Carta
de Porto Alegre pela educação pública para todos
Texto
inicial para "Educação"
FME
27 de
outubro de 2001
Os mais de 15.000 educadores, educadoras, estudantes,
pesquisadores, autoridades, sindicalistas, representantes de múltiplas
e diferentes forças sociais e populares, sujeitos protagonistas
da história e comprometidos com a educação pública, gratuita e
de qualidade para todos os homens e mulheres de todas as idades,
orientações sexuais e pertencimentos étnicos, religiosos e
culturais da Terra, como condição necessária e possível à PAZ
e a melhores perspectivas de vida para a Humanidade, apresentam
aos governos de todos os países e a todos os povos do Mundo as
posições aprovadas durante a plenária final do Fórum Mundial
de Educação.
O período em que vivemos, quando o capital, para aumentar seus
ganhos a concentrações nunca vistas, leva à miséria e à
guerra a grande maioria da população mundial e produz no
abandono e no massacre da infância a mais cruel e desumanizadora
face deste modelo de sociedade, precisa ser entendido como de
ruptura.
Na atual conjuntura internacional, após o ato terrorista de 11 de
setembro, por todos repudiado, ficou mais claro tanto o desequilíbrio
entre o norte e o sul e o fosso crescente entre ricos e pobres
quanto o perigo da violência originária dos irracionalismos que
ameaçam toda forma de civilização. As forças dominantes do
mundo buscam mostrar o momento presente como sendo de catástrofe
mundial. Para a grande maioria dos seres humanos, no entanto, esta
ruptura pode ser vista como a passagem de uma situação para
outra, na qual a solidariedade, a liberdade, a igualdade e o
respeito às diferenças revigoram-se como valores aliados à
compreensão de que existem hoje, no mundo, forças e riquezas
capazes de alimentar os famintos e de fornecer a todos condições
materiais e espirituais, entre as quais salienta-se a educação pública,
gratuita e de qualidade socialmente referenciada.
É neste contexto e como parte dessas forças que se reuniu o Fórum
Mundial de Educação, demonstrando que o momento de passagem vem
sendo construído em todos os cantos da Terra por movimentos
sociais e governos comprometidos com a democracia e com as causas
populares, com a proposição, no campo e na cidade, de
alternativas à excludente globalização neoliberal.
São muitas as frentes de luta, em várias partes do mundo - forças
zapatistas, Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra, movimento
contra o apartheid, contra o neoliberalismo e pela humanidade em
Belém do Pará-Brasil, a 3a Conferência Mundial contra o
Racismo, a Discriminação Racial e a Xenofobia na África do Sul,
a Marcha pela Paz realizada pela ONU em Peruggia e Assis, a Ação
pela Tributação das Transações Financeiras em Apoio ao Cidadão
(ATTAC), entre tantas. Nelas vão sendo encontradas alternativas
populares e democráticas que se opõem às pressões financeiras
representadas pelo Banco Mundial, pela Organização Mundial do
Comércio (especialmente o acordo geral sobre o comércio e os
serviços que põe em perigo a educação pública), pelo Fundo
Monetário Internacional, que dizem “reorganizar a economia do
mundo”.
Neste contexto, entendemos como fundamental aprofundar a
solidariedade e a organização entre os movimentos sociais,
associativos, sindicais e parlamentários, promovendo encontros
mundiais, em vários países e cidades. As reações ocorridas em
Seattle, Davos, Cancun, Quebec e Gênova, as greves e as marchas
realizadas por trabalhadores de diferentes categorias,
especialmente os trabalhadores em educação e os estudantes, o Fórum
Social Mundial e este Fórum Mundial da Educação indicam que,
com os pés no presente, criticando o que de terrível foi feito e
vem sendo feito contra todos os povos, os homens e as mulheres do
mundo vão construindo, com esperança, o futuro. Por isto, é
necessário repudiar a mercantilização da educação que permite
aos países do norte, aproveitando sua posição dominante, atrair
os cérebros dos países do sul através de uma imigração
seletiva. Tudo isto indica a possibilidade de ampliação das
alternativas realmente solidárias, populares e democráticas,
entre elas as relativas à escola pública, gratuita e de
qualidade, em todos os níveis. Neste sentido, entendemos que a
luta contra a globalização neoliberal exige que afirmemos as
soluções já existentes e que busquemos novas oportunidades de
atuação nos âmbitos local, regional, nacional e mundial.
