Polícia e Direitos Humanos:
do Antagonismo ao Protagonismo
Guia para membros de ONGs que
desejam criar programas
ARREGAÇANDO AS MANGAS:
Você está convicto , a conjuntura lhe é favorável,
você tem a estrutura suficiente, você sabe suficientemente o que e como
fazer, você procurou despir-se de seus preconceitos e parcialidades e
chegou lá. Está pronto para seu projeto educacional de parceria com a
polícia. O que mais é preciso lembrar?
I - CERTIFIQUE-SE
DO APOIO DOS SUPERIORES:
1o. Lembre-se que a polícia é uma instituição
bastante hierarquizada (mesmo quando
se trata de Polícia Civil). Se você dispersar seus esforços investindo
exclusivamente a partir da base (por exemplo, dando algumas conferências
em turmas da escola de polícia), tenha claro que este investimento poderá
ter repercussão positiva mas sempre muito limitada, se os superiores não
estiverem integrados ao processo.
Por maior boa vontade que tenha o agente policial
(e ele é muito importante, porque
vai privar do contato direto com a população) , é o delegado,
em um primeiro momento, ou o chefe de polícia, em última instância, que
definirão as práticas genéricas a serem adotadas pela instituição. Procure,
portanto, ganhar a adesão das chefias, se desejar um programa significativo
de qualificação do comportamento policial.
2o. Isso é mais verdade ainda, à medida
em que se trata de Polícia Militar (ou de instituições militarizadas,
de uma maneira geral). Se você, neste
caso, investir seu tempo trabalhando em academias para cadetes, corre
o risco de absoluta ineficácia em termos institucionais, uma vez que são
os oficiais que ordenam e dão o tom da atividade policial militar.
Desconfie da
vontade política de seu Governo, se ele está disposto a abrir para você
as portas das academias de cadetes, mas não as das academias para oficiais.
II - ESTABELEÇA-SE
NO PATAMAR DA SISTEMÁTICA:
1o. Atividades
eventuais podem ser grandiosas, entusiasmantes, mas tomam tempo, gastam
energias e deixam muito pouco em troca.
Opte sempre por
programas sistemáticos, de caráter permenente.
Conferências soltas, eventos festivos, cerimônias
formais, são boas para a mídia, mas cumprem eficientemente sua função
apenas quando coroam processos bem enraizados na constância do cotidiano.
Assim, procure garantir espaço para os direitos
humanos a nível curricular, ou pelo menos a nível dos conteúdos programáticos
das diversas disciplinas (como, por exemplo, em "Direitos da Criança
e do Adolescente", ou em "Direito Constitucional", ou em
"Relações Humanas").
2o. O ideal é que possa haver uma disciplina
específica na Academia de Polícia, com carga horária que não seja ridícula.
Atente para o fato de que o discurso - correto quando se trata de ensino
de 1o. e 2o. graus - que propõe "direitos humanos perpassando todo
o curriculum" (portanto, evitando uma disciplina específica que poderia
vir a tornar-se odiosa para o aluno), não é válido para a polícia.
Devido ao tipo de grade curricular da maioria das academias de polícia
(muito técnica e voltada para aspectos iminentemente práticos), seria
perigosamente ilusório falar-se em Direitos Humanos perpassando todo o
currículo. Em outras palavras, não levaria a nada, não significaria nada,
seria um inóquo "faz de conta". Como inserir significativamente
(sem forçar a barra), direitos humanos em "técnicas de tiro",
por exemplo? Neste caso, a aplicação mecânica do jargão pedagógico representaria
um perigo: a "maquiagem " da realidade.
É preciso disciplina específica, carga horária razoável
estipulada, definição de conteúdos programáticos e definição do perfil
do pessoal docente (para evitar, por exemplo, o academicismo frio, ou
uma visão tacanha do tema, ou o boicote, que seria, sob o título "Direitos
Humanos", realizar um trabalho contrário).
Isso pode conseguir-se através de uma lei, como fizemos, ou de acordos
diretos com a polícia. Se for através de lei, não se esqueça de que os acordos não são dispensáveis.
Você vai lograr muito pouco resultado se tentar apenas obrigar a polícia
a cumprir a lei.
