|
Cidadania
e Direitos Humanos:
Um Sentido Para a Educação
Capítulo
III
EDUCAÇÃO:
REFLEXO OU LUZ?
“Se
não é possível compreender a educação como uma prática autônoma ou
neutra, isto não significa, de modo algum, que a educação sistemática
seja pura reprodutora da ideologia dominante. As relações entre a
educação enquanto subsistema e o sistema maior são relações dinâmicas,
contraditórias e não mecânicas. A educação reproduz a ideologia dominante,
é certo, mas não faz apenas isto. Nem mesmo em sociedades altamente
modernizadas, com classes dominantes realmente competentes e conscientes
do papel da educação, ela é apenas reprodutora da ideologia daquelas
classes. As contradições que caracterizam a sociedade como está sendo
penetram a intimidade das instituições pedagógicas em que a educação
sistemática se está dando e alteram o seu papel ou o seu esforço reprodutor
da ideologia dominante”.
Paulo
Freire
IMPOTENTES
DÚVIDAS
Mesmo
que tenhamos clara a necessidade de evoluirmos para sociedades de
bem-estar para todos e mesmo que nos convençamos, como propõe o
capítulo antecedente, que o caminho para isso é a tecitura de redes
de engajamento cívico, resta-nos ainda a pergunta: como chegar a
tais redes?
A
reflexão aqui proposta afirmou que só pode ser pela via da educação.
Será mesmo? Não estará, o autor, repetindo a velha panacéia conservadora,
com roupagens novas? Não será, o dele, aquele mesmo discurso mistificador,
da mobilidade social através da “ponte” mágica da educação?
Estamos
muito marcados pelo mau uso ideológico que se fez, por muito tempo,
especialmente, da escolarização, e desconfiamos de tudo que venha
daí, numa espécie de antagonismo depreciativo de caráter adolescente.
Estou
certo de que o maior problema que vivenciamos como educadores é,
muitas vezes, termos sérias dúvidas se a educação vale a pena. Como
nos movemos pouco para construir as respostas, permanecemos fazendo
o que fazemos com um certo descrédito.
PEQUENA HISTÓRIA DE UMA GRANDE PAIXÃO
Lembro
que comecei a me interessar por educação como jovem adulto, ainda
na década de setenta. Há não muito tempo saíra da escola secundária,
profundamente marcada pelo autoritarismo das gerações que nos antecederam.
No Brasil, essa situação fora agravada por uma longa ditadura militar,
que controlara o currículo explícito e oculto, a contratação e permanência
de professores e as manifestações dos alunos, com a mais absoluta
mano dura.
Eu,
como tantos de minha geração, sequer conseguia sentir desprezo pela
escola. Tinha ódio mesmo.
No
Colégio onde cursei o segundo grau (de orientação religiosa, confissional),
mantínhamos, alguns alunos e ex-alunos recentes, um jornaleco estudantil,
com base nos postulados da então Igreja progressista. Por anos o
distribuímos clandestinamente, pulando as janelas das salas de aula,
durante os recreios, e colocando-o na parte interna das carteiras.
O Jornal, há muito, estava proibido pela Direção da Escola. Éramos
bons naquilo. Nunca nos pegavam. Até que o Diretor, um pusilânime
do qual não vale lembrar o nome, resolveu pedir ajuda externa. Mandou
um número para a Polícia Federal que, obviamente, logo nos localizou.
Foram dois anos de duros e intermináveis (até cinco, seis horas
ininterruptas) interrogatórios.
Jamais
esquecerei a tese da Polícia, que havia juntado os títulos de todos
os números, numa espécie de mosaico-colagem, comprovando “cabalmente”
que propúnhamos a luta armada. Não fossemos nós mesmos os organizadores,
diretores, redatores e distribuidores, eu teria saído convencido
de que tinham razão. Um belo trabalho!
Diziam
que o “mentor” que estava por trás de nós, espécies de testas-de-ferro,
era um tal Tiago, autor do texto “mais marxista-leninista” do jornal.
Esse texto estava sublinhado por uma caneta hidrocor laranja, nas
suas partes mais “subversivas”. Como era considerado inteiro como
um libelo subversivo, estava sublinhado todo. O sujeito não
tinha sobrenome, desconfiava-se mesmo que se tratasse de um codinome.
Queriam, a todo custo, o endereço, para “estourar o seu aparelho”
e buscá-lo para interrogatório.
Até
concordarem em procurar a “Epístola de Tiago”, no
Novo Testamento, sofremos um bocado.
