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    |    Cidadania 
          e Direitos Humanos:Um Sentido Para a Educação
  
          Capítulo 
            III 
              
             EDUCAÇÃO: 
            REFLEXO OU LUZ?   “Se 
            não é possível compreender a educação como uma prática autônoma ou 
            neutra, isto não significa, de modo algum, que a educação sistemática 
            seja pura reprodutora da ideologia dominante. As relações entre a 
            educação enquanto subsistema e o sistema maior são relações dinâmicas, 
            contraditórias e não mecânicas. A educação reproduz a ideologia dominante, 
            é certo, mas não faz apenas isto. Nem mesmo em sociedades altamente 
            modernizadas, com classes dominantes realmente competentes e conscientes 
            do papel da educação, ela é apenas reprodutora da ideologia daquelas 
            classes. As contradições que caracterizam a sociedade como está sendo 
            penetram a intimidade das instituições pedagógicas em que a educação 
            sistemática se está dando e alteram o seu papel ou o seu esforço reprodutor 
            da ideologia dominante”.    Paulo 
            Freire 
              
             IMPOTENTES 
              DÚVIDAS  Mesmo 
              que tenhamos clara a necessidade de evoluirmos para sociedades de 
              bem-estar para todos e mesmo que nos convençamos, como propõe o 
              capítulo antecedente, que o caminho para isso é a tecitura de redes 
              de engajamento cívico, resta-nos ainda a pergunta: como chegar a 
              tais redes?    A 
              reflexão aqui proposta afirmou que só pode ser pela via da educação. 
              Será mesmo? Não estará, o autor, repetindo a velha panacéia conservadora, 
              com roupagens novas? Não será, o dele, aquele mesmo discurso mistificador, 
              da mobilidade social através da “ponte” mágica da educação?   
               Estamos 
              muito marcados pelo mau uso ideológico que se fez, por muito tempo, 
              especialmente, da escolarização, e desconfiamos de tudo que venha 
              daí, numa espécie de antagonismo depreciativo de caráter adolescente. 
                 Estou 
              certo de que o maior problema que vivenciamos como educadores é, 
              muitas vezes, termos sérias dúvidas se a educação vale a pena. Como 
              nos movemos pouco para construir as respostas, permanecemos fazendo 
              o que fazemos com um certo descrédito.    PEQUENA HISTÓRIA DE UMA GRANDE PAIXÃO  
              Lembro 
              que comecei a me interessar por educação como jovem adulto, ainda 
              na década de setenta. Há não muito tempo saíra da escola secundária, 
              profundamente marcada pelo autoritarismo das gerações que nos antecederam. 
              No Brasil, essa situação fora agravada por uma longa ditadura militar, 
              que controlara o currículo explícito e oculto, a contratação e permanência 
              de professores e as manifestações dos alunos, com a mais absoluta 
              mano dura.    Eu, 
              como tantos de minha geração, sequer conseguia sentir desprezo pela 
              escola. Tinha ódio mesmo.    No 
              Colégio onde cursei o segundo grau (de orientação religiosa, confissional), 
              mantínhamos, alguns alunos e ex-alunos recentes, um jornaleco estudantil, 
              com base nos postulados da então Igreja progressista. Por anos o 
              distribuímos clandestinamente, pulando as janelas das salas de aula, 
              durante os recreios, e colocando-o na parte interna das carteiras. 
              O Jornal, há muito, estava proibido pela Direção da Escola. Éramos 
              bons naquilo. Nunca nos pegavam. Até que o Diretor, um pusilânime 
              do qual não vale lembrar o nome, resolveu pedir ajuda externa. Mandou 
              um número para a Polícia Federal que, obviamente, logo nos localizou. 
              Foram dois anos de duros e intermináveis (até cinco, seis horas 
              ininterruptas) interrogatórios.  Jamais 
              esquecerei a tese da Polícia, que havia juntado os títulos de todos 
              os números, numa espécie de mosaico-colagem, comprovando “cabalmente” 
              que propúnhamos a luta armada. Não fossemos nós mesmos os organizadores, 
              diretores, redatores e distribuidores, eu teria saído convencido 
              de que tinham razão. Um belo trabalho!    Diziam 
              que o “mentor” que estava por trás de nós, espécies de  testas-de-ferro, 
              era um tal Tiago, autor do texto “mais marxista-leninista” do jornal. 
              Esse texto estava sublinhado por uma caneta hidrocor laranja, nas 
              suas partes mais “subversivas”. Como era considerado inteiro como 
              um libelo subversivo, estava sublinhado todo. O sujeito não 
