ISRAEL
& EUA
Do apartheid
à guerra aberta
Os massacres
promovidos nas últimas semanas por Israel não são acidente.
Eles surgiram quando o governo Barak radicalizou, com apoio
norte-americano, o projeto estratégico de transformar os árabes
em párias, retalhar seu território por meio da multiplicação
de colônias judaicas e aceitar apenas um Estado palestino
títere.
Noam
Chomsky*
Depois de semanas
de guerra não declarada nos territórios israelenses ocupados, o
primeiro-ministro Ehud Barak anunciou um novo plano para
determinar o status final da região.Durante estas semanas, mais
de cem palestinos foram mortos – incluindo trinta crianças.
Muitas vezes, foi por causa do “uso excessivo de poder letal em
circunstâncias nas quais nem as vidas das forças de segurança,
nem outras, estariam em perigo iminente, resultando em mortes
ilícitas”, concluído pela Anistia Internacional em um
detalhado relatório que foi escassamente mencionado nos EUA. A
proporção de mortes entre palestinos e israelenses foi de 15-1,
em razão dos recursos de poder utilizados.
O
plano de Barak não foi mostrado em detalhes, mas o esboço é
familiar: ele se adequa ao “mapa
de status final” apresentado pelos EUA e Israel como base para
as negociações de Camp David, que fracassaram em julho. Tal
plano propôs a cantonização dos territórios ocupados por
Israel em 1967, com mecanismos que asseguram que as terras
férteis e com recursos (principalmente água) permaneceriam
amplamente em mãos israelenses, enquanto que a população seria
administrada por uma autoridade palestina brutal e corrupta,
assumindo o papel tradicionalmente concedido aos colaboradores
indígenas nas inúmeras formas de controle imperial: a liderança
negra dos bantos da África do Sul, para mencionar somente a
analogia mais óbvia.
Através
das colônias, afastar os palestinos de Jerusalém
Na
parte oeste, o cantão norte incluiria Nablus e outras cidades
palestinas. O cantão central seria baseado em Ramallah e o
cantão sul em Belém. Jericó permaneceria isolada. Os palestinos
seriam efetivamente desligados de Jerusalém, o centro da vida
palestina.
Arranjos
similares estão previstos para Gaza, com Israel mantendo a
região litoral no sul e uma pequena colônia em Netzarim (palco
de muitas das atrocidades recentes), o que é mais do que uma
desculpa para uma massiva presença militar e estradas dividindo a
faixa abaixo da cidade de Gaza. Estas propostas formalizam os
vastos programas de instalação e construção que vêm sendo
conduzidos por Israel, graças à ajuda norte-americana, com uma
energia crescente, desde que os EUA foram capazes de implementar
sua versão do “processo de paz” depois da Guerra do
Golfo.
Para
saber mais sobre as negociações e seu desenrolar, veja meu
comentário de 23/07; e para um pano de fundo maior, o comentário
de Alex e Stephen Shalom, de 10/10. O objetivo das negociações
foi assegurar a adesão formal da Autoridade Palestina a este
projeto. Dois meses após seu colapso, começou a fase atual de
violência. As tensões, normalmente altas, aumentaram quando o
governo de Barak autorizou a visita de Ariel Sharon com mil
policiais aos locais sagrados muçulmanos (Al-Aqsa), numa
terça-feira (28/09). Sharon é o típico símbolo do estado de
terror e agressão israelense, com um rico acervo de atrocidades
que datam de 1953. Seu propósito anunciado foi afirmar a
“soberania judia” no complexo de Al-Aqsa, mas assim como
apontou o veterano correspondente Graham Usher, “a intifada de
Al-Aqsa”, como denominam os palestinos, não começou com a
visita de Sharon; mas antes pela massiva e intimidadora presença
de policiais e militares que Barak introduziu no dia seguinte, o
dia de orações. Previsivelmente, isso provocou conflitos, quando
milhares de pessoas fluíam para fora da mesquita, deixando sete
palestinos mortos e duzentos feridos.
Qualquer
que tenha sido o propósito de Barak, não poderia haver um modo
mais eficiente de montar o palco das chocantes atrocidades das
semanas seguintes. O mesmo pode ser dito sobre as fracassadas
negociações que se centraram em Jerusalém, uma condição
observada estritamente por comentários norte-americanos.
Possivelmente o sociólogo israelita Baruch Kimmerling estava
exagerando quando escreveu que a solução para este problema
“poderia ter sido alcançada em cinco minutos”. Mas ele estava
certo ao dizer que “por nenhuma lógica diplomática esta seria
a questão mais fácil de ser solucionada” (“Ha’aretz”,
04/10).
O
modo seguro de provocar a guerra
É
compreensível que Clinton e Barak queiram omitir o que estão
fazendo nos territórios ocupados, o que é muito mais importante.
