na guerra dos Farrapos, em todas as revoluções e levantes dos séculos passados e deste século, o povo – o herói principal desse grande drama – não entra em cena, é esquecido.

Mas, para que não se diga que ele foi totalmente desprezado, lembraram-se de Tiradentes. E na praça que tem o seu nome, no Rio, bem perto do local onde ele foi enforcado, ergueram uma estátua... De Tiradentes? Não. De D. Pedro Primeiro...

A nova “Faculdade” na qual, voluntariamente, ingressei e que passei a chamar de Faculdade Revolucionária do Povo - FRP -, não me ensinava mentiras. Suas aulas eram práticas, reais, verdadeiras. Nada exigia de mim, a não ser uma dose muito grande de esforço e sacrifício, coisas que me acompanharam e que, por conseguinte, eu não poderia estranhar. Exigia também, que eu fosse essencialmente auto-didata ou seja: eu devia ver, ouvir e sentir tudo o que se passasse em volta de mim e procurar compreender e tirar minhas conclusões. Eu devia usar a cabeça, o raciocínio, não de forma parada, como um mero espectador, mas de maneira atuante, participante.

E o que é que eu via em torno de mim? Milhões de seres humanos vivendo em condições de extrema penúria e atraso, sem o mínimo conforto e assistência; as populações rurais vegetando como animais, dizimadas pelas endemias, a desnutrição devastando de preferência a infância, enquanto que, nas cidades, o operariado não tinha lei que lhe protegesse a vida e o trabalho.

Via também as lutas titânicas do povo para melhorar suas condições de vida, e a repressão brutal que conseqüentemente se desencadeava. As invasões nos sindicatos, as prisões, os espancamentos, os assassinatos, as deportações para Ilha Grande, para Fernando de Noronha e para a Clevelândia, onde morriam de beri-beri, doença causada pela deficiência alimentar. As masmorras espalhadas por esse Brasil a fora sempre lotadas e sempre prontas a recolher e devorar novas vítimas.

A FRP me ensinava - e no mundo inteiro os fatos confirmavam – que só com a organização e com a luta esse estado de coisas poderia mudar. Passei a escrever em jornais da capital debatendo os problemas que nos afligiam. Procurei criar organizações sindicais e partidárias. Os primeiros resultados começaram a surgir. Grupos de operários salineiros, da construção civil e outros me procuravam para discutir as bases de sua organização.

Elementos das classes dominantes passaram à contra ofensiva.

Não tardaram as ameaças, coisas que não me assustavam. Mas foi se tornavam mais difícil arranjar trabalho e esse tipo de represália tornou minha vida mais difícil.

Houve uma reunião de família. Nessa reunião foi decidido que iria me transferir para a capital do vizinho Estado do Ceará, onde iria ocupar novo posto, em terreno mais amplo, na luta libertadora. Enquanto isso, o núcleo já existente continuaria o trabalho já iniciado. Em cumprimento da decisão tomada, eu e minha companheira partimos de imediato.

O primeiro emprego que arranjei em Fortaleza, foi nas oficinas gráficas do “Correio do Ceará”. Depois trabalhei em outras oficinas como tipógrafo, e esta profissão tornou-se mais tarde de grande utilidade para o Partido, quando passei a exercer este ofício e a formar novas quadros profissionais, sem nenhum egoísmo. Quanto à moradia, como não podia deixar de ser, foi uma bairro pobre que me acolheu, uma favela que existia por trás da rua Benfica.

O rumo do sindicato estava traçado, não havia outro caminho a seguir. Era necessário e urgente despertar na consciência daqueles companheiros a noção do seu valor, de sua força e de seus direitos, congregá-los em organizações de classe onde suas reivindicações fossem debatidas e defendidas.

O sindicato da Construção Civil foi o ponto de partida para essa campanha de organização. Fomos às portas das fábricas e aos bairros operários, a palavra sindicato caiu como uma voz de comando há muito esperada. Dentro de pouco tempo conseguimos agrupar núcleos fortes do operariado têxtil, dos transportes urbanos, dos gráficos, alfaiates, padeiros, empregadas domésticas e outros.

Os comícios nos bairros e na praça de Pelotas tornaram-se célebres, à voz dos líderes operários juntavam-se a palavras vibrante das tecelões, cada discurso era um depoimento surpreende sobre as condições de vida do povo trabalhador, era um libelo candente contra uma sociedade que relegava à condição de simples párias aqueles que construíram toda a sua riqueza e o seu patrimônio.

As primeiras assembléias foram realizadas na sede do Sindicato da Construção Civil, na praça Coração Jesus. Depois foi preciso alugar convento de freiras, e lá passaram a funcionar todos os sindicatos novos e o Bloco Operários Camponês, organização de âmbito nacional cuja direção central estava na capital da República.

Nessa ocasião passamos a editar um semanário “Voz Proletária” do qual eu era diretor, acumulado as funções de tipógrafo, impressor, revisor e xilógrafo. Muitas falhas devem ter saído nesse despretensioso jornal. Mas, ele expressava bem os sentimentos e os anseios da época e desempenhou bravamente a sua função de procurar unificar a classe operária em torno de um ideal comum, que era o desejo de uma vida digna e melhor para os que trabalham.

A experiência adquirida com esse jornal foi de grande proveito, pois tive mais tarde que repetir essa proeza em outros lugares, em Natal, no Rio, em São Paulo e na Bahia, quando o famigerado Estado Novo nos forçou a confeccionar jornais clandestinos, tendo que fazer títulos e cabeçalhos gravados em madeiras, à canivete, para suprir a falta de tipos para os mesmos e em condições mais difíceis que se possa imaginar.

Como sempre acontece, o nosso trabalho não demorou a inquietar os poderosos e a reação começou com uma campanha difamatória contra as organizações nascentes. Dentre muitas coisas absurdas que eles diziam nessa campanha, uma provocou muitos risos nos meios operários, a de que estávamos a serviço do “ouro de Moscou”. Que excelente imaginação a desses senhores! – diziam uns. É preciso ter muito “crânio” para idealizar uma coisa dessa. O Gomes, um operário que estava sempre a pilheriar, saiu-se com esta: “- Quem sabe se esse ouro de Moscou não está vindo mesmo e “Eles” estão roubando no caminho?” e acrescentava irônico: “-Quem disto cuida, disto usa”.

