Sinos
de Porto Alegre
e desencantamento do mundo
José Pedro Martins
O II Fórum Social Mundial, que decorreu entre 28 de
Janeiro e 5 de Fevereiro de 2002 em Porto Alegre, Rio Grande do Sul,
Brasil, teve um número recorde de participantes, 51.300 pessoas entre
delegados e outros, de 131 países, mas um dos pronunciamentos mais
contundentes do encontro foi de autoria de alguém ausente. O texto de
José Saramago, "Da Justiça à Democracia", lido em público
por três artistas brasileiros, acabou causando mais furor do que várias
das manifestações celebradas durante a grande reunião da sociedade
civil planetária.
No seu texto, depois multiplicado com voracidade por diversos meios de
comunicação mundiais, Saramago relata a história de um camponês de
Florença que, no século XVI, resolveu fazer um protesto inusitado pela
perda das suas terras para um grande latifundiário da época. O camponês
ousou tocar o sino da igreja da sua aldeia e, quando os moradores lhe
perguntaram sobre quem tinha morrido para merecer aquele badalar, ele
respondeu: a Justiça.
O Prémio Nobel português reconhece que não sabe o resultado desse
episódio, mas sustenta que a Justiça continuou e continua morrendo a
cada dia na Terra. E para ele os sinos estavam tocando de novo, naquele
momento, quando milhares de pessoas se reuniam numa cidade bem ao Sul do
planeta para clamar mais uma vez por Justiça. A Justiça com J maiúsculo
representa, na sua opinião, o cumprimento dos Direitos Humanos
previstos há 50 anos, de uma forma cristalina, na Declaração
Universal escrita após o flagelo da 2a Guerra Mundial.
A grande controvérsia provocada pela mensagem do autor de "O
Evangelho Segundo Jesus Cristo" está contida no trecho em que ele
defende que os princípios da Declaração Universal dos Direitos
Humanos poderiam substituir com tranquilidade, "e sem necessidade
de lhe alterar sequer uma vírgula", os programas de todos os
partidos políticos conhecidos, "nomeadamente os da denominada
esquerda, anquilosados em fórmulas caducas, alheios ou impotentes para
enfrentar as realidades brutais do mundo actual e fechando os olhos às
já evidentes e temíveis ameaças que o futuro está a preparar contra
aquela dignidade racional e sensível que imaginávamos ser a suprema
aspiração dos seres humanos".
Saramago também critica o "dócil e burocratizado sindicalismo que
hoje nos resta", que é, no seu entender, de modo consciente ou
inconsciente, em grande parte "responsável pelo adormecimento
social decorrente do processo de globalização económica em
curso". E acrescenta ser da opinião de que, "se não
interviermos a tempo, isto é, já, o rato dos direitos humanos acabará
por ser implacavelmente devorado pelo gato da globalização económica".
As palavras um tanto amargas de José Saramago, um dos mais conceituados
escritores de entre os poucos que hoje são corajosos o suficiente para
se dizer de esquerda, resumem de forma cabal os comentários críticos
mais responsáveis feitos aos movimentos e iniciativas internacionais -
entre elas o Fórum Social Mundial - voltadas para dar um novo rumo à
globalização ditada pelo neoliberalismo. São reflexões que apelam
para que se tenha mais ousadia na formulação de propostas claras,
novas, inteligentes, e que resultem em acções concretas e eficazes por
parte da sociedade civil organizada numa escala igualmente global.
No caso do II Fórum Social Mundial, com base na experiência da
primeira edição os organizadores expressaram todo o zelo para que de
facto se buscasse a formulação de planos de acção mais definidos,
evitando-se que as atenções se voltassem mais para o barulho das
manifestações de rua - que são importantes, mas não podem ser a única
coisa mais importante - do que para o ruído construtor das ideias
discutidas nos múltiplos seminários, conferências e outros eventos
realizados durante o encontro de Porto Alegre.
O líder dos agricultores franceses José Bovè, por exemplo, esteve
muito mais reservado nas suas declarações deste ano, em comparação
com a sua participação, em 2001, no acto de destruição de uma plantação
com organismos geneticamente modificados, os malfadados transgénicos,
no interior do Rio Grande do Sul.
Outra demonstração dos cuidados mantidos pela organização do II FSM
foi a sua posição diante de uma conferência de imprensa convocada
pelas FARC colombianas, para a tarde de 10 de Fevereiro, por ocasião da
oficina "É possível a paz na Colômbia?", promovida pela
Associação de Docentes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (ADUFRGS).
Em nota oficial o Comité Organizador do Fórum informou ter ponderado
com a ADUFRGS que "a carta de princípios do FSM não permite a
participação de organizações armadas". O Comité manifestou o
desacordo com o convite às FARC e desautorizou a conferência de
imprensa. A Associação de Docentes manteve o convite mas
comprometeu-se, segundo o Comité Organizador, a demover as FARC de
realizar essa conferência.
