Texto da palestra conferida durante
o painel "Como construir cidades sustentáveis?", dia 29
de janeiro, Eixo II "O acesso às riquezas e a
sustentabilidade"
A Segurança Pública como Questão
das Esquerdas
Luiz Eduardo Soares
Síntese da apresentação no Fórum
Social Mundial, em 29 de janeiro, 2001.
(Visiting scholar da Columbia
University e do Vera Institute of Justice –a partir
de março de 2001, assessor especial da Prefeitura de Porto
Alegre)
Em primeiro lugar, saúdo a inclusão,
em si mesma ousada e inovadora, do tema "segurança pública"
na agenda do Fórum Social Mundial. O fato é inusitado porque,
infelizmente, na tradição da cultura política brasileira,
aqueles que são sensíveis à urgência dos dramas sociais, com
freqüência negligenciam o tema da segurança, considerando-o vicário,
reflexo, dependente. Essa negligência tem sido responsável por
uma grave capitulação política: uma das maiores preocupações
da sociedade brasileira e, especialmente, das classes subalternas
brasileiras, a segurança pública, foi submetida à liderança
política dos conservadores, com conseqüências desastrosas para
o próprio destino da civilização, no Brasil. A negligência,
apesar de negativa, é compreensível, dadas as ligações entre
certas práticas criminosas e o contexto de opressão sócio-econômica,
o que conduziu as esquerdas a focalizar as causas do problema e a
considerar eticamente hipócrita restringir-se às conseqüências.
Outra razão da negligência é menos nobre: a teoria dogmática
que define, unilateralmente, a polícia e todos os aparelhos de
Estado como instrumentos do domínio de classe, ou até mesmo como
mecanismos da ditadura de classe, para a qual é irrelevante a
diferença entre os regimes políticos.
Eu gostaria de refletir sobre um
exemplo concreto, bem brasileiro, muito presente em algumas metrópoles,
no qual talvez resida o mais difícil desafio da segurança pública:
o tráfico de armas e de drogas. Através do exame desse exemplo,
minha intenção é chamar a atenção seja para as relações
entre exclusão da cidadania e algumas formas da criminalidade
violenta, seja para a necessidade de que nós, das esquerdas, sem
perder de vista a necessidade urgente de agir na esfera das
causas, enfrentemos o problema da segurança pública em sua
especificidade, adotando políticas de segurança criativas,
inteligentes, socialmente sensíveis, participativas,
transparentes, democráticas, sob controle popular, eficientes e
intrinsecamente comprometidas com o respeito aos direitos humanos.
Em outras palavras, proponho ações em dois níveis, para
combater, ao mesmo tempo, a exclusão social e o crime, com eficiência,
mas sem desrespeitar os direitos humanos, jamais. O social e o
econômico sempre estiveram em nossa agenda; a segurança, não.
É tempo de reconhecermos não só a importância de incluí-la,
atendendo ao apelo de toda a sociedade, em particular das classes
populares, como também de compreender que sem o enfrentamento
desse tema, a própria questão social escapará ao nosso foco
–para não mencionar a questão política.
Ao exemplo, portanto: meninos
pobres e negros transitam nas ruas das grandes cidades
brasileiras. Eles são invisíveis; socialmente invisíveis. O
recurso que encontram para reconquistar sua densidade ontológica,
para impor sua presença, para recuperar sua visibilidade, é o
medo. Os meninos impõem o medo para alcançar o reconhecimento de
sua presença, para readquirir visibilidade, identidade interativa
na dialética dos encontros humanos. A violência dos jovens,
nesse caso, é o esforço desesperado de reconstrução do self,
esmagado pela negação social mais drástica, aquela que superpõe,
à discriminação de classe, o estigma da cor. O processo de
afirmação da autoestima através da violência corresponde ao
percurso de um atalho pelo avesso da relação interpessoal. Nesse
quadro perverso, a produção psico-simbólica da masculinidade
tende a acentuar os traços arcaicos e regressivos da misoginia e
da homofobia.
Se o diagnóstico faz sentido, a
terapia mais conveniente seria a devolução coletiva da
visibilidade seqüestrada, não só pela oferta de emprego, não
apenas pela oferta de um lugar subalterno no mundo do trabalho e
das funções sistêmicas da produção e do mercado, mas
sobretudo pela abertura de espaços valorizados de autocriação
simbólico-cultural, para que o trabalho seja também criação,
implique acolhimento nos jogos construtivos da sociabilidade e
capture o imaginário jovem com possibilidades atraentes para a
realização de si mesmo, como pessoa.
Focalizei o nível das causas ou
fontes de alguns tipos de criminalidade e seu entrelaçamento
complexo com os jogos da sociabilidade, dos quais, além do
desemprego e da miséria, fazem parte valores, símbolos,
atitudes, estigmas, linguagens corporais e distintas dramatizações
dos (des)encontros humanos cotidianos. Passo a examinar as conseqüências
do movimento desesperado dos meninos para recuperar visibilidade e
um lugar no mundo. Se estivéssemos editando um filme, faríamos
um corte e lançaríamos os espectadores, pela vertigem de um
zoom, sobre a guerra diária das favelas cariocas. Por um momento,
esqueceríamos o que sabemos sobre o abismo que cava um buraco na
alma dos meninos armados do tráfico. Abismo que é pior que a
fome, que é fonte da dor maior, porque condiciona a própria
capacidade de humanizar-se e beneficiar-se das conquistas
subjetivas e objetivas da civilização. Por um instante, deixaríamos
de lado as almas cavadas e os olhos vazios dos meninos invisíveis
e observaríamos seus deslocamentos nos bairros populares, nas
favelas, nas periferias. O novo foco nos revelaria o avesso da
invisibilidade dos meninos, o avesso de seu sofrimento e de sua
carência essencial: o horror da tirania que encenam e da violência
com que afirmam seu poder.