              tinha sobrenome, desconfiava-se mesmo que se tratasse de um codinome. 
              Queriam, a todo custo, o endereço, para “estourar o seu aparelho” 
              e buscá-lo para interrogatório.    Até 
              concordarem em procurar a “Epístola de Tiago”, no 
              Novo Testamento, sofremos um bocado.    Felizmente 
              o país está mudando e, hoje, realizamos, fraternalmente, bem sucedidos 
              Cursos de Direitos Humanos para uma nova Polícia Federal.   
               Mas 
              o que queria contar é que em um desses entra-e-sai dos investigadores 
              que se revezavam, fiquei sozinho e espichei o olho para o processo 
              que, displicentemente, jazia esquecido em cima da mesa (era uma 
              espécie de transe, o que vivíamos e, àquelas alturas, a falta de 
              coragem duelava com a curiosidade).    Pois 
              bem, lá estavam os nomes de diversos investigadores da Polícia Política, 
              a famigerada DOPS, infiltrados no Colégio, membros do seu quadro 
              permanente de professores e funcionários. Alguns eu tinha na conta 
              de quase amigos. Todo mundo comentava de um ou outro, dos mais marcados, 
              mas ninguém tinha certeza de que não era paranóia. Eu vi.   
               Com 
              certeza, o mesmo se passava em todas as demais Instituições. Salvos 
              pelo gongo da Lei da Anistia, escapamos de pegar uma cadeia similar 
              a de terroristas ladrões de bancos, nós, os perigosos divulgadores 
              da Bíblia.    Como 
              se vê, apesar de uma ou outra figura impoluta e inteligente (como 
              os Irmãos Lassalistas Alois Knob, Ivo Loro e Joaquim Sfredo, para 
              citar, por justiça, três que podem representar essa ala), não tínhamos 
              muitas razões para gostar da escola. Não era lugar para gente com 
              sonhos, com consciência política, com vontade de participar (as 
              vezes desconfio que, em geral, não mudou muito).    Sempre 
              me pergunto como fui me apaixonar por educação.    Talvez 
              tenha começado como um desses “namoros de implicância”, onde a depreciação 
              obsessiva inicial acoberta uma grande e intuitiva atração. De tanto 
              pensar na coisa e combatê-la, ela vai assumindo definitiva importância, 
              desnudando inusitados contornos, revelando encantos outrora acobertados, 
              mostrando-se sedutora de possibilidades.   
               REBELDES 
              APAIXONADOS 
                 A 
              teoria também teve papel importante no processo. É claro que, movidos 
              por tal gana, fomos parar na “Sociedade sem Escolas”, de Ivan Ilich, 
              que tratava essas imaculadas instituições como “grandes e gordas 
              vacas sagradas”. 
              Daí descobrimos “A Escola Está Morta”, de Everett Reimer. 
              Era uma delícia. Ler e gozar!    Como 
              esses autores eram críticos mordazes mas não por isso menos apaixonados 
              por educação, fomos “pegando o gosto”.    
           Não 
            foi difícil, então, encontrarmos o papa da utopia realizada na escola: 
            por anos devorei todos os livros de Alexander Neill que me caíam nas 
            mãos. Comecei, como tantos, por “Summerhill, Liberdade Sem Medo”  
            e não pude mais parar. Neill tinha tido a coragem de extravasar-se 
            para além dos livros de pedagogia e inventar uma Escola de sustentação 
            democrática, uma experiência co-gestionada por adultos e crianças 
            em vários campos e até auto-gestionada pelos alunos em vários outros. 
            Summerhill, por muitos anos, foi uma espécie de Meca libertária de 
            todos os educadores que não se haviam entregue ao sistema ou simplesmente 
            desistido. Depois, a ignorância de direita e de esquerda lançou sobre 
            o sonhado paraíso toda sorte de difamações e calúnias: “não havia 
            dado certo”, “os alunos saíam despreparados para enfrentar o mundo 
            como ele é” (leia-se: saíam menos vermes, menos obedientes), “era 
            uma bagunça”, “os adultos não assumiam seu papel”, “era um campo fértil 
            para a promiscuidade sexual” (não poderia faltar a brigada dos falsos 
            moralistas), “não havia disciplina”, “a qualidade acadêmica era muito 
            questionável”.  Evidentemente, 
            tais imbecilidades partiam de quem não havia lido nada (ou quase nada, 
            talvez as contracapas ) a respeito.  A 
            educação na Inglaterra e no mundo nunca mais foi a mesma depois de 
            Summerhill. Que se esfalfem inutilmente os reacionários de todos os 
            matizes!  Não 
            estou propondo que, hoje, se faça a mesma coisa. Não se trata de uma 
            religião, mas de uma das mais revolucionárias e talvez a mais corajosa 
