Comércio
internacional, finanças e crescimento:
Uma nota sobre a contribuição da UNCTAD
Antonio
Carlos Macedo e Silva
A cada ano, em
meados do segundo semestre, colhe-se a safra maior de relatórios
e manifestações de toda espécie sobre a economia global. Não
por acaso, o fenômeno ocorre nas vizinhanças do encontro, em
Washington, entre FMI e Banco Mundial (no qual, evidentemente, o
G-i da ocasião comparece com destaque). Instituições
multilaterais, think-tanks, lobbies e órgãos da
imprensa; balanços do ano em curso, propostas para as questões
relevantes, palpites e previsões quanto às perspectivas futuras:
ruidosamente, o mundo pensa-se a si próprio.
A recorrência do
fenômeno não é o único fator a determinar certa monotonia.
Ainda que as vozes sejam muitas, cada uma delas em essência
repete, na forma e no conteúdo, suas intervenções passadas. O
FMI e o Banco Mundial hão de congratular-se a si próprios, e um
ao outro;
na prestação de contas aos quotistas, afirmarão sempre terem
feito o melhor possível nas circunstâncias vigentes. O BIS
manterá a compostura que se espera de banqueiros. Em seus surveys
anuais, o Financial Times será circunspecto, enquanto o Economist
preservará o monopólio da mescla peculiar entre conservadorismo
e wit britânico. Mas, para além do estilo e das
idiossincrasias próprios a cada instituição, a monotonia é
reforçada pelo fato de que, afinal, essas vozes harmonizam-se
para compor o arco estreito das opiniões hegemônicas.
Uma instituição,
porém, desafina o coro dos contentes. Faz isso sistemática e
teimosamente, a despeito da quase total indiferença com que é
recebida sua contribuição. Trata-se da UNCTAD, que, também em
meados do segundo semestre, divulga seu Trade and Development
Report (TDR).
O objetivo deste
texto é resenhar o TDR-99, mostrando brevemente como se insere no
esforço de pesquisa e reflexão que a UNCTAD tem desenvolvido
acerca da ordem econômica internacional. Pretende-se, com
brevidade, indicar que, com esse relatório, a UNCTAD como que
conclui um painel abrangente dessa ordem; tal painel é também a
base para uma escalada de suas críticas e para a reivindicação
das bandeiras originais da instituição.
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A respeito do FMI
e do Banco Mundial, pode-se encontrar uma infinidade de teses,
livros e artigos. Há trabalhos de todos os tipos: em tons ora críticos,
ora laudatórios, discutem-se a origem e a evolução, a
institucionalidade, a tomada de decisões, a intervenção em
conjunturas específicas. De fato, é razoável que assim ocorra:
estas duas instituições têm se mostrado, ao menos num certo
sentido, “eficientes”: são think-tanks
responsáveis pela coleta e interpretação de grande massa de
dados; são fóruns em que políticas são, se não definidas,
ao menos sacramentadas; e são também instrumentos mediante os
quais a execução dessas políticas – macro ou microeconômicas
– vem a ser imposta aos países necessitados de seus recursos.
Tal “eficiência”, por outro lado, nada mais é do que a
contrapartida do caráter “aristocrático” dessas instituições,
constitutivamente assimétricas: os países ricos concentram as
quotas e portanto os votos, podendo deliberar, sem maiores
constrangimentos, sobre as políticas a serem adotadas.
– a integração
dos países em desenvolvimento à economia internacional é em si
desejável, desde que atenda a uma série de requisitos:
– deve ocorrer
fundamentalmente por meio do comércio internacional, e não mediante fluxos de
capital, sejam eles investimentos diretos, de porta-fólio ou empréstimos;
– a integração
comercial deve ser negociada de forma a garantir aos países em
desenvolvimento acesso preferencial aos mercados dos países
desenvolvidos;
– o escopo e o
ritmo dessa integração devem ser administrados por medidas de
política econômica definidas no âmbito de cada país em
desenvolvimento;
– os objetivos de
convergência em relação ao nível de renda dos países
desenvolvidos não são garantidos automaticamente pela operação
dos mercados; como
regra geral, não é possível prescindir da intervenção estatal
sobre os mercados.
