LIÇÕES
DA DÉCADA DE 90
É
hora de voltar a pensar
Para fazê-lo, é preciso começar
por uma revisão radical dos mitos que vieram ao mundo na década
de 90, e que acabaram confundindo a cabeça de muita gente de boa
vontade
José
Luís Fiori*
Ao começar o novo milênio, ao
contrário do que se poderia imaginar, o Brasil hoje não é um país
sem rumo. Pelo contrário, do ponto de vista do seu governo, tem
objetivos absolutamente claros e metas detalhadas e quantificadas.
Foram definidos por um contrato internacional válido por três
anos e assinado, em 1999, entre o governo brasileiro e o Fundo
Monetário Internacional (FMI), e o Banco de Compensações
Internacionais (BIS). Acordo falimentar que comprometeu o país
com o cumprimento de metas fiscais e monetárias definidas e
controladas trimestralmente, em troca de um empréstimo de US$ 40
bilhões, que permitiu ao governo FHC enfrentar a crise terminal
do Plano Real, protelando seus efeitos mais dramáticos. Erra,
entretanto, quem pensa que esta tutela seja uma mera imposição
externa. Ela é uma opção consciente de nossas elites que, desde
o início dos anos 90, trocaram o seu
"desenvolvimentismo" das décadas anteriores por uma
estratégia de abertura e desregulação econômica com vistas a
uma transnacionalização radical dos centros de decisão e das
estruturas econômicas brasileiras.
Estabilização
monetária e rentismo
Este projeto, entretanto,
aprisionou o país numa armadilha de curto prazo, circular e
cumulativa. Como é sabido, as políticas de estabilização monetária
dos anos 90, ancoradas nas moedas nacionais sobrevalorizadas,
tiveram um relativo sucesso em quase toda a América Latina. Mas
desencadearam, ao mesmo tempo, uma alta das taxas de juros que se
transformou em peça essencial da acumulação rentista da riqueza
privada e em obstáculo intransponível ao crescimento da
economia. Além disto, como as taxas de juros foram
sistematicamente superiores às taxas de inflação e de
crescimento, transformaram-se na principal fonte de expansão dos
desequilíbrios macroeconômicos que aprisionam e paralisam as políticas
públicas, forçando os governos a fazer sucessivos e inúteis
ajustes orçamentários.
Uma década depois de iniciado o
desmonte do desenvolvimentismo, o balanço é claro e pouco
promissor. Do ponto de vista da economia real (e que interessa à
maioria da população), o país teve um crescimento médio anual
de apenas 1,7%, menor que o da década "perdida" de
1980; sua taxa média de desemprego ficou em torno de 7% (e, nas
grandes metrópoles, em torno de 17%); a taxa de investimento não
ultrapassou 18%. Tudo isso enquanto caía a participação dos salários
na renda nacional e aumentava a concentração da renda e da
riqueza. Não é de estranhar, portanto, que a última pesquisa do
Instituto MCI, ligado à Presidência da República e encomendada
pelo PSDB, indique que 61% da população considera que o país
está "no caminho errado" e 64% declare que votará em
qualquer candidato presidencial que seja de oposição a FHC.
Apesar disso, nossas elites econômicas e políticas parecem
decididas a seguir em frente por este caminho. Não apenas por um
problema de subserviência; por uma questão de interesse
corporativo e absolutamente concreto, uma vez que, nesta mesma década
de 90 – a despeito de que a nação fosse mal -- ocorreu um
processo gigantesco de expansão e transferência de riqueza
privada, sobretudo patrimonial, mas que conseguiu premiar quase
todas as frações da burguesia brasileira e de suas oligarquias
regionais de poder.
E
os progressistas?
Para as forças progressistas,
entretanto, o mais complicado, é o fato de que a ampla coalizão
de forças em que se sustenta este projeto de transnacionalização
vem sendo dirigida e às vezes arbitrada – desde 1994 - por um
bloco político-intelectual com forte presença de liberais e
marxistas. Fator decisivo para compreender a paralisia mental de
boa parte da intelectualidade brasileira, que foi seduzida durante
os anos 90 por uma leitura supostamente materialista e realista
das transformações do capitalismo, ocorridas nestes últimos 25
anos. Mudanças que estariam exigindo uma "modernização"
do pensamento progressista, para ajustar-se a uma época em que
teria chegado ao fim a história, a esquerda e o próprio mundo do
trabalho, dando origem a um novo paradigma ou à uma nova
sociedade global, em rede, de serviços, comunicativa etc. Mas a
verdade é que foi em nome destas "novas idéias" que
alguns movidos pelo oportunismo, mas muitos outros pela convicção
sincera, acabaram todos cúmplices ativos ou silenciosos de uma
estratégia que já destruiu quase integralmente o Estado e a nação
brasileira. Por isso, é hora de voltar a pensar, começando por
uma revisão radical dos mitos que vieram ao mundo na década de
90 e que acabaram confundindo a cabeça de muita gente de boa
vontade.
*José
Luiz Fiori é cientista político
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