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Cidadania e Direitos Humanos:
Um Sentido Para a Educação

 

Capítulo VI

  

NA CIDADANIA E NOS DIREITOS HUMANOS

 

“O que a escola fala é tão alto que não se escuta o que ela está dizendo”. 

 

Paráfrase de Ralph Emerson

 

ACADEMICISMO, HISTORICISMO, LEGALISMO

Talvez devido ao formalismo do meio jurídico que, por décadas, tem sido o mais influente no campo dos direitos humanos e o que mais se apropriou de seu discurso, sempre que se fala em “educação para direitos humanos e cidadania”, tende-se a um viés um tanto positivista.

Por esses dias, conversando com o amigo, e sempre mestre, Antonio Carlos Gomes da Costa, concordávamos no quanto são tediosas certas “capacitações” para direitos humanos e no quanto ainda carecem de reflexões mais profundamente existenciais, mais úteis e significativas, alguns materiais de apoio didático-pedagógico que são produzidos na área.

Em nosso jargão interno, chamamos esse fenômeno de “mescla de academicismo, historicismo e legalismo”.

Parece que educar para os direitos humanos e a cidadania pode resumir-se em conhecer a Declaração Universal, identificar o tema na Constituição Brasileira, tomar ciência da evolução da matéria através dos tempos e recitar alguns artigos centrais das muitas legislações internacionais (pactos, tratados, convenções) que se produziram, em especial, desde 1948.

Evidentemente, isso é informação, necessária para quem está na linha de frente desse segmento da militância, mas ainda está longe de ser “educação”. Precisamos zelar para que o reducionismo que identificou educar com informar não contamine nossa ação porque, no campo em questão, isso seria fatal. O efeito inverso, ou seja, o rápido afastamento e ojeriza das pessoas em relação aos Direitos Humanos, pode ser intensificado ou facilmente instaurado se as forçarmos a esse tipo de contato mecânico e impessoal com algo que só pode ser compreendido e só tem sentido em uma perspectiva profundamente vivencial.

 

DISTRIBUIR INFORMAÇÕES x PRODUZIR CONHECIMENTO

Quando se trata de instituições formais, como a escola, esta questão é sumamente agravada, talvez pela  falta de compreensão da mesma em relação à sua vocação no tocante ao conhecimento. Michael Apple [1]  desvenda-nos o auto-conceito de que padece a escola como “distribuidora de conhecimento”. Não percebe, ela, o sentido maior de ser “produtora”, o que envolveria, necessariamente, encantamento, descoberta, sentimento, razão e projetos particulares e coletivos dos seus sujeitos interagentes. Por isso, ao tratar da questão da Cidadania e dos Direitos Humanos, muitas vezes o faz nessa dimensão medíocre, pobre, de quem se vê como mera repassadora de um patrimônio pronto, não dinâmico, criação alheia, que não lhe pertence e nem se amplia como conquista permanente de seus educadores-educandos. No máximo, propõe algum usufruto, não a autoria e co-autoria.

Ensinar leis, estatutos, constituições, informações históricas, portanto, ainda está muito distante de “educar”.

 

EDUCAR É HUMANIZAR PELO HUMANIZADO

Só se educa para Direitos Humanos quem se humaniza e só é possível investir competentemente na humanização a partir de uma conduta humanizada.

Assim, mais do que uma temática a mais, Direitos Humanos é uma praxis (conforme Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, no Novo Dicionário da Língua Portuguesa, Editora Nova Fronteira, Rio de janeiro, 1986, “...conjunto das atividades humanas tendentes a criar as condições indispensáveis à existência da sociedade e, particularmente, à atividade material, à produção; prática”).

Construir interativamente o homo humanus é, pois, educar para direitos humanos, perspectiva essa bem mais abrangente do que aquele simples ler, “tomar conhecimento” e apropriar-se dos avanços conquistados por outrem.

Nesse campo, de forma absolutamente indispensável, não é possível conhecer sem fazer; não é possível apropriar-se sem alargar; não é possível ter sem promover; não é possível propor sem ser.

Se a conquista da cidadania e dos direitos humanos é o melhor sentido para a educação, isso não significa que esse sentido precise estar sendo permanentemente “entitulado”. É muito mais e significa mais como “pano-de-fundo”, como “moldura” inspiradora de todo o processo.