Felizmente
o país está mudando e, hoje, realizamos, fraternalmente, bem sucedidos
Cursos de Direitos Humanos para uma nova Polícia Federal.
Mas
o que queria contar é que em um desses entra-e-sai dos investigadores
que se revezavam, fiquei sozinho e espichei o olho para o processo
que, displicentemente, jazia esquecido em cima da mesa (era uma
espécie de transe, o que vivíamos e, àquelas alturas, a falta de
coragem duelava com a curiosidade).
Pois
bem, lá estavam os nomes de diversos investigadores da Polícia Política,
a famigerada DOPS, infiltrados no Colégio, membros do seu quadro
permanente de professores e funcionários. Alguns eu tinha na conta
de quase amigos. Todo mundo comentava de um ou outro, dos mais marcados,
mas ninguém tinha certeza de que não era paranóia. Eu vi.
Com
certeza, o mesmo se passava em todas as demais Instituições. Salvos
pelo gongo da Lei da Anistia, escapamos de pegar uma cadeia similar
a de terroristas ladrões de bancos, nós, os perigosos divulgadores
da Bíblia.
Como
se vê, apesar de uma ou outra figura impoluta e inteligente (como
os Irmãos Lassalistas Alois Knob, Ivo Loro e Joaquim Sfredo, para
citar, por justiça, três que podem representar essa ala), não tínhamos
muitas razões para gostar da escola. Não era lugar para gente com
sonhos, com consciência política, com vontade de participar (as
vezes desconfio que, em geral, não mudou muito).
Sempre
me pergunto como fui me apaixonar por educação.
Talvez
tenha começado como um desses “namoros de implicância”, onde a depreciação
obsessiva inicial acoberta uma grande e intuitiva atração. De tanto
pensar na coisa e combatê-la, ela vai assumindo definitiva importância,
desnudando inusitados contornos, revelando encantos outrora acobertados,
mostrando-se sedutora de possibilidades.
REBELDES
APAIXONADOS
A
teoria também teve papel importante no processo. É claro que, movidos
por tal gana, fomos parar na “Sociedade sem Escolas”, de Ivan Ilich,
que tratava essas imaculadas instituições como “grandes e gordas
vacas sagradas”.
Daí descobrimos “A Escola Está Morta”, de Everett Reimer.
Era uma delícia. Ler e gozar!
Como
esses autores eram críticos mordazes mas não por isso menos apaixonados
por educação, fomos “pegando o gosto”.
Não
foi difícil, então, encontrarmos o papa da utopia realizada na escola:
por anos devorei todos os livros de Alexander Neill que me caíam nas
mãos. Comecei, como tantos, por “Summerhill, Liberdade Sem Medo”
e não pude mais parar. Neill tinha tido a coragem de extravasar-se
para além dos livros de pedagogia e inventar uma Escola de sustentação
democrática, uma experiência co-gestionada por adultos e crianças
em vários campos e até auto-gestionada pelos alunos em vários outros.
Summerhill, por muitos anos, foi uma espécie de Meca libertária de
todos os educadores que não se haviam entregue ao sistema ou simplesmente
desistido. Depois, a ignorância de direita e de esquerda lançou sobre
o sonhado paraíso toda sorte de difamações e calúnias: “não havia
dado certo”, “os alunos saíam despreparados para enfrentar o mundo
como ele é” (leia-se: saíam menos vermes, menos obedientes), “era
uma bagunça”, “os adultos não assumiam seu papel”, “era um campo fértil
para a promiscuidade sexual” (não poderia faltar a brigada dos falsos
moralistas), “não havia disciplina”, “a qualidade acadêmica era muito
questionável”.
Evidentemente,
tais imbecilidades partiam de quem não havia lido nada (ou quase nada,
talvez as contracapas ) a respeito.
A
educação na Inglaterra e no mundo nunca mais foi a mesma depois de
Summerhill. Que se esfalfem inutilmente os reacionários de todos os
matizes!
Não
estou propondo que, hoje, se faça a mesma coisa. Não se trata de uma
religião, mas de uma das mais revolucionárias e talvez a mais corajosa
experiência que se fez em escolas no campo do poder - esse grande
“currículo oculto” que tem mais peso do que qualquer ciência. Na contemporaneidade,
precisamos ir muito além de Neill mas passando também por ele. Era
encantadoramente apaixonado pelo que fazia. Eu não poderia deixar
de morder a isca.
