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Insurreição Comunista de 1935
em Natal e Rio Grande do Norte

Lauro Reginaldo da Rocha - Bangu

 

 

 

Bangu, Memória de um Militante
Brasília Carlos Ferreira – Organizadora, 1992

 

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I – Início de uma vida

Nasci a 17 de agosto de 1908, na cidade de Mossoró, Estado do Rio Grande do Norte, região do chamado polígono das secas.

Nesse recanto do Nordeste Brasileiro a ausência de grandes montanhas, florestas ou acidentes geográficos de importância, torna a paisagem triste e monótona. Somente ao longe para o sul ou sudoeste, essa monotonia é quebrada pelos primeiros relevos da chapada do Apodi ou, ao norte, já próximo a costa, pelo contraste que as pirâmides alvas das salinas oferecem aos olhos; ou, ainda, pelos carnaubais que acompanham os rios com suas palmas, sempre verdes e tremulantes, em qualquer época do ano, mesmo quando o sol causticante das longas estiadas queima toda a vegetação, resseca rios e fontes, devastando o solo de uma imensa superfície antes rica e produtiva. Nesse modo, em que a natureza se apresenta ora acolhedora, ora agressiva, viva uma família da qual eu era o último rebento: meu pai, mãe e doze filhos.

Eu ainda completara um ano de idade quando um acontecimento veio transtornar a felicidade que reinava em nosso lar: meu pai foi atacado de uma afecção pulmonar e pouco tempo depois veio a falecer.

A doença de meu pai, logo constatada a gravidade, desnorteou a minha mãe que passou a se dedicar inteiramente ao se bem-amado. Fiquei largado e esquecido pelos cantos e, só depois da morte de meu pai, quando as coisas começaram a serenar, é que vieram cuidar de mim. Verificaram então, que meu estado de saúde era lastimável: debilitamento geral, gânglios linfáticos do pescoço estourados, atestando que uma batalha séria se travara no meu organismo. O ser que mal começava a viver já lutava instintivamente contra a morte e vencia. O carinho e desvelo de minha mãe e minha irmã Melhinha ajudaram-me a sarar. Mas, os vestígios dessa batalha iriam ficar gravados pelo resto da vida no físico e na saúde. O certo, porém, é que o primeiro combate estava ganho.

Aquele menino raquítico se mostrava obstinado em viver e viveria, com efeito, “intensamente”, como veremos nessas memórias.

Os antepassados de nossa família – os Rocha, os Nogueira, os Leite e os Bertoldo do Amaral – foram dos primeiros povoadores que se estabeleceram nas ribeiras dos rios Jaguaribe (CE), Mossoró, Apodi e Upanema (RN), nas últimas décadas do século XVII. Tomando posse das terras conquistadas aos índios e a partir das sesmarias, esses pioneiros passaram a viver da criação de gado e da lavoura.

Essas famílias se uniram entre si pelo casamento – e nessa união entrou também o elemento indígena, os remanescentes dos bravos cariris, que haviam sido vencidos e escorraçados de suas terras pelas tropas coloniais, depois de heróica resistência, numa guerra desigual e impiedosa. Em toda a região do nordeste brasileiro idêntico fenômeno ocorria: núcleos colonizadores se formavam, dando partida para a difícil, tenaz e quase sempre dramática ocupação da terra. Dos inúmeros obstáculos que esses pioneiros encontravam para continuar na posse e cultivo do solo conquistado, um se agigantou sobre todos, constituindo o mais sério desafio: o fenômeno das secas, problema este que nenhum governo foi capaz ou não se interessou por resolver, até hoje.
Em 1827, diz a história, houve uma das mais terríveis secas do nordeste. Levas e levas de flagelados enchiam as estradas em direção à costa, fugindo da calamidade. Na cidade de Aracati, um antepassado de nossa família – João Pedro Nogueira – teve que abandonar seus pertences e, com mulher e filhos, se incorporar aos grupos de imigrantes, rumo ao Pará, onde passou a viver.

Nessa região amazônica explodiu, na época, a grande revolução popular que ficou na história com o nome de A Cabanagem. Era a guerra dos índios, dos caboclos nordestinos e do povo humilde “das cabanas” contra a exploração impiedosa a que viviam submetidos; era a luta dos brasileiros contra o domínio de Portugal, pois a independência proclamada em 1822 continuou “ignorada” durante muitos anos pelos dominadores estrangeiros da Amazônia.