            experiência que se fez em escolas no campo do poder - esse grande 
            “currículo oculto” que tem mais peso do que qualquer ciência. Na contemporaneidade, 
            precisamos ir muito além de Neill mas passando também por ele. Era 
            encantadoramente apaixonado pelo que fazia. Eu não poderia deixar 
            de morder a isca.  Naqueles 
            anos já estava trabalhando como professor e aplicando tudo o que era 
            possível. Fiz coisas louquíssimas e insustentáveis nos quadros do 
            sistema, mas também aprendi maravilhas que me valeram uma excelente 
            relação afetiva , acadêmica, produtiva, repleta de sentido, com os 
            muitos adolescentes com quem convivi por duas décadas. 
             O 
            SONHO FUNCIONA 
             Assim, 
            por caminhos transversos, aprendi a acreditar na educação, inclusive 
            naquela que se pode fazer na escola. Talvez isso só tenha sido possível 
            por que não fui passivo, porque fiz e porque vi que dava certo.  Outros, 
            que se envolveram menos, que sofreram menos, que choraram menos as 
            conseqüências desastrosas da escolarização tradicional, mas que também 
            comemoraram menos vitórias, podem ter tido, da mesma forma, menos 
            razões para crer.  A 
            militância é uma grande escola. Quem permaneceu professor-tecnocrata, 
            da direita reprodutora ou da esquerda academicista, não sabe. Ao olhar 
            para a educação, deve fazê-lo a partir da pobreza de quem nunca lhe 
            penetrou a alma, de quem nunca a sonhou como um grande sonho, de quem 
            nunca arregaçou as mangas e experimentou erguê-la, de quem nunca saboreou-lhe 
            “o sal” entranhado nas vidas transformadas.  Essas 
            virtudes todas vertiam de um mestre como Paulo Freire que consolidou, 
            em nós, já com a dimensão explícita da consciência política, esse 
            casamento eternamente apaixonado.  NIVELANDO 
            POR BAIXO 
             No 
            entanto, depois do justo e necessário desvelamento dos mecanismos 
            de controle comportamental, depois das corretas denúncias do caráter 
            moral e intelectual heterônomo das escolas, parece que arrancou-se, 
            do planeta todo, a ingênua credibilidade cultivada dessas instituições, 
            sem plantar-se nada no lugar.  A 
            paixão ficou muito circunscrita.  Como 
            “agências do status quo”, tão somente, passaram a ser vistas, 
            “definidas exclusivamente pela lógica da dominação e os professores... 
            simplesmente títeres da classe governante”.  
             Ao 
            criticar essa percepção tão mecânica do papel das escolas, Michael 
            Apple alerta-nos que:  “Boa 
            parte desse tipo de análise neomarxista tratava a escola como sendo 
            uma caixa preta e eu estava tão insatisfeito com isso quanto estava 
            com a tradição dominante em educação.”  “Contudo 
            as escolas eram ainda vistas desta forma: elas tomavam um input 
            (os alunos) e os processavam eficientemente (através de um currículo 
            oculto) e os transformavam em agentes de trabalho desigual e altamente 
            estratificado (output). Assim, o papel principal da escola 
            estava no ensino de uma consciência ideológica que ajudava a reproduzir 
            a divisão do trabalho na sociedade. Esta interpretação estava correta 
            em certa medida, mas deixava sem solução dois problemas. Como 
            isso era obtido? Isso era tudo o que as escolas faziam?”  
             As 
            visões do passado, de um lado, e dessa pedagogia radical, de outro, 
            são as que mais subsistem e competem no dia-a-dia das escolas. Uma 
            é imobilizante e a outra inconseqüente (ou conseqüente na manutenção). 
            A alternativa a elas se vai constituindo, mas é claramente minoritária. 
             TRÊS 
            PARADIGMAS DE SENTIDO  Há, 
            com certeza, três grandes paradigmas de sentido que convivem conosco, 
            neste momento, a respeito da educação. Eles se antagonizam e, na medida 
            em que não conseguimos optar, estamos impotentes para realizar um 
            bom trabalho.  Dois 
            desses paradigmas (conforme Apple, a “teoria do capital humano”, que 
            advoga a escola como instrumento de mobilidade, e a “teoria da alocação”, 
            que a vê como agência de classificação e manutenção), têm origem ideológica 
            diversa (no sentido de uma decorrência de postulados político-econômicos). 
            O terceiro estamos construindo.  Gostaria 
            de tentar expressá-los um pouco melhor, de forma sintética.  PEDAGOGIA 
            TRADICIONAL  “Ser 
            conservador não exige qualquer cérebro. Basta aceitar o que existe.” 
               
