Texto da palestra proferida durante
o painel “Quais são os fundamentos da democracia e de um novo
poder?”, dia 26 de janeiro, Eixo I
MARIA VITÓRIA BENEVIDES*
É uma grande satisfação e uma
grande honra participar deste Fórum Social Mundial. Nesta conferência
vou discorrer sobre quais seriam os fundamentos da democracia e de
um novo poder. Vários aspectos poderiam ser abordados, e eu
escolhi falar sobre a democracia como soberania popular e tocar em
algumas questões por meio das quais poderíamos pensar sobre o
que poderia ser feito no Brasil para obtermos avanços em termos
de novas formas de democracia direta.
Para mim, os fundamentos da
democracia - seus dois grandes pilares - são o regime da
soberania popular ativa e o respeito integral aos direitos
humanos. Direitos humanos entendidos não só como aqueles de
origem liberal, como os direitos individuais e as liberdades
individuais, mas também, e essencialmente, como direitos econômicos
e direitos sociais.
Esta definição de democracia
rompe com aquela visão tradicional que restringe a democracia à
existência de direitos e liberdades individuais, além de eleições
periódicas. Quantas vezes escutamos no Brasil expressões como
esta: estamos vivendo numa democracia plena! Ora, nós todos
sabemos que isso não é verdade. É preciso ter claro, no
entanto, que essa associação entre os dois grandes princípios
– a soberania popular ativa e o respeito integral aos direitos
humanos – como fundamentos da democracia, implica afirmar uma
exigência de que ambos atuem conjuntamente. Isto é, não podemos
ter democracia sem soberania popular, assim como não podemos ter
democracia sem respeito aos direitos humanos. Embora a democracia
signifique governo do povo, a soberania popular sem freios e sem
regras não garante a democracia. Por outro lado, sem a limitação
dos poderes governamentais e sem respeito aos direitos humanos, a
soberania popular ativa tende fatalmente ao abuso da maioria, à
transformação do poder popular sucessivamente em ditadura da
oligarquia partidária e em ditadura de um déspota. Por outro
lado, o mecanismo formal da separação de poderes e a declaração
retórica de direitos humanos, sem que o povo exerça efetivamente
o poder supremo, é mero disfarce de uma dominação oligárquica.
Por que insistimos na expressão
“soberania popular ativa”? A experiência histórica, desde
pelo menos as revoluções burguesas do final do século XVIII,
demonstra claramente que as grandes conquistas da República e da
cidadania – o voto popular e as eleições periódicas – não
tornaram o povo um participante ativo da vida política. É sabido
que o mecanismo de eleição de governantes não impede, por si só,
que uma classe social, um estamento político, um partido político
(como no clássico caso do PRI Mexicano) monopolizem o
poder no que se refere ao processo decisório, sobre as questões
fundamentais da vida política, incluídas aí decisões cruciais
sobre a política econômica.
Ao enfatizar esse princípio
fundamental da soberania popular, estou pressupondo a defesa de
institutos de democracia direta. E no caso brasileiro, uma vez que
eles já existem, garantidos pela Constituição, defendo a sua
efetiva implementação e ampliação. Isso não significa, é
evidente, descartar a democracia representativa, certamente
indispensável e insubstituível nas democracias contemporâneas.
A oposição tradicional entre democracia direta e democracia
representativa está hoje francamente superada e falseia a
realidade. As formas de democracia direta podem servir de
corretivos aos vícios e deturpações da democracia
representativa, tão bem conhecidos entre nós, mas não
substituem as eleições para cargos executivos e cargos
legislativos. Além do mais, é evidente que a soberania popular não
significa a participação integral do povo na vida pública.
Rousseau, o grande e radical
defensor da soberania popular ativa, reconhecia que o povo não
pode abandonar completamente as suas atividades privadas para se
dedicar à administração da coisa pública – o que cabe
obviamente aos governantes. Logo, é preciso distinguir entre uma
ação política em termos de processo decisório - que exige
participação popular - de uma ação política voltada
especificamente para a administração dos negócios públicos.
Cabe ao povo, de forma soberana, participar dos processos decisórios
sobre questões fundamentais de interesse público. E essas questões
fundamentais se referem à organização do Estado (dos seus
poderes, das suas competências e das suas limitações), e aos
objetivos prioritários da ação do Estado. A forma pela qual o
Estado se organiza abrange as questões já mencionadas acerca dos
poderes, das suas competências e limitações; da independência
entre os poderes; do sistema de governo; e do sistema eleitoral.
Nesse campo a soberania popular é exercida pelo poder
constituinte, na feitura e na aprovação de uma nova Constituição,
mas também - o que é muito importante, sobretudo no caso
brasileiro e na atual conjuntura brasileira - o povo deve ter o
direito de participar de mudanças constitucionais, de emendas
constitucionais, juntamente com os outros órgãos pertinentes.
