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                                      Estadual pela Verdade, Memória e 
                                      Justiça RN 
                                      Centro 
                                      de Direitos Humanos e Memória Popular 
                                      CDHMP 
                                      Rua Vigário Bartolomeu, 635 Salas 
                                      606 e 607 Centro 
                                      CEP 59.025-904 Natal RN 
                                      84 3211.5428 
                                      enviardados@gmail.com 
                                      
                                    
                                       
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                                      da Verdade RN 
                                    Inicial 
                                      | Reprimidos 
                                      RN | Mortos 
                                      Desaparecidos Políticos RN | 
                                      Repressores 
                                      RN 
                                      
                                     
                                       
                                    
                                    Militantes 
                                      Reprimidos no Rio Grande do Norte 
                                      Rubens 
                                      Manoel Lemos 
                                    Memórias 
                                      do Exílio, por Rubens Lemos 
                                       
                                      Diário de Natal, Abril de 2004 
                                    Dos 
                                      sertões de Pixoré para o Chile 
                                      de Allende  
                                      Parte 1 - Memórias do Exílio, 
                                      por Rubens Lemos  
                                     Fugindo 
                                      ao cerco até o encontro com Djalma 
                                      Maranhão  
                                      Parte 2 - Memórias do Exílio, 
                                      por Rubens Lemos  
                                    Jango 
                                      me disse: “Os militares não 
                                      entregam o poder tão cedo” 
                                       
                                      Parte 3 - Memórias do Exílio, 
                                      por Rubens Lemos  
                                    Três 
                                      dias e três noites de perigo na Cordilheira 
                                      Sem Texto  
                                      Parte 4 - Memórias do Exílio, 
                                      por Rubens Lemos  
                                    Na 
                                      Polícia Federal:ali começa 
                                      a “Operação-Terror” 
                                       
                                      Parte 5 - Memórias do Exílio, 
                                      por Rubens Lemos  
                                    Ele 
                                      vai ver que aqui não adianta ser 
                                      macho?  
                                      Parte 6 - Memórias do Exílio, 
                                      por Rubens Lemos  
                                    “Minha 
                                      morte havia sido decretada, mas fui salvo 
                                      pelo gongo” 
                                      Parte 7 - Memórias do Exílio, 
                                      por Rubens Lemos (Final) 
                                      
                                      
                                      
                                    Memórias 
                                      do Exílio, por Rubens Lemos 
                                       Diário de Natal, Abril 
                                      de 2004 
                                    “Acima 
                                      do tempo e do medo” é um livro 
                                      que venho escrevendo desde 1974. Um livro-reportagem 
                                      sobre o duro período ditatorial, 
                                      a partir dos anos 60. mais precisamente: 
                                      entre 68 e 1973. Acontece que livro é 
                                      livro: pode sair ou não. Depende 
                                      do tema. E quando se trata de falar das 
                                      barbaridades praticadas contra um sem número 
                                      de brasileiros,em decorrência de um 
                                      regime insano e brutal, as coisas se complicam. 
                                      Eu fui personagem desse período de 
                                      obscurantismo. 
                                     
                                      Vivi a realidade das sombras, da clandestinidade, 
                                      do exílio e da prisão. Sou 
                                      um daqueles que viveram e sofreram as atrocidades 
                                      cometidas contra o ser humano pelos esbirros 
                                      e torturadores do regime que se implementara 
                                      em 1964, no país. 
                                     
                                      Mas não pretendo – como nunca 
                                      pretendi – ser herói ou mártir.Nem 
                                      alimento sentimentos revanchistas estúpidos. 
                                      Alimento, sim, o sonho de justiça.Uma 
                                      justiça que resgate a verdade.Não 
                                      a verdade transformada em auto-referencialismos 
                                      ou automitificações,tão 
                                      ao gosto de alguns guerrilheiros urbanos 
                                      ou falsos líderes daquele tempo de 
                                      resistência. As prateleiras das livrarias 
                                      – eu já disse – estão 
                                      cheias de literatura desse tipo. Na maioria 
                                      das vezes,vamos encontrar meias verdades, 
                                      através da folclorização 
                                      debochada de ações, atitudes 
                                      e gestos de pessoas que não tiveram 
                                      a felicidade de continuar vivas. Que foram 
                                      mutiladas moral e fisicamente. 
                                     
                                      Quando nasci, há 48 anos, em Pixoré, 
                                      hoje município de Santana do Matos, 
                                      não imaginava o que viria depois 
                                      das veredas da minha vida.Não poderia 
                                      pensar que, um dia, estaria frente-a-frente 
                                      com Djalma Maranhão, numa cidade 
                                      chamada Montevidéu, recebendo a solidariedade 
                                      de um homem que fora prefeito de Natal. 
                                      De um ser humano digno que morreu de saudade 
                                      - de Natal e da Redinha. 
                                     
                                      E quem diria? Fosse, no futuro,aquele menino 
                                      de Pixoré ir dar com os costados 
                                      nas terras de Salvador Allende – o 
                                      Chile. O mesmo Chile de Pablo Neruda, de 
                                      Violeta Parra, de Gabriela Mistral, onde 
                                      fui encontrar milhares de brasileiros perseguidos 
                                      pela Ditadura brasileira, entre os quais 
                                      alguns notáveis da política 
                                      de hoje: Almino Afonso, Fernando Henrique 
                                      Cardoso, Miguel Arraes (de passagem), José 
                                      Serra, Fernando Gabeira e até o traidor 
                                      maior da esquerda brasileira, conhecido 
                                      como Cabo Anselmo. 
                                     