Nessa revolução tomaram parte e foram líderes destacados do movimento os filhos de João Pedro Nogueira: Manoel, Geraldo e Eduardo. A revolução cabana conseguiu derrotar várias expedições militares que tentaram dominá-la. Numa guerra prolongada, os insurretos foram o cerco em torno da capital do Pará, até que conseguiram tomar o poder e constituir um governo popular-revolucionário. Três governadores foram seguidamente aclamados pelo povo em armas: o primeiro foi Clemente Malcher; o segundo, Francisco Vinagre; e o terceiro Eduardo Francisco Nogueira, popularmente chamado de Angelim.

O terceiro governo cubano acabou sendo derrotado por uma poderosa esquadra da Marinha de Guerra Imperial, enviado do Rio de Janeiro. Angelim foi preso e deportado para a ilha Fernando de Noronha, onde permaneceu cumprindo pena ate que foi anistiado, decorridos dez anos. Ocorreu fato na vida de Angelim que viria se repetir, cem anos depois, com nossa família: sua esposa acompanhou-o no exílio e lá, no presídio de Fernando de Noronha, nasceu Filomena-Clara, filha do casal. A repetição dessa ocorrência será narrada no prosseguimento destas memórias.

A Cabanagem, no dizer de Caio Prado Júnior “foi um dos mais, se não o mais notável movimento popular do Brasil”.

Durante alguns anos a nossa família viveu dos poucos bens deixados por meu pai: duas casas e uma fazendola de gado em formação. Esse episódio, entretanto, não podia durar muito tempo, dado a falta de um homem experiente que tomasse a direção da casa. Minha mãe enviuvou muito jovem e viu-se à braços com uma filharada miúda para criar e educar, numa época difícil e num meio de precários recursos. Foi quando sobreveio a famosa seca de 1915.

Eu tinha, então, apenas 7 anos de idade mas, muitos fatos desenrolados durante essa calamidade, ficaram gravados para sempre na minha memória. A miséria atingiu proporções assustadoras, as levas de flagelados enchiam a cidade. As últimas cabeças de gado que tínhamos já haviam sido consumidas e a alimentação tornava-se de que minha pobre mãe lançava para alimentar aquela enorme família. Um dos alimentos mais freqüentes era uma paçoca feita de côco, farinha de mandioca e rapadura, “pisados ao pilão”, por serem estes produtos de mais baixo preço e mais fáceis de serem adquiridos. Um outro, era por nós conhecido como o “mingau da caridade”. Era uma derivação, por deficiência de ingredientes, do famoso “cabeça de galo”. O primeiro, era feito com água, sal, farinha de mandioca e um pouco de banha (quando havia...), fervidos numa panela de barro. Quando a “matéria prima” era mais farta se dispunha de um ou dois ovos, alho e pimenta para misturar ao ralo pirão, tínhamos a segunda versão, melhorada, do quebra-jejum ou seja, o “aristocrático” cabeça-de-galo... Convém frisar que tais alimentos geralmente, para desespero nosso, chegavam com bastante atraso...

Muitas lágrimas custou à minha mãe esse quadro sombrio de nossa existência. Um dia vi entrar em nossa casa um carregador, com uma maquina de costura à cabeça. Houve um reboliço. Minha mãe aflita, não queria receber aquele objeto tão caro para a época e para os nossos parcos recursos. Jonas – um dos meus irmãos mais velhos – fora o autor da idéia da compra da máquina e dizia que o negócio já estava ajustado e que nada mais restava a fazer senão começar a usá-la. Prometeu trabalhar para ajudar no pagamento das prestações.

A máquina ficou. E foi aí que se revelou a força de vontade de minha mãe.
Ela tornou-se repentinamente uma costureira, trabalhando dia e noite com Melhinha – outro exemplo de abnegação e desvelo – tomava conta da casa e dos irmãos menores, cozinhando, lavando, passando roupa, preparando as lições e mandando-nos à escola. A entrada daquela máquina em nossa casa marcou um fim de uma fase de indecisões e desorientação e fez surgir o início de uma luta séria e encarniçada peça sobrevivência. Ela ajudou a criar duas gerações, pois também elaborou o sustento para os netos.