Tais princípios
orientam a escolha dos temas e o enfoque dos estudos apresentados
nos relatórios. Nos últimos anos, constata-se a presença de
algumas vertentes principais (ver Quadro ao final do texto). Não
é surpreendente que uma delas seja o acompanhamento das negociações
em torno ao comércio internacional e dos resultados dos processos
de liberalização comercial. Uma segunda vertente diz respeito a
questões ligadas às finanças (financiamento e poupança,
liberalização financeira, crises financeiras...). E uma outra
linha de pesquisa consiste na análise de grupos de países,
segundo um corte regional ou econômico; aqui, chama a atenção a
ênfase na experiência do Leste-Asiático, retomada em várias
edições, sem dúvida por representar, na visão da UNCTAD e de
muitos heterodoxos, um desvio significativo (ao menos até
recentemente) em relação às propostas ortodoxas para os países
em desenvolvimento, e possivelmente um modelo para estes.
Uma descrição
circunstanciada das várias contribuições da UNCTAD a respeito
desses temas fugiria ao escopo desta resenha. Entretanto, até mesmo
para situar adequadamente as contribuições do TDR-99, é
conveniente recuperar alguns dos traços mais marcantes da visão
da UNCTAD quanto às características fundamentais da economia
contemporânea.
Ao longo das várias
edições do TDR, é apresentada uma visão bastante abrangente do
cenário econômico global, sem limitar-se àqueles temas de
interesse direto dos países em desenvolvimento. Isso, a meu ver,
não se deve apenas ao fato de que, dada a crescente interdependência
entre os países, se torne cada vez mais difícil empreender uma
análise de caráter parcial. Afora isso, não se deve esquecer
que, devido ao próprio isolamento da instituição, acima
referido, cabe a ela o ônus de articular um discurso alternativo
ao hegemônico; deve responder, ponto por ponto, a um interlocutor
onipresente, cujo discurso articula-se por si próprio, como que
sem esforço, beneficiando-se de imensas economias de escala
possibilitadas pela rede de instituições de ensino e pesquisa
hegemonizadas pela visão liberal. A UNCTAD, na medida em que
busque conferir a sua retórica um mínimo de penetração, deve
procurar demonstrar o interesse comum ao “Norte” e ao
“Sul” em empreender certas reformas estruturais e correções
da política econômica.
Para a UNCTAD –
como, de resto, para muitos outros analistas – o “período pós-Bretton
Woods” é caracterizado, fundamentalmente, pela liberalização
financeira global. Na visão liberal, tal fato simplesmente
restitui ao capitalismo algo que lhe é de direito, e que lhe fora
indevidamente subtraído, primeiro pela instabilidade política no
período entre-guerras, e depois pelo ativismo de corte keynesiano,
predominante ao final da Segunda Guerra. A UNCTAD, por seu turno,
filia-se ao conjunto de tradições heterodoxas (das quais a
keynesiana é somente um exemplo) para as quais a constituição
de uma ordem econômica integralmente liberal, em particular
abrangendo a esfera financeira, representa uma anomalia histórica,
pois tende a gerar forte instabilidade econômica e política.
De fato, a
liberalização financeira está intimamente ligada, para a UNCTAD,
a dois fenômenos recorrentes no cenário recente. De um lado, o
aumento do desemprego estrutural (estudado na parte III do TDR-95).
De outro, o agravamento da freqüência e da intensidade das
crises financeiras (objeto do TDR-98).
As políticas
adotadas pelos países desenvolvidos após o segundo choque do
petróleo produziram, como era esperado, recessão e desemprego. Não
se previa, porém, que a posterior retomada do crescimento se
daria simultaneamente a um aumento do desemprego estrutural na
maioria esmagadora desses países. Em contraposição às explicações
fundadas nas rigidezes do mercado de trabalho ou mesmo na trajetória
do progresso técnico, a UNCTAD explora a hipótese de histerese
de baixo crescimento e alto desemprego, explicada pela interação
entre flexibilização cambial, liberalização financeira e
revolução conservadora nas políticas econômicas. A liberalização
financeira implica tanto a manutenção das taxas reais de juros
em níveis próximos aos patamares historicamente elevados
atingidos após 1979, quanto um aumento da instabilidade nos preços
de ativos financeiros, nas taxas de câmbio e nas próprias taxas
de juros. Maior instabilidade implica maior risco, e maior risco
implica aumento do diferencial entre taxas curtas e longas –
tudo concorre para deprimir o investimento. A retomada do
crescimento, então, dá-se com taxas de investimento
relativamente baixas, a despeito da recuperação dos lucros.