                                      Voltando aos meus pagos,já não 
                                      encontrei Luiz Maranhão, os jovens 
                                      Emmanuel Bezerra e José Silton,assassinados 
                                      barbaramente pela Ditadura.Encontrei a delação 
                                      que me levou à Colônia Penal 
                                      “João Chaves” Encontrei 
                                      seqüestradores que, na calada da noite, 
                                      me puseram óculos de borracha,algemas 
                                      e me levaram para o circo de horrores do 
                                      DOI-CODI, em Recife,onde gritos de torturados 
                                      sucumbiam ante o som alto,alegre e estridente 
                                      dos rádios executando “Eu te 
                                      amo,meu Brasil ,eu te amo”. 
                                    CAÇADO 
                                      POR TODA PARTE 
                                    1970. 
                                      Odilon Ribeiro Coutinho era candidato a 
                                      senador pelo MDB, único agrupamento 
                                      político legal de resistência 
                                      contra a Ditadura, consentido pelo regime 
                                      militar. Eu estava no interior. Saía 
                                      de Acari, onde Odilon tinha comício 
                                      marcado. Na chamada “boca da noite”, 
                                      no meio da estrada poeirenta, a Kombi que 
                                      me levava era interceptada por um fusca 
                                      branco, que piscava as luzes. Parei e reconheci 
                                      o amigo comum: 
                                    - 
                                      Rubens a situação tá 
                                      ruim pro seu lado. Sua casa foi invadida 
                                      em Natal, a casa de sua sogra também. 
                                      Estão lhe caçando por toda 
                                      parte. Há muita gente presa e você 
                                      não pode voltar lá. 
                                     
                                      Ajudado por Odilon e Roberto Furtado, consegui, 
                                      assim mesmo, entrar em Natal, altas horas 
                                      da noite do dia seguinte. Fiquei escondido 
                                      num a praia durante quatro dias. E, na verdade, 
                                      consegui romper o cerco que se estabelecera 
                                      contra mim. Houve tempo de ver minha mulher 
                                      (Isolda) e meu filho (Rubinho) recém- 
                                      nascido. 
                                     
                                      Quer eu quisesse,quer não, bateu 
                                      dentro de mim uma coragem que nunca tive. 
                                      O menino de Pixoré aplicava a primeira 
                                      derrota contra a ditadura. Rompia o cerco,caía 
                                      no “oco do mundo”. Nos ouvidos 
                                      a canção de Vandré: 
                                      ” Vem, vamos embora que esperar não 
                                      é saber. quem sabe faz a hora não 
                                      espera acontecer...” 
                                     
                                      Primeiro,fui pras brenhas paraibanas e ,de 
                                      lá, um dia parti para o Rio de Janeiro, 
                                      onde cheguei pensando: 
                                    “Vai, 
                                      jornalista, aprender a dar bofetada no vento.” 
                                     
                                      Os dias passando, dinheiro acabando.Dinheiro 
                                      que Odilon Ribeiro Coutinho me dera,mas 
                                      que hospedaria humilde em que me instalara 
                                      levava tudo.Já “nas últimas” 
                                      , tomei um ônibus na Praça 
                                      15.Destino:Cordovil, bairro distante, onde 
                                      morava o meu querido tio Chico, irmão 
                                      do meu pai.Tão querido e solidário 
                                      que, depois de lhe contar tudo e pedir abrigo 
                                      “por uns poucos dias”,ele respondeu: 
                                     
                                      - Lamento muito,meu filho,mas eu não 
                                      quero me envolver com essas coisas de subversão.Vá 
                                      embora e Deus lhe abençoe. 
                                    Com 
                                      fome,com raiva quase sem dinheiro qualquer,mandei 
                                      meu tio enfiar sua benção 
                                      em lugar impróprio e subi a rua Aragão 
                                      Gesteira com gosto de morte e horror na 
                                      boca. 
                                     
                                      E sem destino, fui chegar na esquina da 
                                      rua Ferreira Viana,entre o Flamengo e a 
                                      rua do Catete. Era um bar-restaurante, tipo 
                                      prato-feito. Pedi um copo de leite pingado 
                                      e um pão com manteiga. Nem peguei 
                                      no copo:uma voz me chegou ao ouvido,fazendo 
                                      explodir um medo quase estranho: 
                                    - 
                                      Você não é Rubens Lemos? 
                                    Voltei-me 
                                      quase de mãos estendidas esperando 
                                      as algemas. O sangue me chegou de novo, 
                                      quando vi diante de mim Ney Leandro de Castro. 
                                      O poeta Ney, o romancista Neil de Castro, 
                                      potiguar, como eu. E solidário. 
                                       
                                      
                                      