Quando minha mãe falava de meu pai (Manoel Joaquim da Rocha, também chamado de Manoel Reginaldo da Rocha Nogueira) era como se falasse de um semi-deus. Através de suas palavras, de suas estórias, é que fiquei conhecendo a bondade desse exemplar chefe-de-família, desse pai que nunca ergueu o braço para bater num filho, num tempo em que os castigos corporais eram, via-de-regra, a única maneira de educar, até mesmo nas escolas. Ainda hoje lastimo que de meu pai nada tenha ficado em minha memória, nem sequer um retrato nos restou.

Para compensar essa falta, tive uma segunda mãe, na pessoa de minha irmã Melhinha (Amélia da Rocha Nogueira). Ela cuidava de mim com verdadeiro carinho e dedicação.

O povo nordestino se acostumou a mencionar fatos de outrora ligando-os à época de calamitosos acontecimentos passados: “- isto ocorreu durante a seca dos dois setes (1877), ou dos três setes (1777)”.

O fenômeno das secas vem se repetindo sistematicamente através dos séculos, com tendência a se eternizar. Aparentemente é como se a natureza, com a cumplicidade de desalmados exploradores nacionais e estrangeiros, conspirasse contra o povo laborioso, visando quebrar-lhe a resistência e tirar-lhe a vontade de viver. E é incrível como esse povo resiste.

Estas considerações provêm de fatos ocorridos na minha infância e que hoje vão repassando na minha memória como o desenrolar de um filme impressionante, com cenas ora nítidas, ora meio apagadas pelo tempo.

No ano de 1917 a natureza “pregou mais uma peça” a esse povo sofredor: em vez de secas, tivemos enchentes. O reverso da medalha não foi menos cruel do que a face principal. As chuvas torrenciais fizeram transbordar os rios, transformando várzeas em imensos lagos, dizimando lavouras, matando o gado, destruindo lares. A desgraça bateu novamente à porta da gente trabalhadora.

Durante essa enchente ocorreu um acidente que veio a atingir em cheio uma família vizinha, a de Miguel Soares, a nós ligada por laços de parentesco. As pesadas chuvas parecia não ter mais fim, o rio Mossoró invadiu áreas nunca atingidas, água por todos os lados, crianças pegando piabas nas ruas e dizendo que tinham caído das nuvens. Nós estávamos empenhados em esvaziar a água de dentro da casa com vassouras e latas, quando veio tia Alta, muito aflita, perguntando se tínhamos visto seu filho Luizinho de uns 4 ou 6 anos, que estava desaparecido. Sabíamos que ele estivera tomando banho na chuva, como fizeram todas as crianças. Iniciou-se, então, a busca geral pela cidade, sem resultado. Foi quando alguém teve uma lembrança. Próximo da nossa rua havia um buraco ou depressão, não me recordo bem. As águas tinham coberto totalmente o terreno, formando um grande lago. Quem sabe se o menino não teria caído lá? A busca constatou a triste realidade e o cadáver do nosso amiguinho foi retirado do poço.

A natureza não se conformava em reduzir um povo à miséria, roubava-lhe, também, os estes mais queridos.

O meu ingresso no Grupo Escolar 30 de Setembro foi motivo, para mim, de grande contentamento. Minha irmã incutiu-me desde cedo o gosto pelo estudo. Ela preparava-me a roupa, ensinava-me as lições e arranjava-me as merendas que suas mãos milagrosas faziam surgir num passe de mágica. Levando as lições “na ponta da língua”, não foi difícil que eu chamasse a atenção da professora D. Celina Guimarães que, vendo o meu desembaraço, passou a utilizar-me como auxiliar no desarnamento dos mais atrasados.

O meu progresso na escola foi rápido e minha “preceptora” doméstica passou a ter dificuldades cada vez maiores em preparar-me as lições. Até que um dia ela verificou que seus conhecimentos já não eram suficientes para atender ao aluno que progredia. Ela não pode esconder a sua emoção. Abraçou com alegria o seu aluno, por ver o seu grau de adiantamento, mas havia tristeza em sua fisionomia, é que perdera a sua imensa satisfação de servir, de ajudar ao seu irmão predileto.

Essa minha paixão pelos livros haveria de me causar, mais tarde, um grande desgosto e revolta quando tive que sufocar essa minha “veleidade” pelo saber, por absoluta falta de recursos para continuar meus estudos.

