O Novo Bramanismo
Global e o Significado dos Protestos contra a OMC: Uma entrevista
com Vandana Shiva*
Dra. Vandana
Shiva explica para Rebecca Gordon* e Bob Wing* porque a globalização
e o livre comércio são novas formas de colonialismo e como estas
afetam diversas raças em todo o mundo.
(Entrevista
realizada no dia 4 de março de 2000)
Você
começou sua carreira acadêmica numa área muito teórica que é
a da Física das partículas e, então, migrou para uma área da
ciência que afeta a vida das pessoas diariamente. Essa mudança
foi gradual ou drástica?
Foram
muitas mudanças drásticas. Um grande passo foi eu ter me
envolvido num movimento ecológico na minha região de origem, o
qual visava defender uma floresta no Himalaia chamada "Chipkhu".
Este foi um movimento iniciado por milhares de mulheres unidas
para acabar com o desmatamento no início dos anos 70, muito antes
que a idéia de salvar árvores se difundisse. Foi uma revolta
espontânea, delineada por mulheres e liderada por mulheres.
Como
você provavelmente já sabe, a imprensa norte-americana trata da
globalização como a porta de entrada para um futuro de
prosperidade para todos. Qual sua opinião?
Por eu ser
doutora em Física, posso ver claramente que os sistemas futuros são
conseqüência daquilo que nós vivenciamos no presente. Mas, hoje
em dia, a globalização deixa à margem a grande maioria da
população, tira desta seus direitos democráticos de tomada de
decisão e, como se já não bastasse as limitações da frágil
democracia existente, reduz suas chances ao mínimo através do
totalitarismo corporativo.
Você
quer dizer, por exemplo, que a OMC, impossibilita os países de
desenvolver barreiras tarifárias para prevenir que as importações
prejudiquem a produção local?
A frase “criação
de barreiras tarifárias" soa como se algo indecente
estivesse sendo proposto. Toda a linguagem do livre comércio tem
sido formulada através da mudança de significado de conceitos básicos
que podem ser compreendidos por pessoas comuns, envolvendo-as em
uma nova linguagem em que algumas coisas positivas na sua percepção
se tornem negativas. Entretanto, essas coisas são negativas
somente aos interesses do mercado.
Observe a palavra
“proteção”. Proteger sua comunidade, garantindo que suas
crianças tenham comida suficiente, assegurando que os meios de
sobrevivência não sejam roubados dos pequenos agricultores,
assegurando que suas florestas naturais, seus rios, sua terra e
sua biodiversidade seja protegida. Isso não é apenas proteção,
é obrigação. É absolutamente essencial que protejamos nossa
comunidade, nosso meio-ambiente, nosso meio de vida. Mas “proteção”
– que deriva de uma necessidade política e social e, eu iria
mais longe, moral – foi redefinida pela cultura corporativa como
uma categoria econômica chamada “protecionismo”, a qual as
pessoas devem se opor e que deve ser desmatelado. Proteção não
é protecionismo, porque proteção não pode ser reduzida a um
fenômeno de mercado.
As
gigantes multinacionais da agricultura têm sido muito criticadas
por modificar geneticamente os alimentos. Um exemplo é a soja “Roundup-Ready”,
que pode suportar doses enormes de pesticida. Agora se está
falando em uma nova e “maravilhosa” criação, o "golden
rice" [arroz dourado], o qual supostamente adicionaria
vitamina A na alimentação das pessoas e protegeria os pobres da
cegueira. O que há de errado com esse novo tipo de arroz?
Eu já tive
experiência suficiente com os “milagres” originados na Fundação
Rockefeller. Vou citar algumas razões sobre o porquê do
“golden rice” não ser um milagre, mas sim um desastre. A
Fundação Rockefeller financiou a “Revolução Verde” nos
anos 60, provocando uma mudança na agricultura mundial, que
passou da subsistência e das bases orgânicas (naturais) para a
agricultura totalmente química e não-sustentável. Não se
produziu mais comida, mas se despediu mais pequenos agricultores.
