Fórum Social Mundial
25-30 de janeiro de 2001 em Porto Alegre, RS, Brasil
Texto da palestra conferida durante
o painel "Como promover a universalização dos direitos
humanos e assegurar a distribuição de riquezas?", dia 28 de
janeiro, Eixo II "O acesso às riquezas e a sustentabilidade"
O Direito Inalienável a Uma
Renda Básica no Século XXI
Eduardo Matarazzo
Suplicy
Em 10 de agosto de 1982, Sandra
Mara, que asssinava seus poemas como Anderson Herzer, veio a
falecer em decorrência dos fortes ferimentos que teve ao se jogar
na noite anterior do Viaduto 23 de Maio, em São Paulo, diante das
angústias de toda ordem que vinha sofrendo. Ela estava com 20
anos, havia nascido em Rolândia, no Paraná. Certo dia, soube
pelo corre-corre em sua casa que seu pai, o proprietário de um
simples bar, havia sido assassinado, alguma vingança prometida,
com um tiro no pescoço. Não tendo muita alternativa, sua mãe
passou a não ser mais dela, de sua irmã, de João, de Pedro ou
José. Era de todos, ao mesmo tempo de ninguém. Na prostituição,
contraiu doença, vindo a falecer. Foi então morar com a avó,
mas quando esta faleceu, foi adotada por sua tia e tio, este bem
mais velho. Mudaram-se para São Paulo, onde notou conflitos entre
os pais adotivos. Certo dia, o pai resolveu acariciá-la, tentar
violentá-la. Ao reagir, teve o braço quebrado, numa queda. No
bairro de São João Clímaco, costumava freqüentar a lanchonete
Dog, onde encontrou o rapaz de 30 anos, "Bigode", que se
tornou seu namorado, ela apenas com 13. Mas ele veio a falecer num
desastre de moto. Logo ela escreveu em seu pulso a palavra
"Big". Aos poucos foi assumindo a personagem de um
rapaz, cortando o cabelo e usando roupas como se fosse homem.
Diante de uma vida de pouca disciplina, seus pais adotivos
acabaram internando-a na FEBEM, onde ela ficou dos 14 aos 17 anos
e meio. De tudo ali viu sobre as dificuldades por que passam a/os
adolescentes. Foi então que Lia Junqueira, do Movimento em Defesa
do Menor, solicitou a mim, então Deputado Estadual, se poderia
verificar a possibilidade de responsabilizar-me perante o Juiz de
Menores por algum trabalho que ela pudesse realizar, mediante
modesta remuneração. Não havia cometido qualquer delito. Assim
ela veio auxiliar em quase tudo no gabinete. Mas como ela escrevia
poemas que queria muito publicar, dei-lhe uma atribuição
especial: a de escrever a sua própria autobiografia. Ela o fez,
escrevendo o que se tornou "A Queda para o Alto",
publicado pela Editora Vozes, em 1982, e que já está na 24(ª)
edição. Trata-se de um verdadeiro libelo, escrito com muita
sensibilidade, para que sejam todas as crianças e jovens tratados
verdadeiramente como seres humanos, com dignidade, de tal forma
que não venham a ter mais o destino como o seu ou de João Ninguém,
personagem de um de seus poemas:
Mataram João
Ninguém
Quando o próximo sangue jorrar
daquele por quem ninguém irá chorar,
daquele que não deixará nada para se lembrar
daquele em quem ninguém quis acreditar.
Quando seus olhos só puderem fitar o escuro
quando seu corpo já estiver inerte, frio e duro,
quando todos perceberem morto João Ninguém
e quando longe de todos ele será seu próprio alguém.
Tantas mãos, tantas linhas incertas,
tantas vidas cobertas, sem ninguém pra sentir.
Tantas dores, tantas noites desertas
tantas mãos entreabertas, sem ninguém pra acudir.
Qualquer dia vou despir-me da luta
pisar em coisas brutas, sem me arrepender.
Tão difícil ver a vida assassinada
quando estamos já tontos pra tentar sobreviver.
As perguntas sem respostas, sem nada,
as vidas curtas e desamparadas
o último grito que não foi ouvido
calaram mais um homem iludido.
E no mundo não dão mais argumentos
pra fugir aos lamentos de quem sozinho falece.
Para esses não há mais compreensão,
não há mais permissão, para que se tropece.