Surge, então, outro personagem, em
nosso enredo: a população pobre, os moradores das áreas
ocupadas pela tirania armada dos meninos, cuja visibilidade se
reconstruiu no processo de domínio sobre seus irmãos de classe e
de cor, cuja identidade se construiu no exercício do poder arbitrário
sobre um território e seus habitantes. Encontramos, enfim, o novo
terror e a nova invisibilidade provocados pela intervenção ameaçadora
dos meninos em armas. O terror a que está submetida a população
pobre das favelas e a invisibilidade social e política de seu
sofrimento coletivo. A nova invisibilidade só é suspensa por
seus efeitos violentos sobre a cidade: a bala perdida, essa
loteria de tragédias. Eis aí, portanto, a conseqüência
perversa de uma conseqüência perversa, cuja causa primeira é sócio-econômica.
Na medida em que a primeira conseqüência (a invisibilidade dos
meninos pobres) tornou-se causa de outro mal (a tirania exercida
sobre a população pobre), não podemos deixar de enfrentá-la,
simultaneamente ao enfrentamento da primeira causa.
É preciso que se descreva a
tirania do tráfico nas favelas e que se acrescente à descrição
o que tem feito a polícia, intensificando o despotismo. As
liberdades democráticas não vigoram, nas favelas. Lá, a
democracia, mesmo em sua dimensão puramente formal, ainda não
chegou. Estão vedados aos pobres das favelas os benefícios mais
elementares da cidadania. O direito de ir e vir, a liberdade de
expressão, organização e participação política, não têm
vigência. Em outras palavras, no Brasil, a transição democrática
não se completou, ainda que nós tenhamos celebrado o fim da
ditadura e da tortura, com a promulgação de nossa Constituição
democrática, em 1988. A tortura acabou, no Brasil, quando as vítimas
são brancos de classe média. Contra negros e pobres, persiste.
Esse exemplo demonstra que a
segurança é matéria popular, no Brasil (ainda que não seja só
isso). E que restaurá-la equivale à instalação de uma ordem
minimamente democrática, pela qual anseiam as classes
subalternas, expostas ao horror da barbárie. Para fazê-lo, temos
de agir sobre a fonte da invisibilidade dos meninos (com políticas
econômicas, sociais e culturais), mas temos também de agir sobre
a fonte do terror (traficantes e policiais) vivenciado pelos
brasileiros que vivem em favelas e periferias (com políticas de
segurança que reformem radicalmente as polícias e organizem o
sistema institucional de segurança de tal modo que ele possa ser
eficiente, respeitando os direitos humanos –o que exigiria que
assumíssemos a agenda mínima exposta em seguida). Claro que o
problema da segurança pública não se esgota no tráfico armado,
nas favelas e periferias, nem deveria beneficiar exclusivamente
uma classe social. A ênfase justifica-se porque não valeria a
pena reiterar pontos amplamente conhecidos e, sobretudo, porque
minha tese central, nessa apresentação, é a seguinte: o tema da
segurança pública, que já ocupa o topo da agenda popular, deve
ser incorporado à agenda das esquerdas.
Considerando, analiticamente, a
especificidade dos problemas de segurança –sem negar,
entretanto, a necessidade de políticas estruturais--, eis a
agenda mínima para a formulação de uma política verdadeira e
radicalmente democrática, sintetizando as principais propostas
que apresentei em detalhes no livro Meu Casaco de General: modernização
das agências institucionais de segurança, especialmente das polícias
(gerencial e tecnológica, com requalificação
dos profissionais, como pré-condição para que uma política
seja viável –viabilizando-se dados consistentes, diagnóstico
rigorosos, planejamento sistemático e avaliação corretiva
regular-- e para que haja instrumentos de aplicação); moralização
(via controles internos e externos, como a ouvidoria
autônoma e com poder ilimitado de investigação e via indução
positiva, além da valorização profissional dos
policiais, que são, com frequência, submetidos a condições de
trabalho humilhantes e salários indignos) e participação
social.
Articulando os problemas e as políticas,
guardadas suas especificidades e respeitadas as mediações, deveríamos
nos pautar pela idéia matricial, em cujos termos uma boa política
de segurança fosse sempre, também, de alguma forma e em algum nível,
uma política social, econômica e cultural, e vice-versa, uma vez
que essas dimensões são, no fundo, indissociáveis, e não há
chances de êxito com tratamentos parciais, tópicos e fragmentários,
e muito menos com o voluntarismo reativo. Portanto, quando insisto
na necessidade de que as esquerdas tomem para si a questão da
segurança e formule políticas específicas, não pretendo negar
o valor de nossa tradicional sensibilidade para a dimensão sócio-econômica
dos problemas mais graves que se manifestam como criminalidade.
Nem pretendo ser ingênuo e negar que as polícias têm atuado
como guardiãs dos interesses das classes dominantes. Pretendo,
isto sim, evitar que nossa sensibilidade social nos cegue para o
processo de autonomização das conseqüências, quando estas se
convertem em novas causas, cujos efeitos são devastadores e
exigem um enfrentamento específico. As esquerdas precisam de uma
política de segurança e, por seus compromissos com os
oprimidos/as e discriminados/as, por seus compromissos com a
democracia radical, a transparência e a participação, somente
elas serão capazes de combinar eficiência com respeito aos
direitos humanos, e de dirigir as transformações profundas que
essa área está exigindo, no Brasil.
|