Condenou países de Terceiro Mundo a uma dívida permanente. A Índia
triplicou seus pedidos de empréstimo junto ao Banco Mundial
somente para suprir a nova ordem química da agricultura. Os
demais ciclos de dívida e ajustes estruturais subseqüentes foram
todos relacionados à criação de dependência de substâncias
agroquímicas com financiamento do Banco Mundial e da Fundação
Rockefeller. A cada ano que passava, se introduzia uma nova
qualidade de arroz, que durava um ou dois anos até entrar em
colapso devido à aparição de uma praga. Daí se introduzia uma
nova monocultura. Monoculturas fracassadas não são diversidade!
Mas elas são caminhos considerados ótimos pelas corporações.
Primeiro eles nos venderam as substâncias químicas, depois
sementes que só crescem com o auxílio dessas mesmas substâncias.
Esta é a razão pela qual eles introduziram engenharia genética.
E também o porquê da criação da soja "Roundup-Ready".
O “arroz dourado” é mais um integrante deste pacote. Minha
resposta para a Fundação Rockefeller é: “Por que vocês não
perguntam para as mulheres do Terceiro Mundo sobre as fontes
naturais de vitamina A – as 200 variedades de verduras que
cultivamos nas nossas hortas e centenas de ervas nativas das quais
extraímos vitamina A? Simplesmente visitem o interior africano! Não
é porque eles não têm comprimidos de vitamina A que eles não
obtêm vitamina A. Observe a biodiversidade e conte quantas fontes
desta vitamina existem. E, se não podem fazer isso, nós podemos
organizar aulas conduzidas por estas mesmas mulheres para vocês!”.
Se eles nos empurrarem o “golden rice” como fizeram com a
Revolução Verde onde eu moro, então todos os campos do mundo
estarão infestados deste mesmo arroz! E todos os subsídios da
Rockefeller e da USAID [Agencia Norte-Americana para
Desenvolvimento Internacional], e do Banco Mundial vão acabar com
nossas fontes de vitamina A enquanto pregam estar criando-as.
Você
pode nos falar um pouco sobre os efeitos da globalização sobre
as minorias nos EUA e as pessoas no Terceiro Mundo?
Considere
como, através de patentes, o conhecimento dos nativos americanos
está sendo pirateado em nome da proteção e prevenção contra a
pirataria deste mesmo conhecimento. O conhecimento dos nossos
ancestrais, dos nossos agricultores sobre sementes, está sendo
reivindicado como uma invenção de empresas e cientistas
norte-americanos e sendo patenteado pelos mesmos. A única razão
pela qual isto pode funcionar é porque, por trás de tudo isso,
existe uma estrutura racista que diz que o conhecimento do
Terceiro Mundo e das minorias não é um conhecimento legítimo.
Quando este conhecimento é roubado por brancos que detêm o
capital, repentinamente a criatividade floresce do nada. Sementes
como a do Basmati , um arroz aromático vindo da Índia que temos
cultivado por séculos nos campos da minha região, estão sendo
reivindicadas como uma nova invenção da empresa norte-americana
RiceTec. As empresas estão roubando os últimos recursos naturais
dos pobres, suas sementes. Biopirataria funciona sob uma hipótese
racista – exatamente como ocorreu quando os europeus colonizaram
o resto do mundo 500 anos atrás. Eles definiram todos os territórios
que não tivessem habitantes brancos e europeus como “territórios
desabitados”. O que está acontecendo repetidamente – como no
período da colonização – e que, ao mesmo passo em que o
conhecimento das pessoas e suas criações estão sendo negadas,
estas mesmas estão sendo apropriadas. Agora, quem cria a riqueza?
Na minha opinião, são os trabalhadores. São as mulheres operárias
nas fábricas nos EUA, as pequenas agricultoras da Índia. Mas
quem está criando a riqueza do ponto de vista racista? As
empresas que roubam isto de nós e aqueles jovens rapazes brancos
na Bolsa de Valores ao especularem com as moedas internacionais.
As patentes são uma réplica do colonialismo, que agora é
chamado de globalização e livre comércio. As leis de direito de
propriedade intelectual do GATT (Acordo Geral de Comércio e
Tarifas) criaram o ambiente perfeito para que as empresas
estrangeiras pudessem ter o monopólio e o controle total sobre
nossa produção alimentícia através de patentes que transformam
variedades de sementes tradicionais em híbridos patenteados.
Aqui
nos Estados Unidos, progressistas foram profundamente encorajados
a compreender a expansão da bem-organizada e criativa oposição
à reunião da OMC em Seattle. O que você acha que foi realizado
aqui?