Na televisão o aguardo da cotação
um instante ocupado, para dizer morto João Ninguém
Mas a aflição ataca, a cotação subiu ou caiu?
E João morreu… ninguém ouviu.
Eu vou distribuir panfletos,
Dizendo que João morreu
Talvez alguém se recorde
do João que falo eu.
Falo daquele mendigo que somos
Pelo menos em matéria de amor,
daquele amor que esquecemos de cultivar
O qual com tanto dinheiro, ninguém jamais coroou.
De Sandra Mara ou
Anderson Herzer
É possível que lá no Forum
Mundial de Davos haja conferencistas que até estejam falando das
condições de vida de seres humanos, mas a maior atenção ali
normalmente costuma ser dada aos fatores que fazem subir ou descer
as cotações de mercado. Existisse desde o início da história
do Brasil um mecanismo pelo qual, durante os ciclos do pau-brasil,
do ouro, da cana-de-açúcar, do café, do cacau, das várias
fases de industrialização até a época da informatização e da
telefonia celular a separação de parte do valor adicionado para
a constituição de um fundo, que a todos pertencesse, e que desse
fundo se pagasse a todas as pessoas, incondicionalmente, uma renda
mensal, como um direito à cidadania, muito dificilmente estaríamos
assistindo quase todos os dias tragédias como a morte de Herzer
ou de João Ninguém.
Da mesma maneira, caso fosse
vigente no Brasil e noutros países o pagamento mensal, previsível
a cada mês, a todas as pessoas, de uma renda modesta mas
suficiente para as necessidades vitais, muito provavelmente seriam
minimizados os episódios como os de trabalhadores rurais e
urbanos que se vêem obrigados a se sujeitarem a condições de
semi-escravidão para conseguirem a sua sobrevivência, ou dos que
se vêem obrigados a deixar a sua terra natal para obterem o
direito a vida, tal como tão bem ilustrado pelo fotógrafo
Sebastião Salgado, em sua exposição "Êxodos".
Sebastião Salgado ressalta que se
em 1989 desapareceu o "Muro de Berlim" onde muitas
pessoas morreram tentando ultrapassá-lo durante os anos de guerra
fria, desde então surgiu um outro muro onde, infelizmente, mais
pessoas já morreram. Trata-se do muro que tem se erguido na
fronteira entre os EUA e o México, continuando o Rio Grande, onde
já morreram mais pessoas do que no "Muro de Berlim". O
recente filme "Pães e Rosas", do inglês Ken Loach,
mostra de forma expressiva o drama das pessoas que fazem a limpeza
de edifícios modernos de Los Angeles, as quais, por não terem os
documentos legais de migrantes, são submetidas às piores situações
de exploração. Por vezes, não tendo alternativa, a personagem
central se vê instada a assaltar o caixa de algumas lojas.
Vinte anos depois da morte de
Herzer, um grupo de 30 jovens da maior favela de São Paulo, a de
Heliópolis, onde moram 85 mil pessoas, resolveu apresentar a
autobiografia de Herzer, numa peça de teatro que teve forte
efeito sobre aquela comunidade. Justamente a atriz que faz o papel
de Herzer, Vanusa Josefa dos Santos, hoje com 17 anos, está em
liberdade assistida, é egressa da FEBEM por ter participado em
duas tentativas de assalto. Ao conhecer o histórico de sua família,
em Heliópolis, não foi difícil compreender as razões pelas
quais ela foi levada àquelas ações, assim como a de centenas de
jovens que hoje amarguram seus dias em celas super lotadas, da
mesma maneira que a personagem de "Pães e Rosas".
Ao recordar um episódio vivido
quando tinha 10 anos de idade, em "Desenvolvimento como
Liberdade", o laureado com o Nobel de Economia em 1999,
Amartya Sen, mostra como a privação da liberdade econômica, na
forma de pobreza extrema, pode tornar uma pessoa indefesa na violação
de outros tipos de liberdade. Ele estava brincando no jardim de
sua casa em Daca, quando um homem entrou pedindo socorro, pois
havia sido esfaqueado. Era uma época de contínuos conflitos
entre hindus e muçulmanos. Kader Mia, trabalhador muçulmano,
tinha vindo fazer um serviço naquele bairro de maioria hindu.