Hoje, mais conformado, já me dou por satisfeito por ter aprendido o suficiente para compreender “o porquê” das desigualdades e injustiças sociais e por ter dado o melhor de minha vida à gigantesca batalha que se desencadeou no mundo inteiro contra o nazi-fascismo e pela supressão do iníquo regime de exploração do homem pelo homem e sua substituição por uma sociedade justa e humana, a sociedade socialista.

Em fins da primeira grande mundial tive que deixar o Grupo Escolar 30 de Setembro para ir freqüentar a escola Paulo de Albuquerque, da qual era professor meu irmão mais velho, Raimundo Reginaldo da Rocha. Essa mudança operou em mim uma reviravolta completa. O meu novo professor Raimundinho era filósofo e as suas aulas e palestras me fascinavam. Nunca mais vi um professor que ensinasse como ele, que falasse daquela maneira convincente e entusiástica. Assistir às suas aulas era como assistir um comício. A sua eloqüência deixava os alunos atentos, imóveis, com os olhos brilhantes de emoção. Nas suas aulas de educação moral e cívica aprendi que o benefício que se presta ao próximo só tem valor quando desprovido de interesses ou segundas intenções. “Fazer o bem sem esperar recompensas”, deveria ser o ideal de todos... E o patriotismo que ele pregava não era um patriotismo balofo do “me ufano do meu país”. Era o amor ao povo humilde colocado em primeiro plano. Todo nosso ideal patriótico deveria estar em função do progresso de nossa Pátria, em função do bem estar e da felicidade de nossa gente. Não era um patriotismo guerreiro, de autônomos, de brigar sem saber porque, mas um patriotismo baseado na fraternidade universal, na paz e na liberdade.

No que se refere ao combate às crendices e superstições, o professor Raimundinho era arrasador. Para ele só existia a ciência. Era nela que ele depositava a sua fé. Só tomava conhecimento daquilo que a ciência tivesse comprovado, ridicularizando toda e qualquer hipótese de existência de seres sobrenaturais. A filosofia do professor não era uma filosofia de palavras, ele aplicava-a na prática. Viveu para fazer o bem aos seus semelhantes. Quando passava pela escola um aluno pobre mas estudioso e inteligente, ele dedicava-se a esse aluno, estimulava-o, dava-lhe tudo que estivesse ao seu alcance, roupas, livros e até alimentos. Preparava-o e encaminhava-o para o ensino superior. Muitos deles chegavam a se formar e se destacaram na vida pelo pessoal e pela cultura.

O professor Raimundo Reginaldo não foi um pequeno-burguês de visão estreita e acomodado. Ao contrário, foi o primeiro a lançar idéias marxistas-leninistas em Mossoró e incentivar os seus irmãos a organizarem os primeiros núcleos do “partido da classe operária” em terras nordestinas. Na revolução de 1935 ele lutou de arma na mão nas ruas de Natal, ao lado de sua filha Amélia de 16 anos de idade. Libertou todos os presos da Cadeia Pública. E, após a tomada do poder, distribuiu fartamente gêneros alimentícios à população necessitada, em nome do Governo Revolucionário.

Com a derrota da insurreição, ele e a filha empreenderam uma fuga espetacular, passando por Mossoró, onde nasceram e viveram, disfarçados: ele de cego, ela de guia, com a barriga volumosa, com enchimento de pano, fingindo mulher grávida. Ambos sabiam o que lhe aguardava, caso caíssem nas mãos da polícia. Dormiram no mato, crivados de carrapatos, picados de mosquito e demais insetos, passando fome e sede. Com sangue frio e paciência, conseguiram atravessar os Estado do Rio Grande do Norte, Paraíba e Ceará e escapar da prisão, das torturas e humilhações a que seriam submetidos.

O professor Raimundo Reginaldo, o revolucionário que recusou com altivez a oferta que lhe fez um ex-governador do Estado do Rio Grande do Norte, de uma cadeira de deputado como início de uma carreira política em troca de abandonar suas idéias; o homem bom que teve de renunciar a tudo que lhe era mais caro, desde o emprego até a própria família; esse militante digno e valoroso da Revolução Libertadora, morreu no interior do Piauí, onde filha casou e lhe deu netos. Como relata sua filha Amélia – em carta transcrita ao final destas memórias – ele permaneceu com sua fisionomia tranqüila mesmo depois de morto, como se estivesse em paz com a sua consciência. Homens como esse o povo jamais esquecerá.

