| 
     Polícia e Direitos Humanos: 
        do Antagonismo ao Protagonismo
 Guia para membros de ONGs que 
        desejam criar programas
   OS PREÂMBULOS:      I 
        - PARA COMEÇAR...   1. Você 
        e sua ONG estão mesmo convencidos? Antes de iniciar qualquer movimento, certifique-se 
        de já haver respondido às seguintes perguntas: Você tem mesmo certeza 
        de que deseja trabalhar com a polícia? Está convicto da importância dessa 
        ação no curso da transformação social? Percebe o grande valor da polícia 
        como um dos vetores potenciais da promoção dos direitos humanos? Analisou 
        com profundidade sua fé no investimento que se está propondo fazer? Diante 
        disso, está disposto  a correr os riscos inerentes a 
        um processo tão novo e delicado? (Se está morrendo de medo de " envolver-se 
        com essa gente ", de " sujar as mãos ", de " pôr a 
        perder uma imagem pública de Organização cuidadosamente construída como 
        de    oposição ", 
        desista enquanto é tempo!).   Caso esteja minimamente seguro, adiante!  
           2. A conjuntura 
        permite?     a. Pode ser que 
        sua ONG esteja cheia de boa vontade, mas não seus governantes.   Seu país, ou a estrutura de seu Estado, é suficientemente 
        democrática para inaugurar um processo desse tipo? Você não vai tentar 
        pedir a raposas convictas que não comam as galinhas, não é mesmo? Não 
        tente! Você é uma das galinhas! Em caso de sérias dúvidas, desmarque sua 
        entrevista com o chefe de polícia (enquanto pode!).   b. No caso de seu Governo ser suficientemente democrático, 
        mesmo que seja apenas uma democracia nascente, vale a pena tentar. Mas 
        só depois de fazer-se a seguinte pergunta:   As autoridades 
        - o Governo em questão -, além de democráticas, são suficientemente sérias? 
        (Cuidado! Não seja purista! Você não deve procurar anjos na política. 
        Será raro     encontrá-los. 
        Contradições haverá sempre. O problema é julgar se estão em um nível suportável). 
          Se você avistou, em sua resposta, um Governo muito 
        incompetente (todos são pelo menos um pouco), a tal nível que o trabalho 
        com a polícia vai ficar  apenas 
        em declarações de intenções, desista! Você vai perder seu precioso tempo. 
        A não ser que você tenha recursos necessários para não depender desse 
        Governo, fazer sozinho, aproveitar a incompetência dele para ocupar espaços. 
        Então faça!   c. Também pode 
        ser que você conclua que seu Governo democrático é muito ladino (a maioria é pelo menos um pouco!). Se só estão querendo 
        usá-lo para limpar a própria imagem, se não querem realmente que o trabalho 
        aconteça, se não desejam lhe dar qualquer espaço (por exemplo, só " 
        precisam " da sua assessoria, mas querem mantê-lo longe dos seus 
        policiais), caia fora! Parta do pressuposto de que, a não ser que se enquadrem 
        no exemplo anterior, eles são        mais 
        " espertos ", mais " experientes ", mais " tramposos 
        " do que você na " arte " de usar, abusar e enganar. Não 
        embarque nesta de que você vai conseguir passar a perna nos que querem 
        passar-lhe a perna... Espere um tempo mais propício e gente mais confiável. 
          d. O quarto elemento 
        conjuntural que você deve considerar é: sua ONG tem unidade, estrutura  
        e força para tanto? (Cuidado 
        mais uma vez! Não caia de novo na armadilha perfeccionista! Nenhuma ONG 
        saberá fazer magistralmente, de forma espontânea, aquilo que ainda não 
        experimentou fazer. Evite o ataque imobilizante de modéstia. Seja apenas 
        realista).   Se sua Organização está muito dividida, não tente 
        começar assim mesmo (lembre-se, no entanto, de que, diante de uma assustadora 
        novidade, todos ficarão pelo menos um pouco divididos e inseguros). Se, 
        por exemplo, há frações radicais expressivas que consideram este tipo 
        de trabalho como " lançar pérolas aos porcos ", espere que a 
        discussão amadureça (ou procure um grupo de gente mais ponderada). 
          e. Por outro 
        lado, pode haver convergência suficiente de objetivos e não haver  estrutura suficiente. Exemplos:    - todos 
        concordam plenamente, mas a Organização está vivendo uma crise de membresia 
        e esse " todos " se resume a apenas " três ". Os três 
        já estão superocupados e mal conseguem dar conta do recado.  