Naqueles
anos já estava trabalhando como professor e aplicando tudo o que era
possível. Fiz coisas louquíssimas e insustentáveis nos quadros do
sistema, mas também aprendi maravilhas que me valeram uma excelente
relação afetiva , acadêmica, produtiva, repleta de sentido, com os
muitos adolescentes com quem convivi por duas décadas.
O
SONHO FUNCIONA
Assim,
por caminhos transversos, aprendi a acreditar na educação, inclusive
naquela que se pode fazer na escola. Talvez isso só tenha sido possível
por que não fui passivo, porque fiz e porque vi que dava certo.
Outros,
que se envolveram menos, que sofreram menos, que choraram menos as
conseqüências desastrosas da escolarização tradicional, mas que também
comemoraram menos vitórias, podem ter tido, da mesma forma, menos
razões para crer.
A
militância é uma grande escola. Quem permaneceu professor-tecnocrata,
da direita reprodutora ou da esquerda academicista, não sabe. Ao olhar
para a educação, deve fazê-lo a partir da pobreza de quem nunca lhe
penetrou a alma, de quem nunca a sonhou como um grande sonho, de quem
nunca arregaçou as mangas e experimentou erguê-la, de quem nunca saboreou-lhe
“o sal” entranhado nas vidas transformadas.
Essas
virtudes todas vertiam de um mestre como Paulo Freire que consolidou,
em nós, já com a dimensão explícita da consciência política, esse
casamento eternamente apaixonado.
NIVELANDO
POR BAIXO
No
entanto, depois do justo e necessário desvelamento dos mecanismos
de controle comportamental, depois das corretas denúncias do caráter
moral e intelectual heterônomo das escolas, parece que arrancou-se,
do planeta todo, a ingênua credibilidade cultivada dessas instituições,
sem plantar-se nada no lugar.
A
paixão ficou muito circunscrita.
Como
“agências do status quo”, tão somente, passaram a ser vistas,
“definidas exclusivamente pela lógica da dominação e os professores...
simplesmente títeres da classe governante”.
Ao
criticar essa percepção tão mecânica do papel das escolas, Michael
Apple alerta-nos que:
“Boa
parte desse tipo de análise neomarxista tratava a escola como sendo
uma caixa preta e eu estava tão insatisfeito com isso quanto estava
com a tradição dominante em educação.”
“Contudo
as escolas eram ainda vistas desta forma: elas tomavam um input
(os alunos) e os processavam eficientemente (através de um currículo
oculto) e os transformavam em agentes de trabalho desigual e altamente
estratificado (output). Assim, o papel principal da escola
estava no ensino de uma consciência ideológica que ajudava a reproduzir
a divisão do trabalho na sociedade. Esta interpretação estava correta
em certa medida, mas deixava sem solução dois problemas. Como
isso era obtido? Isso era tudo o que as escolas faziam?”
As
visões do passado, de um lado, e dessa pedagogia radical, de outro,
são as que mais subsistem e competem no dia-a-dia das escolas. Uma
é imobilizante e a outra inconseqüente (ou conseqüente na manutenção).
A alternativa a elas se vai constituindo, mas é claramente minoritária.
TRÊS
PARADIGMAS DE SENTIDO
Há,
com certeza, três grandes paradigmas de sentido que convivem conosco,
neste momento, a respeito da educação. Eles se antagonizam e, na medida
em que não conseguimos optar, estamos impotentes para realizar um
bom trabalho.
Dois
desses paradigmas (conforme Apple, a “teoria do capital humano”, que
advoga a escola como instrumento de mobilidade, e a “teoria da alocação”,
que a vê como agência de classificação e manutenção), têm origem ideológica
diversa (no sentido de uma decorrência de postulados político-econômicos).
O terceiro estamos construindo.
Gostaria
de tentar expressá-los um pouco melhor, de forma sintética.
PEDAGOGIA
TRADICIONAL
“Ser
conservador não exige qualquer cérebro. Basta aceitar o que existe.”
Colin
Welch
O
postulado mais tradicional, que subjaz às propostas conservadoras,
é relativamente simples e pode ser expresso em um pequeno parágrafo:
Através
da escolarização, da instrução, podemos gerar mobilidade social, a
par de ensinarmos os valores e tradições que constituem as bases seguras
de estabilidade da nossa civilização.
Seria
inadequado e pretensioso (uma vez que há farta literatura a respeito),
querermos aprofundar-nos na análise desse, que vou chamar “paradigma
de fundo da pedagogia tradicional”.