                                       
                                    Fugindo 
                                      ao cerco até o encontro com Djalma 
                                      Maranhão  
                                      Parte 2 - Memórias do Exílio, 
                                      por Rubens Lemos  
                                    Ney 
                                      Leandro de Castro diante de mim: E contei 
                                      tudo: da minha situação clandestina, 
                                      da minha fome e dos meus sonhos. O poeta 
                                      não vacilou. Mesmo sabendo dos riscos 
                                      que corria, me prestou toda a solidariedade 
                                      que lhe era possível. 
                                    Os 
                                      dias correndo e as notícias chegando, 
                                      nada esperançosas. Eu, agulha no 
                                      palheiro da cidade grande, rumo incerto, 
                                      “olhando de lado” e sabendo: 
                                      voltar agora, não seria jamais “uma 
                                      forma de renascer”. Lembrando Gide: 
                                      “Ensinem-me os caminhos de ir”. 
                                      Amigos presos, amigos mortos – nos 
                                      enfrentamentos de rua ou das masmorras da 
                                      Ditadura. Cartazes em toda parte: “Procura-se”. 
                                      Muitos rostos conhecidos e eu me sentindo 
                                      um deles. 
                                     
                                      O Rio de Janeiro fervilhava de tensões: 
                                      os revolucionários, a quem a Ditadura 
                                      chamava de terroristas, haviam seqüestrado 
                                      o embaixador suíço. Pediam 
                                      em troca setenta presos políticos. 
                                      O regime militar não cedia. Angústia 
                                      por toda parte e, principalmente, dentro 
                                      do meu peito. Eu andava sobre o “fio 
                                      da navalha”, mas determinado: “Não 
                                      me entrego vivo. Melhor morrer matando do 
                                      que como boi indo pro matadouro”. 
                                     
                                      Era noite no Largo do Machado. De repente, 
                                      à porta do Cine Paissandu, pronto 
                                      para ver um filme de Bergman e prolongar 
                                      um pouco mais a agonia, escuto um grito 
                                      inconfundível: 
                                    - 
                                      Rubens Lemos! 
                                    Virei-me 
                                      e dei de cara com Olinto Galvão. 
                                      Não temi e não tremi. Depois 
                                      de um abraço escandaloso, fomos para 
                                      um bar. A cerveja que há tempo se 
                                      afastara de mim, pois dinheiro não 
                                      tinha, apareceu franca e amiga. Como o amigo 
                                      Olinto Galvão, companheiro firme 
                                      de todas as horas em Natal. Mas eu precisava 
                                      dar notícias a duas pessoas, as únicas 
                                      que sabiam onde eu me encontrava. Tudo, 
                                      porém, era muito perigoso. Com o 
                                      seqüestro do embaixador, que já 
                                      rolava há quase vinte dias, os olhos 
                                      da repressão estavam em toda parte. 
                                      O cerco apertava. Dias antes, andando pela 
                                      rua México, via estampada na primeira 
                                      página do Jornal do Brasil, a fotografia 
                                      de G, ex-líder estudantil natalense 
                                      e transformado em guerrilheiro.G,para minha 
                                      surpresa, aparecia risonho, tomando cafezinho 
                                      ao lado de alguns policiais.Dele, o jornal 
                                      publicava, também uma terrível 
                                      carta: G, (cuja covardia não lhe 
                                      honra a menção do verdadeiro 
                                      nome), pedia perdão ao ditador de 
                                      plantão e se declarava pateticamente 
                                      arrependido.Simultaneamente, novas prisões 
                                      ocorriam em Natal. O torniquete apertava 
                                      ainda mais. Entendi que era hora de sair 
                                      do país. 
                                     
                                      Coloquei a questão para Olinto e 
                                      pedi que comunicasse isso somente a duas 
                                      pessoas: Isolda e Roberto Furtado. Apesar 
                                      dos perigos, Olinto cumpriu literalmente 
                                      a missão. 
                                     
                                      Erivan me dá o alerta: perigo! 
                                     
                                      Os planos estavam traçados para deixar 
                                      o Rio, mas faltava dinheiro. Erivan França, 
                                      mais uma vez não faltou. Marcamos 
                                      encontro na rua das Marrecas,onde Aluízio 
                                      Alves, cassado, sobrevivia com uma editora.As 
                                      duras penas,Erivan me informava:” 
                                      Sua situação não é 
                                      boa. Seu nome está incluído 
                                      entre os perigosos”. 
                                     
                                      E me arranjou dinheiro, que não era 
                                      muito, mas era o que podia dar. 
                                     
                                      Cheguei, finalmente, a São Paulo. 
                                      Da rodoviária fui direto à 
                                      Estação da Luz e tomei um 
                                      trem para Mauá, onde morava um primo. 
                                      A lembrança do que me fizera Tio 
                                      Chico, no Rio, me deixava inquieto. Mas 
                                      resolvi tentar. O trem vomitando de passageiros 
                                      aqui e ali. Tia Neném, mãe 
                                      de Gilvan, irmã de minha mãe 
                                      estava atrás do balcão de 
                                      sua pequena quitanda na Vila Brasil. Tia 
                                      Neném e “Seu” João, 
                                      o marido, haviam sido operários de 
                                      uma grande indústria em São 
                                      Paulo. Fui chegando e fui contando tudo 
                                      de novo. A velha operária não 
                                      titubeou: 
                                     
                                      - Pode ficar o tempo que quiser. 
                                     
                                      E me fez a espantosa revelação: 
                                      Gilvan, meu primo, estava também 
                                      sendo procurado. Dezenove operários 
                                      haviam sido presos. Um deles, Raimundo, 
                                      assassinado brutalmente sob torturas. Raimundo 
                                      morreu com 23 anos de idade. Era nordestino. 
                                     