O lento crescimento do produto potencial gera uma escassez
relativa de capital: a capacidade produtiva existente é
insuficiente para garantir o pleno-emprego. Investimento e
crescimento relativamente baixos perpetuam-se em círculo vicioso.
A mesma
liberalização financeira explica o surgimento de um padrão típico
de crises financeiras “pós-Bretton Woods”, cujos traços
gerais podem ser identificados em eventos aparentemente tão
distintos quanto o desastre do Cone Sul, a crise da dívida
latino-americana, a crise bancária e imobiliária
norte-americana, o ataque especulativo contra o sistema monetário
europeu e a crise do Leste-Asiático. Desregulamentação
financeira e liberalização da conta de capital são as causas
habituais, seguidas das habituais conseqüências: no norte,
crises cambiais ou bancárias; no sul, bancárias e cambiais.
São poucas as
possibilidades de pleno-emprego em um só país. O resgate das políticas
fiscal e monetária como instrumentos de crescimento requer a adoção
de medidas – de âmbito global – que reduzam a instabilidade
decorrente dos fluxos de capital. O crescimento requer coordenação,
para viabilizar políticas de controle dos fluxos de capital e
para induzir uma certa sincronização dos estímulos
expansionistas; requer, noutros termos, uma raising all boats
strategy, a qual também deve contemplar a adoção de medidas
direcionadas aos países em desenvolvimento.
A reconstituição
dos requisitos para um crescimento consistente com o
pleno-emprego, evidentemente, é do mais alto interesse também
dos países em desenvolvimento – até mesmo porque, como
salienta o TDR-97, a tão almejada convergência entre as nações
parece ter como condição necessária um ritmo acelerado
de crescimento da economia global. Lamentavelmente, porém, tal
condição – mesmo quando verificada, como nunca antes, durante
a chamada era de ouro de Bretton Woods – mostrou-se muito longe
de ser suficiente. Esta constatação fornece à UNCTAD o mote
para uma retomada da herança estruturalista de reflexão acerca
do desenvolvimento.
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O TDR-99
distingue-se da maior parte dos relatórios publicados a partir de
1989 pela abrangência de sua temática. Nesse sentido, pode ser
visto como um desdobramento do esforço empreendido no TDR-97: em
ambos, procura-se avaliar a performance do conjunto dos países
em desenvolvimento.
“Globalização,
distribuição e crescimento” é o tema de 1997. Dois anos
depois, a ênfase recai sobre “comércio, financiamento e
crescimento”. O escopo semelhante permite que as duas edições
sejam lidas como um único texto – como um esforço de síntese
da visão da UNCTAD e uma aproximação progressiva à questão do
desenvolvimento. Porque, sim, há uma questão do desenvolvimento,
e que consiste, em essência, no fato de que este, ao contrário
do previsto nas teorias tradicionais do crescimento econômico,
está longe de ser um resultado necessário da operação dos
mercados; nas mais variadas circunstâncias atravessadas pelo
capitalismo, das suas origens até hoje, a convergência
beneficiou um número extremamente restrito de países. Assim é
que, no relatório de 1997, convida-se o leitor a examinar a
proposição “desconfortável” segundo a qual “não há lei
econômica que faça com que as economias em desenvolvimento
convirjam automaticamente para os níveis de renda dos países
desenvolvidos” (p. vii).
Para fundamentar
esta tese, o TDR-97 desvela uma perspectiva historicamente ampla,
examinando os vários indicadores de convergência (ou divergência)
a partir de 1870. Não há nenhuma ousadia no procedimento em si
mesmo, de vez que, na literatura econômica recente suscitada pelo
fenômeno da globalização, análises históricas de longo prazo,
comparando grande número de países, têm sido muito freqüentes.
E mais, em boa parte dos casos, os autores –independentemente de
suas distintas visões teóricas – têm estado acordes em
questionar as interpretações mais deslumbradas acerca do caráter
supostamente inusitado das tendências recentes à dita globalização.
Assinalam que, pelo contrário, de vários pontos de vista, a
economia contemporânea apenas reconstitui uma situação de
interdependência semelhante àquela existente no período
1870/1913. Procuram, com base no estudo desse período, encontrar
pistas para a compreensão das tendências contemporâneas. Aqui,
porém, encerra-se o consenso.