            Colin 
            Welch  O 
            postulado mais tradicional, que subjaz às propostas conservadoras, 
            é relativamente simples e pode ser expresso em um pequeno parágrafo: 
             Através 
            da escolarização, da instrução, podemos gerar mobilidade social, a 
            par de ensinarmos os valores e tradições que constituem as bases seguras 
            de estabilidade da nossa civilização. 
             Seria 
            inadequado e pretensioso (uma vez que há farta literatura a respeito), 
            querermos aprofundar-nos na análise desse, que vou chamar “paradigma 
            de fundo da pedagogia tradicional”.  Mui 
            brevemente, contudo, podemos lembrar seu caráter, a um só tempo perverso 
            e ingênuo (nos termos de Paulo Freire, “esperto” e “inocente”). 
            Perverso, porque articulado verticalmente, sem qualquer espontaneísmo. 
            Não é um paradigma casual. Essa visão interessa ao sistema que quer 
            da escola apenas o papel passivo de “agência de outras agências”, 
            de transmissora da ideologia dominante.  Ingênuo, 
            no que se refere a  seus operadores (os professores) e “beneficiários”(?), 
            os alunos. Esses entes entram no processo como peças, na dimensão 
            objetal.  “PROFESSOR-PEÇA” 
             O 
            professor, particularmente, deve estar atento, pois é a peça mestra, 
            a “coluna de encaixe”, sem a qual toda essa “esperteza” não funcionaria. 
             “A 
            racionalidade tecnocrática estéril que domina a cultura mais ampla, 
            bem como a educação de professores, dedica pouca atenção a questões 
            teóricas e ideológicas. Os professores são treinados para  usar 
            quarenta e sete modelos diferentes de ensino, administração ou avaliação. 
            Contudo, eles não são ensinados a serem críticos desses modelos. Em 
            resumo, ensina-se a eles uma espécie de analfabetismo conceptual e 
            político.”  
             Na 
            contraposição a isso, Giroux propõe todos os professores como intelectuais, 
            imaginativos, criativos, com visão de futuro, com projeto de vida 
            pessoal e coletivo.  Não 
            é fácil, porque a ideologia dominante está aderida na categoria como 
            uma sobre-pele. Temos dificuldade em pensar-nos, inseguros e desassistidos 
            como nos sentimos, na contramão das grandes forças que dominam o planeta 
            e também o nosso interior.  Simone 
            de Beauvoir, em seu magnífico “O Pensamento da Direita Hoje”  
            se esbaldou na análise desse patético 
            perfil dos segmentos intelectualizados da sociedade, em geral gente 
            de classe média ou média-baixa, que pouco ou nada lucra com o establishment, 
            mas que luta ferrenhamente (em geral, de forma inconsciente e 
            ingênua) para mantê-lo. O fundamento é o de sempre: um temor profundo 
            de que as coisas possam mudar e ficar ainda piores, de que possamos 
            perder o pouco que conquistamos.  É 
            um jogo e dele fazem parte as afirmações do paradigma de fundo 
            da pedagogia tradicional. Sua primeira mentira é a de que, através 
            da escolarização, da instrução, possamos gerar mobilidade social. 
             A 
            MENTIRA DA ESCOLARIZAÇÃO PARA A MOBILIDADE 
             Evidentemente, 
            a escolarização é desejada e necessária e pode contribuir com a elevação 
            dos patamares de bem-estar de uma sociedade. Mas pode também ser insignificante. 
            Dependerá do quanto se trabalhar nas escolas a “alfabetização política” 
            (obviamente no sentido não partidário) dos cidadãos alunos.  Nem 
            precisamos ir muito longe e falar em ideais de solidariedade. Podemos 
            ficar em questões mais rasteiras, de “alfabetização conjuntural”. 
            Por exemplo, uma escola estilo “linha de montagem”, como a que ainda 
            subsiste no Brasil, sequer está habilitada para contribuir com as 
            demandas do capitalismo atual. Alvin e Heide Toffler, em artigo para 
            o Los Angeles Times, de 26 de março de 1999, dizem que, durante a 
            Revolução Industrial, “gerações de estudantes foram mandadas para 
            escolas do tipo linha-de-montagem, onde realizaram um trabalho rotineiro 