Mui
brevemente, contudo, podemos lembrar seu caráter, a um só tempo perverso
e ingênuo (nos termos de Paulo Freire, “esperto” e “inocente”).
Perverso, porque articulado verticalmente, sem qualquer espontaneísmo.
Não é um paradigma casual. Essa visão interessa ao sistema que quer
da escola apenas o papel passivo de “agência de outras agências”,
de transmissora da ideologia dominante.
Ingênuo,
no que se refere a seus operadores (os professores) e “beneficiários”(?),
os alunos. Esses entes entram no processo como peças, na dimensão
objetal.
“PROFESSOR-PEÇA”
O
professor, particularmente, deve estar atento, pois é a peça mestra,
a “coluna de encaixe”, sem a qual toda essa “esperteza” não funcionaria.
“A
racionalidade tecnocrática estéril que domina a cultura mais ampla,
bem como a educação de professores, dedica pouca atenção a questões
teóricas e ideológicas. Os professores são treinados para usar
quarenta e sete modelos diferentes de ensino, administração ou avaliação.
Contudo, eles não são ensinados a serem críticos desses modelos. Em
resumo, ensina-se a eles uma espécie de analfabetismo conceptual e
político.”
Na
contraposição a isso, Giroux propõe todos os professores como intelectuais,
imaginativos, criativos, com visão de futuro, com projeto de vida
pessoal e coletivo.
Não
é fácil, porque a ideologia dominante está aderida na categoria como
uma sobre-pele. Temos dificuldade em pensar-nos, inseguros e desassistidos
como nos sentimos, na contramão das grandes forças que dominam o planeta
e também o nosso interior.
Simone
de Beauvoir, em seu magnífico “O Pensamento da Direita Hoje”
se esbaldou na análise desse patético
perfil dos segmentos intelectualizados da sociedade, em geral gente
de classe média ou média-baixa, que pouco ou nada lucra com o establishment,
mas que luta ferrenhamente (em geral, de forma inconsciente e
ingênua) para mantê-lo. O fundamento é o de sempre: um temor profundo
de que as coisas possam mudar e ficar ainda piores, de que possamos
perder o pouco que conquistamos.
É
um jogo e dele fazem parte as afirmações do paradigma de fundo
da pedagogia tradicional. Sua primeira mentira é a de que, através
da escolarização, da instrução, possamos gerar mobilidade social.
A
MENTIRA DA ESCOLARIZAÇÃO PARA A MOBILIDADE
Evidentemente,
a escolarização é desejada e necessária e pode contribuir com a elevação
dos patamares de bem-estar de uma sociedade. Mas pode também ser insignificante.
Dependerá do quanto se trabalhar nas escolas a “alfabetização política”
(obviamente no sentido não partidário) dos cidadãos alunos.
Nem
precisamos ir muito longe e falar em ideais de solidariedade. Podemos
ficar em questões mais rasteiras, de “alfabetização conjuntural”.
Por exemplo, uma escola estilo “linha de montagem”, como a que ainda
subsiste no Brasil, sequer está habilitada para contribuir com as
demandas do capitalismo atual. Alvin e Heide Toffler, em artigo para
o Los Angeles Times, de 26 de março de 1999, dizem que, durante a
Revolução Industrial, “gerações de estudantes foram mandadas para
escolas do tipo linha-de-montagem, onde realizaram um trabalho rotineiro
e repetitivo por anos, e aí foram submetidos a testes padronizados,
como produtos saindo da esteira industrial. Hoje, em todo mundo, mesmo
em países de alta tecnologia, centenas de milhões de crianças ainda
estão submetidas a este regime ultrapassado, cuja simulação do futuro
é uma experiência que jamais será vivida por nenhuma delas.” Acrescentam
que, no mundo atual, “a maioria dos trabalhadores são trabalhadores
do conhecimento”.
Uma
das contradições do sistema capitalista contemporâneo é que tem urgência
em modificar o tipo de capacitação que dá a seus trabalhadores, diante
de suas mudanças macroeconômicas. No entanto, o velho capitalismo
subsiste, como um xifópago do novo, uma vez que nenhuma transformação
é imediata. É nessa parte indesejada que ainda habitam, genericamente,
a escola e seus professores, como expressão da velha cultura que o
mesmo sistema criou para legitimar-se.
