LIÇÕES
DA DÉCADA DE 1990 (III)
Identidade
e mimetismo
Não é
difícil identificar a marca imperial da “Terceira Via”, este
novo projeto anglo-saxão; nem perceber que ele é, no fundo, um
factóide vazio. Mas então, cabe explicar por que a proposta teve
tanta repercussão e acolhimento entre os intelectuais e
políticos da social-democracia
José Luís Fiori*
Foi no dia 5 de
fevereiro de 1998 que o líder trabalhista inglês Tony Blair
anunciou, em Washington
e ao lado do presidente Bill Clinton, sua decisão conjunta de
convocar uma reunião internacional para discutir e criar um novo
movimento mundial de
“centro-esquerda”, aglutinado em torno à idéia de um
“terceira via”. Um ponto intermediário a ser definido, no
universo político-ideológico, situado entre o programa
neoliberal e as teses e políticas tradicionais da
socialdemocracia européia e dos new dealers
norte-americanos. Na mesma entrevista, os dois defenderam uma nova
guerra ocidental contra o Iraque e a aprovação, pelos países
desenvolvidos, de um Acordo Multilateral de Investimentos (AMI),
que consagraria definitivamente a soberania do capital financeiro
internacional frente ao poder dos estados nacionais. Não é
difícil identificar a marca imperial deste novo projeto
anglo-saxão. Basta olhar para o que propunham os criadores desta
“terceira via”. No plano interno dos seus países, “un
prologement vaguement social de la révolution tatcheriste”,
como disse o Nouvelle Obsrvateur1.
E no plano externo – com relação ao resto do mundo -- a defesa
intransigente da supremacia econômica dos seus capitais
financeiros e das políticas de abertura e desregulação radical
dos mercados e dos Estados nacionais periféricos. Tampouco é
muito difícil entender por que este slogan tão antigo
quanto indefinido teve uma receptividade tão grande entre os
intelectuais e
partidos “social-democratas” que comandaram, na década de
1990, a “revolução tatcherista” na América Latina.
Três
questões nunca respondidas
Tudo
isto, entretanto, não desqualifica a necessidade de uma reflexão
mais atenta, pelo menos por parte dos que se consideram
socialistas, sobre as razões do sucesso deste verdadeiro factóide
anglo-saxão. Porque a verdade é que sua força alimenta-se de
uma imprecisão conceitual e estratégica que persegue os partidos
social-democratas desde suas origens. São pelo menos três os
problemas que jamais foram respondidos de forma consensual e
categórica pelos socialistas. O primeiro deles relativo à suas
relações identitárias com a classe operária, envolvendo, quase
sempre, uma idealização conceitual do proletariado como base
social, única ou preferencial, do projeto histórico socialista
de longo prazo. O segundo, relacionado à questão da
representatividade eleitoral dos partidos socialistas e à de suas
alianças indispensáveis para a conquista democrática dos
governos ou de maiorias parlamentares. E finalmente o terceiro, o
mais complicado dos três, sobre o que fazer com as maiorias e os
governos conquistados ou, mais precisamente, sobre o que possa ser
uma “gestão socialista” de uma economia capitalista.
Pelo
menos desde que foi aprovado, em 1891, o Programa de Erfurt da
docial-democracia alemã, dificilmente houve acordo sobre este
ponto, entre os economistas e os teóricos e políticos
socialistas. A experiência soviética foi excepcional e passou
por uma revolução. Mas no resto da Europa, o que nos conta a
história é algo bastante surpreendente e provocador. Em primeiro
lugar, porque as grandes reformas institucionais e políticas que
se transformaram em apanágio da social-democracia na verdade ou
foram iniciadas, ou foram teoricamente formuladas, por governos e
intelectuais que nunca foram socialistas. Foi o caso de Bismarck
ou Lord Beveridge, com relação ao welfare state; mas também de
Lord Keynes, Raul Prebisch ou Celso Furtado, com relação às
políticas de pleno-emprego nos países centrais, ou às
políticas nacionais de desenvolvimento econômico, na periferia
capitalista.
O
grande paradoxo das reformas
Mas
além disto, e ainda mais paradoxal, é que quando os próprios
socialistas ou social-democratas foram chamados a gerir o sistema
capitalista, optaram invariavelmente por políticas econômicas
absolutamente ortodoxas e às vezes reacionárias, submetidas aos
padrões monetários dominantes e contrárias aos interesses dos
trabalhadores. Foi assim no caso, por exemplo de Rudolf Hilferding,
enquanto ministro de Economia da Alemanha, nos anos 1920; como
também no dos governos de François Mitterand e Felipe Gonzales,
na década de 1980. E quando não foi assim, foi porque os
social-democratas continuaram as políticas e as reformas
iniciadas pelos liberais ou conservadores. Com a diferença de
que, depois da Segunda Guerra Mundial, apropriaram-se de idéias e
políticas favoráveis ao mundo do trabalho. Enquanto que na
década de 80 e 90, transformaram-se em herdeiros e gestores do
legado da revolução tatcherista. É por isto que o sucesso da
idéia da “terceira via” contém uma lição e um desafio que
transcendem a década de 1990 e a própria banalidade de suas
propostas. Pelo menos para os socialistas.
* José
Luís Fiori é cientista político
1
“Uma continuação vagamente social da revolução
tatcherista”... Nouvel Observateur é um semanário
francês
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