Amartya lhe deu água, pediu auxílio ao seu pai que com ele levou
o ferido ao hospital. Durante o caminho, Kader Mia contou como sua
mulher lhe havia advertido para não ir àquela região. Mas ele
precisava obter o suficiente para o sustento de sua família. Ao
chegar no hospital, veio a falecer. Ressalta Amartya Sen:
"A privação de liberdade
econômica pode gerar a privação de liberdade social, assim como
a privação de liberdade social ou política pode, da mesma
forma, gerar a privação de liberdade econômica".
Os presidentes Bill Clinton e
George Bush têm apregoado que até o ano 2005, e agora querem
antecipar para 2003, deverá ser criada a ALCA, Área de Livre Comércio
das Américas, do Alasca à Patagônia. Em verdade, desejam que não
haja mais barreiras alfandegárias ou de qualquer natureza para
que possam as empresas estarem vendendo bens e serviços,
participando de licitações públicas, e os investidores
realizando aplicações em todos os países das Américas.
Primeiro, não levam em consideração a grande disparidade de
organização e poder de competição existente entre as empresas
dos países em diferentes graus de desenvolvimento. Segundo, o
objetivo maior é expresso sobretudo na perspectiva dos proprietários
do capital e não, como seria o natural, do ponto de vista do ser
humano. Pois não estão propondo a queda do "Muro entre os
EUA e a América Latina" e a possibilidade de cada pessoa,
nas três Américas, poder escolher onde estudar, trabalhar e
viver.
Aqui no Fórum Social Mundial nós
devemos propor e nos empenhar para que o quanto antes venhamos a
estender, do Alasca à Patagônia, e no planeta Terra, não apenas
o direito de todas as pessoas poderem escolher onde viver, mas
também de participar da riqueza de cada nação, dos continentes
e do planeta. O direito de todos poderem desfrutar da mais ampla e
real liberdade possível.
Nas últimas décadas, e em
especial desde que, como Senador pelo PT, em 1991, apresentei um
Projeto de Lei propondo a criação de um Programa de Garantia de
Renda Mínima, através de um imposto de renda negativo, o qual
garantiria a todas as pessoas adultas que não recebessem até
cerca de R$ 400,00 mensais, um complemento equivalente a 30%, ou
até 50% da diferença entre aquele patamar e a renda da pessoa,
uma evolução muito significativa vem ocorrendo no Brasil e no
mundo. Aquele projeto foi aprovado pelo Senado, em dezembro de
1991, mas até hoje permanece pronto para ser votado, com parecer
favorável, na Câmara dos Deputados. Do debate, entretanto,
frutificaram idéias como a do economista José Márcio Camargo,
do governador do DF Cristovam Buarque, do prefeito de Campinas José
Roberto Magalhães Teixeira, e de Ribeirão Preto, Antonio
Palocci, que instituíram formas de suplementação de renda às
famílias carentes para que as suas crianças pudessem estar freqüentando
a escola. Assim se desenvolveram os programas Bolsa-Escola e os de
Renda Mínima associados a ações sócio educacionais. Projetos
surgiram no Congresso que resultaram na Lei 9.533/1997, que
autoriza o governo federal a financiar em 50% os gastos dos municípios
que implementarem programas de renda mínima relacionados à educação.
E hoje há mais de 1600 municípios que estão aplicando a lei,
bem como dezenas que o estão adotando autonomamente, com ligeiras
diferenças em seus desenhos.
Diante da evolução positiva que
vem se desenvolvendo, na numerosa contribuição de inúmeros
autores, gostaria de lhes transmitir que mais e mais estou
convicto da mesma proposição feita por um dos maiores
economistas vivos, James Tobin, Nobel de Economia, de 1977, e
certamente dos maiores inspiradores deste Fórum, é responsável
por outra proposição amplamente discutida aqui: a taxação das
operações financeiras internacionais. Pois, embora defensor de
um imposto de renda negativo, no início dos anos setenta, ao
assessorar o candidato George Mc Govern, que perdeu as eleições
presidenciais para Richard Nixon, Tobin propôs que se utilizasse
um "demogrant" universal que seria pago igualmente a
todos. Assim, proponho que venhamos a lutar para que em nosso país
e nos demais seja instituída uma renda básica modesta, porém
incondicional. Cada pessoa poderá tentar complementá-la à
vontade com recursos provenientes de outras fontes.