            e repetitivo por anos, e aí foram submetidos a testes padronizados, 
            como produtos saindo da esteira industrial. Hoje, em todo mundo, mesmo 
            em países de alta tecnologia, centenas de milhões de crianças ainda 
            estão submetidas a este regime ultrapassado, cuja simulação do futuro 
            é uma experiência que jamais será vivida por nenhuma delas.” Acrescentam 
            que, no mundo atual, “a maioria dos trabalhadores são trabalhadores 
            do conhecimento”.  Uma 
            das contradições do sistema capitalista contemporâneo é que tem urgência 
            em modificar o tipo de capacitação que dá a seus trabalhadores, diante 
            de suas mudanças macroeconômicas. No entanto, o velho capitalismo 
            subsiste, como um  xifópago do novo, uma vez que nenhuma transformação 
            é imediata. É nessa parte indesejada que ainda habitam, genericamente, 
            a escola e seus professores, como expressão da velha cultura que o 
            mesmo sistema criou para legitimar-se.  Retomando, 
            então, a questão da escolaridade, é uma meia verdade - e, portanto 
            uma meia mentira - a afirmação de que a mesma possa gerar mobilidade 
            social. Depende do quanto essa escola é ou não educativa; depende 
            do quanto ela valoriza a cultura própria dos que a freqüentam (ao 
            contrário de apenas ver-se como uma pobre socializadora dos códigos 
            da classe dominante); depende do quanto ela emula a cidadania com 
            sua imprescindível participação política; depende do grau de provocação 
            que implementa para gerar gente empreendedora, inventiva, com autonomia 
            intelectual; depende do quanto trabalha a auto-estima e a autoconfiança 
            de seus alunos e professores. Se não faz nada disso, não pode alavancar 
            qualquer tipo de mobilidade social. Ao contrário, é mantenedora das 
            disparidades.  INDIVIDUALISMO E MIRAGENSImportante, 
            também, é lembrarmos que, na acepção clássica conservadora, essa mobilidade 
            se dá no plano individualista e meritocrático. Magicamente, se apresenta 
            a escolarização como uma oportunidade de “crescer na vida” (subentendendo-se, 
            aqui, apenas e nada mais que atingir as miragens do consumo).  Esse 
            é um evidente engodo, quando tomada, a proposição, genericamente. 
            Não há lugar, não há espaço, não há empregos (hoje), não há previsão 
            desejada, pelo menos como prioridade, para uma feliz ascensão, per 
            capita, de toda a classe popular aos patamares de classe média-alta, 
            via escola. São poucos e notórios os casos de grande ascensão individual, 
            usados apenas como elementos “comprobatórios” da democracia social 
            em que vivemos, ao mesmo tempo ilusórios e desviantes, como promessas, 
            da perigosa frustração social.  Ou 
            ascendemos juntos, como povo organizado e qualificado para uma vida 
            empreendedora, ou somos apenas rebanho. É aqui que a escola e seus 
            professores têm  que optar por um dos dois papéis.  Caso 
            nos achemos liberados dessa opção, é porque já optamos...  O 
            MITO DO BOM SISTEMA 
             A 
            segunda mentira do paradigma de fundo da educação tradicional  
            é que vivamos em uma civilização de “bases seguras e estáveis”. Isso 
            simplesmente pressupõe uma aceitação passiva, uma falta de juízo moral 
            sobre o planeta, sobre as instituições criadas por seus habitantes, 
            sobre as gritantes injustiças e violências banalizadas, coisa incompatível 
            com qualquer proposição verdadeiramente educacional.  Stephen 
            Kemmis ajuda-nos a desnudar com clareza esse mito, em exercícios analíticos 
            como o que segue (tradução livre):  “As 
            estruturas sociais não são tão racionais e justas como geralmente 
            se pensa. Pelo contrário, as estruturas sociais estão criadas mediante 
            processos e práticas distorcidos pela irracionalidade, a injustiça 
            e a coerção, e tais distorções têm calado muito fundo em nossas interpretações 
            do mundo. Não se trata, portanto, de que as estruturas sociais estejam 
            deformadas... senão de que não percebemos essas distorções porque 
            chegamos a considera-las como “naturais”. 
             