         Neste caso, esperem tempos mais prósperos... 
           - o 
        Programa vai exigir alguns recursos materiais. O Governo em questão não 
        dispõe de nada (cuidado com a "enrolação"), tampouco a sua ONG. 
        Antes de começar, busquem fontes de financiamento para "aquecer" 
        minimamente as atividades (não significa que vocês devam simplesmente 
        " inundar " a polícia com recursos didático-materiais. Não caiam 
        no extremo oposto).   f. Além de tudo 
        isso, lembre-se do óbvio: vocês precisam ter alguma força política para 
        " chegar lá ". Um mínimo de credibilidade, alguns recursos humanos qualificados, 
        conhecimentos entre as autoridades ou pelo menos possibilidade de serem 
        recebidos por elas para discutirem o Projeto.                 
           
            3. Vocês 
        possuem algum planejamento estratégico? 
            Já dialogaram suficientemente para analisar as possibilidades? 
           Já pensaram os passos que precisariam dar para deflagrar 
        o processo?    Já elencaram os recursos humanos e materiais de 
        que dispõem?   Já trocaram idéias com quem tenha alguma experiência 
        e conhecimento na área?   Têm clareza de seus objetivos?   Não vão " fazendo primeiro para planejar depois 
        ". Vocês iriam se surpreender com a complexidade de tentar trabalhar 
        com a polícia sem ter uma direção segura. Também não fiquem só planejando, 
        eternamente. Percam o medo de dar os primeiros passos. Planejamento e 
        ação alimentam-se reciprocamente.    Se chegaram bem até aqui, vamos adiante... 
          
          II - DISPA-SE DOS 
        PRECONCEITOS:   1o. Você tem uma história. Sua razão 
        pode estar convencida da importância de trabalhar com a polícia, mas suas 
        emoções o sabotam. Poucos escapam de esteriótipos muito internalizados. 
        Por exemplo: você começa a trabalhar 
        com a polícia e, de repente, é apresentado a um novo companheiro policial. 
        Ele é jovial e educado. Sorri e parece "de bem com a vida". 
        Não lembra "uma montanha" e nem usa aqueles indisfarçáveis óculos 
        escuros. Você não resiste ao cumprimentá-lo e diz: "Eu jamais poderia 
        supor que você fosse um policial! Você não tem realmente jeito". 
          Que desastre! Seus esteriótipos preconceituosos 
        internalizados traindo todos os seus esforços para ser aberto e cordial. 
        Você tem "razão para pensar assim"? Pois, se quer trabalhar 
        com eles, comece a pensar diferente.         
           Como em todas as categorias, entre os policiais 
        há todo o tipo de gente: há os mal educados, os carrancudos, os estúpidos, 
        os parvos, os violentos, os truculentos, os patéticos, mas também os educados, 
        os simpáticos, os intelectualizados, os pacíficos, os ponderados, os realizados, 
        os "gentlemans", as elegantes senhoras. Seguramente, em uma 
        ditadura - abjeta por definição - estes últimos não têm a menor chance. 
        Mas a ditadura acabou e agora trata-se de construir a democracia, recluindo 
        à sua insignificância os primeiros e estimulando o desenvolvimento dos 
        modelos positivos.   2o. Lembre-se de que os policiais também 
        têm os seus esteriótipos de gente que trabalha com direitos humanos. 
        Na maior  parte deles internalizaram-se 
        clichês de que somos gente "sectária, chata, parcial, histérica, 
        injusta, oportunista, partidarista, ideológica, neurótica, falsa ou ingênua". 
        Certamente não nos sentimos com estes rótulos e não gostamos que nos vejam 
        assim. A melhor maneira de nos provarmos diferentes é sendo coerentes. 
        Superando nossos próprios preconceitos, podemos dar uma demonstração do 
        quanto desejamos ser razoáveis, interessantes, tranqüilos, justos, honestos, 
        humanamente confiáveis e idealistas (ainda que isto não seja fácil). 