O Professor Philippe Van Parijs,
filósofo e economista da Universidade Católica de Louvain, Bélgica,
um dos fundadores da "Basic Income European Network",
BIEN ou Rede Européia da Renda Básica, tem sido um dos maiores
propagadores da proposição. Farei aqui uma síntese dos
argumentos que formulou na conferência, "Renda Básica:
Renda Mínima Garantida para o Século XXI?", que ele fez em
fevereiro de 2000, em Portugal, a convite do Presidência da União
Européia, naquele semestre sob a responsabilidade do Primeiro
Ministro Antonio Guterrez. O texto traduzido foi recém publicado
na revista "Estudos Avançados", N° 40, da USP, e será
um dos capítulos de meu livro "Em Direção a Uma Renda de
Cidadania".
A renda básica é uma renda paga
por uma comunidade política a todos os seus membros
individualmente, independente de sua situação financeira ou exigência
de trabalho.
A renda básica é paga em
dinheiro, e não na forma de bens e serviços. Não envolve
qualquer restrição quanto à natureza ou ao ritmo do consumo ou
investimento que ela ajuda a financiar. A expectativa é que ela
complemente, em vez de substituir, transferências na forma de
bens e serviços existentes, tais como ensino gratuito ou seguro
de saúde básico.
A renda básica é paga de maneira
regular, em intervalos de uma semana, mês, semestre ou ano e não
como uma doação única. Há, porém a concepção de natureza
semelhante, de se conferir a cada pessoa um capital básico, como
proposto por Bruce Ackerman e Anne Alstott em "The
Stakeholder Society" , 1999, Yale University Press. O
fundamento do direito de todas as pessoas terem um capital básico
ou uma renda básica foi desenvolvido com clareza há 205 anos por
um dos maiores ideólogos das Revoluções Americana e Francesa,
Thomas Paine, no ensaio "Justiça Agrária" que ele
escreveu para o Diretório e a Assembléia Nacional da França em
1796. Assim como um capital básico pode ser transformado num
fluxo de renda, também há a possibilidade inversa. Em sua exposição
realizada em outubro de 2000, em Berlim, no VIII Congresso
Internacional BIEN, Bruce Ackerman observou que estaria
perfeitamente de acordo com a instituição da combinação de
ambas as proposições.
A renda básica poderia ser paga
por uma comunidade política, por um governo de alguma espécie a
partir de recursos controlados pelo poder público. Assim, poderia
ser paga por um governo municipal como o de Porto Alegre, ou
estadual como o do Rio Grande do Sul, ou federal como o do Brasil.
O único exemplo prático e bem sucedido de unidade política que
já introduziu uma renda básica, um dividendo que é pago a todos
os seus residentes há um ano ou mais, não importa a sua origem,
raça, sexo, condição civil ou sócio-econômica, é o Estado do
Alasca, nos EUA. No ano passado, cada um de seus mais de 600 mil
habitantes receberam US$ 1.986,00.
A renda básica pode ser financiada
de modo específico e vinculado, como no caso do Fundo Permanente
do Alasca, ou simplesmente financiada juntamente com todos os
demais gastos governamentais a partir de um conjunto de receitas
de diversas fontes. Dentre as fontes propostas para o
financiamento de uma renda básica mundial está a Taxa Tobin
sobre as transações financeiras internacionais. O Nobel de
Economia James Edward Meade propôs em "Agathotopia: The
Economics of Partnership",Aberdeen University Press, 1989,
que a renda básica fosse financiada a partir dos dividendos dos
ativos de propriedade pública.
A renda básica é paga a todos os
membros da sociedade. Pode se exigir um tempo de residência mínimo,
mas o direito deve ser de todas as pessoas, sem verificação de
sua situação financeira, portanto com um sentido ex ante, diferente
dos sistemas que normalmente operam ex post, ou seja, com
base em uma avaliação prévia, provisional, da renda do beneficiário.
Importante é notar que a renda básica
não torna os ricos mais ricos, pois os relativamente mais ricos
contribuem mais para o seu financiamento do que os relativamente
mais pobres.
