Capítulo
II
CIDADANIA,
DIREITOS HUMANOS E DESENVOLVIMENTO
O
“PARADIGMA DE PUTNAM”
“As
comunidades se desenvolveram, em
resumo, devido às redes e associações...
Nessas
comunidades os cidadãos
são engajados
nos negócios públicos, confiam uns nos outros e obedecem à
lei.Solidariedade, participação cívica e integridade são
valorizados.
Elas
se tornaram ricas porque havia civismo e não o contrário.
O
engajamento cívico parece ser condição
do desenvolvimento, independentemente de estruturas
de governo, estabilidade social, partidos políticos ou ideologia”.
Robert
Putnam
MORAL E UTILIDADE
Os
pragmáticos do sistema, fatalmente, perguntar-se-ão a respeito da
utilidade de nossa ansiedade pelo descompasso entre evolução tecnológica
e evolução moral, apresentado no capítulo anterior.
Terá
a evolução dos padrões de moralidade, aqui subentendidos como atitudes
solidaristas, qualquer conseqüência sobre a economia do planeta
e o conforto material de seus habitantes?
Mesmo
que a resposta fosse negativa, uma revolução moral ainda seria a
única garantia de, a médio prazo, não havermos destruído irreversivelmente
algumas das bases mais fundamentais que sustentam mais ou menos
ordenadamente a civilização que, mal ou bem, temos, inclusive seu
conforto material.
No
entanto, podemos responder positivamente aos pragmáticos: há relação
direta entre padrões comportamentais fundados em moralidade autônoma
e desenvolvimento econômico-social.
O
DESENVOLVIMENTO E SUAS CAUSAS
Tradicionalmente,
acreditamos que o desenvolvimento de uma nação deve-se exclusivamente
a seu manancial de recursos naturais, à sua gestão econômica e a
seu oportunismo histórico para acumular capitais, isto é, à sua
capacidade de explorar as nações mais débeis.
Ainda
que, no contexto da complexidade causal que precisa ser buscada
para analisar fenômenos desse tipo, essas razões devam ser consideradas
todas significativas, são, contudo, insuficientes.
Sobre
esse tema, da complexidade causal, gostaria de recomendar a magnífica
- ainda que não isenta de
algum polido eurocentrismo - obra “A Riqueza e a Pobreza das Nações”,
de David S. Landes. O historiador Landes, da Universidade de Harvard,
passeia com impressionante maestria e erudição pelas múltiplas razões
que levaram algumas nações à glória e outras ao fracasso, sem esquecer
que, “se aprendemos alguma
coisa através da história do desenvolvimento econômico, é que a
cultura é a principal geradora de suas diferenças”.
Quero,
no entanto, retornar às explicações mais vulgarmente arroladas para
essas diferenças, especialmente a última anteriormente citada, o
oportunismo exploratório, visto como o grande responsável por um
mundo de ricos, ao “norte”, e outro de pobres, ao “sul”.
Seria
mais confortável se pudéssemos continuar acreditando nisso. Para
mim, pessoalmente, que, no final dos anos setenta e no início dos
oitenta, enfrentei a polícia nas ruas, carregando faixas e gritando
slogans anti-imperialistas, seria um alívio poder continuar explicando
nosso atraso por esse viés tão transparente e descomplicado. Lamentavelmente,
a realidade não se
acomoda
bem às nossas necessidades de equacionar tudo em fórmulas simples.
É
evidente que os recursos naturais, o tipo de gestão e a ganância
têm papel relevante na definição dos perfis de desenvolvimento e
sub-desenvolvimento (ou, dizendo de uma forma mais contemporânea
e eufemística, na definição do perfil também de um suposto terceiro
grupo: o das economias “emergentes”, como a nossa).
