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Cidadania e Direitos Humanos:
Um Sentido Para a Educação

Capítulo III  

EDUCAÇÃO: REFLEXO OU LUZ?

“Se não é possível compreender a educação como uma prática autônoma ou neutra, isto não significa, de modo algum, que a educação sistemática seja pura reprodutora da ideologia dominante. As relações entre a educação enquanto subsistema e o sistema maior são relações dinâmicas, contraditórias e não mecânicas. A educação reproduz a ideologia dominante, é certo, mas não faz apenas isto. Nem mesmo em sociedades altamente modernizadas, com classes dominantes realmente competentes e conscientes do papel da educação, ela é apenas reprodutora da ideologia daquelas classes. As contradições que caracterizam a sociedade como está sendo penetram a intimidade das instituições pedagógicas em que a educação sistemática se está dando e alteram o seu papel ou o seu esforço reprodutor da ideologia dominante”.  

Paulo Freire  

IMPOTENTES DÚVIDAS

Mesmo que tenhamos clara a necessidade de evoluirmos para sociedades de bem-estar para todos e mesmo que nos convençamos, como propõe o capítulo antecedente, que o caminho para isso é a tecitura de redes de engajamento cívico, resta-nos ainda a pergunta: como chegar a tais redes?  

A reflexão aqui proposta afirmou que só pode ser pela via da educação. Será mesmo? Não estará, o autor, repetindo a velha panacéia conservadora, com roupagens novas? Não será, o dele, aquele mesmo discurso mistificador, da mobilidade social através da “ponte” mágica da educação?  

Estamos muito marcados pelo mau uso ideológico que se fez, por muito tempo, especialmente, da escolarização, e desconfiamos de tudo que venha daí, numa espécie de antagonismo depreciativo de caráter adolescente.  

Estou certo de que o maior problema que vivenciamos como educadores é, muitas vezes, termos sérias dúvidas se a educação vale a pena. Como nos movemos pouco para construir as respostas, permanecemos fazendo o que fazemos com um certo descrédito.  

PEQUENA HISTÓRIA DE UMA GRANDE PAIXÃO 

Lembro que comecei a me interessar por educação como jovem adulto, ainda na década de setenta. Há não muito tempo saíra da escola secundária, profundamente marcada pelo autoritarismo das gerações que nos antecederam. No Brasil, essa situação fora agravada por uma longa ditadura militar, que controlara o currículo explícito e oculto, a contratação e permanência de professores e as manifestações dos alunos, com a mais absoluta mano dura.  

Eu, como tantos de minha geração, sequer conseguia sentir desprezo pela escola. Tinha ódio mesmo.  

No Colégio onde cursei o segundo grau (de orientação religiosa, confissional), mantínhamos, alguns alunos e ex-alunos recentes, um jornaleco estudantil, com base nos postulados da então Igreja progressista. Por anos o distribuímos clandestinamente, pulando as janelas das salas de aula, durante os recreios, e colocando-o na parte interna das carteiras. O Jornal, há muito, estava proibido pela Direção da Escola. Éramos bons naquilo. Nunca nos pegavam. Até que o Diretor, um pusilânime do qual não vale lembrar o nome, resolveu pedir ajuda externa. Mandou um número para a Polícia Federal que, obviamente, logo nos localizou. Foram dois anos de duros e intermináveis (até cinco, seis horas ininterruptas) interrogatórios.

Jamais esquecerei a tese da Polícia, que havia juntado os títulos de todos os números, numa espécie de mosaico-colagem, comprovando “cabalmente” que propúnhamos a luta armada. Não fossemos nós mesmos os organizadores, diretores, redatores e distribuidores, eu teria saído convencido de que tinham razão. Um belo trabalho!  

Diziam que o “mentor” que estava por trás de nós, espécies de  testas-de-ferro, era um tal Tiago, autor do texto “mais marxista-leninista” do jornal. Esse texto estava sublinhado por uma caneta hidrocor laranja, nas suas partes mais “subversivas”. Como era considerado inteiro como um libelo subversivo, estava sublinhado todo. O sujeito não tinha sobrenome, desconfiava-se mesmo que se tratasse de um codinome. Queriam, a todo custo, o endereço, para “estourar o seu aparelho” e buscá-lo para interrogatório.  

Até concordarem em procurar a “Epístola de Tiago”, no Novo Testamento, sofremos um bocado.  