Neste clima de entusiasmo e otimismo o nosso trabalho de arregimentação continuou a progredir, as decisões eram freqüentes, o nosso prestígio crescia nas fábricas e nos bairros, confirmando todas as nossas previsões.

Mas, a minha preocupação fundamental era a organização do Partido Comunista. Eu estava consciente de que a existência de um partido marxista-lenista era condição indispensável para o desenvolvimento das lutas da classe operária e do povo laborioso em geral. Em conversas particulares, procurei sondar o ambiente e fiquei sabendo que já havia sido criado um Comitê Regional do PC, por iniciativa do operário (pedreiro) José Joaquim de Lima. Mas deixara de funcionar.

Partindo desses dados, não foi difícil o meu trabalho. Dentro de pouco tempo estava funcionando o novo CR e as primeiras células foram estruturadas entre os têxteis, gráficos, construção civil, transportes urbanos etc. A partir daí, passei a ter mais confiança e firmeza em nossa organização, em nossas forças.

Um dos redutos onde a exploração e a ganância se faziam sentir com mais desfaçatez era a Light, a famosa companhia de capitais estrangeiros.

Muitas fábricas e empresas nacionais, especialmente as de pequeno porte, compreenderam a justeza de nosso movimento, passaram a tratar com mais respeito seus servidores e a atender em alguns casos, seus justos reclamos. Criava-se então nessas pequenas indústrias, um ambiente de entendimento e cooperação entre empregados e patrões. Mas a Light, senhora absoluta e poderosa, fez ouvido de mercador às reivindicações operárias, manteve-se intransigente a todo e qualquer apelo de melhoria de salário, os memoriais aprovados em assembléias sindicais e enviados a Companhia não eram tomados sequer em consideração. Esgotados todos os recursos persuasórios, resolveram os operários, em assembléia geral, apelar para o último recurso, a greve. Esta foi declarada, os bondes paralisaram, afetando a vida a cidade. Um Comitê de Greve passou a funcionar na sede dos sindicatos. A solidariedade do povo surgiu generosa e eficiente.

Diariamente saíam “bandos precatórios” dos grevistas, conduzindo pelas ruas da cidade, as bandeiras nacional e do sindicato solicitando ajuda. E nas bandeiras “choviam” donativos em dinheiro a mercadorias. Na sede dos sindicatos caminhões paravam à porta e descarregavam sacos de feijão e farinha que os comerciantes enviaram para os grevistas. Açougueiros mandavam bandas de boi, das padarias vinham balaios cheios de pão, toda a manhã.

A sede do Sindicato era um torvelinho contínuo. Era impressionante a solidariedade da população com o movimento paredista e não me recordo de outro movimento em que essa manifestação de apoio tenha sido superada.

Fui incumbido da publicação de um “Boletim de Greve” que saía diariamente, dado conta do movimento, estimulando e exortando os operários a prosseguirem na greve até a vitória final. Parte da imprensa colaborou com os grevistas, destacando-se “O Ceará”, diário de Matos Ibiapina, e essa ajuda muito influiu no resultado da parede, que terminou com a vitória das justas reivindicações operárias.

Mas uma surpresa estava reservada aos trabalhadores. Terminada a greve, quando o trabalho retomava seu ritmo normal, começaram as represálias por parte da companhia imperialista, que passou a despedir aos poucos os funcionários que mais se destacaram no movimento. Como não havia nessa época leis de estabilidade no trabalho, velhos servidores que passaram toda a vida a enriquecer o truste do transporte urbano e da energia elétrica, viram-se de repente postos na rua sem nenhuma indenização.

Com essa dura experiência, o operariado aprendeu a necessidade de cerrar fileiras em torno de seus líderes, diante da falta de escrúpulos por parte dos explorados estrangeiros. A união e firmeza constituem sempre uma força poderosa de que dispõe a classe operária para fazer valer os seus direitos. E tudo o que de útil se conseguiu até hoje nessa longa trajetória, deve-se a essas duas palavras mágicas, sempre que elas foram postas em práticas.

Certa manhã, quando me dirigia ao trabalho, fui abordado por policiais. Um deles disse-me que o delegado “fulano” desejava falar comigo convidando-me a acompanhá-los até a delegacia. Compreendendo que tal convite era uma variante mais educada do célebre “teje preso!”, não tive dúvidas em seguir tão má companhia.

Ao chegar no Distrito que também era sede da Guarda Civil, ao fui apresentado a nenhum delegado mas simplesmente trancado num xadrez, sem explicações. Não havia no cubículo nenhum móvel, nem água, nem instalações sanitárias. Procurei acomodar-me no chão cimentado e aguardar os acontecimentos.

As horas foram se escoando, a noite já se aproximava e nenhuma refeição me foi servida – eu estava com o café da manhã – o estômago começou a reclamar falta de alimentos. Havia ao lado um cubículo com vários presos comuns, eu perguntei a um deles se “naquela casa” não se costumava comer. Ele respondeu que nos dois primeiros dias não era costume “a casa” fornecer comido aos presos. Ele não sabia explicar se era por medida de economia ou se era um meio hábil de provocar a voracidade dos detentos a fim de que pudessem engolir, sem vômitos, a horrível bóia que teriam de enfrentar mais tarde.

Procurei botar em prática a filosofia fatalista contida no velho provérbio que ouvi de meus avós: “aquilo que não tem remédio, remediado está por natureza”. Deite-me no chão e esperei que o sono me apaziguasse o estômago e o espírito.

Quem já esteve preso sabe que o pior de uma prisão são as primeiras horas de seu começo e as últimas de seu fim. No primeiro caso, a emoção é causada pelo impacto e pela frustração de quem acaba de perder a liberdade. No segundo, é pela ansiedade de quem está prestes a recuperá-la. Nessas horas é que o sono foge e a imaginação trabalha desordenadamente.

