Barbárie
e modernidade no século 20
Michael Löwy*
A
palavra “bárbaro” é de origem grega. Ela designava, na Antigüidade,
as nações não-gregas, consideradas primitivas, incultas,
atrasadas e brutais. A oposição entre civilização e barbárie
é então antiga. Ela encontra uma nova legitimidade na filosofia
dos iluministas, e será herdada pela esquerda. O termo “barbárie”
tem, segundo o dicionário
, dois significados distintos, mas
ligados: “falta de civilização” e “crueldade de bárbaro”.
A história do século 20 nos obriga a dissociar essas duas acepções
e a refletir sobre o conceito – aparentemente contraditório,
mas de fato perfeitamente coerente – de “barbárie
civilizada”.
Em
que consiste o “processo civilizador”? Como bem demonstrou
Norbert Elias, um de seus aspectos mais importantes é que a violência
não é mais exercida de maneira espontânea, irracional e
emocional pelos indivíduos, mas é monopolizada e centralizada
pelo Estado, mais precisamente, pelas forças armadas e pela polícia.
Graças ao processo civilizador, as emoções são controladas, o
caminho da sociedade é pacificado e a coerção física fica
concentrada nas mãos do poder político.
O que Elias não parece ter percebido é o reverso dessa brilhante
medalha: o formidável potencial de violência acumulado pelo
Estado... Inspirado por uma filosofia otimista do progresso, ele
podia escrever, ainda em 1939: “Comparada ao furor do combate
abissínio (...) ou daquelas tribos da época das grandes migrações,
a agressividade das nações mais belicosas do mundo civilizado
parece moderada (...); ela só se manifesta em sua força brutal e
sem limites em sonho e em alguns fenômenos qu
e nós qualificamos
de ‘patológicos’”.
Alguns
meses depois dessas linhas terem sido escritas, começava uma
guerra entre nações “civilizadas” cuja “força brutal e
sem limites” é simplesmente impossível de comparar com o pobre
“furor” dos combatentes etíopes, tamanha é a desproporção.
O lado sinistro do “processo civilizador” e da monopolização
estatal da violência se manifestou em toda sua terrível potência.
Se
nós nos referimos ao segundo sentido da palavra “bárbaro”
– atos cruéis, desumanos, a produção deliberada de sofrimento
e a morte deliberada de não-combatentes (em particular, crianças)
– nenhum século na história conheceu manifestações de barbárie
tão extensas, tão massivas e tão sistemáticas quanto o século
XX. Certamente, a história humana é rica em atos bárbaros,
cometidos tanto pelas nações “civilizadas” quanto pelas
tribos “selvagens”. A história moderna, depois da conquista
das Américas, parece uma sucessão de atos desse gênero: o
massacre de indígenas das Américas
, o tráfico negreiro, as
guerras coloniais. Trata-se de uma barbárie “civilizada”,
isto é, conduzida pelos impérios coloniais economicamente mais
avançados.
Karl
Marx era um dos críticos mais ferozes desses tipos de práticas
maléficas e destruidoras da modernidade, que para ele estão
associadas às necessidades de acumulação do capital. Em O
Capital, especialmente no capítulo sobre a acumulação
primitiva, encontra-se uma crítica radical dos horrores da expansão
colonial: a escravização ou o extermínio dos indígenas, as
guerras de conquista, o tráfico de negros. Essas “barbáries e
atrocidades execráveis” – que segundo Marx (citando de modo
favorável M.W. Howitt) “não têm paralelo em qualquer outra
era da história universal, em nenhuma raça por mais selvagem,
grosseira, impiedosa e sem pudor que ela tenha sido” – não
foram simplesmente passadas aos lucros e perdas do progresso histórico,
mas devidamente denunciadas como uma “infâmia”.
Considerando algumas das manifestações mais sinistras do
capitalismo, como as leis dos pobres ou os workhouses –
estas “bastilhas de operários” –, Marx escreveu em 1847
esta passagem surpreendente e profética, que parece anunciar a
Escola de Frankfurt: “A barbárie reapareceu, mas desta vez ela
é engendrada no próprio seio da civilização e é parte
integrante dela. É a barbárie leprosa, a barbárie como lepra da
civilização”.
Mas
com o século XX, um limite é transgredido, passa-se a um nível
superior; a diferença é qualitativa. Trata-se de uma barbárie
especificamente moderna, do ponto de vista de seu etos, de
sua ideologia, de seus meios, de sua estrutura. Nós voltaremos a
esse ponto.