Por que será melhor para os pobres
que se dê também aos ricos? A experiência e a reflexão
acumuladas estão a indicar que a renda básica será melhor para
os pobres do que a alternativa de uma renda garantida condicionada
à verificação financeira dos beneficiários. Eis as três razões
explicadas por Van Parijs:
- É provável que a taxa de
resgate de benefícios seja mais alta em um sistema
universal do que se houver um renda garantida com base em
uma verificação financeira do beneficiário. Mais pessoas
entre os pobres estarão informadas sobre seus direitos e
farão uso dos benefícios a que têm direito.
- Nada há de humilhante em
benefícios concedidos a todos por uma questão de
cidadania. Isso não pode ser dito, nem mesmo com os
procedimentos menos humilhantes e intrusivos, a respeito dos
benefícios reservados para os necessitados, os destituídos,
aqueles identificados como incapazes de prover a própria
subsistência. Do ponto de vista dos pobres, isso pode ser
visto como uma vantagem em si, devido ao estigma menor
associado a uma renda básica universal.
- Em um sistema de renda básica
o pagamento regular e confiável do benefício não é
interrompido ao se aceitar um emprego, como seria um sistema
convencional condicionado à situação financeira dos
beneficiários. Comparado a sistemas condicionados à
verificação da situação financeira dos beneficiários
que garantem o mesmo nível de renda mínima, este abre
perspectivas reais para pessoas pobres que têm motivos para
não assumir riscos. Isso significa remover um aspecto da
armadilha do desemprego comumente associado a sistemas
convencionais de benefícios.
A renda básica faz sempre o
trabalho valer a pena. Uma vez que uma pessoa pode manter o valor
integral de sua renda básica, quer esteja trabalhando ou não,
quer seja rica ou pobre, ela com certeza estará numa situação
melhor quando estiver trabalhando do que quando estiver
desempregada.
É de se notar que a renda básica
tem uma equivalência ao imposto de renda negativo, um conceito
que aparece pela primeira vez na obra de Augustin Cournot, em
1938, e que foi desenvolvido por economistas como George Stigler,
Milton Friedman e James Tobin. Também o imposto de renda
negativo, tal como propús no projeto de lei que apresentei no
Senado em 1991, garante uma renda a todos os cidadãos e evita a
armadilha do desemprego, pois trata-se de um mecanismo que sempre
preserva o estímulo ao trabalho. A vantagem, entretanto, da renda
básica sobre o imposto de renda negativo está em eliminar a
burocracia existente sobre a necessidade de se aferir o rendimento
de cada um e de se extinguir qualquer estigma ou sentimento de
vergonha para o beneficiário.
À medida que a automatização e a
confiabilidade vierem a aumentar tanto do lado do pagamento quanto
no lado da arrecadação, tornar-se-á cada vez mais provável, no
sentido administrativo que o sistema universal venha a ser o mais
barato dos dois na conquista de um certo grau de eficácia para
alcançar todos os pobres.
O fato de a renda básica ser
provida a todos independentemente da pessoa estar trabalhando ou
ter disposição para trabalhar tem importante efeito sobre o
mercado de trabalho. Como ressalta Van Parijs, uma renda básica não
condicionada à realização de um trabalho dá poder de barganha
ao mais fraco de uma maneira que uma renda garantida condicionada
ao trabalho não dá. A não-condicionalidade ao trabalho é um
instrumento-chave para impedir que a não-condicionalidade à
situação financeira leve à proliferação de empregos desagradáveis.
Se a preocupação não é manter
pessoas pobres ocupadas a qualquer preço, mas sim
proporcionar-lhes acesso a uma atividade remunerada que tenha
sentido, a própria natureza incondicional da renda básica é uma
vantagem crucial: ela possibilita a disseminação de poder de
barganha de modo a capacitar (tanto quanto for admissível) os
menos favorecidos a distinguir entre empregos atraentes e
promissores e empregos desagradáveis. É portanto, com base em
uma concepção ampla de justiça social, a qual confere ao
trabalho a importância que ele merece, e não apesar dela, que o
direito a uma renda básica deveria ser tão incondicional quanto
é passível de ser estendido a todos de forma sustentável.
Paradoxalmente, é possível que
dar a todos não seja mais caro e sim mais barato do que dar
somente aos pobres. Em havendo uma tecnologia informatizada e
eficiente de coleta de impostos e pagamento de transferências, é
provável que os custos sejam mais baixos em um sistema universal ex
ante, do que em um sistema ex post sujeito à verificação
da situação financeira dos beneficiários, pelo menos para um
determinado nível de eficácia em alcançar os pobres.