Uma questão que não pode ser esquecida, nesse campo,
é a necessidade de avaliar, junto aos parceiros policiais, qual o melhor
título para a referida disciplina. Lembre-se de que o mais importante
é o conteúdo e as metodologias a serem trabalhados. O ideal é poder instituir
abertamente um espaço denominado "Direitos Humanos". As vezes,
no entanto, isto pode causar tamanha polêmica que seria melhor começar
com "Direitos da Cidadania", por exemplo, ou aproveitar áreas
afins, como "Direitos da Criança e do Adolescente", para conquistar
terreno.
III - DEFINA SUAS
ESTRATÉGIAS PRIORITÁRIAS:
1o. Se você centrar seu trabalho, por
exemplo, nos policiais da velha guarda, da chamada "linha de frente",
em países com as características do nosso, tem que estar preparado para
um processo muito mais lento. Ainda que você vá encontrar aí gente excelente, recorde-se
que também vai encontrar muita gente com vícios antigos, marcada pela
época da repressão política, possivelmente até alguns ex (ou, dependendo da complexidade
do lugar onde você está atuando, atuais) torturadores ou pessoas
envolvidas com corrupção. Repito: alguns serão educados, humanos, íntegros,
mas é de supor, realisticamente, que muitos outros não. Então, será um
trabalho muito mais duro. Os esteriótipos contra as Organizações de Direitos
Humanos estarão mais fortemente enraizados e você terá mais dificuldade
em livrar-se de seus próprios esteriótipos relativos à polícia.
2o. Prefira investir nas novas gerações
de policiais. Ainda não estão marcadas
pelas limitações encontradas no difícil dia-a-dia policial (exceto se
estiverem retornando à Academia mas, mesmo nestes casos, a retomada
sistemática dos estudos pode significar uma chance expressiva de reciclagem)
e não têm compromissos com o passado. Além de tudo são, em geral, muito
jovens e já fruto de uma sociedade democratizada (sofrendo, portanto,
de um grau muito menor de paranóia anticomunista).
3o. Isso não significa que os policiais
da "velha guarda" devam ser abandonados. Apenas, neste caso,
é necessário atuar mais seletivamente. Priorize os setores intelectualizados
e abertos, em outras palavras, as lideranças modernas e esclarecidas.
Aqui sim, você poderá organizar eventos específicos
formativos de líderes, como seminários e cursos onde participem como conferencistas
homens e mulheres de autoridade, credibilidade, "saber reconhecido"
e aceitabilidade no meio policial.
4o. Em se tratando de Polícia Militar
e respeitando critérios anteriormente sugeridos, invista seu tempo prioritariamente nas
academias formadoras de jovens oficiais
IV - MANTENHA UM
MÍNIMO DE CONTATO DIRETO COM OS EDUCANDOS:
Se você se coloca exclusivamente na perspectiva
de um consultor das autoridades, sem qualquer contato com os policiais
acadêmicos, você corre dois riscos: o primeiro é, por falta de retro-alimentação
e de avaliação dos processos de trabalho por parte da clientela direta,
ser um mau consultor, com uma visão de gabinete.
O segundo risco de não acompanhar diretamente o
processo educacional é receber as informações todas filtradas, não saber
exatamente o que está acontecendo, não ter qualquer garantia de seriedade , de que vale a pena você
estar apostando o nome e as energias de sua Organização.
V - NÃO QUEIRA
SUBSTITUIR A POLÍCIA:
Apesar do que
foi dito no ítem anterior, não pense que você pode substituir a polícia
em suas tarefas educacionais junto aos seus educandos policiais. Estar
fortemente presente não significa assumir um lugar e uma tarefa que já
têm os seus próprios responsáveis.
Você deve evitar a tentação de que sua Organização
tome para sí a responsabilidade pelas aulas. Se ela fizer isto, estará
descompromissando as autoridades policiais e educacionais da tarefa que,
passará a ser um apêndice, um setor estanque na academia de polícia e
esta não vai incorporar a nova prática como algo seu. Você e sua Organização
deverão estar muito presentes no assessoramento às autoridades educacionais
e aos professores responsáveis pela disciplina ou pelas disciplinas encarregadas
de trabalhar os conteúdos em questão. Mas procure evitar confundir-se
e assumir esses papéis. Você e sua ONG podem e devem dar algumas aulas,
coordenar alguns seminários, fornecer material didático-pedagógico, desde
que não roubem a função e a responsabilidade central da parte de quem
elas são devidas.