Por que Arafat concordou? Talvez porque ele reconheça que os
governantes dos Estados árabes consideram os palestinos um
estorvo e têm poucos problemas com o acordo ao estilo banto. Mas
eles não podem negligenciar a administração dos locais
religiosos, temendo a reação de seus próprios povos. Nada
poderia ter sido mais bem calculado para desencadear um confronto
de cunho religioso – do tipo mais ameaçador, como os séculos
de experiência revelam.
A
inovação primária do novo plano de Barak é que as exigências
dos EUA e Israel sejam impostas pela força, ao invés da
diplomacia coercitiva, e numa forma mais bruta de punir as
vítimas que se recusaram a ceder polidamente. O esboço está de
acordo com as políticas estabelecidas informalmente em 1968 (o
Plano Allon) e suas variantes, que foram propostas desde então
por grupos políticos (o Plano Sharon, os planos do governo
trabalhista e outros). É importante lembrar que as políticas
não foram somente sugeridas, mas também implementadas, com o
apoio dos EUA. Este apoio tem sido decisivo desde 1971, quando
Washington abandonou a estrutura diplomática básica inicial
(Resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas 242) e
adotou a rejeição unilateral dos direitos palestinos nos anos
que se seguiram, culminando no “processo de Oslo”. Uma vez que
tudo isso tem sido efetivamente vetado da história dos EUA, não
é preciso muito para descobrir os fatos essenciais. Eles não
são controversos, somente mal interpretados.
Como
já se notou, o plano de Barak é uma versão particularmente
cruel da familiar rejeição norte-americana e israelense. Ele
promove o corte de energia, água, telecomunicações e outros
serviços, que são fornecidos em esquálidas porções à
população palestina, agora sob cerco virtual. Seria possível
lembrar também que o desenvolvimento independente foi
implacavelmente barrado pelo regime militar de 1967, deixando a
população num estado de penúria e dependência, situação que
piorou consideravelmente durante o “processo de Oslo”
realizado pelos EUA.
Imigrantes
clandestinos, “commodity” essencial
Uma
razão são os “cercamentos” instituídos de modo regular,
mais brutalmente quanto mais dócil é o governo trabalhista. Como
discutido por outra notável jornalista, Amira Hass, esta
política foi iniciada pelo governo de Rabin “anos antes de
Hamas planejar ataques suicidas, e foi aperfeiçoada ao longo dos
anos, especialmente desde o estabelecimento da Autoridade Nacional
Palestina”. Um eficiente mecanismo de estrangulamento e
controle, os cercamentos são acompanhados pela importação de
uma commodity essencial que substitui a mão-de-obra
palestina barata e explorada, na qual muito da economia se apóia:
milhares de imigrantes ilegais de todo o mundo, muitos destes
vítimas das “reformas neoliberais” dos recentes anos de
“globalização”. Sobrevivendo na miséria e sem direitos,
eles são freqüentemente descritos como uma força escrava
virtual pela mídia israelense.
A
atual proposta de Barak é estender tal programa, reduzindo ainda
mais as perspectivas de mera sobrevivência dos palestinos. Uma
grande barreira ao programa é a oposição da comunidade
empresarial israelita, que conta com o mercado cativo palestino
para os US$ 2,5 bilhões de exportações anuais, forjando
“alianças com os oficiais de segurança palestinos” e com o
“conselheiro econômico de Arafat, que lhes permitem retalhar
propriedades palestinas com o consentimento oficial da Autoridade
Palestina” (“Financial Times”, 22/10; “New York Times”,
mesma data). Eles também visam estabelecer zonas industriais nos
territórios, transferindo poluição e explorando uma força de
trabalho barata no estilo das instalações maquiadoras,
possuídas por empresas israelenses e pela elite palestina, que
estão se enriquecendo como sempre.
Ao
invés de limpeza étnica, “transferência invisível”
As
novas propostas de Barak assemelham-se mais a um aviso do que a um
plano, embora elas sejam uma extensão natural do que veio antes.
Assim que forem implementadas, elas ampliarão o projeto de
“transferência invisível”, que tem acontecido há muitos
anos e que faz mais sentido do que a absoluta “limpeza
étnica” (como denominamos o processo quando é realizado por
inimigos oficiais). As pessoas, compelidas a abandonar a
esperança e sem oportunidades para uma existência digna,
vagarão para qualquer outro lugar se tiverem a chance para
isso.