O empenho dos organizadores, para que o Fórum representasse um momento
de construção de alternativas concretas à globalização neoliberal,
teve os seus frutos positivos. É uma grande ingenuidade, e mesmo uma
demonstração de autoritarismo, querer que um conjunto tão
multicolorido de pessoas e grupos reunidos (foram 4.900 as organizações
representadas) concordasse na elaboração de um programa único,
totalmente acabado, a respeito do que fazer para mudar os rumos da
globalização excludente. Mas em vários momentos do II FSM se mostrou
criatividade e audácia na apresentação de propostas de acção que
possam ser mais contundentes e efectivas na crítica a essa modalidade
de globalização comandada pelas megacorporações transnacionais.
Um caso típico foi da Assembleia Pública Mundial do Orçamento
Participativo sobre os Gastos de Guerra. O Orçamento Participativo é
um instrumento que garante a participação popular na definição das
peças orçamentárias governamentais, e que vem sendo praticado desde
1989 em Porto Alegre, sendo este um dos motivos que projectaram a
capital gaúcha como uma espécie de "meca das esquerdas".
Utilizando-se esse princípio, os participantes do II FSM foram
estimulados a posicionar-se sobre as prioridadades de aplicação dos
800 bilhões de dólares anuais gastos na corrida armamentista em todo o
mundo - um volume de recursos suficiente para a execução de programas
que poderiam resultar na melhoria substancial das condições de vida e
de protecção ambiental em todo planeta. No final, os participantes
desse plebiscito sobre o militarismo indicaram como prioridades a
erradicação da fome, do analfabetismo e do trabalho infantil.
É óbvio que a Assembléia foi um gesto simbólico, mas um passo à
frente na discussão sobre esse tema normalmente esquecido da agenda dos
movimentos e organizações sociais, que é a corrida armamentista como
um dos factores da manutenção das estruturas injustas nas relações
Norte-Sul e da destruição ambiental paulatina do planeta. De modo
muito significativo, justamente durante o II FSM - e também no período
em que o Fórum Econômico Mundial estava sendo realizado em Nova York -
o presidente George Bush anunciou o aumento do orçamento militar para
os próximos anos - 330 bilhões de dólares em 2002 e 369 bilhões em
2003.
Para muitos observadores presentes ao Fórum de Porto Alegre, esse
incremento no orçamento militar norte-americano, com o argumento do
combate ao terrorismo, é um forte indicador de uma retomada da corrida
armamentista, em escala equivalente ao do período da Guerra Fria. Aliás,
um dos participantes da conferência Soberania, Nação e Estado, o
professor guatemalteco Xabier Gorostiaga manifestou a opinião de que o
mundo estaria a voltar ao clima da Guerra Fria, marcado pela polarização
política e pela divisão do planeta entre o bem e o mal, ingredientes
que estimularam uma corrida armamentista que chegou a consumir mais de 1
trilhão de dólares por ano.
Outras propostas semelhantes foram discutidas durante o II FSM, avançando-se
em relação a teses que já vinham sendo debatidas pelos círculos
opositores da globalização neoliberal. Em relação à Taxa Tobin, que
estipula a taxação de 0,1% sobre as transações feitas pelo sistema
financeiro internacional, resultando na arrecadação anual de 100 bilhões
de dólares, discutiu-se o destino deste volume para um Fundo Solidário
para o Desenvolvimento Sustentável. Essa quantia seria somada a outros
100 bilhões que viriam da aplicação de 0,7% do orçamento anual dos
países industrializados em projectos de ajuda ao desenvolvimento.
Juntos, esses recursos de 200 bilhões de dólares seriam suficientes
para a montagem de um programa mundial de erradicação da fome e da
pobreza e para a protecção dos recursos naturais em benefício das
futuras gerações.
O grande desafio, é claro, é tornar essas fontes de recursos uma
realidade. O princípio da Taxa Tobin ganhou impulso com a decisão
favorável do Parlamento francês, mas ainda existe um longo caminho até
à sua aprovação pelo conjunto da Comunidade Europeia e, sobretudo,
por países como os Estados Unidos e o Japão. Discutiu-se em Porto
Alegre a oportunidade de utilização do princípio do Orçamento
Participativo para o destino dos recursos arrecadados com a Taxa Tobin.
Já os 0,7% dos países ricos em ajuda anual para o desenvolvimento é
uma plataforma antiga, reiterada na Agenda 21, aprovada na Conferência
das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Eco-92,
de Junho de 1992 no Rio de Janeiro. Passados dez anos, a média dos países
da OCDE em ajuda ao desenvolvimento é de 0,22%. Na Europa é de 0,33%.
O mais grave é que de modo geral a ajuda caiu muito nos últimos anos.
Na Alemanha a taxa oficial era de 0,48% há 20 anos, e no início do século
21 é de 0,27% do PIB. Na Holanda, a taxa já chegou a 1,01% do PIB em
1986, muito acima dos actuais 0,8%. Em toda a OCDE a média de ajuda era
de 0,35% do PIB em 1986, metade dos ideais 0,7% mas acima dos actuais
0,22%.