Felizmente o país está mudando e, hoje, realizamos, fraternalmente, bem sucedidos Cursos de Direitos Humanos para uma nova Polícia Federal.  

Mas o que queria contar é que em um desses entra-e-sai dos investigadores que se revezavam, fiquei sozinho e espichei o olho para o processo que, displicentemente, jazia esquecido em cima da mesa (era uma espécie de transe, o que vivíamos e, àquelas alturas, a falta de coragem duelava com a curiosidade).  

Pois bem, lá estavam os nomes de diversos investigadores da Polícia Política, a famigerada DOPS, infiltrados no Colégio, membros do seu quadro permanente de professores e funcionários. Alguns eu tinha na conta de quase amigos. Todo mundo comentava de um ou outro, dos mais marcados, mas ninguém tinha certeza de que não era paranóia. Eu vi.  

Com certeza, o mesmo se passava em todas as demais Instituições. Salvos pelo gongo da Lei da Anistia, escapamos de pegar uma cadeia similar a de terroristas ladrões de bancos, nós, os perigosos divulgadores da Bíblia.  

Como se vê, apesar de uma ou outra figura impoluta e inteligente (como os Irmãos Lassalistas Alois Knob, Ivo Loro e Joaquim Sfredo, para citar, por justiça, três que podem representar essa ala), não tínhamos muitas razões para gostar da escola. Não era lugar para gente com sonhos, com consciência política, com vontade de participar (as vezes desconfio que, em geral, não mudou muito).  

Sempre me pergunto como fui me apaixonar por educação.  

Talvez tenha começado como um desses “namoros de implicância”, onde a depreciação obsessiva inicial acoberta uma grande e intuitiva atração. De tanto pensar na coisa e combatê-la, ela vai assumindo definitiva importância, desnudando inusitados contornos, revelando encantos outrora acobertados, mostrando-se sedutora de possibilidades.  

REBELDES APAIXONADOS  

A teoria também teve papel importante no processo. É claro que, movidos por tal gana, fomos parar na “Sociedade sem Escolas”, de Ivan Ilich, que tratava essas imaculadas instituições como “grandes e gordas vacas sagradas”.[1] Daí descobrimos “A Escola Está Morta”, de Everett Reimer.[2] Era uma delícia. Ler e gozar!  

Como esses autores eram críticos mordazes mas não por isso menos apaixonados por educação, fomos “pegando o gosto”.  

Não foi difícil, então, encontrarmos o papa da utopia realizada na escola: por anos devorei todos os livros de Alexander Neill que me caíam nas mãos. Comecei, como tantos, por “Summerhill, Liberdade Sem Medo” [3] e não pude mais parar. Neill tinha tido a coragem de extravasar-se para além dos livros de pedagogia e inventar uma Escola de sustentação democrática, uma experiência co-gestionada por adultos e crianças em vários campos e até auto-gestionada pelos alunos em vários outros. Summerhill, por muitos anos, foi uma espécie de Meca libertária de todos os educadores que não se haviam entregue ao sistema ou simplesmente desistido. Depois, a ignorância de direita e de esquerda lançou sobre o sonhado paraíso toda sorte de difamações e calúnias: “não havia dado certo”, “os alunos saíam despreparados para enfrentar o mundo como ele é” (leia-se: saíam menos vermes, menos obedientes), “era uma bagunça”, “os adultos não assumiam seu papel”, “era um campo fértil para a promiscuidade sexual” (não poderia faltar a brigada dos falsos moralistas), “não havia disciplina”, “a qualidade acadêmica era muito questionável”.

Evidentemente, tais imbecilidades partiam de quem não havia lido nada (ou quase nada, talvez as contracapas ) a respeito.

A educação na Inglaterra e no mundo nunca mais foi a mesma depois de Summerhill. Que se esfalfem inutilmente os reacionários de todos os matizes!

Não estou propondo que, hoje, se faça a mesma coisa. Não se trata de uma religião, mas de uma das mais revolucionárias e talvez a mais corajosa experiência que se fez em escolas no campo do poder - esse grande “currículo oculto” que tem mais peso do que qualquer ciência. Na contemporaneidade, precisamos ir muito além de Neill mas passando também por ele. Era encantadoramente apaixonado pelo que fazia. Eu não poderia deixar de morder a isca.