Eu procurava dormir mas não conseguia. Coisas que numa situação normal seriam para mim claras e corriqueiras, apresentavam-se no meu pensamento como absurdas, incompreensíveis. O fato de que pudesse haver indivíduos que na defesa de seus privilégios de classe, fossem capazes de praticar as maiores vilanias, me parecia naquela hora uma incoerência, um absurdo. Procurava fazer um paralelo entre a abnegação, o desprendimento e o heroísmo dos revolucionários que lutam por um mundo melhor, e o egoísmo, a mesquinhez e a crueldade dos que defendem um regime injusto e caduco e a disparidade crescia de tal forma na minha imaginação, que eu chegava a crer que estava exagerando. O esforço mental que eu fazia levou-me ao cansaço e este ao sono.

O segundo dia de prisão transcorria sem alteração, a fome aumentava, um prolongado silêncio se apoderou do cubículo ao lado, todos pareciam dormir um sono hibernal. Ouviam-se apenas os passos dos guardas no corredor e suas vozes de quando em quando.

À tarde, dentre os guardas que passavam em frente ao cubículo, vi um a quem conhecia do Rio Grande do Norte. Chamei-o pelo nome, ele mostrou-me surpreso ao ver-me naquele estado, saiu à rua voltou e fez passar um pão pelas grades. Também prontificou-se a levar ao conhecimento de minha família a minha situação e o meu paradeiro, o que realmente fez. E em boa hora, pois eu estava como desaparecido, uma comissão de líderes sindicais andava a minha procura pelos distritos, inclusive naquele onde eu realmente estava, e todos negavam a minha detenção.

Descoberto o meu paradeiro, a trama policial caiu por terra. Era quase noite quando fui levado à presença do tal delegado. Sentado no seu “bureau”, tinha na mão um folheto que eu reconheci seu um que eu publicava há poucos dias, com minha assinatura. Nesse folheto eu falava da situação dos trabalhadores e concitava-se a ingressarem nos seus sindicatos, único caminho seguro para a solução de seus problemas.

Mostrando-me o folheto, o delegado – que parecia bem humorado – iniciou o que seria, talvez, a tal conversa para a qual eu fora convidado: “- Senhor Reginaldo, eu gostei do seu livrinho. O senhor escreve com alma e tudo o que o senhor diz aqui é a pura verdade. “Mas”, (nesse “mas” estava o xis do problema...) o senhor há de compreender, nem toda verdade deve ser dita. O mundo sempre foi errado e continuará sendo errado e não seremos nós que haveremos de endireitá-lo. O que o senhor diz, embora esteja certo, não convém que o diga. O senhor é bem intencionado, mas está com isto fazendo perigosa agitação, está lutando por um ideal impossível”.

Eu estava surpreso com aquelas palavras. O delegado parecia disposto a puxar conversa mas eu ou por uma natural desconfiança ou pelo mau-humor que me provocara os dois dias de fome no xadrez, fiquei mudo diante daquela loquacidade. Por fim, diante do meu mutismo, parou, olhou-me por algum tempo com certa curiosidade, e disse que eu estava livre e que podia ir embora. Como naquele momento era este o meu único desejo, não esperei que ele repetisse a ordem, fui dando o fora daquele recinto, antes que ele se arrependesse. E quando cheguei na rua respirei fundo o ar puro da liberdade.

Na sede dos sindicatos fui recebido por inúmeros companheiros e fiquei sabendo o que ocorrera. Uma comissão de representantes sindicais saíra a minha procura, providenciara um “habeas-corpus”, percorrera as redações dos jornais e iniciara uma campanha em minha defesa. E antes que o movimento tomasse maior vulto, resolveram libertar-me.

É evidente que a “filosofia panglossiana” do delegado não podia me convencer. O meu raciocínio deve ser demasiadamente simplista, pois eu não podia alcançar a “razão suficiente” pela qual tudo que estava acontecendo tinha que ser assim mesmo, não podia compreender precisamente por que as coisas não podiam se de outra maneira. De acordo com aquelas esdrúxulas teorias conformistas e conservadoras, “o presunto foi feito para que afortunados barões o saboreiem e se fartem a vida toda”. E a fome... bem, a fome existe para que milhões de seres sintam as suas convulsões.

Isto é muito bom para quem vive nas torres do castelo apreciando o desfilar interminável dos párias. Mas, para os párias propriamente ditos, não há argumento por mais engenhoso e eloqüente que seja, capaz de convencer de que vivemos no melhor dos mundos e que é perigoso pretender transformar o regime injusto e desumano em que vivemos. É a lei da sobrevivência, do instituto, que fala mais alto. A própria espécie humana teria deixado de existir não fora a luta constante que desde os seus primórdios vem sustentando contra tudo que possa constituir um obstáculo à sua existência, a marcha inexorável de seu progresso.

Eu estava com os párias, era um deles, sofria com eles, nos queríamos “viver”, precisávamos “viver”. A vida, na verdadeira acepção da palavra, não podia ser privilégio de uns, ainda mais tomando-se em conta que os párias eram justamente a classe produtora, que tudo constrói. A compreensão de seus direitos e de seu valor começava a despontar na consciência do povo, já começavam a chegar adesões do interior, a nossa responsabilidade aumentava, era preciso atender aos pedidos de orientação e ajuda que nos faziam das cidades mais próximas.

O PC, com sua linha política marxista-leninista, já tinha sido reorganizado e passou a assumir o seu posto de vanguarda. Na zona noroeste, tendo por base Sobral e Camocim, esboçava-se um movimento unificador, de lá veio um pedido para que enviássemos uma pessoa para orientar na criação de sindicatos e comitês. O assunto foi debatido em reunião e eu fui designado para ir a essas cidades prestar assistência. Dentro de algumas horas eu deveria estar pronto para partir, no desempenho de minha tarefa. E isso aconteceu.