 

O CURRÍCULO OCULTO REVISITADO

Aqui, é preciso reintroduzirmos uma rápida reflexão sobre a questão do “currículo oculto”. Ao reintroduzi-la, precisamos ressignificar esse importante conceito, uma vez que sua formulação clássica tinha muito que ver com a sociedade industrial e, hoje, sequer estamos em uma sociedade industrial. Vivemos no mundo onde a atividade econômica dominante são os “serviços”, onde o industrial e o rural são subsidiários. Sem querer aprofundar-me agora em tema tão polêmico, preciso lembrar que a questão do consumo no mundo contemporâneo se tornou bem mais significativa do que a questão da produção, ainda que, em momento algum, eu deseje contrapor uma coisa à  outra ou segmentá-las. O enfoque é que muda. Na sociedade dos serviços, a ideologia consumista (tomada aqui como forma de domínio cultural, de exercício de poder e direcionamento sobre o inconsciente individual e coletivo) torna-se muito mais onipotente, muito mais onipresente, muito mais hipnótica, muito mais complexa e polifacetada do que as formas arcaicas que a precederam.

Isso nos sugere reconhecer o mérito da teoria do currículo oculto, em seu contexto histórico, mas trazendo-a para uma nova amplitude, menos relacionada ao adestramento para o mercado de trabalho e mais direcionada ao condicionamento para o mundo consumidor. Assim superamos o que Apple critica:[2]

“Pois poderíamos descrever a realidade do que é ensinado aos estudantes com clareza excepcional e ainda assim estarmos errados quanto aos reais efeitos que esse ensino tem, se as normas e os valores que organizam e orientam as vidas subjetivas cotidianas dos trabalhadores não fossem as mesmas encontradas na escola.”

“A literatura sobre o currículo oculto, por causa de seu modelo claramente determinista de socialização e seu foco exclusivo na reprodução, com exclusão de outras coisas que podem estar ocorrendo, tem uma tendência a retratar os trabalhadores como se fossem autômatos inteiramente controlados pelos modos de produção...[3]

Ora, em um mundo cuja produção tende a não mais basear-se (sequer no segmento industrial) em princípios Tayloristas, onde a “linha de montagem” cega, acrítica, obediente, vai sendo substituída ou pela mecanização ou pela coordenação-supervisão inteligentes, é preciso repensar a teoria do currículo oculto em termos de adequação do estudante aos mais complexos esquemas de manutenção do mundo do consumo, com suas prioridades, seus “valores”, seus objetivos e, subseqüentemente, suas formas desejadas de relações interpessoais.

Assim, o currículo oculto se mantém mais ativo do que nunca, ainda feito desse anacronismo taylorista mas já tingido pelas cores da nova ordem global. Seu impacto se dá em um campo mais sutil, mais subjetivo, mais ideológico, a partir das demandas da competitividade, da globalização, do domínio-dominado da cibernética e do mais desenfreado consumo desejado ou realizável. Lester Thurow tinha razão quando disse que “a teologia do capitalismo é o consumo.”

Em outras palavras, são os exemplos que damos, as utopias pelas quais nos movemos ou a falta delas, o que valoramos, as entrelinhas de nossos discursos, a forma como tratamos os demais, a abordagem que fazemos da ciência, a conduta que temos em relação aos processos de aquisição do conhecimento, os elementos mais importantes de nossa ação na escola (ou na família, naquilo que a tange). Os conteúdos são apenas importantes ferramentas, ainda que nos pareçam, ingenuamente, o foco de nossas ações como professores.

O que plantamos para toda uma vida é muito mais do que a lembrança (pequena, diga-se de passagem) de alguns conteúdos. Não somos, nunca, neutros.

 

PARA EDUCAR, REPENSAR A EDUCAÇÃO

“A opção política do educador, sem a qual o trabalho pedagógico não se define, vai encaminhar as suas ações complementares, quais sejam: o quê ensinar (seleção de conteúdos que estejam de acordo com aquela opção), como ensinar (decisões metodológicas que façam jus àquela opção) e as formas pertinentes de avaliação. Caso não exista um equilíbrio nas partes do todo desse trabalho, teremos incoerência entre a teoria e a prática ou mesmo a traição da teoria pela prática, levada a efeito no cotidiano das salas de aula. Muitas vezes o discurso sobre a mudança e a inovação não passa de mero discurso... ele se trai completamente, acionando conteúdos estéreis, procedimentos retrógrados e avaliações autoritárias.” [4]