            O preconceito, 
        seja ele do tipo que for, é um atestado de insegurança, de autoritarismo, de absolutismo intelectual, enquadrando 
        automaticamente em categorias classificatórias e pejorativas tudo aquilo 
        que represente diferença. No fundo, viver em democracia está na proporção 
        direta do quanto somos pessoal e coletivamente capazes   de superar os nossos medos. 
          Em meu trabalho com policiais tenho conhecido gente 
        realmente encantadora, humana e solidária, com quem pude aprender sábias 
        lições. Certamente, se quisesse ver em todos apenas o reflexo dos homens 
        que me interrogavam na Rua Paraná, nunca poderia ter descoberto esses 
        novos e enriquecedores amigos e muito menos realizado com eles qualquer 
        trabalho. É claro que, inicialmente, não foi fácil perceber o outro lado. 
        Mas posso dizer que tem valido a pena...   III - SUPERANDO 
        AS PARCIALIDADES:   1o. Pelo perfil profissionalizado que 
        uma sociedade democrática deve exigir de sua polícia, é evidente que suas 
        pretensões de trabalho com ela não podem ter qualquer futuro se você não 
        abrir mão de seus ímpetos proselitistas. Como já disse, você tem uma história. Pode simpatizar com 
        um determinado Partido, com certo tipo de ideologia, com toda sorte de 
        credos ou propostas filosóficas. Isso é legítimo. O que você não pode 
        é fazer o seu trabalho educacional na perspectiva de ganhar adeptos para 
        o seu ideário particular.   As  Organizações 
        e os militantes de Direitos Humanos que sossobram em suas convicções conforme 
        as conveniências do sistema que apóiam perdem credibilidade não somente 
        perante a polícia, mas perante a sociedade como um todo. Não defenda os 
        direitos humanos apenas quando para o capitalismo 
        ou para o socialismo. Você 
        daria provas de que é oportunista, parcial e, portanto, pouco confiável. 
        Lembre-se que essa moralidade de "fins que justificam os meios" 
        sempre foi a moralidade dos inimigos dos Direitos Humanos. Se queremos 
        diferenciar-nos, ser coerentes, impressionar e mover pelo exemplo, não 
        podemos adaptar a verdade a nossos desejos, só porque cremos que "estamos 
        do lado certo".      Se, por sua postura, você consegue remover esse 
        tipo de carimbo que, em geral, nos é dado (ou nós mesmos nos demos, no 
        passado) pela polícia, você superou o primeiro grande obstáculo... 
          2o. Um outro tipo de parcialidade que 
        você precisa superar, para uma parceria bem sucedída com a polícia, é 
        uma visão maniqueísta/paternalista em relação a crime e penalidade. 
          Nós, militantes de Direitos Humanos, somos constantemente 
        tentados a fazer do discurso social uma panacéia. É claro que as razões 
        mais profundas dos altos índices de criminalidade no Terceiro Mundo (e 
        mesmo em alguns países desenvolvidos) radicam-se na miséria social, produto 
        da fome e da ignorância engendradas por sistemas de exploração. No entanto, 
        discursar pela obviedade não soluciona os problemas de segurança social 
        a curto e médio prazos. Precisamos tomar cuidado para que a nossa bem 
        intencionada retórica não soe aos ouvidos menos politizados (ou menos 
        ideológicos) da sociedade como uma defesa da impunidade, do "banditismo", 
        da tolerância para com a explosão da violência, "já que ela tão somente 
        existe como um          
        subproduto da exploração e da miséria". Esta seria uma perigosa 
        complacência social-paternalista para com a delinqüência que, ao final 
        das contas, subtrai do cidadão honesto e trabalhador os seus direitos humanos. Às vezes, querendo atacar os "colarinhos 
        brancos", o "capitalismo selvagem", esquecemos de defender 
        a imensa maioria de gente correta que, afinal, acaba sendo duplamente 
        lesada: pela exploração econômica e pela insegurança pública. Por esta 
        razão, tantas vezes ouvimos, em tom de cobrança, daqueles que não conseguem 
        compreender o que fazemos: "por que vocês não defendem também os 
        direitos das vítimas?". Sabemos que isto não é verdade. Sabemos que 
        nossa luta é para que o Estado não aja de forma covardemente criminosa 
        com os criminosos. Sabemos que nosso zelo é no sentido de que as autoridades 
        não dêem mau exemplo. Sabemos que desejamos também defender os direitos 
        das "vítimas das vítimas"  (de um sistema social injusto). 