 
  
             
              Ilich, Ivan. Sociedade sem Escolas, Editora Vozes, Petrópolis, 
              1973.   
             
              Raimer, Everett. A Escola Está Morta, Editora Francisco Alves, 
              Rio de janeiro, 1983.   
             
              Neill, A. S. Liberdade Sem Medo, IBRASA, São Paulo, 1980. 
                
             
              McLaren, Peter. in prefácio, Giroux, Henry. Os Professores 
              como Intelectuais, Artes Médicas, Porto Alegre, 1997. 
                
              
              Apple, Michael. Educação e Poder, Artes Médicas Porto Alegre, 
              1989.   
              
              Giroux, Henry. Os Professores como Intelectuais, Artes Médicas, 
              Porto Alegre,  1997.   
              
              Beauvoir, Simone. O Pensamento da Direita  Hoje, Editora 
              Paz e Terra, 1991.   
             
              Kemmis, Stephen. El Curriculum: más allá de la teoria de la reproducción, 
              Ediciones Morata S. A ., Madrid, 1988.   
            PEDAGOGIA 
              DETERMINISTA  “A verdadeira dificuldade 
              não está em aceitar idéias novas, mas em escapar às idéias antigas.”  
               John  Maynard 
              Keynes  “Si queremos que 
              todo siga como está,   es preciso 
              que todo cambie.”  Tomasi di Lampedusa, 
              “Il Gattopardo”  O 
              segundo paradigma, que se propunha a ser uma oposição conseqüente 
              ao anterior, acabou por revelar-se pífio, ceticista, imobilizante. 
              A intenção não era essa, mas assim foi.  Aqui 
              vou chamá-lo de paradigma de fundo da pedagogia determinista. 
               Saiu 
              dos fornos intelectuais da esquerda acadêmica (em geral com pouca 
              ou nenhuma experiência junto a crianças e adolescentes), constituído 
              basicamente para negar a visão tradicional da direita. Como qualquer 
              antítese, acertou bem na análise e errou muito nas proposições. 
               Tomando 
              emprestados e vulgarizando grandes conceitos marxistas de “estrutura” 
              e “superestrutura”, adaptou-os algo forçadamente a categorias explicativas 
              do “papel intrínseco” da educação, em especial escolar.  Daí 
              surgiu, mais ou menos, o que segue:  Sabemos 
              que a educação não tem o papel que tradicionalmente se lhe atribuía 
              (a direita). Não é a educação que muda o mundo. A educação é obrigatoriamente 
              reflexo superestrutural do modo de produção dominante e, por isso, 
              tem caráter fundamentalmente conservador, ainda que possa ser, subsidiária 
              e limitadamente, usada  em seus aspectos contraditórios (teoria 
              das “brechas”), para intensificar processos de transformação social. 
               Crer 
              no contrário é ser ingênuo ou estar a serviço do ‘status quo’.  Já 
              exploramos um pouco, acima, o equívoco imobilizante desse paradigma. 
               Conforme 
              Apple, “existem evidências que sustentam esse tipo de asserção... 
              Entretanto, ao vermos a escola apenas em termos reprodutivos, em 
              essência, como uma função passiva de uma ordem social externa iníqua, 
              torna-se difícil gerar qualquer ação educacional séria de qualquer 
              tipo. Pois se as escolas são inteiramente determinadas e não podem 
              fazer mais do que espelhar as relações econômicas fora delas, então 
              nada pode ser feito dentro da esfera educacional.” 
               