Por tudo isso, debater a questão pedagógica, a qualidade das relações interpessoais, as concepções epistemológicas, os conceitos de ciência e suas implicações no campo ético, tem muito mais a ver com educação para os direitos humanos e a cidadania do que simplesmente publicar a Declaração de 1948, em várias cores e formatos, para distribui-la às ”novas gerações” formadoras de opinião ou ao “povo da periferia”. Evidentemente, isso não anula o valor de divulgar a mesma, ainda mais quando constatamos como uma das piores conseqüências da miséria econômica a miséria da auto-estima e da alo-estima: a maioria das pessoas desconhece seus direitos (e, consequentemente, também seus deveres). No entanto, essa simples divulgação, descolada do acompanhamento e orientação para a decodificação, da presença ativa de educadores preparados para propor pensá-la como vida e como alternativa possível na prática imediata, faz com que a boa intenção se transforme, na maior parte das vezes, em dinheiro público e privado desarticulado, que voa pela grande janela da massificação.



[1] Apple, Michael. Educação e Poder, Artes Médicas, Porto Alegre, 1989.

[2] Apple, Michael. Educação e Poder, Artes Médicas, Porto Alegre, 1989.

 [3] Apple, Michael. Educação e Poder, Artes Médicas, Porto Alegre, 1989. 

  [4] Teodoro da Silva, Ezequiel. O Professor e o Combate à Alienação Imposta, Cortez Editora e Editora Autores Associados, São Paulo, 1991.

Repensar com os educadores a educação e, em particular, a escola, repensá-la profundamente, não só em seus aspectos conjunturais mas também estruturais, é possibilitar a assunção desse sentido aqui buscado, criando as condições para a transformação da cultura dominante. De fato, a educação familiar e escolar jamais serão escutadas pelo que dizem mas pelo que são. “Direitos Humanos” significam mais do que normas; “cidadania” é bem mais do que preleções.

Assim, passamos a refletir - sem qualquer pretensão de exaurir ou mesmo aprofundar suficientemente o tema, mas apenas de resgatar algo do óbvio por vezes esquecido - sobre algumas questões que se colocam como condições sine qua non  para podermos carregar a educação com essas tintas de sentido. 

Quero abordar, ainda que ligeiramente, entre tantas, três dessas questões, que denotam a forte presença do currículo oculto ao qual nos referíamos e que são “nós górdios” da educação escolar.

 

1ª - A CONCEPÇÃO DE “CIÊNCIA” DA ESCOLA

Se a escola não consegue perceber a ciência como dinâmica e não linear, em permanente movimento revolucionário, como tão bem descreveu  Thomas Kuhn [1]; se a toma como uma nova e arrogante religião; se a transforma em um conjunto de dogmas; se não a relativiza (como fazia o mais que abalizado Einstein, ao dizer que “daqui a cem anos toda a nossa ciência será considerada ridícula”); se não vê sua evidente incompletude; se não assimilou ainda o “princípio da incerteza”, tão corajosamente  anunciado por Heisenberg; se continua fazendo profissão de fé inabalável em crendices tais como leis gerais, universais, imutáveis e invioláveis de causa-efeito, então essa escola, além de estar muito afastada de tudo o que é contemporâneo no campo em questão, utiliza, sem saber, seu racionalismo cartesiano, laplaciano, newtoniano, como instrumento de controle da impulsividade intelectual, da criatividade, do pensar sem peias, que pode ser inventivo. Ajuda a manter a ordem mas, hoje, paradoxalmente, não ajuda a manter funcionando bem, em nível mais sofisticado, o próprio sistema desejador da ordem, uma vez que a superaceleração das descobertas e a competitividade exacerbada exigem a permanente intervenção de “hereges” em relação ao pensamento oficial.

Talvez visão tão tacanha de ciência possa servir ao sistema apenas em relação à divisão internacional do poder (leia-se “conhecimento”). Talvez seja apropriada para o Terceiro Mundo e para professores e alunos de escolas terceiromundistas.

 

2ª - A CONCEPÇÃO DE AVALIAÇÃO DA ESCOLA

Muito se tem escrito sobre avaliação e eu não seria pretensioso de querer versar com suficiência sobre o tema em algumas poucas linhas. Alguns resgates de importantes obviedades, por vezes esquecidas, é apenas o que almejo.