“VITIMISMO”
Contudo,
descoladas de uma visão analítica das culturas em questão, essas
explicações acabam cristalizando-se como ideológicas, pobres, “vitimistas”,
pateticamente auto-comiseradas. Sem o elemento da alavancagem cultural,
hoje tão bem aceito pelas novas esquerdas das Universidades “de
ponta”, originalmente abordado por Max Weber ( sobre quem, no passado,
recaía o desdém do academicismo esquerdista, do marxismo vulgar),
fica difícil compreender que a acumulação do capital em muitos países
se deu bem antes do envolvimento dos mesmos em processos colonizatórios
ou imperialistas. Na verdade, só puderam participar desses processos
porque já haviam enriquecido suficientemente, com base nas “redes
de engajamento cívico” e na “solidariedade” de grupos empreendedores
(solidariedade esta, vista, aqui, obviamente, em uma perspectiva
“interna”, etnocêntrica, não universal).
REDE
CIDADÃ
Em
outras palavras, foi o mutirão das comunidades, o compromisso interpessoal
de seus membros, as regras internalizadas mas também assumidas de
confiança recíproca, enfim, o “capital social”, a grande mola propulsora
do desenvolvimento das nações que, ademais, contavam com um mínimo
de riquezas naturalmente disponíveis.
A
boa administração surgida em conseqüência desse know how de engajamento comunitário e o oportunismo exploratório (presente
na maioria dos casos mas não em todos) apenas consolidaram os processos
de acumulação capitalista.
Os
Estados Unidos da América, por exemplo (e tomo aqui o mais maculado
e polêmico dos exemplos, propositadamente), já havia acumulado riqueza
suficiente antes de emergir da Segunda Grande Guerra como a maior
potência do planeta.
“Em
1870, os Estados Unidos tinham a maior economia do mundo e os melhores
anos ainda estavam por vir. Em 1913, a produção americana era duas
vezes e meia a do Reino Unido ou da Alemanha, quatro vezes a da
França. Medido por pessoa, o PIB americano superava o do Reino Unido
em 20%, o da França em 77% e o da Alemanha em 86%.”
Os
protagonistas disso foram os originalmente pobres colonos calvinistas,
com suas fortes relações de ética interna,
de trabalho, com sua ideologia religiosa que supunha um Deus que
exigia prosperidade, com sua disposição à proteção mútua de interesses
e ao mutirão, com sua responsabilidade empreendedora.
“A
sociedade de pequenos proprietários rurais e trabalhadores relativamente
bem pagos da América era um viveiro de democracia e de iniciativa...
Ao mesmo tempo, as pequenas propriedades encorajavam a auto-suficiência
técnica e o talento para improvisar soluções, a mentalidade do tipo
‘a gente se vira’”.
Evidentemente,
a visão primária e não universalista de direitos daqueles cidadãos
não poupou os índios e os afro-originados, o que é justamente condenável
desde a nossa escala de valores, mas protegeu e multiplicou a força
do próprio grupo e de seus componentes.
PARADIGMA PUTNAM
Debruçado
sobre essa grande questão
de fundo, a razão que eleva ou que impede a elevação de povos com
similares condições objetivas a patamares de bem-estar generalizado,
é que o professor Robert Putnam, também da Universidade de Harvard,
produziu o que gosto de chamar de “Paradigma de Putnam”, um estudo
revolucionário que pode ser entendido, entre outras coisas, como
um olhar denso, sistematizado, fundamentado, sobre a influência
das condições subjetivas na história dos povos.
Subjetivas porque de caráter motivacional mas objetivadas nas estruturas
informais e às vezes formais que
representam o “capital social” (que ele define como “confiança,
normas e cadeias de relações sociais”).
Algo
especialmente interessante no estudo do professor Putnam, é a visão
que nos propõe do papel do Estado. Longe da singeleza de supor como
positiva e possível a simples substituição do Estado pela comunidade
organizada, ele nos provoca a repensar com seriedade a superestimação
do mesmo como substituto da comunidade organizada.