Retomando,
então, a questão da escolaridade, é uma meia verdade - e, portanto
uma meia mentira - a afirmação de que a mesma possa gerar mobilidade
social. Depende do quanto essa escola é ou não educativa; depende
do quanto ela valoriza a cultura própria dos que a freqüentam (ao
contrário de apenas ver-se como uma pobre socializadora dos códigos
da classe dominante); depende do quanto ela emula a cidadania com
sua imprescindível participação política; depende do grau de provocação
que implementa para gerar gente empreendedora, inventiva, com autonomia
intelectual; depende do quanto trabalha a auto-estima e a autoconfiança
de seus alunos e professores. Se não faz nada disso, não pode alavancar
qualquer tipo de mobilidade social. Ao contrário, é mantenedora das
disparidades.
INDIVIDUALISMO E MIRAGENS
Importante,
também, é lembrarmos que, na acepção clássica conservadora, essa mobilidade
se dá no plano individualista e meritocrático. Magicamente, se apresenta
a escolarização como uma oportunidade de “crescer na vida” (subentendendo-se,
aqui, apenas e nada mais que atingir as miragens do consumo).
Esse
é um evidente engodo, quando tomada, a proposição, genericamente.
Não há lugar, não há espaço, não há empregos (hoje), não há previsão
desejada, pelo menos como prioridade, para uma feliz ascensão, per
capita, de toda a classe popular aos patamares de classe média-alta,
via escola. São poucos e notórios os casos de grande ascensão individual,
usados apenas como elementos “comprobatórios” da democracia social
em que vivemos, ao mesmo tempo ilusórios e desviantes, como promessas,
da perigosa frustração social.
Ou
ascendemos juntos, como povo organizado e qualificado para uma vida
empreendedora, ou somos apenas rebanho. É aqui que a escola e seus
professores têm que optar por um dos dois papéis.
Caso
nos achemos liberados dessa opção, é porque já optamos...
O
MITO DO BOM SISTEMA
A
segunda mentira do paradigma de fundo da educação tradicional
é que vivamos em uma civilização de “bases seguras e estáveis”. Isso
simplesmente pressupõe uma aceitação passiva, uma falta de juízo moral
sobre o planeta, sobre as instituições criadas por seus habitantes,
sobre as gritantes injustiças e violências banalizadas, coisa incompatível
com qualquer proposição verdadeiramente educacional.
Stephen
Kemmis ajuda-nos a desnudar com clareza esse mito, em exercícios analíticos
como o que segue (tradução livre):
“As
estruturas sociais não são tão racionais e justas como geralmente
se pensa. Pelo contrário, as estruturas sociais estão criadas mediante
processos e práticas distorcidos pela irracionalidade, a injustiça
e a coerção, e tais distorções têm calado muito fundo em nossas interpretações
do mundo. Não se trata, portanto, de que as estruturas sociais estejam
deformadas... senão de que não percebemos essas distorções porque
chegamos a considera-las como “naturais”.
Ilich, Ivan. Sociedade sem Escolas, Editora Vozes, Petrópolis,
1973.
Raimer, Everett. A Escola Está Morta, Editora Francisco Alves,
Rio de janeiro, 1983.
Neill, A. S. Liberdade Sem Medo, IBRASA, São Paulo, 1980.
McLaren, Peter. in prefácio, Giroux, Henry. Os Professores
como Intelectuais, Artes Médicas, Porto Alegre, 1997.
Apple, Michael. Educação e Poder, Artes Médicas Porto Alegre,
1989.
Giroux, Henry. Os Professores como Intelectuais, Artes Médicas,
Porto Alegre, 1997.
Beauvoir, Simone. O Pensamento da Direita Hoje, Editora
Paz e Terra, 1991.
Kemmis, Stephen. El Curriculum: más allá de la teoria de la reproducción,
Ediciones Morata S. A ., Madrid, 1988.
PEDAGOGIA
DETERMINISTA
“A verdadeira dificuldade
não está em aceitar idéias novas, mas em escapar às idéias antigas.”
John Maynard
Keynes
“Si queremos que
todo siga como está,
es preciso
que todo cambie.”
Tomasi di Lampedusa,
“Il Gattopardo”
O
segundo paradigma, que se propunha a ser uma oposição conseqüente
ao anterior, acabou por revelar-se pífio, ceticista, imobilizante.
A intenção não era essa, mas assim foi.
Aqui
vou chamá-lo de paradigma de fundo da pedagogia determinista.