A
Primeira Guerra Mundial inaugurou esse novo estágio da barbárie
civilizada. Dois autores, os primeiros, soaram o sinal de alarme,
em 1914-15: Roxa Luxemburgo e Franz Kafka. Apesar de suas
evidentes diferenças, eles têm em comum o fato de terem tido a
intuição – cada um à sua maneira – de alguma coisa sem
precedente que estava para se constituir no curso daquela guerra.
Ao
usar a palavra de ordem “socialismo ou barbárie”, Rosa
Luxemburgo em A crise da social-democracia, de 1915
(assinada com o pseudônimo “Junius”), rompeu com a concepção
– de origem burguesa, mas adotada pela Segunda Internacional –
da história como progresso irresistível, inevitável,
“garantido” pelas leis “objetivas” do desenvolvimento econômico
ou da evolução social. Essa palavra de ordem é sugerida por
certos textos de Marx ou de Engels, mas é Rosa Luxemburgo que dá
a ela essa formulação explícita e elaborada. Ela implica uma
percepção da história como processo aberto, como série de
“bifurcações”, onde o “fator subjetivo” – consciência,
organização, iniciativa – dos oprimidos tornam-se decisivos. Não
se trata mais de esperar que o fruto “amadureça”, segundo as
“leis naturais” da economia ou da história, mas de agir antes
que seja tarde demais.
Porque
o outro lado da alternativa é um sinistro perigo: a barbárie. Em
um primeiro momento ela parece considerar a “recaída na barbárie”
como “a aniquilação da civilização”, uma decadência análoga
àquela da Roma antiga.
Mas logo ela se dá conta que não se trata de uma impossível
“regressão” a um passado tribal, prim
itivo ou “selvagem”,
mas antes, de uma barbárie eminentemente moderna, da qual a
Primeira Guerra Mundial dá um exemplo surpreendente, bem pior em
sua desumanidade assassina que as práticas guerreiras dos
conquistadores “bárbaros” do fim do Império Romano. Jamais
no passado tecnologias tão modernas – os tanques, o gás, a
aviação militar – tinham sido colocadas ao serviço de uma política
imperialista de massacre e de agressão em uma escala tão imensa.
As
intuições de Kafka são de uma natureza totalmente diferente. É
sob a forma literária e imaginária que ele descreve a nova barbárie.
Trata-se de uma novela intitulada A colônia penal: em uma
colônia francesa, um soldado “indígena” é condenado à
morte por oficiais cuja doutrina jurídica resume em poucas
palavras a quintessência do arbitrário: “a culpabilidade não
deve jamais ser colocada em dúvida!”. Sua execução deve ser
cumprida por uma máquina de tortura que escreve lentamente sobre
seu corpo com agulhas que o atravessam a frase “Honra teus
superiores”.
O
personagem central da novela não é nem o viajante que observa os
acontecimentos com uma ho
stilidade muda, nem o prisioneiro, que não
reage de modo nenhum, nem o oficial que preside a execução, nem
o comandante da colônia. É a máquina mesma.
Toda
a narrativa gira em torno desse sinistro aparelho (Apparat),
que parece mais e mais, no curso da explicação detalhada que o
oficial dá ao viajante, como um fim em si mesmo. O Aparelho não
está lá para executar o homem, é sobretudo este que está lá
pelo Aparelho, para fornecer um corpo sobre o qual ele possa
escrever sua obra-prima estética, sua inscrição sangrenta
ilustrada de “muitos florilégios e ornamentos”. O oficial
mesmo é apenas um servidor da Máquina e, finalmente, ele mesmo
se sacrifica à esse insaciável Moloch6.
Em
que “máquina de poder” bárbara, em que “aparelho da
autoridade” sacrificador de vidas humanas, pensava Kafka? A
colônia penal foi escrita em outubro de 1914, três meses após
a eclosão da grande guerra. Há poucos textos na literatura
universal que apresentam de maneira tão penetrante a lógica m
ortífera
da barbárie moderna como mecanismo impessoal.
Esses
pressentimentos parecem se perder nos anos do pós-guerra. Walter
Benjamin é um dos raros pensadores marxistas a compreender que o
progresso técnico e industrial pode ser portador de catástrofes
sem precedentes. Daí seu pessimismo – não fatalista, mas ativo
e revolucionário. Em um artigo de 1929 ele definia a política
revolucionária como “a organização do pessimismo” – um
pessimismo em todas as linhas: desconfiança quanto ao destino da
liberdade, desconfiança quanto ao destino do povo europeu. E
acrescenta ironicamente: “confiança ilimitada somente no IG
Farben e no aperfeiçoamento pacífico da Luftwaffe”.