Será importante, sobretudo para
estarmos próximos da prática dos princípios de justiça, como
por exemplo formulados pelo filósofo John Rawls, "Uma Teoria
da Justiça", Harvard University Press, 1971, ou Martins
Fontes, 1997, que venhamos a instituir uma renda básica
incondicional no nível mais alto sustentável econômica e
ecologicamente, e na escala mais alta politicamente imaginável.
Mas esta é uma visão do futuro. Para chegarmos lá precisamos
colocar em prática as propostas mais específicas e modestas,
como as que têm sido aplicadas nos países europeus e na América
do Norte, e cada vez mais intensamente em países em
desenvolvimento, como no Brasil. Quando Philippe Van Parijs, em
1996, teve uma audiência com o Presidente Fernando Henrique
Cardoso, ao ser perguntado sobre os programas de renda mínima
associados à educação ou bolsa-escola, considerou um passo na
direção correta, assim como o são os programas de renda mínima
europeus ou de crédito fiscal por remuneração recebida vigentes
nos EUA e na Grã-Bretanha. Entretanto, mais e mais devemos estar
observando a forma prática, especialmente na hora de estudarmos
as reformas que estão por ser realizadas em nosso sistema tributário
e previdenciário, para termos a renda básica como um direito à
cidadania.
Quando uma renda básica,
suficiente para as necessidades vitais, se tornar um direito de
todas as pessoas, teremos transformado as condições que levaram
Mano Brown e os Racionais MCs, o mais importante grupo de Rap ou
Hip-Hop no Brasil, a comporem a música que hoje é tão conhecida
pelos jovens da periferia de nossas grandes metrópoles,
"Homem na Estrada". Em que pese a sua longa letra,
impressiona-me ouvi-los cantá-la de cor. Por quê? Porque fala do
seu cotidiano:
HOMEM NA ESTRADA
Um homem na estrada recomeça sua vida.
Sua finalidade: a sua liberdade.
Que foi perdida, subtraída;
e quer provar a si mesmo que realmente mudou,
que se recuperou e quer viver em paz.
Não olhar para trás, dizer ao crime: nunca mais!
Pois sua infância não foi um mar de rosas, não.
Na Febem, lembranças dolorosas, então.
Sim, ganhar dinheiro, ficar rico, enfim.
Muitos morreram sim, sonhando alto assim,
me digam quem é feliz, quem não se desespera,
vendo nascer seu filho no berço da miséria!
Um lugar onde só tinham como atração, o bar,
e o candomblé pra se tomar a benção.
Esse é o palco da história que por mim será contada.
...um homem na estrada.
Equilibrado num barranco incômodo, mal acabado e sujo,
porém, seu único lar, seu bem e seu refúgio.
Um cheiro horrível de esgoto no quintal,
por cima ou por baixo, se chover será fatal.
Um pedaço do inferno, aqui é onde eu estou.
Até o IBGE passou aqui e nunca mais voltou.
Numerou os barracos, fez uma pá de perguntas.
Logo depois esqueceram, filhos da puta!
Acharam uma mina morta e estuprada,
deviam estar com muita raiva.
"Mano, quanta paulada!".
Estava irreconhecível. O rosto desfigurado.
Deu meia noite e o corpo ainda estava lá.
Coberto com lençol, ressecado pelo sol, jogado...
O IML estava só dez horas atrasado!
Sim, ganhar dinheiro, ficar rico, enfim!
Quero que meu filho nem se lembre daqui,
tenha uma vida segura.
Não quero que ele cresça com um "oitão" na
cintura
e uma "PT" na cabeça.
E o resto da madrugada sem dormir, ele pensa
o que fazer para sair dessa situação?
Desempregado, então.
Com má reputação.
Viveu na detenção.
Ninguém confia não.
...e a vida desse homem para sempre foi danificada.
Um homem na estrada...
Um homem na estrada..
Amanhece mais um dia e tudo é exatamente igual.
Calor insuportável, 28 graus.
Faltou água, já é rotina, monotonia.
Não tem prazo pra voltar, hã! já fazem cinco dias!
São dez horas, a rua está agitada,
uma ambulância foi chamada com extrema urgência.
