A
hora dos bens públicos globais
Na era
da globalização, é cada vez mais urgente propor um novo tipo de
cooperação internacional
Inge Kaul, Le Monde Diplomatique
Publicado em Junho
de 2000
No vocabulário da globalização, "desafios",
"riscos" e "problemas" são palavras
onipresentes. Se este registro faz um apelo à boa vontade dos
atores -- Estados, empresas, organizações não-governamentais (ONGs),
indivíduos -- para "gerir", "levar em conta",
"interpelar as consciências" e se comportar de maneira
cívica, ele esvazia a análise da natureza econômica dos
"desafios" e dos mecanismos que permitiriam respondê-los
de maneira estruturada e eficaz.
Dois eixos de reflexão começam entretanto a emergir, mesmo nos círculos
mais neoliberais:
· o fato de que uma regulamentação excessivamente tolerante num
país faça com que seus custos (sociais, econômicos ou ecológicos)
atinjam outros países é algo não somente injusto como ineficaz;
· as desigualdades crescentes comportam aquilo que os economistas
denominam de importantes "externalidades negativas": a
pobreza de uns mina a prosperidade de outros.
Esta análise se aplica, por exemplo, aos efeitos poluentes que
ultrapassam fronteiras, às epidemias, às privações humanas (a
miséria ou as violações dos direitos fundamentais podem levar
à emigração), ou ainda ao direito dos negócios (os
investidores buscam garantias em um regime de propriedade
intelectual, uma regulamentação bancária etc.).
É preciso, portanto, repensar o equilíbrio entre
"privado" e "público", entre as atividades
dos atores "privados" no cenário global (que comporta
tanto os Estados como as grandes empresas, as ONGs e os indivíduos)
e o domínio público mundial. Como tornar estes diferentes atores
mais responsáveis por seus atos -- e especialmente pelos danos
que possam causar?
A importância dos acordos multilaterais
Esta reflexão impõe a invenção de novas ferramentas
intelectuais -- termos e conceitos que mostrem que, na era da
globalização, a resposta às necessidades "privadas"
(aí compreendidos os interesses nacionais) passa cada vez mais
pela realização de objetivos comuns e pela cooperação
internacional. Neste sentido, o conceito de "bens públicos
globais" é especialmente útil.Existe uma primeira
categoria, tradicional, de bens públicos globais. São aqueles
que se encontram fora dos Estados, ou em suas fronteiras, e cuja
regulação constitui o que se convencionou chamar um problema de
"relações exteriores". Por exemplo, o espaço e os
oceanos, que existiam antes de toda atividade humana, são regidos
por regulamentações internacionais. No século XVII, foram
assinados os primeiros tratados internacionais garantindo o livre
acesso ao alto-mar.
Acordos deste tipo se multiplicarão com a intensificação das
atividades econômicas internacionais durante todo o século XIX e
no início do século XX: transporte de mercadorias e de
correspondência, telecomunicações, aviação civil. Quando
estes acordos são multilaterais e de envergadura planetária,
constituem-se eles próprios num bem público global, uma vez que
criam um quadro regulamentar comum. Este primeiro tipo de bens públicos
globais é mais importante hoje do que nunca, em razão do
crescimento das atividades econômicas internacionais e da
globalização da técnica e das comunicações (Internet).
Harmonização de políticas e mudanças
Entretanto, as questões mundiais que figuram no topo das preocupações
políticas constituem um segundo tipo de bens públicos, que não
estão mais apenas "fora" dos Estados, mas atravessam
fronteiras, saindo assim do campo restrito das "relações
exteriores". Durante muito tempo, consideramos os bens públicos
naturais (a camada de ozônio, por exemplo) como bens gratuitos, e
consumimos estes bens de maneira desenfreada. Medidas corretivas,
como uma redução do uso de clorofluorcarbonos (CFC) e de
energias não renováveis, devem agora ser aplicados em todas as
partes no plano nacional.
Em um sentido, estes bens públicos globais, que se supunha
estarem "fora" dos limites nacionais, tornaram-se
problemas de política nacional. Por outro lado, bens públicos
tradicionalmente considerados como nacionais (a saúde, a gestão
de conhecimentos, a eficácia do mercado, a estabilidade
financeira, ou mesmo a lei, a ordem, os direitos humanos ou a
justiça econômica), ultrapassam o domínio da soberania
nacional. Se, por exemplo, a vigilância de epidemias constitui, há
mais de cem anos, um dos pivôs da cooperação internacional, seu
funcionamento não pode mais apoiar-se sobre a simples coordenação
de sistemas nacionais de alarme. Pois alguns Estados podem ser
tentados a dispensar tais sistemas para dirigir seus orçamentos
para outras prioridades (ou para disfarçar suas dificuldades
sanitárias), fragilizando desta maneira o conjunto do
dispositivo. Dito de outro modo, estas questões de política
mundial exigem, mais do que acordos de princípio (como aqueles
que garantissem a liberdade de circulação de navios estrangeiros
em alto-mar), uma harmonização de políticas nacionais e de
mudanças efetivas neste terreno.