Ora, mesmo Benjamin, o mais pessimista de todos, não podia
adivinhar a que ponto essas duas instituições iriam mostrar,
alguns anos mais tarde, a capacidade maléfica e destrutiva da
modernidade.
Pode-se
definir como propriamente moderna a barbárie que apresenta as
seguintes características:
-
Utilização de meios técnicos modernos. Industrialização do
homicídio. Exterminação em massa graças às tecnologias científicas
de ponta.
-
Impessoalidade do massacre. Populações inteiras – homens e
mulheres, crianças e idosos – são “eliminados”, com o
menor contato pessoal possível entre quem toma a decisão e as vítimas.
-
Gestão burocrática, administrativa, eficaz, planificada,
“racional” (em termos instrumentais) dos atos bárbaros.
-
Ideologia legitimadora do tipo moderno: “biológica
”, “higiênica”,
“científica” (e não religiosa ou tradicionalista)
-
Todos os crimes contra a humanidade, genocídios e massacres do século
XX não são modernos no mesmo grau: o genocídio dos armênios em
1915, o genocídio levado a cabo pelo Pol Pot no Camboja, aquele
dos tutsis em Ruanda etc. associam, cada um de maneira específica,
traços modernos e traços arcaicos.
Os
quatro massacres que encarnam de maneira mais acabada a
modernidade da barbárie são o genocídio nazista contra os
judeus e os ciganos, a bomba atômica em Hiroshima, o Goulag
estalinista e a guerra norte-americana no Vietnã. Os dois
primeiros são provavelmente os mais integralmente modernos: as câmaras
de gás nazistas e a morte atômica norte-americana contêm
praticamente todos os ingredientes da barbárie tecno-burocrata
moderna.
Auschwitz
representa a modernidade não somente pela sua estrutura de fábrica
de morte, cientificamente organizada e que utiliza as técnicas
mais eficazes. O genocídio dos judeus e dos ciganos é também,
como observa o sociólogo Zygmunt Bauman, um produto típico da
cultura racional burocrática, que elimina da gestão
administrativa toda interferência moral. Ele é, deste ponto de
vista, um dos possíveis resultados do processo civilizador como
racionalização e centralização da violência e como produção
social da indiferença moral. “Como toda outra ação conduzida
de maneira moderna – racional, planificada, cientificamente
informada, gerida de forma eficaz e coordenada – o Holocausto
deixou para trás todos seus pretensos equivalentes pré-modernos,
revelando-os em comparação como primitivos, esbanjadores e
ineficazes. (...) Ele se eleva muito acima dos episódios de genocídio
do passado, da mesma forma que a fábrica industrial moderna está
bem acima da oficina artesanal....”
A
ideologia legitimadora do genocídio é ela também de tipo
moderno, pseudo-científico, biológico, antropométrico,
eugenista. A utilização obsessiva de fórmulas pseudo-medicinais
é característica do discurso anti-semita dos dirigentes
nazistas, o que pode ser notado nas conversações privadas d
eles.
Numa carta a Himmler em 1942, Adolf Hitler insistia: “A batalha
na qual nós estamos engajados hoje é do mesmo tipo que a batalha
liderada, no século passado, por Pasteur e Koch. Quantas doenças
não tiveram sua origem no vírus judeu... Nós não encontraremos
nossa saúde sem eliminar os judeus”.
Em
seu notável ensaio sobre Auschwitz, Enzo Traverso destaca,
com palavras sóbrias, precisas e lúcidas, o contexto do genocídio.
Não se trata nem de uma simples “resistência irracional à
modernização”, nem de um resíduo de barbárie antiga, mas de
uma manifestação patológica da modernidade, do rosto escondido,
infernal, da civilização ocidental, de uma barbárie industrial,
tecnológica, “racional” (do ponto de vista instrumental).
Tanto a motivação decisiva do genocídio – a biologia racial
– quanto suas formas de realização – as câmaras de gás –
eram perfeitamente modernas. Se a racionalidade instrumental não
basta para explicar Auschwitz, ela é sua condição necessária e
indispensável. Encontra-se nos meios de exterminação nazistas
uma combinação de diferentes instituições típicas da
modernidade: ao mesmo tem
po, a prisão descrita por Foucault, a fábrica
capitalista da qual falava Marx, “a organização científica do
trabalho” de Taylor, a administração racional/burocrática
segundo Max Weber.