Os
planos, que têm suas raízes nos objetivos tradicionais do
movimento sionista original (pelo espectro ideológico), foram
articulados numa discussão interna do governo árabe israelense
em 1948, enquanto a completa limpeza étnica estava a caminho: a
expectativa era de que os refugiados “seriam esmagados e
mortos”, ao passo que “a maioria deles viraria poeira humana e
o lixo da sociedade, juntando-se às classes mais miseráveis dos
países árabes”. Os planos correntes, ora impostos por
diplomacia coercitiva ora por força absoluta, têm metas
parecidas. Eles não são irrealistas se puderem ter apoio do
poder dominante mundial e de suas classes intelectuais.
A
situação corrente é descrita apuradamente por Amira Hass, no
jornal israelense mais prestigioso (“Ha´aretz”, 18/10). Sete
anos depois da Declaração dos Princípios em setembro de 1993
– que profetizou esta situação para quem quis vê-la –
“Israel tem controle administrativo e de segurança” na
maioria da Margem Oeste e em 20% da Faixa de Gaza. Isso
possibilitou “dobrar o número de colonos em 10 anos, aumentar
as colônias, continuar a política discriminatória de corte de
cotas de água para três milhões de palestinos, impedindo o
desenvolvimento palestino em grande parte da Margem Oeste, e
confinando uma nação inteira em áreas restritas, presas numa
rede de estradas de desvio somente para judeus. Durante estes dias
de severa restrição interna de movimento na Margem Oeste,
pode-se ver como cada estrada foi construída cuidadosamente: se
200 mil judeus têm liberdade de movimento, mais ou menos três
milhões de palestinos estão trancados em seus bantos até
submeterem-se às exigências israelenses. O banho de sangue que
vem acontecendo há semanas é o resultado natural de sete anos de
mentira e decepção, assim como a primeira Intifada foi o
resultado natural da ocupação direta israelense”.
Colônias
de judeus a todo vapor
As
colônias e os programas de construção continuam, com o apoio
dos EUA, quem quer que esteja em serviço no governo. Em 18/08,
“Há´aretz” notou que dois governos – Rabin e Barak –
declararam que o acordo estava “congelado”, seguindo a singela
imagem preferida pelos EUA e pela maioria da esquerda palestina.
Eles fizeram uso da imagem de “congelamento” para intensificar
a criação de colônias, incluindo incentivos econômicos para a
população laica, ganhos automáticos para os assentados
ultra-religiosos e outros artifícios. Estes podem ser realizados
com pouca resistência enquanto que “o mal menor”
aparentemente toma as decisões, modelo bem familiar alhures.
“Há congelamento e há realidade”, o relatório aponta
causticamente. A realidade é que as colônias nos territórios
ocupados aumentaram quatro vezes mais rápido em centros povoados
por israelenses, continuando – talvez acelerando – sob Barak.
As
colônias trazem consigo projetos de alta infraestrutura voltados
a integrar parte da região dentro de Israel, deixando os
palestinos isolados, salvo pelas “estradas palestinas” que
são deixadas à própria sorte. Outro renomado jornalista, Danny
Rubinstein, aponta que “os leitores de jornais palestinos têm a
impressão (certa) de que as atividades nas colônias nunca param.
Israel está constantemente construindo, expandindo e reforçando
os acampamentos judeus na Margem Oeste e em Gaza. Israel está
sempre tomando casas e terras nas áreas que vão além dos
limites de 1967 – e, claro, tudo às custas dos palestinos,
limitando-os e pressionando-os num canto para depois expulsá-los.
Em outras palavras, a meta é despossuí-los eventualmente de sua
terra natal e de sua capital, Jerusalém”. (“Há´aretz”,
23/10)
Os
leitores da imprensa israelense – Rubinstein continua – estão
amplamente protegidos dos fatos incômodos, embora não por
completo. Nos EUA, é muito mais importante manter a população
na ignorância, mas por razões óbvias: os programas econômicos
e militares dependem totalmente do apoio norte-americano, que é
domesticamente impopular e o seria mais ainda se seus propósitos
fossem conhecidos.
EUA,
cumplicidade e mídia silenciosa
Para
ilustração, em 03/10, depois de uma semana de lutas acirradas e
de assassinatos, o correspondente de defesa do “Há´aretz”
relatou “a maior aquisição de helicópteros militares pela
Força Aérea Israelense da década”, um acordo com os EUA para
prover Israel com 35 helicópteros militares Blackhawk e partes
avulsas, por um preço de US$ 525 milhões, mais combustível,
seguindo a recente compra anterior de aeronaves patrulhas e
helicópteros de ataque Apache. Estes são “o mais novo e mais
avançado ataque multi-missionário de helicópteros no
inventário dos EUA”, o “Jerusalem Post” adiciona. Seria
injusto dizer que aqueles que presentearam não podem descobrir os
fatos. Numa pesquisa em banco de dados, David Peterson descobriu
que a notícia saiu na imprensa de Raleigh (Carolina do Norte). A
venda dos helicópteros militares foi condenada pela Anistia
Internacional (19/10), porque estes “helicópteros supridos
pelos EUA têm sido usados para violar os direitos humanos de
palestinos e árabes israelenses durante o recente conflito na
região”. Certamente isto foi antecipado, revelando um
cretinismo avançado.