Vocabulário vago e pouco conhecido
Vários fatores explicam a emergência deste novo tipo de bens públicos
globais. Inicialmente, a maior abertura de fronteiras de todos os
tempos facilitou a extensão de "males globais": dumping
social, desvalorização competitiva, e até mesmo comportamentos
de risco (o consumo de tabaco, por exemplo). Em segundo lugar, a
globalização veicula um risco sistêmico global: volatilidade
inerente aos mercados financeiros internacionais, mudança climática
planetária, explosões políticas provocadas pelo crescimento das
desigualdades. Um terceiro fator é o poderio crescente de atores
não-estatais -- do setor privado e de empresas transnacionais,
mas também da sociedade civil e de ONGs. Possuindo objetivos próprios,
estes atores transnacionais pressionam os governos a aderir a
normas políticas comuns, quer se trate de padrões técnicos ou
do respeito aos direitos humanos.Mas os especialistas e responsáveis
políticos sofrem com a ausência de instrumentos em matéria de
orientação pública, e não desenvolveram ainda uma abordagem
satisfatória destas novas realidades. O próprio conceito de bens
públicos globais é pouco conhecido -- a terminologia para
descrevê-los e analisá-los também é pouco desenvolvida.
Em conseqüência disso, o vocabulário utilizado é vago e as técnicas
que permitiriam fazer emergir os bens públicos globais são muito
pouco conhecidas. Como assegurar a produção de um bem? Em se
tratando de bens privados, investimento e produção são em princípio
motivados pela demanda; e as empresas privadas planejam
cuidadosamente sua produção para assegurar eficácia e
competitividade. Por outro lado, a demanda de bens públicos -- e
particularmente a demanda de bens públicos globais -- é
temperada pelo receio de que nem todos venham a pagar a sua parte:
é o problema do "carona" ou free rider.Mas boas intenções
não bastam para produzir bens públicos globais. O protocolo de
Montreal, assinado em 1987 e que visa a reduzir as emissões de
CFC para lutar contra a destruição da camada de ozônio, é uma
rara exceção. Seus objetivos são simples e ele define prescrições
claras, como uma ajuda internacional para que os países mais
pobres possam respeitar seus compromissos internacionais, e
penalidades (sob a forma de sanções comerciais) para os países
que não respeitarem tais prescrições. A exemplo deste
protocolo, existem estratégias de produção de bens públicos
globais, que são contudo pouco conhecidas. 1
Iniciativas específicas e ações conjuntas
Três classes de bens comandam iniciativas específicas:
· Certos bens públicos globais, como o ar puro (ou, mais
modestamente, a redução de gases que ameaçam a camada de ozônio),
colocam em questão a necessidade de uma "iniciativa
adicional". Eles não podem ser produzidos a não ser
adicionando um grande número de contribuições de igual importância.
Dito de outro modo, uma tonelada de gás poluente economizada em
Bangladesh é igual à mesma quantidade economizada no Brasil, no
Peru, nos Estados Unidos ou na Alemanha. É claro que o objetivo não
será atingido a menos que todos os atores aceitem as mesmas
regras, fornecendo uma contribuição conforme as limitações
globais, seja in natura (reduzindo efetivamente suas emissões),
seja em espécie (comprando de outros países direitos de emissão),
seja seguindo a iniciativa preconizada pelos Estados Unidos em
Kyoto, em 1998;
· Para outros bens públicos, a ajuda ao elo mais fraco da cadeia
constitui a melhor estratégia. Por exemplo, para prevenir a
propagação de doenças contagiosas ou para impedir atos de
terrorismo internacional, todos os países devem adotar
conjuntamente medidas profiláticas. Se um determinado país rompe
a cadeia de prevenção, os esforços dos outros serão em vão. O
custo do mal global que resultaria da ausência de ajuda, sendo
muito mais elevado que o custo da ajuda, mostra que é mais eficaz
(e não somente necessário) fornecer um apoio aos agentes mais
fracos da cadeia;
· Alguns bens públicos globais, sobretudo no domínio do
conhecimento, apóiam-se numa descoberta decisiva. Assim, basta
inventar a vacina contra a pólio em um só lugar para poder
utilizá-la em todo o mundo -- sob a condição, contudo, que as
patentes não impeçam o acesso das populações mais pobres às
aplicações destas descobertas 2.Mas a transformação de males públicos
em bens exige um esforço conjunto e sustentado, da base à cúpula,
de incontáveis atores.