Este
último tinha intuído, como sublinha Marcuse, a transformação
da razão ocidental em força destrutiva. Sua análise da
burocracia como máquina “desumanizada”, impessoal, sem amor
nem paixão, indiferente a tudo aquilo que não é sua tarefa hierárquica,
é essencial para compreender a lógica reificada dos campos da
morte. Isso vale também para a fábrica capitalista, que estava
presente em Auschwitz, ao mesmo tempo nas oficinas de trabalho
escravo da empresa IG Farben e nas câmaras à gás, lugares de
produção “em cadeia” de mortos. Mas a “solução final”
é irredutível à toda lógica econômica: a morte não é nem
uma mercadoria, nem uma fonte de lucro.
Traverso
critica, de maneira muito convincente, as interpretações –
inspiradas, em um grau ou outro, pela ideologia do progresso –
do nazismo e do genocídio como produto da história do
irracionalismo alemão (Georges Lukács), de uma “saída” da
Alemanha para fora do berço ocidenta
l (Jürgen Habermas) ou de um
movimento de “descivilização” (Entzivilisierung)
inspirado por uma ideologia “pré-industrial” (Norbert Elias).
Se o processo civilizador significa, antes de tudo, a monopolização
pelo estado da violência – como o mostram, depois de Hobbes,
tanto Weber quanto Elias – é necessário reconhecer que a violência
do Estado está na origem de todos os genocídios do século XX.
Auschwitz não representa uma “regressão” em direção ao
passado, em direção a uma idade bárbara primordial, mas é
realmente um dos rostos possíveis da civilização industrial
ocidental. Ele constitui ao mesmo tempo uma ruptura com a herança
humanista e universalista dos Iluministas e um exemplo terrível
das potencialidades negativas e destrutivas de nossa civilização.
Se
o extermínio dos judeus pelo Terceiro Reich é comparável a
outros atos bárbaros, nem por isso ele deixa de ser um evento
singular. É necessário recusar as interpretações que eliminam
as diferenças entre Auschwitz e os campos soviéticos, ou os
massacres coloniais, os pogroms etc..
O crime de guerra que tem mais afinidades com Auschwitz é
Hiroshima, como compreenderam tão bem Günther Anders e Dwight
MacDonald: nos dois casos delega-se a tarefa a uma máquina de
mor
te formidavelmente moderna, tecnológica e “racional”. Mas
as diferenças são fundamentais. Inicialmente, as autoridades
americanas não tiveram jamais como objetivo – como aquelas do
Terceiro Reich – realizar o genocídio de toda uma população:
no caso das cidades japonesas, o massacre não era, como nos
campos nazistas, um fim em si mesmo, mas um simples “meio”
para atingir objetivos políticos. O objetivo da bomba atômica não
era o extermínio da população japonesa como fim autônomo.
Tratava-se sobretudo de acelerar o fim da guerra e demonstrar a
supremacia militar americana face à União Soviética. Em um
relatório secreto de maio de 1945 ao presidente Truman, o Target
Committee – o “Comitê de Alvo”, composto pelos generais
Groves, Norstadt e do matemático Von Neumann – observa
friamente: “A morte e a destruição irão não somente
intimidar os japoneses sobreviventes a fazer pressão pela
capitulação mas também (a bônus) assustar a União Soviética.
Em síntese, a América poderia terminar mais rapidamente a guerra
e, ao mesmo tempo, ajudar à moldar o mundo do pós-guerra”13.
Para obter esses objetivos políticos, a ciência e a tecnologia
mais avançadas foram utilizadas e centenas de milhares de civis
inocentes, homens, mulheres e crianças foram massacrados – sem
falar da contaminação pela irradiação nuclear das gerações
futuras.
Uma
outra diferença com Auschwitz é, sem dúvida, o número bem
inferior de vítimas. Mas a comparação das duas formas de barbárie
burocrático-militar é muito pertinente. Os próprios dirigentes
americanos estavam conscientes do paralelo com os crimes nazistas:
em uma conversa com Truman no dia 6 de junho de 1945, o secretário
de Estado, Stimson, relatava seus sentimentos: “Eu disse a ele
que estava inquieto com esse aspecto da guerra... porque eu não
queria que os americanos ganhassem a reputação de ultrapassar
Hitler em atrocidade”.