                                      Fiquei na casa da minha tia o tempo suficiente 
                                      para localizar alguns companheiros jornalistas. 
                                      Não poderia abusar da bela manifestação 
                                      de destemor e solidariedade proletária 
                                      de D. Neném. 
                                     
                                      Um amigo jornalista – a quem chamarei 
                                      aqui de Fabiano -, com quem trabalhei no 
                                      “Diário de Natal”, conseguiu 
                                      me colocar em lugar seguro: uma pequena 
                                      pensão na Alameda Santos, onde fiquei 
                                      por quase duas semanas.Fabiano, ajudado 
                                      por outros, armou todo o esquema de minha 
                                      saída:destino, Uruguai. Para onde 
                                      fui fantasiado de torcedor do Palmeiras, 
                                      que decidiria a Taça Libertadores 
                                      da América com Nacional de Montevidéu. 
                                      Logo eu, corintiano... 
                                      E assim atravessei a fronteira. O Brasil 
                                      ficava para trás. Natal era um mundo 
                                      de saudade. 
                                     
                                      O frio cortava quando o ônibus parou 
                                      em frente ao hotel. Já era noite. 
                                      No meu bolso, a passagem de volta que não 
                                      poderia mais usar. Nos ombros, nenhum cansaço. 
                                      No peito, toda a esperança. Um copo, 
                                      dois, três de vinho. Outro, mais outro. 
                                      E fui deitar fugitivo e bêbado. Afinal 
                                      de contas, a realidade era dura. Dia seguinte, 
                                      eu tinha que deixar o hotel pra não 
                                      voltar. 
                                     
                                      Dia seguinte. Expectativa. O jornalista 
                                      potiguar precisava localizar alguém. 
                                      Esse alguém era Djalma Maranhão 
                                      a quem eu era recomendado por ninguém. 
                                      Minha única senha era ser do Rio 
                                      Grande do Norte. Mas eu sabia onde achar 
                                      o ex-prefeito de Natal. 
                                    ME 
                                      DÊ NOTÍCIAS DA REDINHA... 
                                    Era 
                                      amplo o “café”, com mesas 
                                      na calçada. Ficava numa praça 
                                      central de Montevidéu. Lá 
                                      estava ele: Djalma Maranhão, de quem 
                                      me aproximei e fui dizendo: 
                                    - 
                                      Prefeito Djalma Maranhão,meu nome 
                                      é Rubens Lemos, sou jornalista e 
                                      rio-grandense do norte. Sou amigo de Roberto 
                                      Furtado e estou procurando asilo. O senhor 
                                      pode me ajudar? 
                                    Djalma 
                                      Maranhão foi traído pelo brilho 
                                      dos olhos. Uma centelha de alegria, um clarão 
                                      de tristeza, foi o que vi. Mas ouvi daquele 
                                      homem – quem nem documentos que provassem 
                                      a minha identidade pedira -, uma pergunta 
                                      surpreendente: 
                                    - 
                                      Me dê notícias da Redinha, 
                                      de Natal, de todo mundo. 
                                    Fiz 
                                      o que pude, pois eu também queria 
                                      notícias de Natal, de todo mundo. 
                                      A diferença é que minha saudade 
                                      era mais recente. A de Djalma era como se 
                                      fora um século. Contei minha história. 
                                      Logo depois, chegava Amauri Silva, ex-ministro 
                                      do Trabalho de João Goulart. Já 
                                      nos conhecíamos de Londrina, onde 
                                      ele fora vereador. O ex-deputado Neiva Moreira 
                                      também apareceu. E como ele outros 
                                      exilados. 
                                     
                                      Na verdade, Djalma Maranhão queria 
                                      ficar a sós comigo. Era um conterrâneo 
                                      que chegava, era um pedaço de Natal, 
                                      um naco de carne de sol, uma mochila de 
                                      feijão verde, um litro de água 
                                      do mar da Redinha. E disso é que 
                                      Djalma precisava naquela cidade fria e cinzenta 
                                      de Montevidéu. O ex-prefeito me levou 
                                      com ele até uma pequena casa de câmbio, 
                                      onde defendia alguns trocados “para 
                                      ajudar no aluguel”. Também 
                                      fazia distribuição de jornais, 
                                      como forma de auxiliar nas despesas. Ou 
                                      seja: eram grandes as dificuldades econômicas 
                                      por que passava o implantador do revolucionário 
                                      método “De pé no chão 
                                      também se aprende a ler”. 
                                     
                                      Durante o almoço, a conversa foi 
                                      longa. Djalma Maranhão falava e falava. 
                                      Dizia das memórias que estava escrevendo, 
                                      mas não perdia a fé: 
                                    - 
                                      Eu vou voltar. Não agüento mais 
                                      de saudade daquele povo bom da minha cidade 
                                      e do meu estado. Um dia – e será 
                                      – logo, essa Ditadura acaba. Aí 
                                      eu vou voltar, tirar o atraso... E vou voltar 
                                      à política com toda força 
                                      possível. Eu sei que o povo de Natal 
                                      não esqueceu. 
                                     
                                      Falando, ouvindo,falando, eu senti que estava 
                                      diante de um ser humano corroído 
                                      pela nostalgia. Um ser humano de estatura 
                                      moral inigualável. Sofrido, mas valente. 
                                      Machucado, mas combatente. Triste, mas esperançoso. 
                                      Sem tostão, mas rico de solidariedade. 
                                      E foi assim que agiu comigo. 
                                     