Em todos estes casos, um trabalho integrado entre os diferentes
atores, tanto em nível nacional quanto no plano internacional, é
indispensável. O problema é que as orientações decididas na
maior parte dos países carregam a marca de uma distinção
bastante nítida entre "interior" e
"exterior". Tudo o que não envolve diretamente relações
exteriores -- políticas ou comerciais -- é considerado como um
assunto interno. E quase tudo que envolve relações exteriores é
tratado pelo Executivo, especialmente pela esfera diplomática.
Estados atuam como agentes privados
Se, por um lado, nos últimos anos, certos países colocaram em
suas embaixadas especialistas que não pertencem aos quadros
diplomáticos (por exemplo, nos domínios do meio ambiente, do comércio,
das finanças ou da luta contra o tráfico de drogas e o
terrorismo), por outro, esta evolução não modifica em nada o
caráter essencialmente tecnocrático da gestão das relações
internacionais.
Apesar da importância crescente dos bens públicos globais, os
Estados continuam a se comportar no cenário internacional como
atores privados: preocupam-se antes de tudo com o interesse
nacional e consideram freqüentemente que a escolha do melhor, o
mais racional para eles, é esperar que os outros se decidam a
produzir um tal bem público, para depois se beneficiarem dele
gratuitamente -- comportando-se como o "carona".
Refletindo este desinteresse estrutural, o trabalho dos
legisladores nacionais permanece essencialmente reservado ao domínio
interno. Nas delegações que vão às conferências ou aos
congressos internacionais, com raras exceções, os parlamentares
brilham por sua ausência. Freqüentemente, só tomam conhecimento
dos acordos internacionais quando estes estão prontos a ser
traduzidos para as suas respectivas legislações nacionais. 3 E
às vezes até ignoram a existência de certos acordos
internacionais.
Por outra parte, os tomadores de decisões nacionais muitas vezes
não levam em conta os efeitos transnacionais de suas decisões. Não
há quase nada para o meio ambiente além destas "externalidades"
e sua "interiorização" (a consideração de seus
custo) nos debates de orientação nacional.
Uma despesa de 8 trilhões de dólares
Não é surpreendente, portanto, que a cooperação internacional
receba com tanta freqüência verbas orçamentárias
insuficientes. Nos países mais ricos, os fundos destinados aos
trabalhos de preservação do planeta -- assim como as intervenções
em tempos de crise financeira, a proteção da camada de ozônio
ou a luta contra o superaquecimento planetário -- saem dos fundos
de ajuda ao desenvolvimento ou dos fundos de emergência
destinados aos países pobres. Segundo algumas estimativas, cerca
de uma quarta parte dos 50 bilhões de dólares destinados a cada
ano à ajuda internacional ao desenvolvimento são destinados às
perspectivas globais, ou seja, a atividades destinadas a manter um
equilíbrio do mundo mais do que a permitir aos países mais
pobres responder suas necessidades e interesses nacionais
("privados"). Uma reforma urgente, que possibilitasse a
compreensão das arbitragens que são feitas entre estes dois
tipos de ajuda exterior, consistiria em separá-las da
contabilidade pública.
Quanto aos países em desenvolvimento, é raro que disponham de
fundos para participar de projetos internacionais, mesmo que eles
pudessem se dar ao luxo de uma contribuição. A despesa total
anual da cooperação internacional é da ordem de 12 a 15 bilhões
de dólares, enquanto a despesa pública total chega à casa dos
oito trilhões de dólares. Além disso, mesmo que no futuro
viesse a existir uma verdadeira vontade política, os agentes de
decisão se encontrariam de mãos vazias, pela falta de
ferramentas adequadas: algumas poucas análises, raros estudos,
poucas estatísticas sobre as incidências transnacionais, uma
profusão de conflitos entre ministérios e escassos recursos para
concretizar as intenções.
Princípio de uma justiça mundial
O que propor então, diante deste quadro? Em primeiro lugar, um
estudo sistemático do conceito, a análise dos efeitos dos bens públicos
globais sobre a vida cotidiana. Quais são, por exemplo, as
repercussões da estabilidade financeira sobre a situação do
emprego e sobre o sistema das aposentadorias? Quais são os
efeitos do crescimento das desigualdades sobre as migrações
internacionais e sobre a paz? Somente quando a opinião pública
perceber que seu bem-estar depende de bens públicos globais e da
cooperação internacional, os responsáveis políticos sentirão
que seus mandatos devem se confrontar com estas necessidades,
levando o "exterior" (a camada de ozônio) para os temas
problemáticos nacionais e repensando o "interior" (a saúde,
as aposentadorias) como uma questão de política internacional.