A análise dos
dados, apresentada no TDR-97, mostra que, no período, tomando-se
o mundo como um todo, revela-se um claro movimento no sentido da
divergência. Há, sim, exemplos notáveis de convergência, como
na Europa Ocidental e, evidentemente, nos Estados Unidos. Mas são
raros, e a lição por eles ensinada não é propriamente a da
convergência como a recompensa que as leis naturais concedem à
austeridade e ao Estado mínimo.
O cenário não
é substancialmente distinto no período que se estende entre 1950
e 1990. A despeito do crescente econômico até 1973 – este, de
fato, absolutamente inusitado – os exemplos de convergência,
ainda que dramáticos, são ainda pouco numerosos. Há convergência,
novamente, na Europa Ocidental e no Japão, particularmente
durante os anos 50, marcados pelas circunstâncias peculiares da
reconstrução. Para além disso, destaca-se a primeira leva de
tigres asiáticos. De resto, aumenta a divergência global, medida
pela renda, pela produtividade, pelo salário real. Cresce assim a
distância entre Norte e Sul,
como também a dispersão entre os próprios países em
desenvolvimento.
A lição, há
muito identificada pela UNCTAD, é a do sucesso de uma “orientação
para fora”, como a praticada no Japão, na Coréia e em Taiwan,
que absolutamente não se confunde com a idéia liberal de
abertura, mas inclui política industrial vinculada a metas de
competitividade, promoção de exportações acompanhada de proteção
à indústria nascente, incentivo à absorção de tecnologia e ao
upgrading industrial, entre outras características. (Caberá
ao TDR-98, como mencionado acima, assimilar a crise recente no
Leste-Asiático ao padrão geral das crises pós-Bretton Woods,
descartando a interpretação que nela enxerga também a derrocada
do “modelo asiático”.)
A perspectiva de
longo prazo adotada em parte do TDR-97, e acima sumariamente
descrita,
tece o pano de fundo da análise proposta em 1999. Trata-se, então,
de apresentar um balanço da experiência dos países em
desenvolvimento durante os anos 90, caracterizados pela disseminação
e aprofundamento dos processos de liberalização comercial e
financeira. O objetivo do balanço é, como de hábito, servir de
base à elaboração de perspectivas e fundamentar propostas
relativas à política econômica e a itens na pauta das negociações
internacionais.
As primeiras más
novas dizem respeito ao comércio exterior. Num exercício
conceitualmente simples, mas de resultados eloqüentes (p. 78),
demonstra-se que, nos anos 90, para o conjunto dos países em
desenvolvimento, com exclusão da China,
o crescimento mantém-se muito aquém do verificado nos anos 70
(quase dois pontos percentuais ao ano), enquanto o superávit
comercial converte-se em déficit, numa alteração de quase três
pontos do PIB. A exclusão de um segundo grupo peculiar, o dos
exportadores de petróleo, produz uma trajetória na qual,
mantendo-se o déficit comercial em relação ao PIB, o
crescimento piora novamente (embora menos do que para o conjunto
anterior). A trajetória dos países em desenvolvimento não-exportadores
de petróleo da América Latina e da Ásia pode ser descrita
aproximadamente nos mesmos termos.
Nos extremos, estão a China, com aumento estupendo no crescimento
e queda no déficit comercial, e a África sub-saariana – numa
trajetória quase linear de queda no crescimento e aumento do déficit
comercial, dos anos 70 em diante.
Para a UNCTAD, as
explicações do fenômeno devem ser buscadas no comportamento dos
termos de troca e na própria liberalização comercial. Para países
em desenvolvimento não-exportadores de petróleo, os
termos de troca pioram à taxa de 1,5% a.a. desde o início dos
anos 80. O movimento, interrompido no período 1989/96, recomeça
após a crise asiática. Dá indícios de possuir caráter secular
e, embora afete principalmente os países menos desenvolvidos, não
deixa de prejudicar também a países exportadores de manufaturas
(as razões dessa deterioração são essencialmente as mesmas já
apontadas há muito pela CEPAL).
A liberalização
comercial é analisada com base nas experiências de quinze países,
igualmente distribuídos entre América Latina, Ásia e África.
Estuda-se o comportamento do crescimento de exportações e
importações, bem como da taxa real de câmbio, nos dois
primeiros anos após a liberalização e nos dez anos subseqüentes.
Só há cinco países nos quais, ao longo desse segundo período,
o crescimento das exportações alcança ou supera o das importações.
