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               Escravos da
              dívida 
              O tráfico internacional de pessoas
              - principalmente para o comércio sexual - e a prática de
              trabalhos forçados - com trabalhadores mantidos como escravos até
              saldarem dívidas com seus patrões - estão ocorrendo no Brasil e
              são motivo de grande preocupação. Falta, no entanto, conhecer a
              verdadeira extensão do problema. O Departamento de Estado
              norte-americano divulgou em 12 de julho um relatório que situa o
              Brasil entre os países que, embora trabalhem para melhorar suas
              leis, não garantem ainda a proteção necessária às possíveis
              vítimas. Informações divulgadas no final do ano passado na
              imprensa e reproduzidas em veículos de comunicação como a BBC
              atribuem à Organização das Nações Unidas e à Federação
              Internacional Helsinque de Direitos Humanos a autoria de dados
              surpreendentes: 15% das mulheres obrigadas a se prostituir na
              Europa seriam brasileiras, somando aproximadamente 75 mil
              mulheres, o que levaria o país ao posto de maior "exportador
              de escravas" da América do Sul. E mais: 95% delas teriam
              sido traficadas. 
              Impressionante, sem dúvida, mas a
              conta pode estar errada. 
              A coordenadora no Brasil do
              Programa das Nações Unidas para Controle de Drogas e Prevenção
              ao Crime, Cíntia Freitas, confirma o problema, não os números.
              Diz não ter tomado conhecimento de qualquer análise quantitativa
              feita pela ONU sobre o tráfico de mulheres e garante que seria
              uma tarefa árdua: "Nós não quantificamos, porque obter
              esses dados é muito difícil. É uma atividade ilícita e as
              pessoas têm medo de denunciar. Sabemos que esse é um problema
              que sempre existiu e acredito que, neste momento, começa a ser
              visto com outros olhos pela sociedade, tanto do ponto de vista
              criminal como social". 
              Soma: parceria à vista 
              A obtenção de dados reais sobre o
              tráfico de pessoas pode se tornar realidade em breve. A ONU, por
              meio do Centro para Prevenção ao Crime Internacional (CICP), está
              formalizando uma parceria com o Ministério da Justiça para
              levantamento de dados e treinamento especializado para a polícia
              e o Ministério Público. Haverá ainda campanhas de mobilização
              social. A expectativa é que o projeto comece a funcionar dentro
              de dois meses. Consolidada a parceria, a idéia é promover um
              intercâmbio com especialistas de outros países nas áreas jurídica
              e criminal. O governo português já ofereceu apoio financeiro.
              "Portugal tem se esforçado muito no combate ao tráfico e
              manifestou o desejo de cooperar", diz Cíntia.
              "Recentemente, em Palermo, na Itália, durante o Congresso
              contra o Crime Organizado Internacional, um dos protocolos
              assinados previa a ação conjunta entre países". 
              A dificuldade de reunir dados
              significativos para uma análise adequada da situação é
              confirmada por representantes de organizações de defesa dos
              direitos humanos. James Cavallaro, diretor jurídico do Centro de
              Justiça Global, diz que praticamente não existem informações
              concretas sobre o tráfico de pessoas e se mostra cético em relação
              aos dados supostamente apurados: "Desconheço esse
              levantamento, por isso prefiro não comentá-lo. É preciso antes
              saber como isso foi feito, porque pode até ser um 'chute',
              adverte. Mesmo o relatório do Departamento de Estado
              norte-americano dedica pouco espaço ao Brasil e não faz menção
              a números. "Participei de reuniões com as pessoas que
              prepararam esse documento. Eles admitiram que os dados não são
              consistentes", revela. 
              Cavallaro acrescenta que a falta de
              informações é comum também ao problema do trabalho escravo no
              Brasil, particularmente no meio urbano. "Não duvido que o
              problema seja grave", diz ele. "Na área rural, os dados
              sobre trabalho escravo são mais significativos para as políticas
              públicas. Há um grupo sério atuando nesse campo, que é a
              Comissão Pastoral da Terra. Ainda assim, eles estão vendo apenas
              a ponta do iceberg". 
              Ex-membro da CPT, hoje presidente
              do Conselho Deliberativo do Centro de Justiça Global, o padre
              Ricardo Rezende Figueira tem acompanhado o que chama de trabalho
              escravo contemporâneo. "Essa situação de trabalho escravo
              por dívida existe desde o século 19, quando europeus e asiáticos
              eram trazidos para substituir os negros", lembra. "Os
              trabalhadores são recrutados, se endividam com os próprios patrões
              e acabam obrigados a permanecer até pagarem o que devem, o que é
              praticamente impossível. É um problema antigo, e não apenas
              brasileiro. No Primeiro Mundo, em geral, a vítima é um imigrante
              estrangeiro. No Brasil, temos a escravidão nacional, com pessoas
              trazidas de outros estados, e a internacional, que usa mão-de-obra
              africana ou asiática e ocorre mais em áreas urbanas". 