                                      Outras conversas ocorreram e outras revelações 
                                      foram feitas, até que Djalma Maranhão 
                                      me levasse até o cais, de onde segui 
                                      para Santiago do Chile, levando comigo o 
                                      respeito por aquele homem e outras revelações 
                                      feitas por ele. E que ainda vou contar. 
                                       
                                     
                                       
                                      
                                    Jango 
                                      me disse: “Os militares não 
                                      entregam o poder tão cedo” 
                                       
                                      Parte 3 - Memórias do Exílio, 
                                      por Rubens Lemos  
                                    Antes 
                                      de subir a escada do pequeno navio que me 
                                      levaria a Buenos Aires, recebi um longo 
                                      e afetuoso abraço de Djalma Maranhão. 
                                      Ex-prefeito de Natal cuidara de tudo. Até 
                                      das questões de segurança, 
                                      buscando alertar-me: 
                                    - 
                                      Cuidado. Esse é um navio de turistas 
                                      classe média baixa. Evite fotografias, 
                                      pois deve ter muito policial brasileiro 
                                      “fantasiado” de fotógrafo. 
                                     
                                      Dentro da pequena maleta de viagem, um Jornal 
                                      do Brasil.Perdido entre as páginas, 
                                      um endereço, um nome e uma apresentação 
                                      que Djalma, de próprio punho, me 
                                      fazia a um seu amigo comum, ex-deputado 
                                      federal e exilado no Chile. Nunca mais vi 
                                      Djalma Maranhão, contudo guardei 
                                      todos os gestos solidários que ele 
                                      me ofertou. Como guardei o aceno de mão 
                                      daquele homem nostálgico, mas determinado 
                                      em voltar ao seu povo, à sua terra, 
                                      à sua gente. E nunca mais esqueci 
                                      aquele 16 de março de 1971. 
                                     
                                      Durante a viagem não conseguia tirar 
                                      Djalma Maranhão da cabeça. 
                                      O homem que me fez conhecer João 
                                      Goulart, o presidente deposto. Foi numa 
                                      noite muito friorenta. O local era uma espécie 
                                      de restaurante, muito mais uma churrascaria, 
                                      dirigido por exilados brasileiros: ex-deputados, 
                                      ex-senadores,ex-ministros. Uma espécie 
                                      de sociedade pouco anônima, patrocinada 
                                      pelo ex- presidente, como forma de ajudar 
                                      brasileiros perseguidos pela ditadura. O 
                                      presidente Goulart me pareceu uma pessoa 
                                      simples.Nele não havia qualquer traço 
                                      de arrogância. Não vendia a 
                                      imagem de líder ou coisa do estilo.Era 
                                      o que era no momento:um exilado. Um homem 
                                      que fora deposto por um violento golpe militar. 
                                      Djalma lhe contou rapidamente a minha história 
                                      e João Goulart me deu 3 mil escudos, 
                                      moeda chilena e da qual iria necessitar. 
                                      Antes de sair, João Belchior Marques 
                                      Goulart fez uma previsão: 
                                    - 
                                      Maranhão (Djalma) tem pressa em voltar, 
                                      mas eu acho que os militares não 
                                      entregam o poder tão cedo. Não 
                                      é o que eu quero, mas é o 
                                      que eu penso. 
                                    João 
                                      Goulart tinha razão: a ditadura durou 
                                      mais de vinte anos.Nem ele, nem Djalma Maranhão 
                                      puderam ver de novo o Brasil. Os dois morreram 
                                      no exílio. Em julho de 1971, eu estava 
                                      em Santiago do Chile, quando vim a saber 
                                      da morte do ex-prefeito de Natal. Morreu 
                                      triste e estava só. Seu corpo foi 
                                      encontrado no pequeno apartamento em que 
                                      morava, pelo advogado e também exilado 
                                      Carlos Frederico Marés, a quem conheci 
                                      no Chile. 
                                    O 
                                      navio apitou. Estava chegando a Buenos Aires, 
                                      onde ninguém me esperava, a não 
                                      a ser a incerteza e o ônibus que me 
                                      poderia fazer chegar até Mendoza, 
                                      na fronteira com o Chile. 
                                     
                                      “SEU FILHO DIFICILMENTE ESCAPA” 
                                    Dia 
                                      20 de março de 1971. Desci do trem, 
                                      trazendo no bolso a “visa de turista”, 
                                      e nos olhos a imagem grandiosa da Cordilheira 
                                      dos Andes, branca e dominadora. Santiago 
                                      acabava de receber mais um brasileiro que, 
                                      ao lado de milhares, buscava abrigo em terras 
                                      chilenas, onde as ruas eram avenidas inteiras 
                                      de liberdade. Nunca uma mera palavra escrita 
                                      a carvão como nos muros do meu país,segundo 
                                      o poema de Thiago de Melo. Na manhã 
                                      seguinte, uma manhã de muito frio, 
                                      chegava ao apartamento do amigo de Djalma 
                                      Maranhão. Ele morava bem pertinho 
                                      do Estádio Nacional, que, tempos 
                                      depois seria transformado me matadouro humano 
                                      por ordens do General Pinochet. Foi ali 
                                      que morreu, mãos decepadas e um tiro 
                                      de misericórdia na cabeça, 
                                      o jovem Victor Jara, aquele que cantava 
                                      as alegrias e as lutas do povo chileno. 
                                     