Em muitos casos, a liberalização comercial dá-se no bojo de um new
populist mix (arranjado pelos mesmos críticos do
desenvolvimentismo), que busca fazer das importações de bens de
consumo um fator de alívio de tensões sociais, como as
decorrentes de processos de estabilização). O pacote completo
incluía abertura aos fluxos de capital e valorização cambial,
na maior parte dos casos coroado por um grand finale
composto de déficites comerciais, reversão dos fluxos de capital
e contração econômica.
No front
dos fluxos de capital, as notícias não são muito melhores. A análise
começa por desmistificar a visão dos anos 90 como um período de
inédita fartura. Há, inquestionavelmente, recuperação dos
fluxos de capital para países em desenvolvimento, em relação
aos anos 80; os influxos e as transferências líquidos crescem (essas últimas
haviam sido negativas entre 1983/89), mas para atingir nível
apenas ligeiramente superior (em relação ao PIB) àquele
verificado no período 1975/82. Todavia, a avaliação do
significado desse movimento requer que, dos influxos líquidos,
deduzam-se as “transações financeiras compensatórias”:
compras líquidas de ativos no exterior por residentes, saídas
ilegais e acumulação de reservas. Nos anos 90, a liberalização
financeira permite o aumento do primeiro item (sem que ele
substitua completamente as saídas ilegais), ao mesmo tempo em que
exige dos países em desenvolvimento a acumulação de reservas
muito superiores àquelas determinadas pelas regras de bolso
tradicionais. Assim é que, para um conjunto de 15 economias
emergentes, o volume dessas transações compensatórias sobe de
menos de 30% dos influxos líquidos nos anos 80 para 50% nos anos
90. O resíduo é a contribuição líquida dos movimentos de
capitais ao financiamento da conta corrente: somente 50 centavos
por dólar, contra 72 centavos na década anterior.
O caráter
desfavorável dessas mudanças mostra-se ainda mais grave quando
se tem em conta o papel dos fluxos de curto prazo (que incluem o
investimento de porta-fólio). A despeito do enorme crescimento em
seu volume bruto, sua contribuição ao financiamento da conta
corrente é particularmente pequeno: no período 1990/97, mais de
55% do influxo são absorvidos por saídas de capital, igualmente
de curto prazo, possibilitando a residentes a implementação de
estratégias de diversificação de porta-fólio de interesse
social no mínimo duvidoso; por outro lado em períodos de crise,
os não-residentes vendem seus ativos nos países em
desenvolvimento, ao mesmo tempo em que os residentes,
desesperadamente, buscam comprar ainda mais ativos no exterior...
Em relação ao
investimento direto, por fim, o relatório salienta sua concentração
em uns poucos países, em aquisições de empresas (excluída a
China, 72% do investimento direto cumulativo entre 1992 e 1997) e
em setores non-tradable. As implicações problemáticas
desse perfil, antes de mais nada no que tange às contas externas,
têm sido aludidas à saciedade no debate econômico brasileiro.
Este é o balanço,
pouco animador. Já as perspectivas... são extremamente desfavoráveis
para o mundo em desenvolvimento tomado em conjunto, a menos que
haja reformas estruturais nos planos do comércio e das finanças
internacionais. É necessário, de um lado, criar as condições
para o aumento das taxas de crescimento da economia global. De
outro, as reformas são condição para que esse crescimento possa
acomodar um amplo movimento de convergência por parte dos países
em desenvolvimento.
Como visto acima,
uma das principais teses da UNCTAD é a que vê como um
instrumento indispensável à convergência a integração nacionalmente
administrada à economia internacional, mas fundamentalmente
pela via do comércio, e não dos fluxos privados de capital.
A
primazia do comércio internacional como mecanismo de integração
não se deve apenas – e tampouco fundamentalmente – aos presumíveis
efeitos daquele sobre a alocação estática de recursos, e sim
aos efeitos em termos de geração líquida de renda e de emprego,
de aceleração na acumulação de capital e na absorção de
tecnologia por parte dos países em desenvolvimento.