Loucura, violência exagerada!
Estourou a própria mãe, estava embriagado.
Mas bem antes da ressaca ele foi julgado.
Arrastado pela rua o pobre do elemento,
o inevitável linchamento, imaginem só!
Ele ficou bem feio, não tiveram dó.
Os ricos fazem campanha contra as drogas
e falam sobre o poder destrutivo delas.
Por outro lado promovem e ganham muito dinheiro
com o álcool que é vendido na favela.
Empapuçado ele sai, vai dar um rolê.
Não acredita no que vê, não daquela maneira,
crianças, gatos, cachorros disputam palmo a palmo
seu café da manhã na lateral da feira!
Molecada sem futuro, eu já consigo ver:
só vão na escola pra comer, apenas, nada mais!
Como é que vão aprender?
Sem incentivo de alguém, sem orgulho e sem respeito,
sem saúde e sem paz.
Um mano meu tava ganhando um dinheiro,
tinha comprado um carro,
até "rolex" tinha!
Foi fuzilado à queima roupa no colégio,
abastecendo a playboyzada de farinha!
Ficou famoso, virou notícia,
rendeu dinheiro aos jornais, hu!, cartaz à policia
Vinte anos de idade, alcançou os primeiros lugares...
superstar do notícias populares!
Uma semana depois chegou o crack,
gente rica por trás, diretoria!
Aqui, periferia, a miséria é de sobra.
Um salário por dia garante a mão-de-obra.
A clientela tem grana e compra bem,
tudo em casa, costa quente de sócio.
A playboyzada muito louca até os ossos!
Vender droga por aqui, grande negócio!
Sim, ganhar dinheiro, ficar rico, enfim,
Quero um futuro melhor, não quero morrer assim,
num necrotério qualquer, como indigente,
sem nome e sem nada... o homem na estrada.
Assaltos na redondeza levantaram suspeitas.
Logo acusaram a favela para variar,
E o boato que corre é que esse homem está,
com o seu nome lá na lista dos suspeitos,
pregada na parede do bar.
A noite chega e o clima estranho no ar,
e ele sem desconfiar de nada, vai dormir tranqüilamente,
mas na calada caguentaram seus antecedentes,
como se fosse uma doença incurável,
no seu braço a tatuagem, DVC, uma passagem , 157 na lei...
No seu lado não tem mais ninguém.
A Justiça Criminal é implacável.
Tiram sua liberdade, família e moral.
Mesmo longe do sistema carcerário,
te chamarão para sempre de ex-presidiário!
Não confio na polícia, raça do caralho!
Se eles me acham baleado na calçada,
chutam minha cara e cospem em mim! É...
Eu sangraria até a morte...
Já era, um abraço!.
Por isso a minha segurança eu mesmo faço.
É madrugada, parece estar tudo normal.
Mas esse homem desperta, pressentindo o mal,
muito cachorro latindo.
Ele acorda ouvindo barulho de carro e passos no quintal.
A vizinhança está calada e insegura,
premeditando o final que já conhecem bem.
Na madrugada da favela não existem leis,
talvez a lei do silêncio,
a lei do cão talvez.
Vão invadir o seu barraco, é a polícia!
Vieram pra arregaçar, cheios de ódio e malícia!
Filhos da puta, comedores de carniça!
Já deram minha sentença e eu nem tava na "treta"!
Não são poucos e já vieram muito loucos!
Matar na crocodilagem, não vão perder viagem.
Quinze caras lá fora, diversos calibres,
e eu apenas com uma "treze tiros" automática.
Sou eu mesmo e eu, meu Deus e o meu orixá.
No primeiro barulho, eu vou atirar.
Se eles me pegam, meu filho fica sem ninguém!
E o que eles querem: mais um "pretinho" na Febem!
Sim, ganhar dinheiro ficar rico enfim,
a gente sonha a vida inteira e só acorda no fim,
minha verdade foi outra, não dá mais tempo pra nada...
(tiros)
(Trecho radiofônico:
"Homem mulato aparentando entre vinte e cinco e trinta
anos
é encontrado morto na estrada do
M'Boi Mirim sem número.
Tudo indica ter sido acerto de contas entre quadrilhas rivais.
Segundo a polícia, a vítima tinha vasta ficha
criminal...)".
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