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Ninguém sabe como serão as revoluções do século XXI

Entrevista com Daniel Bensaïd por Jean-Michel Helvig para o "Libération"

Combate

Dirigente da Liga Comunista Revolucionaria (LCR, secção francesa da 4a Internacional) e filosofo, re-situa o trotsquismo no nosso tempo.

Daniel Bensaïd nasceu em 1946 em Toulouse, e é desde o fim da década de 60 um dos dinamizadores da corrente trotsquista representada pela LCR. Professor de filosofia na universidade Paris VIII, é autor de inúmeras obras de reflexão teórica sobre os fundamentos do marxismo e do pensamento revolucionário. Últimos livros publicados : les Irréductibles: Théorèmes de la résistance à l'air du temps, ed. Textuel ; e Résistances: essai de taupologie générale, ed. Fayard. Apenas um livro está traduzido para português: “Quem é o juiz ? Para acabar com o tribunal da historia", ed. Piaget

Os trotsquistas estão em todo o lado, mas o trotsquismo em lado nenhum…

É o que Jacques Derrida chamaria uma presença espectral ! Não tenho problemas em me declarar trotsquista frente a um estalinista, como me declaro judeu perante um anti-semita, negativamente e por provocação, mas sem qualquer pânico identitário. Pessoalmente, visto os usos e abusos cometidos, o trotsquismo no singular parece-me tão fantasmagórico como o marxismo no singular. Supõe uma homogeneidade que não existe. Condenadas a uma longa existência marginal, certas correntes provenientes do combate anti-estalinista desenvolveram complexos minoritários. Mas as diferenças entre o envolvimento da LCR na renovação dos movimentos sociais, o admirável isolamento sectário da Lutte Ouvrière [organização trotsquista francesa, encabeçada pela carismática Arlette Laguiller], ou a sobrevivência da corrente dita " lambertista "(1), à sombra da social-democracia, da maçonaria, são cada vez mais claramente perceptíveis.


Dificilmente se compreende a persistência desta família, mesmo recomposta, sem se tentar retirar o fio condutor do corpo doutrinário original…

A corrente formada nos anos 20 e 30, da Oposição de Esquerda na Rússia à criação da 4a internacional em 1938, mais do que pela defesa de um dogma, definiu-se pelas suas respostas a desafios inéditos : a ascensão do fascismo na Europa, a contra-revolução burocrática na União Soviética, o nascimento dos movimentos de libertação nacional, etc. A síntese destas experiências constituiu uma linha de separação tanto em relação à social-democracia como aos partidos comunistas estalinizados.


Essa síntese apoia-se também sobre um certo profetismo de Trotski, que diz que o modelo bolchevique em construção na Rússia em 1917 permanece a referencia fundamental da qual se deve partir, uma vez afastados os erros que o corromperam. Partilha desta ideia?

Ha "lições de Outubro", mas não um "modelo da revolução russa", passando por cima das condições históricas concretas. Quanto ao profetismo, ha que fazer a distinção entre a profecia e o oráculo. O oráculo anuncia uma fatalidade ; a profecia é sempre condicional: o que acontecera se… Inúmeras possibilidades, mais ou menos prováveis, estão sempre abertas, alternativas e bifurcações.


Sobra um modelo revolucionário um pouco congelado desde os anos 20…

Há experiências que têm que se guardar na memória (sob pena de se cair na ilusão da tábua rasa). Ha hipóteses estratégicas a verificar e a corrigir de caminho, mas modelos, nenhum. Ninguém sabe dizer como serão as revoluções do século XXI. Enquanto sistema dominante, o capitalismo só tem alguns séculos. Não é eterno. Acabará, para o melhor e para o pior. Porque entramos numa crise civilizacional de longa duração, onde a redução do mundo a uma medida mercantil é cada vez mais irracional e miserável. O essencial é dar o seu acaso à parte não fatal da historia.