Outras ideias interessantes foram discutidas no II Fórum Social
Mundial. Um Tribunal do Clima apontou para as responsabilidades dos países
industrializados na emissão dos gases-estufa - que aumentou em cerca de
10% nos últimos dez anos, quando deveria ter sido reduzida, de acordo
com o Protocolo de Kyoto. Quem sabe se não é o primeiro passo para um
Tribunal Mundial de Crimes Ambientais, a exemplo do que ocorre na área
de violações de Direitos Humanos?
Do mesmo modo, reflectiu-se sobre a oportunidade de estruturação de um
Observatório Mundial dos Meios de Comunicação, a partir de uma rede
internacional de Universidades, entidades de jornalistas e ONGs, como
forma de monitorar e reinterpretar as notícias divulgadas pelos mass
media.
Como forma de dar continuidade das lutas, discutiu-se a realização de
versões regionais do Fórum Social. Um deles já está previsto para o
final do ano para as regiões da África e Ásia. Devem ser realizados
outros em outras regiões e um em especial na Palestina - é a globalização
da solidariedade e das alternativas à globalização neoliberal.
Para muitos participantes do Fórum Social Mundial, é fundamental que
haja um amadurecimento das reflexões sobre como dar uma nova cara ao
socialismo democrático, como alternativa concreta à globalização das
corporações transnacionais. A alternativa socialista foi discutida em
vários momentos do Fórum, em dimensões maiores do que na edição de
2001. "Um mundo socialista é possível" foi o tema da marcha
de abertura do II FSM. Durante o Seminário "Um outro mundo
socialista é possível", o governador do Rio Grande do Sul, Olívio
Dutra, do PT, manifestou a opinião de que o socialismo continua sendo
"a solidariedade na luta que transforma e aproxima os povos, que
respeita o ser humano, que afirma que o ser humano não é uma
mercadoria, e que o ser humano é insubstituível". Na mesma ocasião,
o secretário de relações internacionais do PC português, Albano
Nunes, salientou que "Não foram os ideais comunistas que
fracassaram, mas o modelo pelo qual foram aplicados tais ideais que se
desviaram de seus objetivos".
A necessidade de aprofundar a discussão sobre o socialismo e a
democracia foi tema de outro debate. Nele o ministro de Ensino
Profissional da França, Jean-Luc Melenchon, sustentou que a democracia
não pode ser um horizonte, mas um método essencial para a construção
do socialismo. Um dos momentos mais emocionantes do FSM foi
proporcionado pelo português Boaventura Sousa dos Santos. Ele
apresentou, na Conferência sobre Democracia Participativa, um conjunto
de 15 pontos para aprofundar a dimensão da democracia. Entre eles a
ideia de "demodiversidade", que seria a democracia praticada
de acordo com as realidades culturais e sociais locais, mas sempre tendo
o princípio da igualdade como base. Coerente com as suas posições,
cobrou por maior democracia no Fórum Social Mundial, criticando a ausência
de maior número de participantes africanos e asiáticos. As posições
de Boaventura arrancaram aplausos demorados da plateia.
Entendo pessoalmente que o II Fórum Social Mundial pecou por não
aprofundar o debate sobre a necessária revolução cultural para mudar
os rumos da globalização excludente. Um dos motivos dos preconceitos
do Ocidente em relação ao mundo islâmico é que, neste, preceitos
culturais, morais, religiosos e filosóficos continuam a orientar a vida
das pessoas - e isto de forma exagerada ou não. No Ocidente a divinização
do mercado levou ao esvaziamento dos valores culturais mais dignos da
história da humanidade, como aqueles da famosa tríade liberdade,
igualdade e fraternidade. O american way of life, multiplicado a
partir de Hollywood, tem ajudado a sufocar os mais legítimos e
profundos valores positivos cultivados historicamente no Ocidente. O
resultado é a fuga do pensamento, a automatização das acções, o
culto da pressa e a sacralização do dinheiro e do individualismo. A
mercantilização como valor supremo traduziu a vida humana e da
natureza em geral também em mercadorias. Sem uma modificação radical
dessa forma de (não) pensar e agir, a transnacionalização globalitária
continuará tendo um campo fértil para prosperar. Essa discussão foi
de certa forma marginalizada em Porto Alegre, onde continuou a
prioridade para as discussões - muito necessárias - sobre as implicações
sociais, económicas e políticas da globalização.
É fundamental, creio, ir a fundo no debate sobre esse triste
desencantamento do mundo, processo que foi aprofundado com a globalização.
Mas esta é outra história. Por enquanto, ouçamos os sinos de Porto
Alegre. Que essa melodia se transforme na banda sonora do amanhecer de
um novo mundo.
José Pedro Martins é jornalista e escritor, autor de
"Terra Nave Mãe - Por um socialismo ecológico", "Depois
do Arco Íris - Uma proposta ecológica" e "PCNs - Novo perigo
nuclear"