Israel
foi condenado internacionalmente (com abstenção dos EUA) pelo
“uso excessivo da força, numa reação desproporcionada” à
violência palestina. Isso inclui até mesmo as raras
condenações do ICRC, especificamente, por ataques a pelo menos
18 ambulâncias da Cruz Vermelha (“New York Times”, 04/10). A
resposta de Israel é que as críticas são parciais, e por isso
injustas. A resposta é inteiramente correta. Israel está
empregando a doutrina oficial dos EUA, conhecida aqui como a
“Doutrina Powell”, embora ela seja de longa data – na
verdade de séculos atrás: use a força maciça em resposta a
qualquer ameaça observada.
Sob
as asas da superpotência
A
doutrina oficial israelense permite “o uso máximo de armas
contra qualquer um que coloque em risco vidas e especialmente
contra aqueles que atirem em nossas forças ou em israelenses”
(Conselheiro militar legal israelita Daniel Reisner, “Financial
Times”, 06/10). O uso maciço da força pelo exército moderno
inclui tanques, navios com canhões, armas precisas apontadas
contra civis (geralmente crianças), etc. A venda de armas
norte-americanas “não traz nenhuma cláusula de que não possam
ser usadas contra civis”, diz um oficial do Pentágono. Ele
“considerou, porém, que os mísseis anti-ataque e os
helicópteros de ataque não são tradicionalmente considerados
instrumentos para controle de multidões” – exceto por aqueles
poderosos o bastante para se livrar, debaixo das asas protetoras
da superpotência reinante. “Não podemos prever que um
comandante israelita utilizará um helicóptero Cobra porque suas
tropas estão sendo atacadas”, um outro oficial americano
afirmou (“Deutsche Presse-Agentur”, 03/10). Por isso, tais
máquinas assassinas devem ser fornecidas em ritmo
incessante.
Não
é de se surpreender que um estado cliente dos EUA adote a
doutrina militar padrão norte-americana, o que deixou uma marca
forte demais para ser registrada, em especial nos anos recentes.
Israel e os EUA não estão certamente sozinhos, ao adotar tal
doutrina – e ela é até mesmo condenada às vezes: abertamente,
quando adotada por inimigos que se quer destruir. Um exemplo
recente é a resposta da Sérvia quando seu território (como os
EUA insistem que é) foi atacado por guerrilhas albanesas, que
mataram policiais sérvios e civis e seqüestraram civis
(albaneses incluídos). O propósito, abertamente anunciado, foi
provocar uma “resposta desproporcionada”, que causaria a
indignação ocidental e o ataque militar da OTAN. Documentos
riquíssimos dos EUA, OTAN e outras fontes ocidentais estão
disponíveis agora, muito deles produzidos no esforço para
justificar os bombardeios. Considerando que tais fontes sejam
críveis, concluímos que a resposta sérvia – mesmo sendo sem
dúvida “desproporcionada” e criminosa, como se alegou –
não se compara ao recurso-padrão à mesma doutrina pelos EUA e
seus clientes, incluindo Israel.
Nos
grandes jornais britânicos, podemos finalmente ler que “se os
palestinos fossem negros, Israel seria agora um estado-pária,
sujeito a sanções econômicas aplicadas pelos EUA (o que não é
verdade, infelizmente). O desenvolvimento e as colônias da Margem
Oeste seriam vistos como um sistema de apartheid, no qual
seria permitido à população oprimida viver em uma ínfima
porção de seu próprio país, em “bantos”
auto-administrados, com os “brancos” monopolizando o
suprimento de água e energia. Assim como a presença da
população negra era autorizada nas áreas brancas da África do
Sul, em cidades desgraçadas e sem recursos, o tratamento de
Israel aos árabes israelenses – flagrantemente discriminatório
em relação aos gastos com moradia e educação – seria
reconhecido como escandaloso também” (“Observer”, “Guardian”,
15/10).
Tais
conclusões chegarão sem surpresas àqueles cujos olhos não
foram tapados pelas viseiras doutrinárias impostas por todos
estes anos. Continua sendo uma tarefa maior removê-las nos
Estados Unidos. Isto é um pré-requisito para qualquer reação
construtiva ao crescente caos e destruição, terrível e bem
diante de nossos olhos, e com implicações de longo prazo, que
não é nada agradável observar.
(Traduzido
por Beatriz Alves Leandro)
*
Noam Chomsky é lingüista e ativista político
norte-americano, conhecido também pela profundidade de suas
análises e denúncias sobre a “Nova Ordem” e o papel
imperialista dos EUA
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