                                      Através do MAPU (Movimento de Acción 
                                      Popular Unitária), fui contratado 
                                      como professor (instructor) de jornalismo 
                                      da Consejeria Del Desarrollo Social, um 
                                      organismo nacional diretamente ligado ao 
                                      presidente Salvador Allende. Uma experiência 
                                      importante, através da qual técnicos, 
                                      especialistas em áreas básicas 
                                      da cultura, saúde e educação 
                                      populares cobriam todo o Chile,procurando 
                                      tornar realidade, sem verticalismos, a participação 
                                      popular cobriam todo o Chile, procurando, 
                                      a participação popular no 
                                      programa socialista do Governo Allende. 
                                      Um verdadeiro laboratório experimental, 
                                      onde aprendi mais do que ensinei. A coisa, 
                                      porém, durou pouco.Pressões 
                                      externas terminaram fazendo Allende capitular 
                                      , botando para fora do projeto, que se chamava 
                                      “Operação Salvamontes”, 
                                      todos os estrangeiros. E lá fiquei 
                                      desempregado. 
                                     
                                      Minha mulher já estava com data marcada 
                                      (5 de setembro de 1971) para chegar a Santiago, 
                                      trazendo no colo nosso filho (Rubinho). 
                                      Não dava mais tempo avisar que,além 
                                      de exilado, eu era o mais novo desempregado 
                                      do Chile. Isolda chegou e fomos morar numa 
                                      casinha simples, numa vila distante da capital. 
                                      Ficava no Paradero 36, perto de San Bernardo. 
                                      O nome da vila: “El esfuerzo”. 
                                      E as coisas foram se complicando. Sem dinheiro, 
                                      sem trabalho e uma gravidez inesperada: 
                                      a hoje moça bonita Yasmine chegava 
                                      sem pedir licença. Grávida 
                                      de seis meses , Isolda enfrentava o exílio 
                                      com ocragem,mas dominada por uma tristeza 
                                      que saltava aos olhos. Até que Rubinho 
                                      adoeceu gravemente.Postos de saúde, 
                                      hospitais, nenhuma solução. 
                                      Meu filho definhava e nem mais podia falar 
                                      seu portunhol : “Yo quiero café 
                                      caliente quente”. Otto, médico 
                                      pediatra, exilado também.,sem recursos 
                                      quaisquer, deu assistência total. 
                                      Tarde da noite, ele me chama de lado e diz: 
                                       
                                    - 
                                      Infelizmente, companheiro, seu filho dificilmente 
                                      escapa. Ele já está em estado 
                                      de inconsciência. Mas vamos lutar 
                                      até o fim. 
                                    Não 
                                      tive coragem de dizer nada a Isolda.Pude 
                                      apenas ir até o muro da pequena casa 
                                      proletária, onde me debrucei e chorei. 
                                      Chorei muito. 
                                      
                                    ALLENDE 
                                      ACREDITAVA NO “GRANDE” GENERAL 
                                      AUGUSTO PINOCHET 
                                    Allende 
                                      ganhava, de maneira expressiva, as eleições 
                                      parlamentares. A esquerda, organizada em 
                                      partidos como o Socialista(de Altamirando), 
                                      o PC, MAPU,Izquierda Criztiana e outros 
                                      que formavam a Unidad Popular, passava a 
                                      ter maioria no Congresso. A direita, representada 
                                      no poder Judiciário e nas Forças 
                                      Armadas, além de partidos conservadores 
                                      como PN, tendo como linha auxiliar o cinismo 
                                      e o oportunismo do Partido Democrata Cristão, 
                                      de Eduardo Frey, passaram a tramar, através 
                                      da desestabilização do regime,o 
                                      golpe militar que eclodiria no dia 11 de 
                                      setembro de 1973. Frey era o “homem 
                                      financiado pela CIA”, liderando movimentos 
                                      de boicote econômico, de isolamento 
                                      quase total do Governo Allende. O povo: 
                                      estudantes, operários, camponeses, 
                                      mineiros, profissionais liberais, estavam 
                                      nas ruas, combatendo duramente as vacilações 
                                      da Unidad Popular, sob hegemonia do Partido 
                                      Comunista Chileno que fazia, às escondidas, 
                                      acordos com a DC. A direita, com seu braço 
                                      armado fanático – Pátria 
                                      y Libertad – provocava enfrentamentos 
                                      diários que eram respondidos valentemente 
                                      pelo MIR (Movimento de Izquerda Revolucionária) 
                                      e pelos setores mais avançados do 
                                      Partido Socialista, MAPU e Izquerda Cristiana. 
                                      Uma tarde-noite,mais de 600 mil pessoas 
                                      se dirigiram ao Palácio de La Moneda 
                                      e pedira, exigiram “mano dura’ 
                                      ao presidente Allende. Ele pediu calma, 
                                      pois garantia que “as Forças 
                                      Armadas” , sob comando do “grande 
                                      General”, não fugiram às 
                                      suas “tradições democráticas”.Allende 
                                      afirmava: “ Os fascistas não 
                                      passarão”. Mas eles passaram 
                                      e transformaram o Chile num rio de sangue. 
                                      Era um filme que eu já havia assistido 
                                      no Brasil,em 1964. Aí, voltei a me 
                                      lembrar de Djalma Maranhão e do ex-presidente 
                                      João Goulart. 
                                     