VI - NÃO ASSUMA
TOM PROFESSORAL:
Não seja pretencioso.
Não pense que, por melhor que seja o seu trabalho e o de sua ONG, vocês
chegaram aos "conhecimentos finais" sobre Direitos Humanos.
Não se vejam como mestres absolutos da polícia nesse saber. Também aí
valem os princípios da "Pedagogia do Oprimido", que você utiliza
com tanta propriedade nos demais campos educacionais. Lembre-se de que os alunos policiais
são também cidadãos trabalhadores, como outros cidadãos, que sofrem na
carne as mazelas sociais e que carregam consigo ricos elementos de sabedoria.
Esteja disposto a ouví-los, a dialogar com eles, a aprender e não só a
ensinar.
VII - EVITE O ACADEMICISMO:
"Direitos
Humanos" pode ser um conteúdo dinânico, vivo, questionador, ou uma
mera coleção de dados históricos e conceitos.
Tenha claro que se você abordá-los na segunda perspectiva,
os resultados serão contraproducentes.
Os alunos não vão se motivar e será apenas mais uma odiosa matéria
a rechear o currículo.
Os erros mais
cometidos nesse campo são:
1o. abordar os Direitos Humanos a partir
de uma óptica jurídica, como conjunto de obrigações formais, legais, a
serem conhecidas e respeitadas pelo policial. É claro que é também isto, mas sistematizar à partir daí
o processo de ensino e de aprendizagem seria um clamoroso equívoco metodológico;
2o. fazer uma leitura historicista
dos Direitos Humanos. Centrar a abordagem
na linha de tempo, avanços e retrocessos históricos de Cartas e Constituições.
Evidentemente é também importante falar destas questões, fazer uma retrospectiva
histórica. No entanto, mister é cuidar para que o estudo dos Direitos
Humanos não acabe como um enfadonho decorar de datas, fases e personagens;
3o. perder-se na metafísica. Fundamentação filosófica é imprescindível, desde que não
transforme a aula de Direitos Humanos em espaço para o exercício exclusivo
de reflexões descoladas do real, da praticidade para a qual está voltada
a atividade policial;
Os policiais, por dever de ofício, mesmo quando
intelectualizados, são pessoas positivamente muito objetivas. Ajude seus
professores para que não encaminhem as aulas de forma tediosa e sonolenta.
VIII - PLANEJE
JUNTO A EXECUÇÃO DOS PROGRAMAS:
Tudo isso supõe
que você e sua ONG devem se aproximar dos responsáveis pelo planejamento
dos conteúdos programáticos e da metodologia a ser utilizada. É uma das
tarefas de mais relevante importância no processo de parceria.
Particularmente, troque opiniões com os professores da disciplina ou disciplinas
afins. Ouça-os, mas também procure garantir, junto às autoridades pedagógicas
e policiais, o seu direito de co-planejar, de sugerir, de ser ouvido,
sem o que a parceria é inócua. Se os professores estiverem fechados a
isso, não seja tímido: comunique imediatamente às autoridades pedagógicas
e aos policiais o fato. Não há sentido em manter uma parceria que não
chega a termo. Não suponha, por esta afirmação, que estejamos sugerindo
um relacionamento autoritário ou beligerante com os professores. Mais
uma vez, use o bom senso.
Lembre-se apenas
que, se sua ONG fez um acordo de parceria educacional, ela tem o direito
legítimo de intervir como parceira.
IX - TENTE INFLUIR
PARA QUE OS PROGRAMAS SE CENTREM NA SENSIBILIZAÇÃO E NA ELABORAÇÃO DAS
PAUTAS DE ATUAÇÃO POLICIAL:
Se é necessário
evitar o academicismo, então em que se vão constituir as aulas?
1o. É claro, primeiramente, que não
se podem desprezar os conteúdos acadêmicos. Contudo, é importante saber
que estes devem estar subordinadas ao objetivo central dos programas,
ou seja, a sensibilização dos policiais ao social, do qual fazem parte,
e a elaboração de pautas de atuação eticamente corretas.
2o. A catarse aqui é importante. Deixar
falar. Motivar a falar. Ouvir com abertura e paciência. Dialogar (que significa sempre saber colocar-se na posição do interlocutor).