Ha uma questão que parece embaraçar os herdeiros da revolução de Outubro, a da democracia, esse ‘lugar vazio’, para retomar a expressão de Claude Lefort, onde se regulam os conflitos que emanam invariavelmente de qualquer sociedade… (2)


A questão da democracia embaraça muita gente. Quem pode pretender ter respondido à questão ou ao desafio democrático no momento em que o espaço publico reduz-se progressivamente [alusão metafórica no original ao romance de Balzac La peau de Chagrin], em que um Berlusconi privatiza o poder? Reclamamos uma herança do movimento operário que inclui Rosa Luxemburgo (3), que já considerava o pluralismo democrático como uma condição vital das sociedades modernas. O próprio Trotsky, após 20 anos de experiência revolucionária e contra-revolucionária, fez da pluralidade dos partidos políticos e da independência dos sindicatos em relação ao partido e ao estado, uma questão não de oportunidade mas de princípio, na medida em que a sociedade, mesmo após uma alteração das relações de poder, permanece diferenciada e heterogénea.


É cómodo reenviar tudo ao contexto histórico… Você é uma das poucas pessoas, na extrema-esquerda, a realizar uma reflexão teórica, é um filosofo reconhecido, mas na sua obra dos últimos 10 anos, interroga-se exclusivamente sobre as origens da pulsão original que conduz às revoltas, às resistências e revoluções, de Joana d’Arc aos anti-mundializaçao, sem levar inteiramente a peito a re-análise da sua base doutrinal.

Sou um mero professor de filosofia, digamos, um hussardo vermelho da Republica. Nos meus livros, reflecti igualmente sobre a actualidade da critica da economia política (Marx l’intempestif ou la Discordance des temps), ou sobre as condições da democracia política (le Pari mélancolique ou l’Eloge de la résistance à l’air du temps). Mas partilho de um interesse particular pelo espirito de resistência e insubmissão: não se render, não se resignar, não passar para o lado dos vencedores e das vitorias faustosas. A ultima palavra fica sempre por dizer! E não é preciso um "modelo" de justiça ideal ou de sociedade perfeita para se revoltar perante a injustiça. Para saber que o bom direito está do lado dos "Lu" ou "Marks & Spencer" [referência aos planos de restruturação das duas empresas, que darão origem este ano a milhares de despedimentos]


No seu ultimo livro, "Résistances", destaca a figura dos marranos, judeus convertidos à força pela Inquisição, que, fingindo praticar o catolicismo, continuavam secretamente as práticas judaicas. Mas uma vez saboreado o universalismo cristão, nunca mais viriam a regressar à religião dos seus antepassados, à semelhança de um Spinoza que adopta um racionalismo ateu. Em que medida esse percurso de "toupeiras", imposto pelas circunstâncias, condiciona os revolucionários?

Fascino-me, na realidade, pela paciência e fidelidade do marrano. Pela sua fidelidade na infidelidade. Pela mistura de continuidade e metamorfose. Quem poderia pretender sair imune dos desafios do século acabado? Espero bem que saiamos transformados mas de modo nenhum renegados; enriquecidos, mas não arrependidos. Pois que nada de novo se constrói no esquecimento. Invocando o espectro de um comunismo marrano que continuaria a perseguir já não a Europa mas o mundo, quero dizer que o Capital continua, muito mais que no século passado, o grande ídolo tirânico da modernidade, o grande Outro contemporâneo. O meu último livro visa precisamente situar as resistências à contra-reforma liberal na dinâmica histórica e na actualidade política, não num imaginário possível mas na possibilidade real de acção no quotidiano.


Dessa "possibilidade real" parecem implacavelmente excluídos os sociais-democratas, votados à humilhação da traição. Contas feitas, o balanço dos sociais-democratas de mais de um século não é mais defensável que aquele do comunismo organizado?


Não utilizo o termo traição. Para que haja traição, seria necessário que os sociais-democratas fossem infiéis às suas promessas. Eles são antes fieis aquilo em que se tornaram : leais servidores dos dominadores. Alem disso, o balanço do século não se resume a uma comparação binária, seguindo a lógica infeliz do terceiro excluído, dos méritos respectivos entre a social-democracia e o que você chama de " comunismo organizado ", e que eu chamo ditadura estalinista. Lembremos que esses corajosos sociais-democratas foram também os assassinos de Rosa Luxemburgo (ou mais recentemente de Iveton [4])! Se atribuímos sem problemas às revoluções as violências do século, esquecemo-nos frequentemente do que custou à humanidade as revoluções não feitas e as revoluções derrotadas: qual é a responsabilidade dos sociais-democratas de Weimar pela ascenção do nazismo, ou a da IIIª República no surgimento de Vichy?