Alcança
fazê-lo sem cair no apelo mágico do neo-liberalismo. Enquanto este
último, na sua versão mais “pura”, propõe o “Estado mínimo”, onde,
na verdade, todos se tornam presas fáceis nas mãos ágeis e sem peias
do poder - menos visível em sua articulação mas nem por isso menos
articulado - que lhe ocupa o vácuo, o “mercado”, Putnam pugna por
uma espécie de “cidadania máxima”. Dizendo de outra forma, deixa
o capital econômico de ser o grande mediador e regulador mistificado
das relações sociais e passa o capital social a sê-lo, como expressão,
capilarizada no cotidiano, das reservas morais da comunidade (incluindo
em sua ação regulatória também as questões relativas ao mesmo capital
econômico); deixa o Estado de ser, como na proposição clássica de
Hobbes, o Leviatã, o terceiro que coage “imparcialmente” os conflitos
sociais e, para eles, encontra as melhores soluções, e passa a própria
comunidade a mediar seus interesses conflitantes com base no atingimento
das vantagens recíprocas da confiança culturalmente enraizada.
O
texto lúcido do professor, leitura obrigatória para quem procura
entender a relação entre educar para a autonomia moral e intelectual
e o desenvolvimento nacional, desnuda o caráter ideológico que inspira
a hipertrofia do papel estatal:
“O
Estado possibilita aos seus cidadãos fazerem aquilo que não podem
fazer por conta própria - confiarem uns nos outros.” “Infelizmente,
a solução é demasiado formal.” “Em suma, se o Estado tem força coercitiva,
então os que o dirigem usarão essa força em proveito próprio, a
expensas do resto da sociedade.”
Ao
invés disso, aparecem o desenvolvimento e a competência gestora
como resultados de “regras de reciprocidade” e “sistemas de participação
cívica”.
“As
regras são incutidas e sustentadas tanto por meio de condicionamento
e socialização (por exemplo, educação cívica), quanto por meio de
sanções.”
A
mais importante dessas regras é a reciprocidade. Existem dois tipos,
chamados de reciprocidade ‘balanceada’ (ou ‘específica’) e reciprocidade
‘generalizada’ (ou ‘difusa’). A primeira diz respeito à permuta
simultânea de itens de igual valor; por exemplo, quando colegas
de trabalho trocam seus dias de folga ou quando políticos combinam
apoiar-se mutuamente. A reciprocidade generalizada diz respeito
a uma contínua relação de troca que a qualquer momento apresenta
desequilíbrio ou falta de correspondência, mas que supõe expectativas
mútuas de que um favor concedido hoje venha a ser retribuído no
futuro. A amizade, por exemplo (...)
HORIZONTALIDADE
Os
sistemas de participação cívica caracterizam-se por uma articulação
social, visando objetivos particulares e comunitários, de caráter
intensamente horizontal
(contrariamente aos sistemas de relações altamente assimétricos
e verticalizados das instituições seculares em geral). A maioria
das Organizações Não Governamentais são bons exemplos desses sistemas
horizontalizados, mas não apenas elas. Também as grandes mobilizações
populares, os clubes, os grêmios, as cooperativas e similares se
perfilam nos sistemas de participação cívica. Esses sistemas são
fundamentais para o incremento do capital social porque:
-
aumentam
a interação e desnudam mais facilmente os transgressores sociais,
maximizando os custos e riscos dos mesmos;
-
promovem
fortemente regras de reciprocidade;
-
socializam
mais facilmente a reputação e credibilidade de seus integrantes,
fomentando os vínculos de confiança;
-
criam
modelos de eficácia a partir do sucesso alcançado por soluções
informalmente encontradas.
VERTICALIDADE
E CLIENTELISMO
Putnam
faz, igualmente, uma análise dos sistemas verticais, muito importante
para compreendermos as culturas de passividade filial de países
como o Brasil, onde se costuma, ingenuamente, esperar das elites
e do Estado a solução para todos os problemas e onde, em conseqüência,
os educadores tendem a ignorar que uma tarefa primordial sua é o
fomento ao capital social.
“Os
cidadãos das comunidades cívicas descobrem em sua história exemplos
de relações horizontais bem-sucedidas, enquanto os cidadãos das
regiões menos cívicas encontram, quando muito, exemplos de suplicação
vertical.”
“As
relações clientelistas, por exemplo, envolvem permuta interpessoal
e obrigações recíprocas, mas a permuta é vertical e as obrigações
assimétricas.” “Dois clientes do mesmo patrono, sem vínculos diretos,
nada têm que hipotecar um ao outro”.