Para demonstrar o
potencial do comércio exterior, o relatório, em seu último capítulo,
analisa as possibilidades da exportação, pelos países em
desenvolvimento, de alguns produtos nos quais muitos deles
possuem, claramente, vantagens comparativas (calçados, têxteis,
metálicos, plásticos, tabaco...). Ora, como é notório, muitas
dessas indústrias encontram-se justamente entre aquelas mais
protegidas pelos países desenvolvidos. A adoção de políticas
menos protecionistas permitiria fortes ganhos relativos das
exportações dos países em desenvolvimento nos mercados
desenvolvidos e, mesmo, em alguns casos, ganhos absolutos (isto é,
implicando a redução da produção, nos países desenvolvidos,
em setores como, por exemplo, têxteis e calçados). No cenário
mais otimista, a UNCTAD estima que o potencial exportador dos países
em desenvolvimento alcançaria a faixa de US$ 700 bilhões em 2005
(p. 143), o que corresponde a quase o quádruplo do valor médio
anual dos influxos privados de capital estrangeiro aos países em
desenvolvimento nos anos 90. Corresponde, ainda, a aproximadamente
12% do PIB dos países em desenvolvimento, e a menos de 3% do PIB
dos países desenvolvidos. Ressalte-se que a simulação não
contempla a possibilidade de liberalização comercial também no
setor agrícola.
Estes valores
permitem compreender por que razão a UNCTAD, ao aceitar a idéia
de uma nova rodada de negociações internacionais na OMC, propõe
que essa rodada – que se espera seja “do desenvolvimento”
– tenha como prioridade o velho do tema do acesso aos mercados.
Todavia, a própria
interpretação da instituição acerca do significado do comércio
exterior para os países em desenvolvimento conduz a questões e
propostas bem mais amplas do que as do mero acesso aos mercados
desenvolvidos. A integração via comércio exterior confirma-se
como instrumento de desenvolvimento econômico quando permite a
constituição de um círculo virtuoso encadeando aumento de
exportações e do investimento,
maior produtividade, absorção de tecnologia e crescimento da
renda. Para assegurar um processo sustentado de crescimento das
exportações, é necessário que a política industrial e
financeira dos países em desenvolvimento promova – e sem os
empecilhos impostos pela rodada Uruguai – a migração
progressiva rumo a setores mais intensivos em capital e
tecnologia, o que demanda políticas financeiras e industriais, e
entre elas a proteção a indústrias nascentes.
Noutros termos, a
UNCTAD reabilita outra velha fórmula, aquela segundo a qual os países
em desenvolvimento, apresentando “problemas endêmicos de balanço
de pagamentos” (p. 132), devem ser beneficiados por um
tratamento “generalizado e preferencial, não-recíproco e não-discriminatório”.
Por sinal, a instituição assume uma posição agressivamente
revisionista em relação a vários aspectos dos acordos travados
na rodada Uruguai,
seja porque (na antiga tradição do GATT) deixaram de lado questões
de interesse dos países em desenvolvimento, seja porque, ao tratá-las,
definiram procedimentos e cronogramas pouco favoráveis a eles.
Publicado às vésperas
da malfadada reunião ministerial da OMC em Seattle, o relatório
concentra-se nas propostas em relação à ordem comercial. Em
relação à ordem financeira, remete, no essencial, às recomendações
veiculadas em publicações anteriores. Vale destacar, porém, a
ênfase com que se descarta a centralidade da tão discutida questão
do regime cambial. Na contracorrente do debate ocorrido após
1997, o relatório sustenta que “nenhum regime cambial pode
assegurar a estabilidade e a autonomia necessária a uma
performance comercial exitosa, a menos que os fluxos de capital
desestabilizadores sejam colocados sob controle” (p. 128).
~~~~~~
As recomendações
no sentido da revisão dos acordos da rodada Uruguai, a ênfase na
remoção dos obstáculos estruturais impostos pelas forças de
mercado ao desenvolvimento, a muito keynesiana desconfiança em
relação aos fluxos internacionais de capitais: o conjunto dos
TDR apresenta um verdadeiro compêndio das idéias heterodoxas
sobre a ordem econômica internacional, compondo um discurso que
atende aos requisitos de uma peça retórica bem acabada, isto é,
abrangente, clara e consistente.
A indisfarçável
simpatia do autor dessa resenha em relação a essas mesmas idéias
não implica, porém, qualquer sugestão de que a UNCTAD tenha
pronunciado – ou possa vir a fazê-lo – a palavra final sobre
os dilemas do desenvolvimento. Há pontos tratados de forma mais
superficial, refletindo talvez a própria escassez de recursos
intelectuais à disposição da heterodoxia, assim como o caráter
não-acadêmico dos relatórios e da própria instituição, que
deve obrigatoriamente se pronunciar sobre um amplo leque de temas
(de preferência, sem desagradar demasiadamente a seus
constituintes). E há também certas omissões que sem dúvida
reduzem o poder de convencimento de seu discurso.