Aquele ambiente de pobreza exerceu profunda influência na minha formação. Na escola, os livros me falavam das riquezas do nosso país, dos seus recursos naturais, e o que eu via em torno mim era fome e miséria, gente vestindo farrapos, crianças e adultos esqueléticos. E não podia compreender as causas desse contraste. Ouvia falar de povos adiantados, sábios fazendo grandes descobertas e, ao meu lado, um povo analfabeto, e não me conformava em esse contra-senso. Estranha sensibilidade essa minha. Desde criança, me tocava a dor alheia, quando não era a minha própria dor que me atormentava.

Esses pensamentos me roubaram muito da minha infância, porque muito cedo comecei a indagar se o mal era incurável ou se havia alguma solução. Eu não sabia formular perguntas, era uma criança calada, mas procurava ouvir Raimundinho. Não havia, a princípio, premeditação. Eu ia passando despreocupadamente, via o mestre conversando na sua rodinha, chegava mais perto e escutava. E perdia a noção do tempo e das coisas. Depois passei a freqüentar assiduamente aquelas palestras. É que todas as tardes – como era, aliás, costume nas cidades do interior – vizinhos, parentes e amigos reuniam-se em nossa casa para conversar. A reunião era espontânea. Eles vinham chegando isolados ou em grupos e iam sentado. Não havia cadeiras para todos, os da casa arranjavam-se em caixotes ou ficavam de pé.

Falava-se da política, de secas, de marchas da fome, até chegar ao assuntos da época, “a revolução russa”. Por incrível que pareça, aquela cidadezinha longínqua não estava isolada do resto o mundo. Não havia rádio nem televisão mas, as noticias importante do que se passava em lugares ao mais remotos do globo ali chegavam pelo telégrafo, pelos jornais e revistas, fazendo vibrar aquela pequenina parcela da grande massa humana que cobre a superfície terreste.

Sentado no chão a um canto, eu aguardava a palavra do mestre. Era ele que esclarecia as minhas dúvidas, a sua voz, para mim era um clarão nas trevas. “O povo russo, dizia ele, encontrou a caminho de sua libertação, quebrou as correntes da opressão, implantou o socialismo e vai agora criar um mundo novo, diferente, de paz, de conforto e de progresso”. E fazia desfilar diante de meus olhos atônitos, como se eu estivesse diante de uma realidade palpável, os heróis daquela revolução vitoriosa, a figura deslumbrante de Lenine à frente. E eu me via de repente, na minha imaginação, no meio de seres fantásticos, de fuzil em punho, lutando, partindo cadeias, quebrando grilhões.

Era a voz do mestre, que falava sempre sorrindo, quem acabava o devaneio, chamando-me à realidade: “Cada povo deverá resolver sua própria situação. Nada cairá do céu por acaso, o preço da liberdade será muito suor, sangue e lágrimas. O próprio povo trabalhador – que tudo produz e nada tem – terá que decidir e traçar o seu destino. Na união está o segredo de nossa força, pois isolados nada valemos. Os trabalhadores nada têm a perder com a revolução, mas o ganhar têm um mundo”. E concluía recitando uma estrofe da “Internacional”: “Para não ter protestos em vão/ Para sair deste antro estreito/ Façamos nós por nossas mãos/ Tudo que a nós diz respeito”.

Não me recordo bem quando foi que descobri aquele tesouro. Lembro-me que as estantes de livros da sala de Raimundinho passaram a ser uma agradável surpresa para mim. Não sabia como foram parar ali obras tão boas, os clássicos da literatura, as correntes mais diversas de pensamento estavam ali representadas, desde “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, até as obras de Karl Marx, Engels e Lenine. Eu devorava aqueles livros com sofreguidão, largando no meio os que não conseguia entender, indo até o fim e às vezes relendo aqueles que maior impressão me causavam.

Ler bons livros é como viajar por mundos desconhecidos, é como transpor novos horizontes. O pensamento se eleva, o saber se renova. Que cabedal de experiências e de conhecimentos eles contêm! Eu me sentia feliz por contar com aquela boa fonte que era a biblioteca de meu irmão, onde eu ia procurar matar a minha sede de conhecimentos. Muito aprendi naqueles livros.