              Padre Ricardo Rezende reconhece que
              a incidência de casos é mais violenta nas regiões Norte e
              Centro-Oeste, mas cita denúncias feitas em Minas Gerais, no Rio
              de Janeiro, em São Paulo e no Paraná. Ele admite que o governo
              federal tem feito algum esforço no combate à escravidão, antes
              quase restrito à iniciativa da Comissão Pastoral da Terra, e
              destaca, particularmente, o apoio do Grupo Móvel de Fiscalização
              do Ministério do Trabalho. "Mas acho que teria de haver uma
              ação conjunta do Gertraf (Grupo Executivo de Repressão ao
              Trabalho Forçado, vinculado ao Ministério da Justiça) e do
              Ibama. Se o Ibama fiscalizasse as áreas com evidência de
              desmatamento e limpeza de pasto, usando mapas por satélite ou
              helicópteros, seria possível ter resultados melhores",
              sugere. O empecilho é a falta de equipamentos. 
              Localizar onde há trabalho escravo
              é uma ponta do problema. A outra é a punição dos responsáveis.
              Segundo o padre, raramente fazendeiros e pistoleiros são punidos.
              "É que, muitas vezes, os agentes policiais são amigos dos
              fazendeiros. Então o que ocorre, em geral, é uma multa
              trabalhista", lamenta. Cavallaro endossa: "Quanto mais
              vulneráveis as vítimas, mais espaço se dá para a corrupção e
              o abuso. A corrupção é um dos fatores principais para a não
              punição ou apuração dos crimes". 
              Multiplicação: globalização
              da miséria 
              As vítimas mais comuns do trabalho
              escravo são pessoas desempregadas, pobres, analfabetas ou
              semi-alfabetizadas. Em geral, os empreiteiros procuram a mão-de-obra
              em outros estados. A prostituição, por outro lado, recruta seus
              "operários" em fronteiras mais distantes e parece um
              fenômeno tipicamente urbano. Em tudo isso, Roberto Monte,
              presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos do Rio Grande
              do Norte e membro da DHnet - Rede de Direitos Humanos e Cultura, vê
              o que chama de globalização da miséria: "Estão se
              reproduzindo no exterior as coisas que já aconteciam aqui, de
              meninas sendo levadas do interior para os grandes centros
              urbanos". 
              A situação do país, analisa
              Monte, talvez estimule as pessoas a procurarem alternativas de
              ganhos aparentemente fáceis no exterior. "Tem muita gente
              querendo entrar para a prostituição. E essas pessoas são, pelo
              menos, alfabetizadas. Isso é quase servidão voluntária",
              afirma. "Existe uma crise social aparente. É a face
              barra-pesada do país, que não cresce, não dá
              perspectivas". 
              Roberto Monte percebe um movimento
              intenso de turismo sexual, em especial no Nordeste, onde tem
              aumentado a chegada de vôos charter provenientes da
              Europa. "Parece uma indústria", afirma. "Se a
              gente não pegar essas rotas, não vai entender. Falam em Israel,
              Espanha, as pistas já existem. E eu acho que tem muito mais
              doideira por trás disso do que se pode imaginar, como drogas ou
              tráfico de órgãos", especula. 
              Divisão: um outro ponto de
              vista 
              O jornalista Flávio Lenz, assessor
              da Rede Brasileira de Profissionais do Sexo, faz uma distinção
              entre o tráfico de pessoas e a ida de brasileiros para a
              prostituição no exterior. Ele acredita que a maioria dos
              contratados já sai do país sabendo o que vai fazer. "Essas
              pessoas dependem de um agente. Como as despesas, num primeiro
              momento, são pagas por ele, existe uma prática ilegal de reter o
              passaporte até que se pague a dívida, então a pessoa fica em
              situação de dependência, vivendo em situação irregular em um
              país estrangeiro". 
              Lenz argumenta que existem casos de
              mulheres que conseguem pagar suas dívidas e tentam se
              estabelecer. "Quanto a tráfico de pessoas, isso é caso de
              polícia, seja qual for a profissão", diz ele. 
              Em relação aos dados divulgados
              sobre a quantidade de brasileiras prostituídas na Europa, o
              jornalista faz duras críticas e lembra que a própria ONU já
              teve seus números contestados pelo governo brasileiro: "Isso
              é um 'chute' absurdo", protesta. "A divulgação desses
              números movimenta dinheiro, fundos e verbas para projetos. Não são
              confiáveis, são informações divulgadas com intenções
              financeiras ou políticas". 
              Subtração: a conta do atraso 
              A anunciada parceria entre o CICP e
              o Ministério da Justiça acena para a possibilidade de, enfim,
              termos dados consistentes para implementar políticas públicas e
              estimular ações de combate ao tráfico de pessoas, à escravidão
              e aos demais aspectos dessa triste realidade. Na falta de números,
              por enquanto, fica a dúvida sobre a extensão de um problema que
              se mostra grave. Por ora, a certeza que se pode ter é que são
              todos escravos de uma imensa dívida social. 
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