                                      O golpe estava nas ruas. A minha mulher 
                                      Isolda, meu filho e a filha que ela trazia 
                                      no ventre, não poderiam mais ficar.Ajudado 
                                      por companheiros exilados, consegui o dinheiro 
                                      suficiente para a passagem de volta. Eu 
                                      ficaria, pois voltar era impossível. 
                                      Sozinho eu saberia enfrentar todos os desafios,até 
                                      o da morte. Brasileiros eram praticamente 
                                      caçados pela direita no Chile. Um 
                                      deles, Milton da Silva, um jovem de 21 anos 
                                      de idade, foi assassinado friamente pelos 
                                      franco-atiradores do “Pátria 
                                      y Liberdad”: dois tiros na cabeça. 
                                     
                                      Foi dura, terrível mesmo a despedida. 
                                      Policiais brasileiros infestavam o aeroporto 
                                      de Santiago. Isolda e Rubinho subiram na 
                                      escada do avião. Longa espera e a 
                                      notícia dolorosa:minha mulher, grávida 
                                      e com um filho no colo, chegando ao Rio, 
                                      fora arrancada de dentro do avião. 
                                      Presa pelo único crime de ser mulher 
                                      de Rubens Lemos. 
                                     
                                      Mais uma vez Erivan França.Cassado,injuriado, 
                                      conseguiu localizar minha mulher e meu filho. 
                                      Foram postos em liberdade, depois de muito 
                                      sacrifício. Lá de longe , 
                                      ao pé da fria e gigantesca Cordilheira, 
                                      eu gritava a minha revolta. Sem nenhuma 
                                      resposta. Foi uma noite de pesado e amargo 
                                      silêncio. 
                                       
                                      
                                      
                                    Três 
                                      dias e três noites de perigo na Cordilheira 
                                      Sem Texto  
                                      Parte 4 - Memórias do Exílio, 
                                      por Rubens Lemos  
                                      
                                      
                                      
                                      
                                      
                                      
                                    Na 
                                      Polícia Federal:ali começa 
                                      a “Operação-Terror” 
                                       
                                      Parte 5 - Memórias do Exílio, 
                                      por Rubens Lemos  
                                    Depois 
                                      de me conseguir um colchão velho 
                                      e nenhum lençol, o diretor da Colônia 
                                      Penal me garantiu que Isolda(minha mulher)estava 
                                      bem.Ela fora trancafiada numa cela, que 
                                      era também enfermaria. O coronel 
                                      Juvenal Andrelino, diga-se, não me 
                                      dirigiu uma palavra agressiva,não 
                                      me fez qualquer tipo de ameaça. No 
                                      silêncio da noite, a realidade ia 
                                      se tornando muito clara (e dura) para mim: 
                                      aquilo tudo era o início, apenas 
                                      o início. O começo de uma 
                                      longa e penosa caminhada. Em nenhum momento 
                                      acreditei naquele tratamento tão 
                                      calmo que a Colônia Penal me dispensava. 
                                      Eu sabia que o pior estava a caminho. E 
                                      precisamente fazer chegar, imediatamente, 
                                      para fora dos muros, a notícia da 
                                      nossa prisão. Principalmente a de 
                                      Isolda.O pensamento vagueava, pesado,tenso, 
                                      quando vi duas mãos surgirem por 
                                      entre as grades da janela. Um rosto apareceu 
                                      e uma voz quase sussurrada me falou:” 
                                      Rubens Lemos, conte a gente. Aguarde que, 
                                      ainda hoje, vai aparecer alguém de 
                                      confiança para levar recado à 
                                      sua família. “ A voz era de 
                                      Rinaldo, também preso político. 
                                      Não demorou muito, um soldado surgiu 
                                      na penumbra do corredor: “Gostaria 
                                      de ajudar. Conheço você da 
                                      Rádio Poty”. Era, mais uma 
                                      vez, a solidariedade chegando. Em plena 
                                      noite, na dura solidão de uma penitenciária. 
                                      E reafirmei minha confiança no ser 
                                      humano. Apesar da delação 
                                      de que fora vítima. 
                                    Mas 
                                      o sono não veio.Pensava em Isolda, 
                                      pensava em Yasmine, a filha que me fizera 
                                      atravessar a Cordilheira dos Andes para 
                                      conhecê-la. Pensava no delator que 
                                      não pensou em nada disso na hora 
                                      de entregar à repressão dois 
                                      seres humanos, que nada de mal lhe fizeram. 
                                      Que cometeram, apenas o pecado da confiança. 
                                     
                                      O dia amanheceu, outra noite chegou, outro 
                                      dia amanheceu.Era o 7 de setembro. As tropas 
                                      desfilavam nas ruas engalanadas e as criancinhas 
                                      de minha cidade agitavam bandeirolas verde-amarelas. 
                                      Pelo rádio de uma cela próxima 
                                      ouvia emocionados e patrióticos discursos, 
                                      falando de paz,amor, segurança da 
                                      família e, principalmente , Democracia. 
                                      Pesou no meu peito uma certa sensação 
                                      de desencanto e me lembrava da minha mãe 
                                      evangélica, lendo trechos bíblicos 
                                      para o seu filho caçula.Entre eles,um,que 
                                      fala de hipócritas e fariseus. 
                                    Numa 
                                      manhã, depois de oito dias em completo 
                                      isolamento tiraram-me da cela. Fui levado 
                                      até o Corpo da Guarda. E avistei 
                                      Isolda: abatida,magra,olhos de desespero 
                                      e dor.Foi um abraço longo e um beijo 
                                      trágico. Agentes da Polícia 
                                      Federal nos esperavam com algemas.Eu só 
                                      pude dizer à minha mulher: “Não 
                                      perca a calma. Você vai sair dessa”. 
                                      Pouco depois entrávamos na Nilo Peçanha, 
                                      onde permanecemos toda uma manhã 
                                      algemados presos à uma cadeira. “ 
                                      A Operação –Terror estava 
                                      começando. 
                                     