Em
muitos aspectos, Hiroshima representa um nível superior de
modernidade, tanto pela novidade científica e tecnológica
representada pela arma atômica, quanto pelo caráter ainda mais
distante, impessoal, puramente “técnico” do ato exterminador:
pressionar um botão, abrir a escotilha que liberta a carga
nuclear. No contexto próprio e asséptico da morte atômica
entregue pela via aérea, deixou-se para trás certas formas
manifestamente arcaicas do Terceiro Reich, como as explosões de
crueldade, o sadismo e a fúria assassina dos oficiais da SS. Essa
modernidade se encontra na cúpula norte-americana que toma –
após
ter cuidadosa e “racionalmente” pesado os prós e os contras
– a decisão de exterminar a população de Hiroshima e Nagasaki:
um organograma burocrático complexo composto por cientistas,
generais, técnicos, funcionários e políticos tão cinzentos
quanto Harry Truman, em contraste com os acessos de ódio
irracional de Adolf Hitler e seus fanáticos.
No
curso dos debates que precederam a decisão de lançar a bomba,
certos oficiais, como o general Marshall, declararam suas
reservas, à medida em que eles defendiam o antigo código
militar, a concepção tradicional da guerra, que não admitia o
massacre intencional de civis. Eles foram vencidos por um ponto de
vista novo, mais “moderno”, fascinado pela novidade científica
e técnica da arma atômica, um ponto de vista que não tinha nada
a ver com códigos militares arcaicos e que não se interessava
senão pelo cálculo de lucros e perdas, isto é, em critérios de
eficácia político-militar.
Seria necessário acrescentar que um certo número de cientistas
que tinham participado, por convicção anti-fascista, nos
trabalhos de preparação da arma atômica, protestaram contra a
utilização de suas descobertas contra a população civil das
cidades japonesas.
p>
Uma
palavra sobre o Goulag estalinista: se há muito em comum com
Auschwitz – sistema concentracionário, regime totalitário,
milhões de vítimas – ele se distingue pelo fato que o objetivo
dos campos soviéticos não era o extermínio dos prisioneiros mas
sua exploração brutal como força de trabalho escrava. Em outras
palavras: pode-se comparar Kolyma e Buchenwald, mas não o Goulag
e Treblinka. Nenhuma contabilidade macabra – como aquela
fabricada por Stéphane Courtois e outros anticomunistas
profissionais – pode apagar essa diferença.
O
Goulag era uma forma de barbárie moderna na medida em que era
burocraticamente administrado por um Estado totalitário e
colocado ao serviço de projetos estalinistas faraônicos de
“modernização” econômica da União Soviética. Mas ele se
caracteriza também por traços mais “primitivos”: corrupção,
ineficácia, arbitrariedade, “irracionalidade”. Ele se situa
por essa razão em um degrau de modernidade inferior ao sistema
concentracionário do Terceiro Reich.
Enfim,
a guerra americana no Vietnã, atroz pelo número de vítimas
civis exterminadas pelos bombardeios, o napalm ou as execuções
coletivas, constitui, em vários aspectos, uma intervenção
extremamente moderna: fundada sobre uma planificação
“racional” – com a utilização de computadores, e de um exército
de especialistas – ela mobiliza um armamento muito sofisticado,
na ponta do progresso técnico dos anos 60 e 70: B-52, napalm,
herbicidas, bombas à fragmentação etc.
Essa
guerra não foi um conflito colonial como os outros: bastava
lembrar que a quantidade de bombas e explosivos lançados sobre o
Vietnã foi superior àquela utilizada por todos os beligerantes
durante a Segunda Guerra Mundial! Como no caso de Hiroshima, o
massacre não era um objetivo em si, mas um meio político; e se a
cifra de mortos é bem superior àquela das duas cidades
japonesas, não se encontra no Vietnã aquela perfeição da
modernidade técnica e impessoal, aquela abstração científica
da morte que caracteriza a morte atômica”.
A
natureza contraditória do “progresso” e da “civilização”
moderna se encontra no coração das reflexões da Escola de
Frankfurt. Em Dialética do Iluminismo (1944), Adorno e
Horkheimer constatam a tendência da racionalidade instrumental de
se transformar em loucura assassina: a “luminosidade gelada”
da razão calculista “carrega a semente da barbárie”. Em uma
nota redigida em 1945 para Minima Moralia, Adorno utiliza a
expressão “progresso regressivo” tentando de dar conta da
natureza paradoxal da civilização moderna.
