Texto da palestra proferida durante
o painel “ Que comércio internacional queremos?”, dia 27 de
janeiro, Eixo I
MARK RICTHIE*
Pretendo dar um outro enfoque,
nesta conferência, em relação à questão do comércio tal como
foi tratada até aqui neste Fórum. Quero discutir este tema sob o
ponto de vista da violência, pois qualquer economia local ou
global que se queira construir depende de como este fenômeno se dá
e de que forma é combatido ou não.
Quando olhamos a história do comércio,
notamos que suas relações com a guerra e a violência sempre
foram bastante estreitas. Por exemplo as ligações mais do que
evidentes que existiram entre o comércio, a colonização,
escravidão e a violência. No século XIX, especialmente nos períodos
de escravidão e da colonização européia, em conflitos como o
da Guerra do Ópio entre ingleses e chineses, a relação direta
entre o comércio e a guerra tornou-se muito clara. No século XX,
a Primeira Guerra, por exemplo, foi uma guerra comercial. Também
os conflitos entre colonizadores e países colonizados foi uma
constante nesse século. Ghandi e outros líderes dos movimentos
anticoloniais e antineocoloniais demonstraram claramente que a
ligação entre comércio e violência, comércio e paz, era uma
questão central para a construção de uma nova sociedade. Muitos
líderes socialistas também viram esta conexão.
Houve também outros líderes,
muitos deles socialistas, que tentaram compreender especialmente
as relações comerciais realizadas entre as empresas globais, o
que mostra que isso não é um fenômeno novo, ao contrário, já
é algo que vem acontecendo há muito tempo. Eles refletiram sobre
as razões que estavam por detrás dessas relações e pensaram de
que forma elas poderiam ser regulamentadas pela sociedade. De uma
forma, portanto, que se pudesse controlar e orientar o comércio,
de modo que o comércio ligado à guerra ou ligado à exploração,
ambos produtores de violência, pudessem ser evitados.
Tal preocupação se generalizou
depois do lançamento das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki.
Desde então tornou-se claro para as pessoas preocupadas com o
futuro do planeta que nós já não podíamos aceitar guerras
mundiais, nem as estruturas político-econômicas que levaram à
guerra mundial. Uma vez que elas tinham o poder de eliminar toda a
vida da Terra, economistas, socialistas, pensadores e líderes políticos
passaram a lutar para que se criassem instituições,
regras e regulamentos que barrassem o impulso predatório dessas
empresas que estimularam essas guerras.
Todavia, assim como havia este
movimento voltado para regulamentar o comércio, que veio obtendo
alguns êxitos após a Segunda Guerra, houve também uma reação
por parte dessas grandes empresas, que se organizaram de forma a
pressionar e controlar instituições mundiais como a OMC e a ONU.
Assim, tal esforço em tentar criar e firmar instituições
que lidassem com essas ameaças à paz, acabou sendo freado por
essas grandes empresas, que eram, até o ano 2000, dominantes em
relação às regras internacionais para o comércio.
Como foi bem notado aqui neste Fórum,
uma nova reação está se articulando contra estas ameaças,
contra a violência, não apenas as que envolvem o sistema
comercial, mas toda a sociedade. No entanto, discutir e debater não
basta. Nossa tarefa é construir, por meio do poder político, as
instituições e novas relações que tornem o mundo efetivamente
democrático, quer dizer, que respeite os direitos humanos e os de
sustentabilidade, e todas as culturas e todos cidadãos.
Não é tão complicado escrever
como esse sistema comercial pode nos levar à paz ao invés da
guerra. Um comércio com regras mais justas, em que se levem em
conta as condições de produção e de consumo, os lucros dos
agricultores, além de permitir que as pessoas consumam e o meio
ambiente não seja destruído. Porém, a metade da população da
Terra não faz parte do sistema comercial. Esse comércio, então,
tem de ser organizado para responder e para respeitar todas as
pessoas que não participam dele.
É preciso existir o comércio para
existir a sustentabilidade. A produção tem de ser sustentável.
O consumo, o transporte, o sistema de recolhimento e reciclagem do
lixo, etc., têm de ser incluídos no tipo de regras e
regulamentos que erijam o comércio que nós queremos.
Naturalmente tem que ser uma coisa democrática. Regras são
importantes, sem dúvida, mas elas devem ser elaboradas de forma
democrática, respeitando os direitos das minorias e de todos os
cidadãos. Essas regras também têm de lidar com todos os grandes
componentes do comércio. Por exemplo: quais as coisas que não
devem ser comercializadas? Homens (escravos), armas nucleares,
entre outras. Assim sendo, temos três tarefas fundamentais: a
primeira delas é atacar e mudar as regras injustas; a segunda,
exigir a aplicação de regras justas; e a terceira, debatermos não
só a respeito daquilo que nos interessa mas também sobre os
interesses das empresas, que muitas vezes acabam se impondo a nós.
Nós verificamos, no entanto, que slogans
e simplificações, apesar de serem muito eficazes para organizar
a nossa luta, são menos eficientes quando precisamos aprofundar
as nossas discussões. Sobretudo quando queremos encontrar soluções.
Por exemplo, há um problema muito sério decorrente das regras
atuais de comércio, que se referem ao Brasil e à África do Sul.
Algumas delas protegem monopólios de remédios que são
importantes para a sobrevivência dos habitantes desses dois países.
São exemplos de regras que precisam ser mudadas e que devem fazer
parte da luta pelos direitos humanos e principalmente dos direitos
à saúde.
Outro exemplo de regras que devem
ser mudadas no âmbito do comércio mundial refere-se à prática
de dumping de produtos, ou seja, o ato de vender produtos
no exterior abaixo do custo de produção. Atualmente, a Europa,
os Estados Unidos lidam dessa forma com muitos de seus
produtos. Temos, então de pressionar o GATT da OMC, para que
aplique suas próprias regras e proíba esta prática.
Há também uma outra questão
bastante nova relativa a isso, que é a questão da água. Todos nós
conhecemos a situação na qual as empresas querem controlar esta
que é uma das últimas commodities naturais. Há
documentos nos quais se reconhece a pretensão das empresas
ligadas a esta área de impedir a discussão sobre
esse assunto. Não querem discutir a questão da água, por
exemplo, em Johannesburgo. As Nações Unidas e outras organizações
não-governamentais querem levar adiante essa discussão e tratar
desse assunto na OMC. Essa é uma das áreas que nós
temos de fazer pressão, muita pressão, para que não transformem
a água em mais um produto dominado pelas regras do
neoliberalismo. Sendo assim, temos de lutar para eliminar as
regras nocivas à humanidade e temos de forçar os governos a
aplicar as regras já existentes que são benéficas para nós e
para o mundo em que vivemos. Temos de pressionar para que o
sistema global de comércio leve à paz e ajude a combater a violência,
antes que seja muito tarde.
Reprodução editada da gravação
da palestra proferida, sem revisão final do expositor.
Mark Ricthie* é norte americano,
presidente do Instituto de Políticas para Agricultura e Comércio
de Minnesota
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