Naqueles anos já estava trabalhando como professor e aplicando tudo o que era possível. Fiz coisas louquíssimas e insustentáveis nos quadros do sistema, mas também aprendi maravilhas que me valeram uma excelente relação afetiva , acadêmica, produtiva, repleta de sentido, com os muitos adolescentes com quem convivi por duas décadas.

O SONHO FUNCIONA

Assim, por caminhos transversos, aprendi a acreditar na educação, inclusive naquela que se pode fazer na escola. Talvez isso só tenha sido possível por que não fui passivo, porque fiz e porque vi que dava certo.

Outros, que se envolveram menos, que sofreram menos, que choraram menos as conseqüências desastrosas da escolarização tradicional, mas que também comemoraram menos vitórias, podem ter tido, da mesma forma, menos razões para crer.

A militância é uma grande escola. Quem permaneceu professor-tecnocrata, da direita reprodutora ou da esquerda academicista, não sabe. Ao olhar para a educação, deve fazê-lo a partir da pobreza de quem nunca lhe penetrou a alma, de quem nunca a sonhou como um grande sonho, de quem nunca arregaçou as mangas e experimentou erguê-la, de quem nunca saboreou-lhe “o sal” entranhado nas vidas transformadas.

Essas virtudes todas vertiam de um mestre como Paulo Freire que consolidou, em nós, já com a dimensão explícita da consciência política, esse casamento eternamente apaixonado.

NIVELANDO POR BAIXO

No entanto, depois do justo e necessário desvelamento dos mecanismos de controle comportamental, depois das corretas denúncias do caráter moral e intelectual heterônomo das escolas, parece que arrancou-se, do planeta todo, a ingênua credibilidade cultivada dessas instituições, sem plantar-se nada no lugar.

A paixão ficou muito circunscrita.

Como “agências do status quo”, tão somente, passaram a ser vistas, “definidas exclusivamente pela lógica da dominação e os professores... simplesmente títeres da classe governante”. [4]

Ao criticar essa percepção tão mecânica do papel das escolas, Michael Apple alerta-nos que:

“Boa parte desse tipo de análise neomarxista tratava a escola como sendo uma caixa preta e eu estava tão insatisfeito com isso quanto estava com a tradição dominante em educação.”

“Contudo as escolas eram ainda vistas desta forma: elas tomavam um input (os alunos) e os processavam eficientemente (através de um currículo oculto) e os transformavam em agentes de trabalho desigual e altamente estratificado (output). Assim, o papel principal da escola estava no ensino de uma consciência ideológica que ajudava a reproduzir a divisão do trabalho na sociedade. Esta interpretação estava correta em certa medida, mas deixava sem solução dois problemas. Como isso era obtido? Isso era tudo o que as escolas faziam?” [5]

As visões do passado, de um lado, e dessa pedagogia radical, de outro, são as que mais subsistem e competem no dia-a-dia das escolas. Uma é imobilizante e a outra inconseqüente (ou conseqüente na manutenção). A alternativa a elas se vai constituindo, mas é claramente minoritária.

TRÊS PARADIGMAS DE SENTIDO

Há, com certeza, três grandes paradigmas de sentido que convivem conosco, neste momento, a respeito da educação. Eles se antagonizam e, na medida em que não conseguimos optar, estamos impotentes para realizar um bom trabalho.

Dois desses paradigmas (conforme Apple, a “teoria do capital humano”, que advoga a escola como instrumento de mobilidade, e a “teoria da alocação”, que a vê como agência de classificação e manutenção), têm origem ideológica diversa (no sentido de uma decorrência de postulados político-econômicos). O terceiro estamos construindo.

Gostaria de tentar expressá-los um pouco melhor, de forma sintética.

PEDAGOGIA TRADICIONAL

“Ser conservador não exige qualquer cérebro. Basta aceitar o que existe.”

  Colin Welch

O postulado mais tradicional, que subjaz às propostas conservadoras, é relativamente simples e pode ser expresso em um pequeno parágrafo:

Através da escolarização, da instrução, podemos gerar mobilidade social, a par de ensinarmos os valores e tradições que constituem as bases seguras de estabilidade da nossa civilização.

Seria inadequado e pretensioso (uma vez que há farta literatura a respeito), querermos aprofundar-nos na análise desse, que vou chamar “paradigma de fundo da pedagogia tradicional”.