Mas o debate hoje em dia não é com um Kautsky (5) ou com um Blum (comparados com os nossos Fabius e outros Strauss-khan [respectivamente o actual e o ex-ministro da Economia de Jospin], eles apareceriam como os titãs da luta de classes!). Ele diz respeito à política ‘realmente existente‘ dos governos sociais-democratas. Após ter governado 15 anos nos últimos 20 anos, a esquerda no governo prossegue em França a destruição metódica das conquistas do movimento operário (serviços públicos, segurança social, direito de trabalho). A reconstrução de uma esquerda de esquerda não se fará que na claridade, recusando sacrificar o objectivo às oportunidades, na fidelidade à palavra dada, susceptível de restituir confiança no compromisso político.


Uma nova radicalidade política tem-se manifestado, na qual você se revê, que cultiva a rejeição da esquerda tradicional, colocada ao mesmo nível que a direita. Ralph Nader nos E.U.A. fez perder Gore. Resultado: o abandono do protocolo de Quioto, o desmantelamento de regulamentações publicas… Esta nova radicalidade política não vai também arcar as responsabilidades do que acontecer, ou não, fruto da sua intransigência?


Não se devem inverter as responsabilidades. Porque é que o aumento da abstenção, do voto Nader, ou porque não mesmo de um eleitorado de extrema-esquerda, sancionam as esquerdas liberais ou as esquerdas de direita? É evidente: mais privatizações que com Balladur e Juppé juntos (e dai o poder acrescido dos accionistas e os despedimentos bolsistas), ataques levados a cabo contra os serviços públicos, a aplicação do plano Juppé, introdução anunciada dos fundos de pensão, flexibilidade acrescida, continuação da construção de uma Europa financeira e monetária sem critérios sociais de convergência, aprovação do PARE [Pacte d’Aide au Retour au Emploi, que impõe condições precárias de colocação profissional] exigida pelo patronato, recusa de uma reforma fiscal radical, operação de guerra nos Balcãs sem debate nem voto parlamentar. O barco vai demasiado carregado…



Essa nova radicalidade corresponde ao "espectro" que consta das primeiras linhas do "Manifesto do Partido Comunista" de Karl Marx e que você recorda regularmente como o lema inalterável de uma promessa de emancipação?


O espectro está tanto de volta como por chegar. Se existe, como indica o título de um livro de Luc Boltanski e Eve Chiapello, um "novo espirito do capitalismo" ["un nouvel esprit du capitalisme"(6) ], deve também existir um novo espirito do comunismo. Ele começou a soprar sobre Seattle ou Porto Alegre: "o mundo não é uma mercadoria". O que é que queremos que seja? A resposta procura-se no rescaldo das lutas e das resistências. Mas a questão, que teria parecido despropositada ou descabida há 10 anos, em plena euforia liberal, já não o é. Está colocada. Será necessário dar-lhe uma resposta.


(1) Do nome de Pierre Lambert, pseudonimo de Pierre Boussel, fundador e dirigente do actual Partido Comunista Internacionalista (PCI), fruto de uma cisão da 4a Internacional em 1953.

(2) Claude Lefort, filósofo, é autor nomeadamente de ‘L’invention démocratique’ (ed. Fayard). Pertenceu, com Cornelius Castoriadis, a Socialismo ou Barbárie, grupo trotsquista dissidente do pós-guerra.

(3) Rosa Luxemburgo (1870-1919) fez parte da oposição de esquerda no seio do SPD (partido social-democrata) antes de fundar o partido comunista alemão. Aquando da insurreição revolucionaria que se seguiu à derrota alemã na 1a Guerra Mundial, foi assassinada por oficiais executando a repressão decidida perlo governo de união nacional, no qual participava o SPD.

(4) Fernand Iveton, operário comunista, membro da FLN argelina, preso, torturado e guilhotinado a 11 de Fevereiro de 1957, durante a batalha de Argel, sob o governo de Guy Mollet.

(5) Karl Kautsky (1854-1938). Dirigente social-democrata alemão que criticou Lenine por ter desencadeado a revolução num só pais, a Rússia, onde as condições não eram favoráveis.

(6) Ed. Gallimard, 1999.

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