Saiu
dos fornos intelectuais da esquerda acadêmica (em geral com pouca
ou nenhuma experiência junto a crianças e adolescentes), constituído
basicamente para negar a visão tradicional da direita. Como qualquer
antítese, acertou bem na análise e errou muito nas proposições.
Tomando
emprestados e vulgarizando grandes conceitos marxistas de “estrutura”
e “superestrutura”, adaptou-os algo forçadamente a categorias explicativas
do “papel intrínseco” da educação, em especial escolar.
Daí
surgiu, mais ou menos, o que segue:
Sabemos
que a educação não tem o papel que tradicionalmente se lhe atribuía
(a direita). Não é a educação que muda o mundo. A educação é obrigatoriamente
reflexo superestrutural do modo de produção dominante e, por isso,
tem caráter fundamentalmente conservador, ainda que possa ser, subsidiária
e limitadamente, usada em seus aspectos contraditórios (teoria
das “brechas”), para intensificar processos de transformação social.
Crer
no contrário é ser ingênuo ou estar a serviço do ‘status quo’.
Já
exploramos um pouco, acima, o equívoco imobilizante desse paradigma.
Conforme
Apple, “existem evidências que sustentam esse tipo de asserção...
Entretanto, ao vermos a escola apenas em termos reprodutivos, em
essência, como uma função passiva de uma ordem social externa iníqua,
torna-se difícil gerar qualquer ação educacional séria de qualquer
tipo. Pois se as escolas são inteiramente determinadas e não podem
fazer mais do que espelhar as relações econômicas fora delas, então
nada pode ser feito dentro da esfera educacional.”
É
uma espécie de desistência ou, pelo menos de equivocada desimportância,
à esquerda.
POLÍTICA BURRA
Ora,
supondo-se que a escolarização não seja um fenômeno passível de
rápida extinção em nossas sociedades - e que, portanto, vai continuar
exercendo decisiva influência sobre as novas gerações - isso equivale
a deixá-la, por falta de perspectivas, nas mãos dos segmentos mais
atrasados. Ou apenas, a contragosto, ocupar algum espaço marginal,
com a inevitável incompetência de quem não vai se dedicar profundamente
ao que não acredita.
O
equívoco, no entanto, também é conceptual. Essa visão simplifica
a teia contraditória das relações entre o econômico e o social,
entre a educação e a economia, bem como a complexidade dos mecanismos
de manutenção/transformação em curso.
É
fruto, pois, de uma abordagem mecânica, determinista, do mundo,
com seu inevitável caráter mágico e simplificador.
Em
última instância, se professarmos fé em algo assim, melhor procurarmos
algo que nos pareça mais útil para fazer na vida.
Não
é possível ser educador sem acreditar na educação.
PEDAGOGIA
EMANCIPATÓRIA
“Há sempre um momento
no tempo em que umaporta se abre e deixa entrar o futuro.” Graham
Greene
Por
fim, não poderia deixar, construtivamente, de contrapor uma alternativa.
Aos paradigmas de fundo das pedagogias tradicional e determinista,
propomos um paradigma de fundo da educação
emancipatória:
Os
processos de transformação social são frutos de câmbios dialéticos
da consciência humana e dos mecanismos de estruturação produtiva
das sociedades.
São
deflagrados, concomitantemente, por necessidades mas também
disposições subjetivas (sonhos, aspirações, criatividade,
espírito empreendedor, pessoais e coletivos).
A
educação é, pois, nesses termos, a mais poderosa ferramenta
estratégica de diagnóstico crítico (constatação e juízo),
planejamento social (participativo, democrático) de alternativas,
multiplicação, mobilização e consolidação de ações transformadoras
nas comunidades, cidades, países e planeta.
Não
há transformação verdadeira que não comece e não se mantenha pela
educação.
Aqui,
sem deixar de recusar a concepção tradicional e perverso-ingênua
do papel da educação e dos educadores, e de concordar com a avaliação
crítica que percebe elementos agenciadores, na escola, da cultura
e dos processos econômicos dominantes, evitamos cair no sectarismo
pessimista, maniqueísta, mecânico e determinista que inspirou um
grande grupo de seus críticos.
Evitamos
igualmente o caminho da esquizofrenia. Não podemos realizar o que
não cremos.
Com
os devidos cuidados de não reproduzirmos a panacéia manipulatória,
reafirmamos nossa confiança baseada em evidências e nossa paixão
existencial, inabalável, pelo que fazemos.
Apple, Michael. Educação e Poder, Artes Médicas, Porto
Alegre, 1989.
|
|
|
|
|