Mui brevemente, contudo, podemos lembrar seu caráter, a um só tempo perverso e ingênuo (nos termos de Paulo Freire, “esperto” e “inocente”). Perverso, porque articulado verticalmente, sem qualquer espontaneísmo. Não é um paradigma casual. Essa visão interessa ao sistema que quer da escola apenas o papel passivo de “agência de outras agências”, de transmissora da ideologia dominante.

Ingênuo, no que se refere a  seus operadores (os professores) e “beneficiários”(?), os alunos. Esses entes entram no processo como peças, na dimensão objetal.

“PROFESSOR-PEÇA”

O professor, particularmente, deve estar atento, pois é a peça mestra, a “coluna de encaixe”, sem a qual toda essa “esperteza” não funcionaria.

“A racionalidade tecnocrática estéril que domina a cultura mais ampla, bem como a educação de professores, dedica pouca atenção a questões teóricas e ideológicas. Os professores são treinados para  usar quarenta e sete modelos diferentes de ensino, administração ou avaliação. Contudo, eles não são ensinados a serem críticos desses modelos. Em resumo, ensina-se a eles uma espécie de analfabetismo conceptual e político.” [6]

Na contraposição a isso, Giroux propõe todos os professores como intelectuais, imaginativos, criativos, com visão de futuro, com projeto de vida pessoal e coletivo.

Não é fácil, porque a ideologia dominante está aderida na categoria como uma sobre-pele. Temos dificuldade em pensar-nos, inseguros e desassistidos como nos sentimos, na contramão das grandes forças que dominam o planeta e também o nosso interior.

Simone de Beauvoir, em seu magnífico “O Pensamento da Direita Hoje” [7] se esbaldou na análise desse patético perfil dos segmentos intelectualizados da sociedade, em geral gente de classe média ou média-baixa, que pouco ou nada lucra com o establishment, mas que luta ferrenhamente (em geral, de forma inconsciente e ingênua) para mantê-lo. O fundamento é o de sempre: um temor profundo de que as coisas possam mudar e ficar ainda piores, de que possamos perder o pouco que conquistamos.

É um jogo e dele fazem parte as afirmações do paradigma de fundo da pedagogia tradicional. Sua primeira mentira é a de que, através da escolarização, da instrução, possamos gerar mobilidade social.

A MENTIRA DA ESCOLARIZAÇÃO PARA A MOBILIDADE

Evidentemente, a escolarização é desejada e necessária e pode contribuir com a elevação dos patamares de bem-estar de uma sociedade. Mas pode também ser insignificante. Dependerá do quanto se trabalhar nas escolas a “alfabetização política” (obviamente no sentido não partidário) dos cidadãos alunos.

Nem precisamos ir muito longe e falar em ideais de solidariedade. Podemos ficar em questões mais rasteiras, de “alfabetização conjuntural”. Por exemplo, uma escola estilo “linha de montagem”, como a que ainda subsiste no Brasil, sequer está habilitada para contribuir com as demandas do capitalismo atual. Alvin e Heide Toffler, em artigo para o Los Angeles Times, de 26 de março de 1999, dizem que, durante a Revolução Industrial, “gerações de estudantes foram mandadas para escolas do tipo linha-de-montagem, onde realizaram um trabalho rotineiro e repetitivo por anos, e aí foram submetidos a testes padronizados, como produtos saindo da esteira industrial. Hoje, em todo mundo, mesmo em países de alta tecnologia, centenas de milhões de crianças ainda estão submetidas a este regime ultrapassado, cuja simulação do futuro é uma experiência que jamais será vivida por nenhuma delas.” Acrescentam que, no mundo atual, “a maioria dos trabalhadores são trabalhadores do conhecimento”.

Uma das contradições do sistema capitalista contemporâneo é que tem urgência em modificar o tipo de capacitação que dá a seus trabalhadores, diante de suas mudanças macroeconômicas. No entanto, o velho capitalismo subsiste, como um  xifópago do novo, uma vez que nenhuma transformação é imediata. É nessa parte indesejada que ainda habitam, genericamente, a escola e seus professores, como expressão da velha cultura que o mesmo sistema criou para legitimar-se.