Acomodei-me num ônibus que fazia a linha Fortaleza-Sobral e aguardei a partida. Em breve o velho carro estava avançando pela estrada poeirenta. De um lado e do outro a paisagem ia vagarosamente surgindo e vagarosamente ficando para trás, sempre se renovando nos detalhes mas mantendo o mesmo aspecto de terra devastada, esse já tão conhecido aspecto de pobreza estampado em tudo, no homem esquelético e andrajoso, nas crianças barrigudas, nos magros animais, nos mocambos cobertos de palha, no que fora outrora um roçado, na vegetação garranchenta e queimada pelo sol, nas ossadas de animais, nas cruzes que surgiam aqui e acolá na beira da estrada.

Era como se estivéssemos assistindo o desfilar interminável de enfermos – a natureza, homens e animais morrendo aos poucos, sem assistência e sem amparo. Enquanto o coletivo avançava na estrada eu refletia: - e dizer que sob os nossos pés está uma das mais ricas terras do mundo! Por quanto tempo ainda teremos que ver e sentir essa calamidade? Entra governo e sai governo, todos prometem tomar providências e solucionar o mal e o que vê é a situação se perpetuar e se agravar.

Eu ia com a missão de fazer chegar a esses compatriotas uma mensagem de fé e de esperança, fazer com que eles compreendessem que nem tudo estava perdido, que o nosso destino estava em nossas próprias mãos. Era uma tarefa dificílima, não dispúnhamos de meios nem de recursos para difundir a nossa palavra, tínhamos que agir como modernos apóstolos, num trabalho persistente, individual, de persuasão.

Não me recordo quanto tempo durou esse penoso desfilar de imagens doentias, sei que finalmente surgiram as primeiras casas da cidade de Sobral de aspecto bem diferente: limpa, com resistência confortáveis, com um centro comercial movimentado, como se ali morasse uma elite vivendo à parte, em completo contraste com o ambiente desolador que a circundava.

Procurei me ligar aos companheiros ali residentes e fiquei sabendo, por meio deles, que a cidade estava cheia de boatos de um levante em Camocim, que tinha seguido para lá um contingente da Polícia Militar, apurando-se mais tarde, que tudo fora mentira, não passara de um pretexto para prisões e perseguições ao movimento de organização que se iniciava.

Tratei de seguir para a região falsamente conflagrada. Eu deveria tomar um trem pela manhã para Camocim. Quando já estava na plataforma da estação, vieram a mim quase correndo esbaforidos, um civil e dois soldados e me deram voz de prisão.

O policiamento da cidade estava sob a chefia de um sub-delegado atrabiliário que fez grande estardalhaço com a minha detenção, como se tivesse posto a mão no indivíduo mais perigoso do mundo. Fui recolhido a um xadrez da Casa de Detenção, e ali fui informado pelos presos comuns de que o verdadeiro delegado major Firmo, estava ausente e que ao contrário de seu substituto, era homem ponderado, segundo a opinião dos mesmos informantes. Uns dois dias depois ele chegou, assumiu o posto e mandou pôr-me em liberdade.

A vida continuava nesse ritmo agitado, quando recebi uma carta do Rio Grande do Norte comunicado a minha convocação para o serviço militar. Isto significava que eu tinha que deixar Fortaleza onde já residia há cerca de dois anos, onde já me ambientara e formara meu currículo de companheiros e de amigos. Além disto eu gostava dos nossos vizinhos cearenses, do seu espírito comunicativo, franco e solidário. Mas não tinha outro jeito. Dirige-me à minha cidade natal, lá me apresentei às autoridades responsáveis e aguardei as passagens para seguir, com outros recrutas, para a capital do Estado, onde estava sediado o 29 B.C.

Já estava pronto para seguir quando rebentou a chamada “revolução de 30”. As aspas em “revolução” significam que o conceito que tenho desse vocábulo é bem diferente do que foi aquele movimento. Revolução, para mim, é todo movimento armado que visa a tomada do poder de uma classe que já desempenhou sua missão histórica e a sua substituição por outra de conteúdo revolucionário e progressista. Ou ainda, os movimentos que visam a libertação de um povo oprimido e subjugado por potências estrangeiras, as chamadas “revoluções libertadoras”.

No movimento de 30 o que houve foi uma simples troca de homem no poder, um grupo de fazendeiros cedeu lugar a outro grupo de fazendeiros, a hegemonia dos latifúndios manteve-se em toda a linha, não me consta que tenha havido sequer uma simples reforma agrária, ou que tenham tomado alguma medida visando a libertação de nosso país do jugo imperialista. Ao contrário, novos compromissos e novos onerosos empréstimos foram contraídos, o domínio dos trustes internacionais continuou. O que houve em 1930, foi a maior farsa de que se tem conhecimento em nossa história, o início da hegemonia dos trustes norte-americanos, em detrimento da hegemonia do capitalismo inglês, que até então dominara, absoluto, o país.

Mas deixemos de parte as divagações e voltemos à narrativa. A cidade amanheceu repleta de boatos. O movimento irrompera em todo o país, tropas gaúchas, conforme diziam, faziam misérias por onde passavam, “os perrepistas” estavam sendo passados pelas armas e os comunistas passavam por maus lençóis.

Um juiz de direito, conhecido inimigo da Aliança Liberal, para se por em boa situação com a “revolução” vitoriosa, perdeu a dignidade, juntou-se a um grupo de desclassificados e saíram todos, armados de paus, dando caça aos “extremistas”. Cenas degradantes, indignas de um representante da justiça, que deveria se colocar em posição bem mais elevada, acima das paixões políticas e fora das arruaças.

Vieram me avisar que “determinada pessoa” havia espalhado o boato e denunciara que me vira à frente de um grupo armado, avançado não sei em que direção nem contra quem. Não dei importância ao boato idiota e sai à rua ver o que se passava. Quando cheguei ao centro da cidade fui “cercado” por um grupo de capangas armados de rifles, extravasando bravura por todos os poros. Esses valentões de triste figura não se envergonharam em exibir um arsenal para prender um homem sozinho e desarmado, que nunca passara sequer por uma escola de luta livre.

Compreendi logo que se tratava do mesmo truque do juiz, isto é, “perrepistas” que “viraram a casaca” em cima da hora e procuravam se por à salvo de possíveis represálias por parte dos liberais e garantir suas posições de mando. Fui levado até a sede dos Correios e ai fiquei detido até a chegada das forças da “Aliança”. Havia uma confusão de autoridades, não se sabia bem quem era governo, se os “carcomidos” ligados ao regime deposto ou se a gente que acabava de vencer.