3o. A
seguir, ponderar, questionar, apresentar dados, submeter as questões polêmicas
ao crivo tranqüilo e racional do instrumental científico.
4o. Então concluir, em exercício de
análise coletiva. Estabelecer
critérios. Fazer as necessárias "pontes" com a realidade concreta.
Provocar o senso crítico e a capacidade de elaboração e reelaboração pessoal.
Os conteúdos acadêmicos, aqui, são apenas referenciais para o livre pensar.
Sinteticamente, o que se deseja é que o policial
repense a sociedade e, nela, a missão daqueles que zelam muito especialmente
pela segurança pública. Isto só se alcança com uma metodologia adequada.
Em outras palavras, não se logra uma eficiente aprendizagem
de Direitos Humanos fora de um contexto metodológico de respeito aos direitos
humanos. Você e sua ONG podem colaborar com a Academia de Polícia,
ou com os diversos eventos formativos planejados pelas autoridades pedagógico-policiais,
no sentido de sugerir práticas e métodos que preservem sempre essas condições
X - FUNDAMENTE
OS PROGRAMAS EM UMA VISÃO POSITIVA:
Ao invés de investir exclusivamente na análise das
práticas indesejadas, afirme a dignidade da função policial, estimulando
os aspectos de proteção e serviço à cidadania que você acha fundamentais:
1o. Dizendo de outra forma: não se
fixe no negativo. Fale do que é desejável
com maior ênfase e os próprios policiais concluirão o que devem evitar.
Desta maneira você contorna a antidiplomática postura de um juiz severo
e, apontando positivamente o caminho, abre espaço para que nada deixe
de ser dito. Faz, assim, com que o próprio policial exerça uma atividade
autocrítica (o que, convenhamos, é mais eficaz no estabelecimento de critérios
comportamentais do que os parâmetros estabelecidos por observações exteriores).
2o. Ainda assim, quando lhe for dado
espaço e sentir que há intimidade suficiente, não se esquive de comentar
genericamente as atitudes eticamente condenáveis do ponto de vista dos
direitos humanos. Evite apenas duas
coisas: fazer disto a sua plataforma central e cair no casuísmo (citar
casos concretos de violações, de natureza polêmica, para um público que
não tem poder imediato sobre elas soará como provocação e não trará nenhuma
conseqüência benéfica para os referidos casos ou para seu trabalho educacional).
No entanto, se for do agrado dos policiais comentar casos concretos, deixe-os
a vontade para fazê-lo, mantendo uma postura discreta e trazendo seus próprios juízos para
o campo da generalização. Lembre-se de que outras pessoas de sua
Organização estarão cuidando do setor investigativo e das denúncias de
violações, liberando-o do constrangimento pessoal que poderia gerar um
cruzamento de papéis (além do bloqueio que isso inevitavelmente significaria
no exercício da tarefa educacional).
3o. Abra mão da ilusão de converter
as pessoas à base de preleções. Não
esqueça que a adesão a uma escala de valores humanitários só pode ser
feita na perspectiva da descoberta pessoal. Forçar a barra, em educação,
não leva a lugar nenhum.
Você deve ser um facilitador do processo, alguém
que deflagra uma seqüência coerente de questionamentos construtivos, um
promotor da revisitação de todas as concepções e práticas. Nunca alguém
para dar respostas fáceis e rápidas, mesmo que acertadas.
XI - PARTICIPE
DOS MOMENTOS SIGNIFICATIVOS:
1o. Seja afetivo nas suas relações
com os educadores e educandos policiais. Esteja presente nos momentos simbolicamente significativos
de sua vida acadêmica e policial. Participe das aulas inaugurais, das
datas festivas, das formaturas, dos atos de nomeação para cargos e funções.
Seus novos companheiros vão perceber que você é gente, que tem disposição
fraterna, que se importa com eles e seu testemunho pessoal vai contar
pontos na forma como acolherão os Direitos Humanos.
2o. Não confunda, no entanto, ser afetivo
com perder a objetividade. Misturar,
por exemplo, a sua vida amorosa (você pode encontrar algumas pessoas encantadoras!)
com o seu trabalho seria, no caso, um grave equívoco. Seja humanamente comprometido e afetuoso,
mas também rigorosamente profissional.
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