Retomando, então, a questão da escolaridade, é uma meia verdade - e, portanto uma meia mentira - a afirmação de que a mesma possa gerar mobilidade social. Depende do quanto essa escola é ou não educativa; depende do quanto ela valoriza a cultura própria dos que a freqüentam (ao contrário de apenas ver-se como uma pobre socializadora dos códigos da classe dominante); depende do quanto ela emula a cidadania com sua imprescindível participação política; depende do grau de provocação que implementa para gerar gente empreendedora, inventiva, com autonomia intelectual; depende do quanto trabalha a auto-estima e a autoconfiança de seus alunos e professores. Se não faz nada disso, não pode alavancar qualquer tipo de mobilidade social. Ao contrário, é mantenedora das disparidades.

INDIVIDUALISMO E MIRAGENS

Importante, também, é lembrarmos que, na acepção clássica conservadora, essa mobilidade se dá no plano individualista e meritocrático. Magicamente, se apresenta a escolarização como uma oportunidade de “crescer na vida” (subentendendo-se, aqui, apenas e nada mais que atingir as miragens do consumo).

Esse é um evidente engodo, quando tomada, a proposição, genericamente. Não há lugar, não há espaço, não há empregos (hoje), não há previsão desejada, pelo menos como prioridade, para uma feliz ascensão, per capita, de toda a classe popular aos patamares de classe média-alta, via escola. São poucos e notórios os casos de grande ascensão individual, usados apenas como elementos “comprobatórios” da democracia social em que vivemos, ao mesmo tempo ilusórios e desviantes, como promessas, da perigosa frustração social.

Ou ascendemos juntos, como povo organizado e qualificado para uma vida empreendedora, ou somos apenas rebanho. É aqui que a escola e seus professores têm  que optar por um dos dois papéis.

Caso nos achemos liberados dessa opção, é porque já optamos...

O MITO DO BOM SISTEMA

A segunda mentira do paradigma de fundo da educação tradicional  é que vivamos em uma civilização de “bases seguras e estáveis”. Isso simplesmente pressupõe uma aceitação passiva, uma falta de juízo moral sobre o planeta, sobre as instituições criadas por seus habitantes, sobre as gritantes injustiças e violências banalizadas, coisa incompatível com qualquer proposição verdadeiramente educacional.

Stephen Kemmis ajuda-nos a desnudar com clareza esse mito, em exercícios analíticos como o que segue (tradução livre):

“As estruturas sociais não são tão racionais e justas como geralmente se pensa. Pelo contrário, as estruturas sociais estão criadas mediante processos e práticas distorcidos pela irracionalidade, a injustiça e a coerção, e tais distorções têm calado muito fundo em nossas interpretações do mundo. Não se trata, portanto, de que as estruturas sociais estejam deformadas... senão de que não percebemos essas distorções porque chegamos a considera-las como “naturais”.[8]



[1] Ilich, Ivan. Sociedade sem Escolas, Editora Vozes, Petrópolis, 1973.

[2] Raimer, Everett. A Escola Está Morta, Editora Francisco Alves, Rio de janeiro, 1983.

[3] Neill, A. S. Liberdade Sem Medo, IBRASA, São Paulo, 1980.

[4] McLaren, Peter. in prefácio, Giroux, Henry. Os Professores como Intelectuais, Artes Médicas, Porto Alegre, 1997.

[5]  Apple, Michael. Educação e Poder, Artes Médicas Porto Alegre, 1989.

[6]  Giroux, Henry. Os Professores como Intelectuais, Artes Médicas, Porto Alegre,  1997.

[7]  Beauvoir, Simone. O Pensamento da Direita  Hoje, Editora Paz e Terra, 1991.

[8] Kemmis, Stephen. El Curriculum: más allá de la teoria de la reproducción, Ediciones Morata S. A ., Madrid, 1988.

PEDAGOGIA DETERMINISTA

“A verdadeira dificuldade não está em aceitar idéias novas, mas em escapar às idéias antigas.” 

John  Maynard Keynes

“Si queremos que todo siga como está,

 es preciso que todo cambie.”

Tomasi di Lampedusa, “Il Gattopardo”

O segundo paradigma, que se propunha a ser uma oposição conseqüente ao anterior, acabou por revelar-se pífio, ceticista, imobilizante. A intenção não era essa, mas assim foi.

Aqui vou chamá-lo de paradigma de fundo da pedagogia determinista.