Com a chegada das tropas (uns duzentos homens, em vez dos cinco mil propalados) a situação se esclareceu. José Otávio, Amâncio Leite e outros, os legítimos liberais, se manifestaram contra aquela farsa grotesca, e eu fui posto em liberdade.

No dia seguinte parti para Natal, a fim de servir nas fileiras do Exército. No quartel do 29 BC, onde me apresentei, notei que havia uma movimentação interna fora do comum, um entra e sai contínuo, que interpretei como conseqüências das mudanças do governo decorrentes da “revolução”. Com isso, o engajamento dos recrutas convocados ia sendo protelado. Enquanto esperávamos, íamos participando do “rancho” e do exército que um cabo ia dirigindo, para “desenferrujar as juntas”. Um belo dia fomos informados de que os recrutas casados estavam dispensados do serviço militar. Eu estava enquadrado nessa dispensa. Arrumei a trouxa e voltei para a minha “vidinha” de civil, já que como soldado fui julgado desnecessário.

O partido achou necessária a minha atuação no Rio Grande Do Norte e em decorrência de uma resolução nesse sentido, passei a residir em Natal, nas Rocas, o bairro dos operários e pescadores.

Numa Conferência realizada pelo Partido em Natal fui eleito membro do novo Comitê Regional – assim eram chamados, naquele tempo, o que hoje designamos por Comitês Estaduais – com a função no Secretariado, de agitação e propaganda (agit-prop). Essa função agit-prop me agradava. Eu já a exercera no Ceará e passou a se repetir na minha atividade partidária pelo fato de eu ser tipógrafo, o que facilitava o desempenho do cargo, no que se refere à sua parte prática. Conforme o Partido Comunista havia denunciado previamente, o novo governo instituído pela chamada “revolução” de 30 continuava indiferente à sorte do povo trabalhador, a sua política era continuação da defesa dos latifundiários e fazendeiros do café, era a continuação dos empréstimos e da penhora de país aos trustes estrangeiros, particularmente ao imperialismo ianque. O povo? O povo que se arranje.

Nessa época fomos encontrar o senhor Café Filho no posto de chefe de Polícia do Estado. Já não tínhamos discursos, os “desmandos” do governo e com quem, alguns anos atrás, tentamos fazer frente única na defesa da classe trabalhadora. Agora ele fazia parte do próprio aparelho estatal, na sua função mais clara e mais chocante, incumbido que era da manutenção a qualquer preço, da ordem e das instituições do regime implantado com a referida “revolução” de 30, e que iria descambar na cruenta e odiosa ditadura neo-fascista do Estado Novo. De nossa parte, o compromisso que tínhamos era com a nossa classe, com a nossa consciência, com o povo laborioso. E pusemos mãos à obra, ao trabalho de conscientização e organização sindical. Eu, José Praxedes, Epifânio Guilhermino, Agostinho, Aristides Galvão, Acrísio e vários outros operários, lançamos as bases da União Geral dos Trabalhadores, começando pelo setor ferroviário e pela Força e Luz Nordeste do Brasil, cujos sindicatos estavam em fase de organização. A União Geral funcionava no Alecrim e um jornalzinho “O Proletário”, passou a circular semanalmente.

O que estava acontecendo no Rio Grande do Norte não era um caso isolado. No país inteiro, uma grande parcela da massa popular começava a se dar conta de que caíra no “conto do vigário”, com aquela farsa da “revolução” de 30. De sorte que os nossos apelos para a organização não tardaram a ser atendidos e à sede dos sindicatos afluíam trabalhadores em número crescente. Isto amedrontou os governantes e a repressão não tardou a entrar em ação.

Como dissemos, o senhor Café Filho era o chefe da Polícia e não era por acaso. O seu reduto era o Sindicato dos Estivadores. Noutros setores o seu prestígio fora abalado desde que mandava prender um líder operário por divergir de sua política. Isto, porém, foi uma pequena amostra do que iria acontecer mais tarde. Sentimos desde então que os nossos passos estavam sendo vigiados, tipos suspeitos surgiam por toda a parte, destacando-se o “tira” João Nunes dos Reis, conhecido pelo alcunha de Maria Gorda.

Tornava-se cada vez mais evidente a tendência de certos setores responsáveis pelos destinos de nosso país a reprimir pela brutal violência as lutas populares, substituindo as leis que eles mesmos elaboraram pelo regime da força, do arbítrio. Isto sempre acontece em toda a história do sistema capitalista, nos momentos de crise, quando a situação do povo se agrava, quando aumenta o desemprego, quando as lutas populares começam a surgir, as camarilhas dominantes sentem-se ameaçadas e inseguras, passam a não confiar mais nas formas de dominação até então em vigor – as chamadas democracias burguesas – e, através de um golpe de estado implantam a ditadura. É o que o povo chama, na sua pitoresca linguagem, de “apelar para a ignorância”.

Acontece ainda que nessa época o fascismo – a forma mais bestial que se conhece da dominação capitalista – começava a se expandir pelo mundo, a partir da Itália e da Alemanha, constituindo-se num estímulo para os apologistas dos regimes de força dos países subdesenvolvidos, como o Brasil.

O senhor Café Filho, que iniciara sua carreira política com apelos demagógicos aos trabalhadores, enveredou pela trilha da repressão e as prisões e deportações não tardaram.

A gente humilde do nordeste é de uma grande simplicidade na exteriorização de seus sentimentos. Um olhar ou um gesto singelo é suficiente para revelar um mundo de paixões, tanto nas horas de felicidade como nas de amargura. É um povo que habituou-se a conter suas emoções. As manifestações espalhafatosas, tão comuns noutras paragens, são gestos raros alí, onde uma palavra oportuna e expressiva tem, muitas vezes o valor de um discurso.