A avaliação é importante para a análise da escola, porque configura-se na mais desnudada evidência da real proposta da mesma. Isso ocorre porque os mecanismos de poder escolar (aqui, na dimensão reprodutiva, de “agência de outras agências”), estão especialmente estribados nela.

Através da avaliação deixamos claro quem possui de fato a autoridade exclusiva e excludente, qual a conduta intelectual e ideológica desejada, o que realmente importa em todo o processo (que, com certeza, não é como se diz, o próprio processo), além de sabotarmos as possibilidades formativas de auto-conceito e de auto-percepção do nível de competência cognitiva.

Evidentemente, a avaliação escolar é tudo, menos o que dizem os belos Regimentos e Marcos Referenciais da quase totalidade das escolas. Não é processual, não é diagnóstica, não é formativa, não é participativa, não é provisória e não é cumulativa. É, na verdade, o mais contundente testemunho de um anacronismo hipócrita! 

O que se faz, na maioria dos casos, é medição grosseira, média mentirosa (porque niveladora de compreensão desigual de desiguais informações), quantificação matemática formal do que possui obrigatórias dimensões essencialmente subjetivas (o conhecimento), estímulo ao “conteudismo”, ao copismo e à “decoreba”, “provismo” e testagem “acumulativa” (precisamente o contrário da “cumulativa”).

Minha reflexão, aqui, é um pouco “azeda” porque, lamentavelmente, não há quase nada de bom para dizer a respeito da avaliação.

A proposta que tenho, como disse, não é aprofundar, neste livro, a temática, mas denunciá-la e sugerir apenas duas práticas às escolas que verdadeiramente queiram comprometer-se com a construção da cidadania:

1a - Que cumpram seus discursos progressistas (quase todas os possuem), implementando as coisas bonitas que dizem seus documentos;

2ª  - Que comecem a introduzir, ao lado da heteroavaliação (que garante exclusividade de poder ao professor da disciplina, ao conjunto de professores e à instituição), práticas reais, progressivas, de auto-avaliação e de inter-avaliação.

Só isso e nada mais pode garantir como expressão verdadeira as expressões declaratórias de que a avaliação serve à aprendizagem. Da forma como tem sido utilizada (em geral), sua serventia está mais relacionada a formas de controle e massificação.

Ao argumento de que “os alunos não estão preparados para isso”, contraponho o de que não podem mesmo estar, uma vez que não lhes são facultadas oportunidades de exercício.

Estou absolutamente convicto, até por muitos anos de prática compensadora na área, que auto-avaliação e inter-avaliação funcionam com a mais absoluta competência, como ferramentas de aperfeiçoamento da aprendizagem, desde que encaminhadas sem paternalismos e com prudente seriedade. Mas sei, igualmente, que jamais nos convenceremos disso se não começarmos a fazê-lo, deixando o campo morno e confortável das intenções.

 

3A - A CONCEPÇÃO DE RELAÇÕES INTERPESSOAIS DA ESCOLA

Já falamos sobre “educação bancária”, que é o autoritarismo vertido para a prática acadêmica.

Aqui, queria apontar mais para a questão afetiva, para a empatia, sem a qual não há aprendizagem.

Há dois tipos de relação que, em hipótese alguma, podem ser empáticas: as autoritárias e as anômicas. Em ambas o interlocutor mais frágil sente-se desimportante.

É interessante tomarmos algum tempo para avaliar a postura sustentada verbal e fisicamente pelos professores. Ela revelará como o currículo oculto dispõe a aprendizagem dos padrões relacionais de submissão ou diálogo com a autoridade.

Para os professores, especialistas, diretores, os alunos podem ser:

Os “da outra trincheira”, os que precisam ser “domados”, aqueles a quem “não se mostra os dentes”, na perspectiva autoritária;

Os clientes receptores, a platéia, os “profissionais-estudantes”, na perspectiva fria e anômica ou semi-anômica do tecnicismo;

Pessoas que necessitam de desafios para desenvolverem-se mas que também sabem e podem desafiar o desenvolvimento nosso e dos demais. Seres iguais a nós em direitos mas diferentes no papel social atuado na escola, a quem devemos carinho e acolhimento mas também balizamentos seguros.

Nas duas primeiras concepções relacionais, é importante frisar, as relações são mediadas pelos conteúdos.

Na última são mediadas pela humanidade dos sujeitos.

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