Saiu dos fornos intelectuais da esquerda acadêmica (em geral com pouca ou nenhuma experiência junto a crianças e adolescentes), constituído basicamente para negar a visão tradicional da direita. Como qualquer antítese, acertou bem na análise e errou muito nas proposições.

Tomando emprestados e vulgarizando grandes conceitos marxistas de “estrutura” e “superestrutura”, adaptou-os algo forçadamente a categorias explicativas do “papel intrínseco” da educação, em especial escolar.

Daí surgiu, mais ou menos, o que segue:

Sabemos que a educação não tem o papel que tradicionalmente se lhe atribuía (a direita). Não é a educação que muda o mundo. A educação é obrigatoriamente reflexo superestrutural do modo de produção dominante e, por isso, tem caráter fundamentalmente conservador, ainda que possa ser, subsidiária e limitadamente, usada  em seus aspectos contraditórios (teoria das “brechas”), para intensificar processos de transformação social.

Crer no contrário é ser ingênuo ou estar a serviço do ‘status quo’.

Já exploramos um pouco, acima, o equívoco imobilizante desse paradigma.

Conforme Apple, “existem evidências que sustentam esse tipo de asserção... Entretanto, ao vermos a escola apenas em termos reprodutivos, em essência, como uma função passiva de uma ordem social externa iníqua, torna-se difícil gerar qualquer ação educacional séria de qualquer tipo. Pois se as escolas são inteiramente determinadas e não podem fazer mais do que espelhar as relações econômicas fora delas, então nada pode ser feito dentro da esfera educacional.” [1]

É uma espécie de desistência ou, pelo menos de equivocada desimportância, à esquerda.

POLÍTICA BURRA

Ora, supondo-se que a escolarização não seja um fenômeno passível de rápida extinção em nossas sociedades - e que, portanto, vai continuar exercendo decisiva influência sobre as novas gerações - isso equivale a deixá-la, por falta de perspectivas, nas mãos dos segmentos mais atrasados. Ou apenas, a contragosto, ocupar  algum espaço marginal, com a inevitável incompetência de quem não vai se dedicar profundamente ao que não acredita.

O equívoco, no entanto, também é conceptual. Essa visão simplifica a teia contraditória das relações entre o econômico e o social, entre a educação e a economia, bem como a complexidade dos mecanismos de manutenção/transformação em curso.

É fruto, pois, de uma abordagem mecânica, determinista, do mundo, com seu inevitável caráter mágico e simplificador.

Em última instância, se professarmos fé em algo assim, melhor procurarmos algo que nos pareça mais útil para fazer na vida.

Não é possível ser educador sem acreditar na educação.

PEDAGOGIA EMANCIPATÓRIA

“Há sempre um momento no tempo em que umaporta se abre e deixa entrar o futuro.” Graham Greene

Por fim, não poderia deixar, construtivamente, de contrapor uma alternativa. Aos paradigmas de fundo das pedagogias tradicional e determinista, propomos um paradigma de fundo da educação emancipatória:

Os processos de transformação social são frutos de câmbios dialéticos da consciência humana e dos mecanismos de estruturação produtiva das sociedades.

São deflagrados, concomitantemente, por necessidades mas também disposições subjetivas (sonhos, aspirações, criatividade, espírito empreendedor, pessoais e coletivos).

A educação é, pois, nesses termos, a mais poderosa ferramenta estratégica de diagnóstico crítico (constatação e juízo), planejamento social (participativo, democrático) de alternativas, multiplicação, mobilização e consolidação de ações transformadoras nas comunidades, cidades, países e planeta.

Não há transformação verdadeira que não comece e não se mantenha pela educação.

Aqui, sem deixar de recusar a concepção tradicional e perverso-ingênua do papel da educação e dos educadores, e de concordar com a avaliação crítica que percebe elementos agenciadores, na escola, da cultura e dos processos econômicos dominantes, evitamos cair no sectarismo pessimista, maniqueísta, mecânico e determinista que inspirou um grande grupo de seus críticos.

Evitamos igualmente o caminho da esquizofrenia. Não podemos realizar o que não cremos.

Com os devidos cuidados de não reproduzirmos a panacéia manipulatória, reafirmamos nossa confiança baseada em evidências e nossa paixão existencial, inabalável, pelo que fazemos.



[1] Apple, Michael. Educação e Poder, Artes Médicas, Porto Alegre, 1989.

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