Eu acredito que
duas coisas foram conquistadas. A mais importante foi que mesmo
que as corporações e instituições digam que a globalização
é um fenômeno natural, ficou provado que esta vem sendo
projetada pelas mesmas. Eles até dizem que assim como o sol
nascerá todas as manhãs, a globalização acontecerá
inevitavelmente. O exercício do poder através dos protestos de
pessoas comuns em Seattle para impedir a rodada de conversações
mostrou ao mundo todo que não existe nada de inevitável ou
natural sobre isso. A OMC é um projeto político onde os
poderosos se reúnem. Se as pessoas se reunirem de forma
organizada, podemos acabar com esse projeto. A segunda coisa que
foi conquistada em Seattle foi o cruzamento de questões, a
organização de setores cruzados e a organização além das
fronteiras.
O início deste século
foi a era das grandes revoluções. Todas estas revoluções foram
sumindo junto com todas suas conquistas. Os últimos 50 anos de
ativismo cidadão foram baseados em problemas específicos e
delimitados: mulheres lutando pelos direitos das mulheres,
ambientalistas lutando pelo meio-ambiente, trabalhadores lutando
por seus direitos como trabalhadores. Houve uma divisão total. Não
existia nenhuma sinergia nascendo, ainda que todos estivessem
agindo. Não estava aumentando a luta por uma mudança política.
Cada movimento específico tinha que negociar separadamente, da
estaca zero, enfrentando instituições altamente organizadas e
poderosas, as quais coordenavam o sistema de mão-de-obra, o
meio-ambiente, o Sul, os pobres e as mulheres. Eles tinham um
plano muito bem articulado, e nós estávamos todos fragmentados.
Em Seattle nós nos unimos. E mesmo que só estivessem presentes
meia dúzia de agricultores e mulheres do Terceiro Mundo foram
eles que articularam o plano e as questões.
Como aconteceu
essa união?
Devido a pelo
menos uma década de trabalho anterior a isso. Houve todo um
trabalho de base, alimentado por três movimentos principais.
Primeiro, houve o movimento do Terceiro Mundo contra o ajuste
estrutural dos países proposto pelo FMI e pelo Banco Mundial.
Segundo, os movimentos confrontando o livre comércio, o GATT e a
OMC. Terceiro, os movimentos de caratér específico que
pretendiam criar alianças para que pudéssemos lidar com o livre
comércio e o ajuste estrutural. Em Seattle, as peças do
quebra-cabeças começaram a se encaixar. Na verdade, nós
observamos o advento de um paradigma alternativo baseado no cidadão
de como nós precisamos organizar a economia, governar os
mercados, qual deveria ser o poder dos cidadãos e qual o poder
dos governos e quais limites deveriam ser impostos às gananciosas
corporações.
E uma percepção
de que essa união pode garantir a efetivação destas políticas?
Absolutamente. E
isso é exatamente o que tem sido o trabalho depois de Seattle.
Por exemplo, na Índia nós estamos trabalhando para que ocorra
uma convenção solidária, reunindo cada um dos movimentos
existentes no país – cada sindicato, cada grupo de
agricultores, de mulheres, grupos que apóiam o meio-ambiente, os
que lutam pelas crianças, cada grupo que luta pela paz. Isso foi
possível parcialmente graças a Seattle, pois as pessoas podem
olhar para trás, para o que foi feito lá, e ver que é de fato
possível.
*Dra.
Vandana Shiva é física, ecofeminista, escritora e líder dos
movimentos internacionais contra a globalização e para futura
preservação e desenvolvimento dos conhecimentos e agricultura
dos povos indígenas. Dra. Shiva publicou centenas de artigos e
livros sobre esses assuntos, mais recentemente A Colheita
Roubada: O Contrabando da Provisão Mundial de Alimentos [Stolen
Harvest: The Hijacking of the Global Food Supply]. Como
organizadora, ela fundou e trabalhou junto a muitos grupos. Em
1991, por exemplo, ela fundou Navdanya, uma organização de
agricultores que protege sementes nativas cultivadas por povos indígenas.
*Rebecca Gordon
é uma pesquisadora senior do Centro de Pesquisa Aplicada de
Oakland (Applied Research Center in Oakland) e Bob Wing é o
editor da revista ColorLines.
(Traduzido por
Clarissa Krieck)
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