Curiosamente, uma
das principais omissões diz respeito exatamente a países como o
Brasil e a Índia que, no passado, foram dos principais sustentáculos
do bloco dos 77. A despeito de sua importância econômica e política
– e da presumível especificidade das recomendações de política
econômica
– o caso de países de dimensões continentais tem sido pouco
explorado. A “graduação” dos países em desenvolvimento, aliás,
é um tópico a ser explorado com mais vagar, afinal, a ruptura do
bloco dos países em desenvolvimento (a qual também responde pela
relativamente baixa repercussão dos trabalhos da instituição)
é obra tanto das estratégias políticas dos países
desenvolvidos quanto do aprofundamento dos processos de diferenciação
internos ao “Sul”.
A experiência
norte-americana, já aludida acima, constitui outra das brechas
desse discurso. Os TDR – como uma multidão de intérpretes,
entre os quais o Economist – há tempos alertam para a
fragilidade das bases da expansão norte-americana. Frágil ou não,
porém, essa expansão, já a mais longa da história americana, não
pode ser abstraída ou permanecer como anomalia inexplicada no
bojo de um discurso heterodoxo que sublinha o caráter pouco dinâmico
da economia pós-Bretton Woods.
Finalmente,
coloca-se uma dificuldade que, em última instância insuperável,
pode ter seus efeitos em parte remediados. Refiro-me à existência
de uma assimetria entre o discurso liberal e o desenvolvimentista.
Não há, ainda, invenção retórica cuja eficácia compare-se à
da mão invisível (nada, ao menos, que tenha resistido tão bem
à ação do tempo): o mercado foi sacramentado por Smith como o
responsável pela transformação alquímica de egoísmo privado
em virtude social; desde Ricardo e Say, é também o instrumento
da harmonia entre as nações.
Que resposta pode
dar a isso o discurso desenvolvimentista?
O argumento da UNCTAD é complexo: a verdadeira estratégia win-win
consiste na retomada do crescimento por meio de uma política
keynesiana global, na reversão da liberalização financeira e na
implementação de concessões comerciais por parte dos países
desenvolvidos; as desejadas generalização e aceleração dos
processos de convergência terão um custo – possivelmente
significativo – para os países desenvolvidos; espera-se que
esses custos sejam amortecidos pelo crescimento, socializados pela
adoção de políticas de reestruturação, e quiçá compensados
pela implantação de uma estrutura produtiva mais conforme às
vantagens comparativas de suas economias. Sobre esse argumento,
que é impossível sintetizar numa fórmula mágica comparável à
da mão invisível, recai o ônus da prova. Prová-lo, de forma a
convencer uma parte maior da opinião pública dos países
desenvolvidos (e mesmo dos países em desenvolvimento), requer
esforços redobrados; os acontecimentos de Seattle representam um
desafio também ao desenvolvimentismo.
O resto
são outras dimensões da luta política a ser travada no plano
internacional e no plano interno dos vários países em
desenvolvimento, por seus respectivos governos e diplomacias. E
estes, nos últimos anos, não têm se mostrado particularmente
ativos em suas articulações e contundentes em suas propostas.
Infelizmente, corrigir a inapetência de antigas lideranças do
“Sul” é tarefa que vai muito além das possibilidades de uma
pequena e brava organização sediada em Genebra.
Antonio
Carlos Macedo e Silva é professor do
Instituto
de Economia da UNICAMP.
Bibliografia
BIELSCHOWSKY,
R. Evolución de las
ideas de la CEPAL. In:
CEPAL (1998).
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WORLD BANK.
World Development Report, 1999.
Quadro
Nota:
a descrição de cada tema corresponde, basicamente, a títulos de
seções dos TDRs; na maior parte dos casos, trata-se dos títulos
da parte II dos relatórios (ou da parte III, só existente em
alguns anos); em alguns casos, optou-se por explicitar os temas
dos vários capítulos que compõem uma parte. A classificação
em quatro grandes blocos temáticos é assumidamente precária, e
deve ser entendida apenas como uma orientação preliminar de
leitura.
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