        Mas lembramos de reforçar estes aspectos em nosso discurso? Se não o fazemos 
        eficientemente, como esperar que o cidadão comum não se revolte com "essa 
        gente dos Direitos Humanos"?. Como esperar que os policiais, encarregados 
        por definição de ofício do combate à criminalidade, possam compreender 
        o que lhes parece cumplicidade? Sem abdicar do princípio da intransigente 
        defesa dos direitos humanos de todos, inclusive dos que cometeram crimes, 
        precisamos abrigar melhor em nosso discurso os totalmente indefesos, os 
        vitimados extremos, os polivitimados (pela violência dos ricos e pela 
        violência das vítimas) que, ao cabo, representam a imensa maioria. 
          Então, o policial precisa deixar de ser visto, sem 
        exceções, como o malvado perseguidor dos "pobres e explorados que 
        se revoltam e revidam contra a sociedade má".   O policial tem o dever de aplicar a lei e de reprimir 
        com energia a sua transgressão, em defesa do conjunto da sociedade. Para 
        fazer isto, evidentemente, ele não pode confundir-se com o bandido, não 
        pode fustigar preconceituosa e arrogantemente as pessoas simples, por 
        preconceito social, não pode ter "complexo de Zorro" e achar 
        que possui o direito de fazer justiça com as próprias mãos. Se agir dessa 
        forma vamos denunciá-lo, combatê-lo, exigir que seja removido de seu posto 
        e punido. Mas não podemos crucificá-lo quando age na perspectiva para 
        a qual foi instituído, dentro das parâmetros da lei. Uma visão romântica da criminalidade, "a la Robin Hood",é um impedimento decisivo e intransponível para a realização de qualquer 
        trabalho com a polícia, devido ao caráter básico que dá razão de ser a 
        essa instituição.
 IV - SUPERANDO O MEDO:  
         Se você tem receio 
        de dizer a sua palavra à polícia, não a aborde. Você só pode colaborar 
        no seu processo educacional se superou o medo de falar com convicção a 
        respeito dos direitos humanos.   Os dois capítulos anteriores tratam de questionar 
        as nossas possibilidades de sermos bons parceiros se formos arrogantes. 
        No entanto, isso não significa que tenhamos de ser "cordeiros". 
        Temos que ser cordiais, políticos, elegantes, nunca passivos.  
         Temos coisas importantes a dizer, contribuições 
        relevantes a dar, e é por isso que estamos procurando a polícia.  
          De um lado, é claro que, se queremos atuar na perspectiva 
        educacional, não podemos colocar-nos como "a polícia da polícia". 
        Em uma Organização de Direitos Humanos, os que trabalham com as denúncias 
        de violações (dos direitos humanos) não deveriam     
        confundir-se, nos papéis, com o banco de recursos humanos educacionais 
        que vai trabalhar, por exemplo, com a Academia de Polícia. Você pode desejar 
        que assim seja, que a polícia esteja disposta a submeter-se à intimidade 
        de olhos constantemente vigilantes, mas é evidente que você deve viver 
        em outro continente, talvez em outro planeta. A realidade não funciona 
        desta forma. Na Anistia Internacional jamais deixamos de denunciar uma 
        violação. No entanto, os educadores envolvidos com a polícia não se portam 
        como "cães de guarda" de Londres ou da mídia. É necessário distinguir 
        os papéis.    De outra parte, esses educadores não podem ser neutrais. 
        Têm uma palavra dura e consistente a dizer contra qualquer tipo de tortura, 
        contra a pena de morte, contra o racismo, contra os preconceitos, a favor 
        da justiça, das leis, dos acordos internacionais, dos direitos de organização 
        e expressão, da vida.   Bom senso é, 
        mais uma vez, a expressão chave. Destemor e bom senso.   < 
        Voltar |