Apesar dessa característica simplória, oriunda do meio em que fomos criados, quem nos visse naqueles dias de setembro de 1932, não teria dificuldades em perceber a alegria que tomara conta de nossas vidas, suplantando as preocupações de uma existência árdua e incerta. Isto porque em nosso lar nascera uma filha – este fato por si só já diz tudo – a presença de um recém nascido parece nos trazer novo estímulo, a gente sente reviver, tem a responsabilidade e a esperança em dias melhores, a fantasia toma conta de nossa imaginação.

Esse estado de espírito nos assaltara, nós vivíamos naqueles dias embalados por sonhos e projetos e sonhar acordado é uma forma de suavizar a vida.

Depois de um dia de trabalho intenso, era com alegria e ansiedade que eu me dirigia para casa, com o pensamento voltado para aquele pequenino ser que há dias transformara nossa lar num mundo à parte. Uma noite, quando cheguei próximo à minha residência, deparei-me com João Reis e outros policias em atitude de expectativa. Há dias que eles andavam rondando nas imediações em franca espionagem, mas a consciência de que nenhum crime havia cometido me deixava tranqüilo, não lhes dei importância.

De nada valeu essa tranqüilidade. Ali mesmo fui preso e levado para a delegacia. Minha casa foi invadida. João Reis obrigou minha esposa a se levantar da cama – onde ainda cumpria resguardo de um parto difícil – e isto para que ele farejasse o colchão a procura de manifestos existentes. Essa ignomínia era apenas uma parte de outras idênticas que nessa mesma noite estavam sendo levadas a efeito em outros lares – no de José Praxedes, no de Agostinho e no de Acrísio – seguidas de inúmeras prisões.

Há poucos minutos eu caminhava para casa, feliz, o pensamento voltado para minha família e agora eu marchava em silêncio para a prisão, amargurado e enojado. Aquele estado de espírito confiante que há pouco me embalava, aquele otimismo que me fazia ver subjetivamente o céu mais azul, a natureza mais bela, transformara-se não mais em revolta – o fato de ser preso já ia se tornado coisa banal – mas simplesmente em asco. Eu me sentia como se me tivessem poluído as vestes com algo fétido. E quando me fizeram entrar num xadrez escuro da Delegacia das Rocas, não pude deixar de murmurar: -Há qualquer coisa de podre no reino da Dinamarca. A porta de ferro do cubículo foi fechada atrás de mim e o seu ruído característico ecoou no silêncio da prisão.

Há uma particularidade nos fatos ocorridos nessa ocasião que vale a pena mencionar. As cenas descritas anteriormente transcorreram no mais absoluto silêncio. As poucas palavras a mim dirigidas não passaram de ordens secas: vamos! siga!,entre!. Nenhuma explicação ou pergunta me foi formulada. O lógico seria que me dissessem de que espécie de delito eu era acusado e caso eu tivesse realmente cometido tal delito, que eu respondesse por ele na forma da lei.

Esperei em vão pela hora em que fosse chamado a prestar contas dos meus atos. a ouvir as acusações que me seriam feitas. para que eu tivesse a oportunidade de apresentar as minhas razões e a minha defesa. Eu não podia entender os motivos dessa esquiva. Cheguei a pensar que eles estivessem com vergonha dos seus atos ou que estivessem com medo de um confronto na qual eu passasse de acusado a acusador, com possível repercussão na opinião pública.

A primeira hipótese – a da vergonha – risquei imediatamente de minhas conjecturas, por achá-la completamente absurda. Restava a segunda, a do receio de um confronto pelos resultados negativos que lhes pudesse causar perante a opinião etc, etc. Achei esta suposição mais plausível e nela me firmei. Mas, restava ainda outro problema importante a resolver, “o da nossa libertação”.

Com o péssimo e atávico costume de raciocinar que me acompanha desde criança, (isto parece lógico mas há pessoas que embora tenham essa preciosa faculdade parecem não gostar muito de usá-la), botei a cabeça a funcionar. Bem, visto não haver depoimentos acusações nem formação de culpa, só podemos esperar que a qualquer momento nos mandem embora, tudo não passou de um lamentável engano. E nesta convicção também me fixei, muito embora a experiência nos aconselhasse a não confiar muito nesse tipo de gente que se arvora do direito de nos tutelar, mesmo contra a nossa vontade.

Depois de uns quatro longos dias de espera, chegou finalmente a hora de sermos chamados. Pela manhã a porta do cubículo se abriu e fui levado a uma sala onde já estavam os companheiros Agostinho e Acrísio, Mandaram-nos sentar e esperarmos alguns minutos até que veio um senhor, provavelmente um delegado. Sentou-se no seu bureau, olhou-nos com atenção e com um gesto mandou que nos levassem sem nada nos dizer nem perguntar.

Fomos colocados num carro, sempre com a presença do policial João Reis a dirigir as operações e o veículo começou a rodar pelas ruas da cidade. Continuava aquele silêncio, nenhuma explicação nos foi dada ninguém ousava indagar.

No princípio eu pensei que íamos ser postos em liberdade, mas desde o momento em que nos mandaram entrar no carro achei que seria demasiada gentileza se eles nos mandassem para casa de automóvel. Que significava aquele passeio pela cidade? Talvez fôssemos a outra repartição da polícia preencher alguma formalidade. Depois disso, então sim, nos mandariam embora.

Mas, que significava aquilo? O carro agora estava rodando em direção ao cais do porto. Foi nessa ocasião que um pensamento me assaltou: Será que estamos sendo deportados? Não. Não é possível. Estamos com a roupa do corpo, sem dinheiro, e eles seria tão desumanos a ponto de não deixarem sequer que nos despedíssemos de nossas famílias?!

Agora já não tínhamos dúvidas. O carro chegou ao cais fizeram-nos saltar e embarcar numa canoa e esta acionada por remos, tomou a direção de um navio ancorado na barra.

A tensão nervosa aumentou ao máximo, a ansiedade e o rancor estavam estampados nos nossos semblantes. Não era mais possível continuar aquele silêncio. Indagamos o que significava tudo aquilo e a resposta foi lacônica: “Vocês vão ser deportados...”