                É 
              uma espécie de desistência ou, pelo menos de equivocada desimportância, 
              à esquerda.  POLÍTICA BURRAOra, 
              supondo-se que a escolarização não seja um fenômeno passível de 
              rápida extinção em nossas sociedades - e que, portanto, vai continuar 
              exercendo decisiva influência sobre as novas gerações - isso equivale 
              a deixá-la, por falta de perspectivas, nas mãos dos segmentos mais 
              atrasados. Ou apenas, a contragosto, ocupar  algum espaço marginal, 
              com a inevitável incompetência de quem não vai se dedicar profundamente 
              ao que não acredita.  O 
              equívoco, no entanto, também é conceptual. Essa visão simplifica 
              a teia contraditória das relações entre o econômico e o social, 
              entre a educação e a economia, bem como a complexidade dos mecanismos 
              de manutenção/transformação em curso.  É 
              fruto, pois, de uma abordagem mecânica, determinista, do mundo, 
              com seu inevitável caráter mágico e simplificador.  Em 
              última instância, se professarmos fé em algo assim, melhor procurarmos 
              algo que nos pareça mais útil para fazer na vida.  Não 
              é possível ser educador sem acreditar na educação.  PEDAGOGIA 
              EMANCIPATÓRIA  “Há sempre um momento 
              no tempo em que umaporta se abre e deixa entrar o futuro.” Graham 
              Greene  Por 
              fim, não poderia deixar, construtivamente, de contrapor uma alternativa. 
              Aos paradigmas de fundo das pedagogias tradicional e determinista, 
              propomos um paradigma de fundo da educação 
              emancipatória:  Os 
              processos de transformação social são frutos de câmbios dialéticos 
              da consciência humana e dos mecanismos de estruturação produtiva 
              das sociedades.  São 
              deflagrados, concomitantemente, por necessidades mas também 
              disposições subjetivas (sonhos, aspirações, criatividade, 
              espírito empreendedor, pessoais e coletivos).  A 
              educação é, pois, nesses termos, a mais poderosa ferramenta 
              estratégica de diagnóstico crítico (constatação e juízo), 
              planejamento social (participativo, democrático) de alternativas, 
              multiplicação, mobilização e consolidação de ações transformadoras 
              nas comunidades, cidades, países e planeta.  Não 
              há transformação verdadeira que não comece e não se mantenha pela 
              educação.  Aqui, 
              sem deixar de recusar a concepção tradicional e perverso-ingênua 
              do papel da educação e dos educadores, e de concordar com a avaliação 
              crítica que percebe elementos agenciadores, na escola, da cultura 
              e dos processos econômicos dominantes, evitamos cair no sectarismo 
              pessimista, maniqueísta, mecânico e determinista que inspirou um 
              grande grupo de seus críticos.  Evitamos 
              igualmente o caminho da esquizofrenia. Não podemos realizar o que 
              não cremos.  Com 
              os devidos cuidados de não reproduzirmos a panacéia manipulatória, 
              reafirmamos nossa confiança baseada em evidências e nossa paixão 
              existencial, inabalável, pelo que fazemos.  
 
  
               
                Apple, Michael. Educação e Poder, Artes Médicas, Porto 
                Alegre, 1989.   |   
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