Um dos maiores passos que o homem deu na senda do progresso foi quando passou a gravar pensamentos e fatos. Voltando-se para o passado, a vista do homem só alcança com precisão até a época em que os nossos ancestrais começaram a escrever ou garatujar. Daí para trás a história vai se perdendo nas lendas e nas conjecturas, até se apagar totalmente, restando apenas aos estudiosos da paleontologia os despojos encontrados nos fósseis.

Mas, o livro não é somente um repositório de fatos e experiências, é também o espelho mais fiel do espírito humano. Por meio dele podemos conhecer o grau de progresso e de cultura de um povo, seja do presente ou do passado mais distante. Penetrar nele é penetrar num mundo que não tem fim.

Sobre a origem dos livros marxistas encontrados na biblioteca do professor Raimundo Reginaldo, encontrei mais tarde a solução do enigma no livro “Elizeu Viana, o Educador”, do escritor Walter Wanderley, páginas 180 a 194. Nesse livro há um depoimento precioso da nossa amiga professora Celina Guimarães, de saudosa memória. Dona Celina possuía uns livros de Marx, Engels e Lenine e, querendo se desfazer resolveu presenteá-los aos irmãos Reginaldo: ”- Eis que chega – à sua casa – o menino Lauro Reginaldo”. Ela entrega-lhe um enorme pacote contendo os referidos livros para que entregue a Raimundo Reginaldo.

Foi desta maneira que eu mesmo, sem me dar conta, conduzi aquelas preciosas jóias literárias que fui encontrar, mais tarde, nas estantes de meu irmão Raimundinho, que tanta impressão me causaram e que me nortearam para o resto de minha vida. Este gesto magnânimo de D. Celina acrescentou à minha admiração por ela, e meu mais profundo reconhecimento. Obrigado! E muito obrigado, querida professora.

Quando fui fazer o exame de admissão ao curso de professor na Escola Normal, notei que havia surpresa por parte dos presentes. Eu ainda era um garoto, usando calças curtas, e a minha compleição franzina fazia com que eu parecesse ainda mais jovem.

A minha antiga professora do Grupo Escolar, dona Celina, esposa do diretor da Escola Normal, Elizeu Viana, olhou-me com curiosidade e perguntou: “- Lauro, em quantos anos você espera tirar o diploma de professor? Tomei a pergunta como um desafio e respondi: “- Vou me esforçar ao máximo para não repetir nenhum ano. Sou pobre e não posso perder tempo. Creio que minha resposta agradou a professora, que dizendo “muito bem”, retirou-se com um sorriso.

Cumpri a promessa. Fiz o curso sem reprovações ou repetições, mas isto me custou muito esforço e sacrifício. Eu não estava preparado para aquele curso, pulei etapa, não tinha dinheiro suficiente para comprar todos os livros e o regime de sub-alimentação em que vivia se constituíram em embaraços seríssimos aos meus estudos.

À noite eu procurava reunir aqueles apontamentos rabiscados em cadernos, durante as aulas. Havia matérias que não me davam muito trabalho, mas a tal de matemática ocasionou-me muitas tonteiras. E quando eu dormia, ainda vinham pesadelos terríveis, eu procurando alcançar pedaços de pão e o pão se transformava em algarismos, os malditos algarismos fugindo, sempre fugindo.

Na parte da manhã eu trabalhava na fábrica de cigarros de Humberto Jovino ou na de Hemetério Leite; e isto me dava alguns trocados para pequenas despesas. À tarde eu ia à escola. A falta de livros foi atendida com a feliz idéia, surgida não me recordo por quem, de estudo em conjunto. Eu, Raimundo Nonato, Mário Cavalcanti e Lauro da Escóssia, quando se aproximava a época das provas, nos reuníamos na casa deste último para repassar as lições. Lucrei muito com esses estudos em comum. Quando um encontrava dificuldades numa matéria o outro ajudava; e assim solucionávamos problemas de geometria, esclareciam-se leis de física ou pontos de pedagogia. Nos intervalos surgiam as piadas e as célebres anedotas e isto amenizava os estudos, formava um ambiente cordial, de camaradagem.

A minha passagem pela Escola Normal deixou-me gratas recordações. Quanto mais tempo se passa mais sinto saudades daqueles ótimos professores, daqueles colegas, daquela “irmandade” que ali se reunia à procura da luz sagrada do saber e que a luta pela vida dispersou, conduzindo-nos por diferentes caminhos.

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