Tudo aconteceu como num relâmpago. Agostinho desfechou um tremendo soco na cara de João Reis, este desequilibrou-se, quase tombou n’água mas aprumou-se, e o contragolpe veio numa coronhada violenta que abriu uma brecha na cabeça de nosso companheiro. Procuramos ir em seu auxílio mas fomos segurados pelos policiais e no tumulto a canoa ameaçou virar. Era um gesto de mera solidariedade de nossa parte pois naquelas circunstâncias, qualquer reação seria inútil, e somente uma explosão de nervos podia explicar aquela atitude.

Isso aconteceu já próximo ao navio. Dai a pouco a canoa atracou no seu costado, subimos a escada e nos vimos diante de uma pequena multidão constituída de tripulantes e passageiros reunidos no tombadilho, donde assistia às cenas lamentáveis. O nosso aspecto era alarmante, roupas em desalinho, Agostinho todo ensangüentado e João Reis com um olho tapado pelo soco que levou.

O comandante do navio leu o papel que lhe foi entregue pelos policias, mas recusou-se a receber-nos naquele estado. Falou em irregularidade, disse da sua responsabilidade, resolvendo por fim ir à terra para se entender com as autoridades e resolver a situação.

Ficamos à espera, sempre cercados pela assistência que se formara, de passageiros e tripulantes do navio. Os olhares de espanto foram se transformando em gestos de simpatia, à medida que iam-se inteirando da nossa condição de presos políticos e da maneira brutal como estávamos sendo deportados. No meio dos presentes havia um rapaz com fisionomia de japonês que nos olhava com insistência, não dizia uma palavra mas não arredava o pé dali.

Por fim voltou o comandante. Ficamos sabendo que o nosso destino eram as prisões do Rio de Janeiro, de tenebrosa fama, e que um cabo e um soldado nos escoltariam até lá. Ao entardecer o navio levantou ferros e transpôs a barra. O nosso adeus resumiu-se num olhar dirigido ao casario da cidade de Natal, que foi se distanciando lentamente até perder de vista.

À noite descemos para o beliche de 3º classe que nos deram por homenagem. Ali reunidos, Agostinho foi dizendo, à guisa de desculpa: “Sei que não devia ter feito aquilo. Mas não pude me controlar. Aquele soco saiu sem me dar tempo de refletir”. Não se preocupe com isso, disse-lhe eu, realmente devemos ter calma nessas ocasiões mas o que está feito, está feito. Talvez o teu soco ainda vá para a história e a história seria muito monótona se não houvesse, vez por outra, um murro para variar.

Nisto entrou no beliche aquele rapaz, cara de japonês, que nos olhava com insistência no tombadilho. Trazia um embrulho debaixo do braço o qual nos entregou com um sorriso amável. Continha maços de cigarros e outros objetos de uso pessoal. Vinha nos trazes palavras de estímulo. Disse ser estudante do Pará, filho de japoneses mas nascido no Brasil. Ganhara uma bolsa de estudo e dirigia-se para o Rio. Iniciou conosco uma palestra interessantíssima, mostrando-me atraído pelas questões sociais. Citou as obras de Karl Marx e de Lenine que tinha lido.

Esse rapaz tornou-se um ótimo companheiro de viagem, procurava sempre uma ocasião em que os guardas se afastavam e vinha nos fazer companhia. A sua conversa elevada e agradável era um conforto para nós naqueles dias de depressão. O seu nome, o seu paradeiro, tudo o tempo apagou. Mas o seu gesto fraternal ficou na nossa memória para sempre como um símbolo.

A prisão flutuante continuava o seu trajeto rumo ao sul, a próxima escala seria Recife. Ali chegamos numa manhã. O navio só sairia no dia seguinte, acharam por bem nos entregar à guarda da Polícia Política pernambucana, não fossem os perigosos elementos fugir. Um carro nos transportou até a Polícia Central onde ficamos expostos durante horas diante de uma turma de “tiras”, para que ficassem nos conhecendo. À tarde fomos transportados para um cubículo de uma delegacia, onde tivemos que dormir sobre bancos de pedra. No dia seguinte fomos recambiados ao navio-prisão.

A viagem prosseguiu sem incidentes, em cada porto a vigilância era redobrada, os agitadores vermelhos deviam ser lavados para bem longe, para que as classes dominantes pudessem dormir seu sono tranqüilo. A solução de um problema social resumia-se no entender das autoridades a um caso de polícia. Bastava prender e deportar alguns “cabeças” para que a paz voltasse a reinar e se isso não bastasse, medidas mais drásticas seriam adotadas, contanto que nada viesse perturbar o sossego desses afortunados senhores.

Soubemos mais tarde que outro navio procedente de Natal seguia a mesma rota do nosso, trazendo outros deportados, mais dois, se não me falha a memória. Parece ter havido um erro nos cálculos das autoridades. A deportação de três não lhes pareceu suficiente para garantir a paz no Estado, e aumentaram o número para cinco.

A muitos poderá parecer ridículo que a chave da uma questão social de tal envergadura pudesse estar na simples prisão e de deportação de cinco operários. Mas a triste realidade residia no fato de que a desgraça se abatera sobre cinco lares, deixando famílias inteiras sem arrimo, crianças ao desamparo. Com isto julgavam que estava salva a Pátria, pelo menos no Rio Grande do Norte.
Três anos depois ou melhor, em 1935, com a revolução que tomou o poder por quatro dias naquele Estado, ficou demonstrado que o problema não era tão simples como supunham aqueles hábeis defensores de tranqüilidade e da ordem.

Quando o navio atracou em frente a um dos armazéns do cais do porto do Rio de Janeiro, já investigadores nos aguardavam junto à escada. Os dois policiais que nos escoltavam entregaram a estes um envelope, e dali fomos levados à Polícia Marítima, na avenida Rodrigues Alves. Lá encontramos os policiais numa grande bebedeira, comemorando o término da revolução paulista, que coincidiu com o dia de nossa chegada.