Entretanto,
essas expressões ainda são tributárias, apesar de tudo, da
filosofia do progresso. Na verdade, Auschwitz e Hiroshima não são
em nada uma “regressão à barbárie” – ou mesmo uma
“regressão”: não há nada no passado que seja comparável à
produção industrial, científica, anônima e racionalmente
administrada da morte em nossa época. Basta comparar Auschwitz e
Hiroshima com as práticas guerreiras das tribos bárbaras do século
IV para se dar conta que
eles não têm nada em comum: a diferença
não é somente na escala, mas na natureza. É possível comparar
as práticas mais “ferozes” dos “selvagens” – morte
ritual do prisioneiro de guerra, canibalismo, redução das cabeças
etc. – com uma câmara de gás ou uma bomba atômica? São fenômenos
inteiramente novos, que não seriam possíveis a não ser no século
XX.
As
atrocidades de massa, tecnologicamente aperfeiçoadas e
burocraticamente organizadas, pertencem unicamente à nossa
civilização industrial avançada. Auschwitz e Hiroshima não são
mais “regressões”: são crimes irremediavelmente e
exclusivamente modernos.
Existe
entretanto um domínio específico da “barbárie civilizada”
em que se pode efetivamente falar de regressão: a tortura. Como
destaca Eric Hobsbawn em seu admirável ensaio de 1994, “Barbárie:
um guia para o usuário”: “A partir de 1782 a tortura foi
formalmente eliminada do procedimento judiciário dos países
civilizados. Em teoria, ela não era mais tolerada nos aparelhos
coercitivos do Estado. O preconceito contra essa prática era tão
forte que ela não pôde retornar após a derrota da Revolução
Francesa que a havia seguramente abolido (...) Pode-se suspeitar
que nos redutos da barbárie tradicional, que resistem ao
progresso moral – por exemplo as prisões militares ou outras
instituições análogas – ela de fato não desapareceu...”
Ora, no século XX, sob o fascismo e o estalinismo, nas guerras
coloniais – Argélia, Irlanda etc. – e nas ditaduras
latino-americanas, a tortura é de novo empregada em grande escala.
Os
métodos são diferentes – a eletricidade substitui o fogo e os
torniquetes – mas a tortura de prisioneiros políticos
tornou-se, no curso do século XX, uma prática rotineira –
mesmo se não-oficial – de regimes totalitários, ditatoriais, e
mesmo, em certos casos (as guerras coloniais), “democráticos”.
Nesse caso, o termo “regressão” é pertinente, na medida em
que a tortura era praticada em inúmeras sociedades pré-modernas,
e também na Europa, da Idade Média até o século XVIII. Um uso
bárbaro que o processo civilizador parecia ter suprimido no curso
do século XIX voltou no século XX, sob uma forma mais
“moderna” – do ponto de vista das técnicas – mas não
menos desumana.
Levar
em conta a barbárie moderna do século XX exige o abandono da
ideologia do progresso linear. Isso não quer dizer que o
progresso técnico e científico é intrinsecamente portador de
malefício – nem tampouco o inverso. Simplesmente, a barbárie
é uma das manifestações possíveis da civilização
industrial/capitalista moderna – ou de sua cópia
“socialista” burocrática.
Não
se trata também de reduzir a história do século XX a seus
momentos bárbaros: essa história conheceu também a esperança,
as sublevações dos oprimidos, as solidariedades internacionais,
os combates revolucionários: México, 1914; Petrogrado, 1917;
Budapeste, 1919; Barcelona, 1936; Paris, 1944; Budapeste, 1956;
Havana, 1961; Paris, 1968; Lisboa, 1974; Manágua, 1979; Chiapas,
1994; foram alguns dos momentos fortes – mesmo se efêmeros –
dessa dimensão emancipadora do século. Eles constituem pontos de
apoio preciosos à luta das gerações futuras por uma sociedade
humana e solidária. (Tradução: Alessandra Ceregatti)
K. Marx, “Arbeitslohn”,
1847, Kleine Ökonomische Schriften, Berlin, Dietz
Verlag, 1955, p.245.
*
Michael Löwy, brasileiro, é sociólogo,
pesquisador do Conselho Nacional de Pesquisa Científica (CNRS)
da França e autor, entre outros, de Revolta de Melancolia:
o romantismo na contra-mão da modernidade.
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