O
vínculo clientelista, tão presente à história brasileira, é o maior
estimulador do oportunismo, “seja
por parte do patrono (exploração), seja por parte do cliente (omissão)”.
PARTICIPAÇÃO,
GOVERNO E COMPETÊNCIA
É
muito evidente, a partir do que refletimos acima, que há relação
direta entre participação cívica e bom desempenho do governo e da
economia. Daí concluir-se que a alavancagem mais poderosa para o
desenvolvimento de um país como o nosso - plenamente viável a médio
prazo, uma vez que somos fortemente beneficiados por recursos
naturais - seja a constituição de “bancos de capital social”,
a tecitura de redes de ação cidadã, a edificação do voluntariado
organizado.
“Arregaçar
as mangas” e fazermos nossa parte como cidadãos, individualmente
mas também articuladamente, é indispensável para superarmos o desnecessário
atraso, que finca suas raízes em inócuas expectativas, eternos queixumes,
responsabilizações de outrem, vitimizações acomodadas.
É
claro que precisamos cobrar do Estado que ele exerça competentemente
o seu papel. Falta-nos, apenas, descobrir que fazemos o melhor dos
lobbys quando cumprimos
o nosso. Não se dispensa as formas tradicionais de pressão. Elas,
no entanto, não garantiram, em quase quinhentos anos, qualquer significativo
avanço no campo do bem-estar popular e da justiça distributiva,
critérios hodiernos para considerarmos desenvolvida uma nação.
É
preciso acrescentarmos ao patrimônio das lutas sociais brasileiras
a convicção de que, na horizontalidade,
se exerce poder real e se
obriga o poder formal.
Paulo
Freire alerta-nos que “é absolutamente
indispensável que o povo todo assuma, em níveis diferentes, mas
todos importantes, a tarefa de refazer a sua sociedade, refazendo-se
a si mesmo também. Sem esta assunção da tarefa maior - e de si mesmo
na assunção da tarefa - o povo abandonará a pouco e pouco a sua
participação na feitura da História. Deixará, assim, de estar presente
nela e passará a ser simplesmente nela representado.”
EDUCAÇÃO,
DESENVOLVIMENTO E ALIENAÇÃO
Não
se chega a esse caminho sem passar pela educação. Uma boa avaliação
de nosso desempenho como educadores deveria, necessariamente, debruçar-se
sobre a constatação de estarmos
ou não contribuindo para o desenvolvimento nacional através da formação
de quadros multiplicadores do exercício direto do poder cidadão.
Dizendo
de outra forma: há algo errado, muito errado, se nossos filhos e
alunos estão saindo de nossos lares e escolas descomprometidos com
a comunidade, alienados, voltados exclusivamente a objetivos identificados
com o consumo, desinteressados de participar de ações voluntárias.
Se
esse fenômeno ocorre, na dimensão que lamento imaginar, denuncia
a grande confusão vivenciada pelo que denominamos “educação”: mera
distribuição de informações ao invés da produção de conhecimentos;
repasse e internalização de falsas necessidades ao invés da formação
da autonomia moral; auto-centração competitiva e egóica ao invés
de interação comunitária; discurso crítico-analítico, quando muito,
substituindo e excluindo a intervenção política.
Lamentavelmente,
nós, adultos, só podemos oferecer o que somos. Se não participarmos,
será difícil esperar que os jovens participem.
Landes, David S. A Riqueza e a Pobreza das Nações, Editora Campus,1998.
Landes, David S. A Riqueza
e a Pobreza das Nações, Editora Campus,1998.
Putnam, Robert. Comunidade
e Democracia, Fundação Getúlio Vargas Editora, Rio de Janeiro,
1996.
Putnam, Robert. Comunidade e Democracia, Fundação Getúlio Vargas Editora, Rio de Janeiro,
1996.
Putnam, Robert. Comunidade e Democracia, Fundação Getúlio Vargas
Editora, Rio de Janeiro, 1996.
Putnam, Robert. Comunidade e Democracia, Fundação Getúlio Vargas
Editora, Rio de Janeiro, 1996.
Freire, Paulo. A Importância do Ato de Ler, Cortez Editora, São Paulo, 1991.