Serão bem-vindas à luta e à concretização de alternativas
populares e democráticas todas as forças, organizações e
setores que entendam a necessidade de uma radical mudança nas
propostas econômicas em curso na escala mundial, bem como nas políticas
públicas nacionais e locais, para permitir a igualitária
distribuição das riquezas, a sustentabilidade meio-ambiental e o
amplo acesso por todos dos bens culturais comuns, entre os quais
todos os tipos de educação, mediatizados pela formação dos
valores de solidariedade, de liberdade e do reconhecimento das
diferenças para a superação dos fatores que criaram e criam
hierarquias entre os seres humanos. A constituição de um projeto
societário em oposição ao modelo de globalização neoliberal
exige a incorporação de crescentes forças a esta luta, apenas
começada, e o combate a todos os fundamentalismos.
Estamos irmanados numa luta pelo entendimento de que, quaisquer
que sejam suas crenças, modos de viver, gostos, sentimentos,
diferenças em termos de necessidades educativas especiais, o ser
humano é sempre um sujeito de direitos. A educação, condição
necessária para o diálogo e para a PAZ, tem um papel importante
nessa luta, na medida em que os tão diversos e sempre coletivos
espaços nos quais ela se dá são lugares de discussão, vivência
e convivência. A escola pública, nesse processo, transforma-se e
se revifica como espaço/tempo de possibilidades para encontros de
homens e de mulheres de todas as idades, com trajetórias até
aqui apenas entrevistas. Assim, ao contrário da afirmação das
forças do capital de que a escola pública já está superada,
reafirmamos sua potência e permanente movimento na reinvenção
do cotidiano de nossas sociedades e na sua própria transformação,
como resultado do protagonismo dos excluídos.
A conquista do poder político em cada situação concreta,
nacional e local é também uma das frentes de luta, já que a
globalização do capital sempre precisou de governos nacionais,
regionais e locais capazes de executar seus planos e fazer valer
sua força. A criação de alternativas às propostas neoliberais
vem sendo construída com governos populares e democráticos,
tecidos com dificuldades e que se configuram como possibilidade
crescente.
A luta por mudanças no mundo do trabalho, na perspectiva de uma
profissionalização sustentável, com acesso de todos à evolução
científico-tecnológica, precisa ser acompanhada de garantias dos
direitos sociais para os trabalhadores e trabalhadoras e de
reconhecimento universal da certificação profissional. Essa luta
mantém relação estreita com as tantas mudanças antes
indicadas, exigindo, assim, a ampliação do conhecimento
humanista, técnico-científico, ético e estético e a incorporação
real do direito às diferenças, para que possamos nos
compreender, nos aproximar e superar hierarquias entre seres
humanos, dadas por gênero, idade ou pertencimentos étnicos,
raciais, religiosos, culturais e políticos. Os
trabalhadores/trabalhadoras da educação têm, com relação a
isso, histórias para contar sobre seus esforços comuns e buscam
crescentemente participar, com os múltiplos movimentos sociais,
na tessitura de um mundo mais justo e pacífico, afirmando a
importância de seu trabalho para a primeira infância, as crianças,
os jovens, os adultos e os velhos.
Este Fórum Mundial de Educação se soma às discussões
realizadas nos diversos fóruns de Educação que aconteceram na
última década em escala mundial, identificados com o ideário
expresso neste documento, e vem indicá-las como eixos prioritários
para o Fórum Social Mundial/2002.
O Fórum Mundial de Educação se apresenta como realidade e
possibilidade na construção de redes que incorporam pessoas,
organizações e movimentos sociais e culturais locais, regionais,
nacionais e mundiais que confirmem a educação pública para
todos como direito social inalienável, garantida e financiada
pelo Estado, nunca reduzida à condição de mercadoria e serviço,
na perspectiva de uma sociedade solidária, radicalmente democrática,
igualitária e justa.
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