Os montes de garrafas vazias pelos cantos, a tremenda algazarra e as expressões congestionadas dos convivas tornavam o ambiente opressivo, de franca irresponsabilidade. Sentados num banco, nós aguardávamos o nosso destino. Nisto um “tira”, completamente embriagado, sacou de um revólver e, apontando o cano no meu rosto bradou: “então vocês são comunistas e andam reclamando liberdade? Vocês querem mais liberdade do que nos dá o nosso presidente Vargas? Seus f...p...” e desandou numa série de palavrões, agitando trêmulo a arma na nossa frente.

Se a cena tivesse sido representada por pessoa normal – se é que uma pessoal normal pode ser capaz de tal desatino – não me teria, talvez, causado apreensão. Mas aquele indivíduo já cambaleava, parecia possesso, não fosse aquele trabuco detonar “casualmente”. Mas a atração pelos copos era bem maior do que o desejo de brincar com a vida dos outros e finalmente pudemos respirar aliviados, quando o “sherlock” foi arrastado pelos seus colegas para perto das garrafas, onde prosseguiram a sua já avançada bebedeira.

Horas mais tarde fomos levados para a Polícia Central. Dias depois fomos transferidos para a Casa de Detenção. Esse velho presídio compunha-se de três pavimentos. Cada pavimento era formado por duas alas de cubículos fronteiriços, com uma escada espiral ligando as galerias. Num desses cubículos na segunda galeria, fomos colocados os três deportados políticos juntos com presos comuns da mais heterogênea composição, assaltantes, punguista, ventanistas, descuidistas e pederastas. O ambiente não podia ser pior, parecia ter sido escolhido à dedo. Nessa convivência forçada com indivíduos cuja deformação moral atingira o máximo da degradação, assistimos às cenas mais horripilantes. De um desses antros, situado em frente ao nosso, vimos ser arrastado fora o cadáver de um infeliz morto a estocada por outro infeliz por questões sexuais. E cenas deste tipo eram freqüentes.

A promiscuidade no casarão da rua Frei Caneca era absoluta. Ali viviam em comum homens que haviam cometido ocasionalmente um delito, com outros já completamente irrecuperáveis. Velhos calejados no crime, com jovens iniciantes. Sentenciados à longas penas com centenas de presos “à ordem do chefe” – designação que se dava aos que eram mantidos ali ilegalmente, durante muitos meses e às vezes por anos, à ordem do chefe de Polícia, sem culpa formada, aguardando a liberdade ou a deportação para Ilha Grande.

A Ilha Grande era o terror dos presidiários. Os que conseguiram voltar de lá contavam horrores: fome, beri-beri, trabalhos forçados (arrastar vigas na mata), castigos corporais, as surras com o famoso “cipó-camarão”. As partidas para a Ilha Grande eram sempre anunciadas de surpresa, à meia-noite. E quando isto acontecia, podia-se contar como coisa certa algumas tentativas de suicídio, sendo os pulsos cortados à gilete a mais comum. Aconteciam às vezes nessas ocasiões, agressões à faca entre desafetos, numa tentativa desesperada de fugir ao embarque iminente e apavorante. Nesse ambiente de insegurança e de incertezas, nós vivíamos encolhidos num canto, em constante expectativa contra possíveis provocações. Dias amargos e tristes passamos naquela masmorra, a pensar nas famílias que ficaram entregues à solidariedade dos parentes e amigos, na terra distante.

Quando conseguimos reatar a correspondência com nossas famílias, ficamos sabendo que tinha sido iniciado uma campanha em nossa terra natal, pela nossa liberdade. Soubemos também que pessoas de nossa família pediram a nossa liberdade diretamente ao senhor Café Filho, e que este disse que nós tínhamos sido postos em liberdade no momento em que desembarcamos no cais do porto do Rio de Janeiro. Para desmascarar o embuste Manoel Assis, meu sogro, enviou por intermédio do doutor Amâncio Leite (meu parente) uma carta por mim escrita da Casa de Detenção, com carimbo da censura, dirigida à minha esposa, para que fosse mostrada ao senhor Café Filho.

O tempo corria e nós continuávamos naquele nefando cubículo da Casa de Detenção da rua Frei Caneca, sem saber o que nos aguardava. Certo dia porém notamos um movimento de guardas fora do comum. Ficamos atentos e a seguir um preso comum veio trazer a notícia, chegaram vários “comunas” daqui do Rio. Realmente, tratava-se de correligionários nossos. Eles foram instalados num cubículo amplo da segunda galeria e mais tarde como já esperávamos, veio uma ordem da direção do presídio para que fôssemos transferidos para o mesmo alojamento onde estavam os presos políticos recém-chegados.

Foi grande a nossa alegria. Fomos recebidos pelos novos companheiros com calorosos abraços. Eles já tinham sido avisados da nossa presença, através das ligações com o Rio Grande do Norte. Ali estavam um jornalista, um estudante, um marítimo, um alfaiate e alguns outros operários. Tinham sido presos em comícios relâmpagos realizados em estações ferroviárias e bairros da cidade.

Estava restabelecida a nossa ligação com as organizações da capital, cessara o nosso isolamento. Através do Socorro Vermelho (organização da ajuda aos presos políticos, que foi extinta em 1945), passamos a receber assistência jurídica. Fomos informados de que os nossos advogados já estavam tratando de nossa defesa e não tardaria a nossa liberdade. Passamos a receber também ajuda em alimentos, roupas, cigarros e outras utilidades.

Dentre os recém-chegados havia um rapaz muito jovem, judeu, alfaiate, que trabalhava próximo da antiga praça 11. Era um companheiro muito simpático, boa palestra, sempre alegre, apesar da sua situação ser a pior de todos nós. Por ser polonês de nascimento, aguardava sua deportação para a Polônia, coisa que ele temia e dizia o motivo, “vou ser entregue à polícia do ditador José Pilsudski. Tenho informações de atrocidades cometidas por essa polícia. Gostaria de viver no Brasil. Gosto daqui mas sei que não voltarei. Estou conformado, porque sei que o futuro nos pertence, o povo sairá vitorioso dessa luta”. E voltava a sorrir. O seu sorriso permanente parecia ser um escudo, uma auto-defesa contra qualquer depressão. Dias depois, quando já estávamos em liberdade, soubemos de sua deportação. Nunca mais tivemos notícias dele.

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