Nesta perspectiva, a implicação dos parlamentares nacionais em
todas as decisões relacionadas à cooperação internacional é
uma prioridade, quanto mais não seja para retirar estes problemas
do terreno do "externo", habitualmente confiado aos
tecnocratas, e remetê-lo ao domínio dos cidadãos.
Para tanto, uma condição prévia a toda reflexão sobre os bens
públicos globais é a necessidade de fundá-la sobre o princípio
de uma justiça mundial. Mesmo que um bem global esteja revestido
de um caráter público, nem todos lhe atribuem necessariamente o
mesmo valor. Um banqueiro ocidental dará uma prioridade elevada
à estabilidade financeira, aprovando o controle da malária por
ocasião de suas viagens. Ao contrário, um habitante do Sul
preferirá que se dê prioridade ao controle da doença em
detrimento da estabilidade financeira, uma vez que a volatilidade
da moeda afeta-o menos diretamente. Do mesmo modo, prioridades
diferentes podem ser estabelecidas, de um lado sobre a proteção
da propriedade intelectual, para priorizar os investimentos de
pesquisa privados, e de outro sobre a disseminação de
conhecimentos. Uma reflexão em termos de justiça global deveria
permitir conciliar estas duas exigências.
"Info-ricos" e "info-pobres"
Um programa de bens públicos globais deve levar em conta de modo
eqüitativo as prioridades das diferentes populações envolvidas.
E é preciso evidentemente que estes novos bens públicos não
agravem as desigualdades existentes. A Internet é o exemplo mais
evidente deste dilema: por um lado, ela permite difundir o saber a
um custo muito baixo; e por outro, há a barreira que seu
desenvolvimento provoca entre "info-ricos" e "info-pobres".
De modo similar, a existência de um sistema de livre-comércio --
em si, um bem público global -- prioriza, num mundo desigual, os
mais fortes, e suscita uma desconfiança em torno da política
mundial. A maior parte das negociações internacionais trata dos
bens públicos globais que interessam mais aos países ricos,
negligenciando os interesses de outros países. As prioridades
atribuídas a este ou àquele bem público global são, portanto,
formuladas em função das preferências de um clube de países
ricos. A eqüidade é uma dimensão importante da promoção dos
bens públicos globais, e não é de se espantar que a
desigualdade de representação de interesses nas instâncias
internacionais tenha sido denunciada nas manifestações de
Seattle e de Washington.
"Prioridades globais compartilhadas"
Além de seu valor instrumental, a justiça é em si um bem público
global. É um bem inesgotável -- o fato de um indivíduo ser
tratado com eqüidade não diminui em nada as chances de um outro
ser tratado da mesma forma. Pelo contrário, quanto mais forem
admitidos e incentivados o princípio e a prática da eqüidade,
maior será a confiança de todos em poder se beneficiar dela um
dia. Sem uma justiça que, por definição, deve se aplicar a
todos os povos e em todas as regiões, assim como entre todas as
gerações, é inócuo defender o interesse geral.
A noção de "prioridades globais compartilhadas" existe
há bastante tempo. E ela foi certamente uma fonte de inspiração,
após as duas grandes guerras devastadoras do século XX. A criação
da Organização das Nações Unidas foi motivada por esta
perspectiva. Do mesmo modo, o Plano Marshall de reconstrução da
Europa e, seguindo o mesmo modelo, o sistema internacional de
ajuda ao desenvolvimento para os países mais pobres. Já é tempo
que renasça esta idéia, sob a forma mais atual dos "bens públicos
globais". Esta noção poderia desempenhar um papel decisivo
na transformação em realidade política de uma gestão da
globalização ainda no estágio de uma visão utópica ou de
encantamento ritual.
Traduzido por Marco Aurélio Weissheimer.
* Economista e socióloga, diretora do Departamento de Estudos
sobre o Desenvolvimento, Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD). Este artigo completa a obra Global Public
Goods. International Cooperation in the 21st Century, dirigida
pela autora, com Isabelle Grunberg e Marc A. Stern. Editado por
Oxford University Press, New York, 1999.
1 Ler, de Todd Sandler, "Global Challenges. An Approach to
Environmental, Political and Economic Problems", ed.
Cambridge University Press, Cambridge, 1997 -- para uma abordagem
rigorosa e completa do problema.
2 Ler, de Martine Bulard, "Les firmes pharmaceutiques
organisent l'apartheid sanitaire", Le Monde Diplomatique,
janeiro de 2000.
3 Podemos lembrar, por exemplo, que por ocasião da negociação
do Acordo Multilateral sobre Investimentos (AMI), o presidente da
Comissão de Relações Exteriores da Assembléia Nacional
francesa ignorava "quem negociava o quê e em nome de
quem" (Jack Lang, 4 de dezembro de 1997).
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