Esses mecanismos de intervenção direta do povo, já acolhidos na
nossa Constituição, são, em relação aos poderes do Estado, o referendum,
o plebiscito, a iniciativa popular legislativa. Eis um breve
exemplo: as mudanças no nosso sistema eleitoral, que terão
certamente um impacto muito grande em termos da participação e
da representação democrática, não podem ser decididas só
pelos parlamentares, que estariam legislando em causa própria.
Mas quais seriam os objetivos da ação
estatal, do ponto de vista dessa democracia, cujos princípios são
a soberania popular e o respeito integral aos direitos humanos? O
artigo terceiro da nossa Constituição Federal afirma, em uma das
mais belas expressões jurídicas dos nossos textos
constitucionais, como objetivos fundamentais da República
Federativa do Brasil: 1o) constituir uma sociedade
livre, justa e solidária; 2o) garantir o
desenvolvimento nacional; 3o) erradicar a pobreza e a
marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; 4o)
promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo,
cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Um belíssimo
programa que identificaria certamente um Estado de Direito democrático
efetivamente comprometido com a justiça social. Sabemos, no
entanto, que essas belas promessas não saíram do papel.
Logo, numa proposta de construção
democrática, são esses princípios garantidos, afirmados na
nossa Constituição, que deverão orientar a participação
popular do povo para, em vista desses objetivos, não apenas
decidir como cobrar, fiscalizar e eventualmente exigir a punição
dos responsáveis por omissão ou negligência. Nesse caso, nós
temos não apenas os instrumentos do referendum, do
plebiscito, da iniciativa popular legislativa, como também o orçamento
participativo, a ação popular, o recall ou revogação de
mandato, os conselhos populares de gestão e fiscalização.
Em relação ao segundo fundamento
da democracia que defendemos, podemos dizer que o sistema dos
direitos humanos está hoje integrado aos planos nacional e
internacional. A integração mundial desse sistema significa a boa
globalização. Isto é, o estabelecimento da cidadania mundial,
que significa impor limites aos princípios da soberania nacional
e da autodeterminação dos povos quando estão em causa violações
claras aos direitos humanos, mesmo que essas violações sejam
feitas em nome da identidade e da tradição cultural.
No plano nacional, tal associação
entre democracia direta e direitos humanos leva à necessidade de
várias medidas em relação às nossas instituições. A
Constituição brasileira, como já se disse, acolheu os
mecanismos de democracia direta. Trata-se de exigir sua efetivação
e a ampliação de seu escopo. Mas o que se deve pleitear como
poder do povo? Primeiro, a aprovação da Constituição, de uma
nova Constituição, e das emendas constitucionais pelo povo e
direito de iniciativa popular em matéria constitucional. A aprovação
de determinadas leis votadas no parlamento e que se referem a
direitos humanos, como a questão da Anistia, por exemplo.
É preciso discutir também acerca
do direito do povo de participar de plebiscitos sobre temas de
grande impacto na vida político-econômica, como questões da
privatização, de adesão a mercados e tratados internacionais,
muitas vezes em prejuízo da nossa atividade econômica. O sistema
de financiamento da Previdência Social, a estabilidade de funcionário
público, etc. Se o povo fosse realmente soberano, o
neoliberalismo não teria sido implementado nem teria sido
vitorioso. O povo não votaria contra os seus mais elementares
interesses e necessidades. A ação popular de anulação de orçamentos,
seja porque não respeitam as diretrizes aprovadas pelo povo, como
as aprovadas no orçamento participativo, seja porque uma
determinada decisão orçamentária aprovada por órgão
parlamentar não abre espaço à realização de políticas públicas
que contemplam os direitos econômicos e sociais, é uma forma de
a população intervir na esfera das decisões político-econômicas.
Um orçamento, por exemplo, que não aloca nenhuma verba de
investimento em educação, como se a educação dependesse apenas
de verbas de custeio.
Uma observação importante se faz
necessária: a ação popular é uma prerrogativa de qualquer
cidadão, mas ela seria certamente mais importante e mais eficaz
se fosse promovida por uma ONG.
Outra medida, além da Ação
Popular, que ampliaria os espaços de participação e fiscalização
dos direitos democráticos garantidos pela Constituição seria a
criação de uma Ouvidoria popular, em que os ouvidores seriam
eleitos pelo povo. Acolheriam queixas e reclamações de cidadãos
contra membros do Ministério Público, contra juizes, que se
revelem omissos, displicentes ou que maltratem os seus jurisdicionários.
Finalmente, teríamos o recall
ou a revogação de mandatos, que seria um controle do povo sobre
seus mandatários, exercido tanto em relação aos mandatos do
Executivo quanto do Legislativo. Acredito que essas breves
propostas possam complementar um quadro de construção de uma
democracia que seja ao mesmo tempo o regime da soberania popular e
do respeito integral aos direitos humanos.
Reprodução editada da gravação
da palestra proferida, sem revisão final do expositor.
Maria Vitória Benevides* é socióloga
e professora da USP
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