                                      “RUBENS, PELO AMOR DE DEUS 
                                      ASSINE!” 
                                    Os 
                                      agentes se revezavam, fazendo perguntas 
                                      capciosas. Um deles,moreno, meia-idade, 
                                      alto ,magro,elegante, de nome Almeida, comandava.Fala 
                                      mansa, elegante, fez a proposta:  
                                    - 
                                      Você assina uma declaração, 
                                      renegando tudo e tudo fica resolvido.Você 
                                      e sua mulher saem daqui,agora mesmo, para 
                                      casa. Vão poder abraçar seus 
                                      filhos. 
                                    Eu 
                                      lembro muito bem o que respondi. 
                                    - 
                                      Eu não assino nada. Os senhores já 
                                      me prenderam e é a vocês que 
                                      cabe provar se sou culpado de alguma coisa. 
                                    Eles 
                                      queriam me transformar em mais um arrependido. 
                                      Em um novo G; o protótipo do dedo-duro. 
                                      Eles queriam me transformar em rebotalho.Isolda 
                                      me olhava com olhos de dor e angústia. 
                                      O comissário Almeida insistia, voltando-se, 
                                      agora, mais para minha mulher. 
                                    - 
                                      Está vendo? A senhora está 
                                      aqui por causa dele. A senhora está 
                                      entregando pérola aos porcos. Ele 
                                      quer nos obrigar ao que nos não queremos, 
                                      ou seja, trazer aqui o seu filho Bimbo (Rubinho). 
                                      A senhora quer isso? 
                                    Isolda 
                                      entrou em pânico e, num apelo, que 
                                      era muito mais que um apelo desesperado, 
                                      chorando muito, me disse quase implorando: 
                                    - 
                                      Rubens, pelo amor de Deus assine! 
                                    Foi 
                                      um momento duro. Terrível. Eu que 
                                      amava a todos, eu que cortara os pés, 
                                      enfrentando perigos, apesar de todos os 
                                      meus medos,para chegar a ela e aos meus 
                                      filhos, surgia diante dela como um ser despido 
                                      de qualquer sentimento.Os policiais conseguiam 
                                      fazer, com perfeição, o jogo 
                                      sujo. Com o coração pesado,mas 
                                      com a certeza mais firme, virei-me para 
                                      Isolda. 
                                    - 
                                      Eles estão lhe jogando contra mim. 
                                      Eles querem me degradar,mas eu não 
                                      me degradarei. Não assino nenhum 
                                      “arrependimento”. Eu quero um 
                                      dia poder continuar olhando dentro dos olhos 
                                      dos meus filhos. 
                                    Levaram 
                                      Isolda para um sala no andar superior. Fiquei 
                                      lá embaixo. Sem ter o direito de 
                                      chorar. Não podia, não devia, 
                                      revelar fraqueza. Isso é o que eles 
                                      queriam. À tarde, chegou minha vez. 
                                      Entrei numa sala, onde estavam rostos conhecidos, 
                                      uns, desconhecidos outros. O major Alcântara 
                                      comandava interrogatório. Capitão 
                                      Galvão, da DOPS, o delegado da PF, 
                                      Franklin, participavam. O major abriu uma 
                                      pasta: ali estava “minha vida”, 
                                      foi o que pensei. O interrogatório 
                                      durou muito tempo. Até cartas que 
                                      , do Chile, eu mandara para Isolda, estavam 
                                      ali, fotocopiadas. Mostraram –me uma 
                                      fotografia minha ampliada: eu, barbudo, 
                                      cabelos grandes, usando uma pesada roupa 
                                      de frio. A foto fora tirada em Santiago 
                                      , na Plaza Bequedano. Não havia dúvida. 
                                     
                                      A Ditadura brasileira tinha seus tentáculos, 
                                      seus esbirros espalhados por toda parte. 
                                      
                                    “PREPARE-SE 
                                      PARA APANHAR MUITO” 
                                    Nessa 
                                      mesma noite, minha mulher foi posta em liberdade. 
                                      Guardado por agentes fortemente armados, 
                                      fui levado de volta para a Colônia 
                                      Penal. Os dias e as noites passavam lentamente. 
                                      Nenhuma visita, notícias raras trazidas 
                                      através de pessoas lá mesmo 
                                      do presídio. Nem ameaças havia. 
                                      Era como uma canção de Bethânia, 
                                      a sensação de “um grito 
                                      solto no ar”. Até que um dia, 
                                      o sol começando a nascer, o carcereiro 
                                      me acordou: 
                                    - 
                                      Apanhe suas coisas, você vai embora. 
                                    Ao 
                                      atravessar a longa galeria, um velho avisou: 
                                      “Prepare-se para o pior”. Eu 
                                      sabia disso. Desde o primeiro dia. De novo, 
                                      os agentes da Polícia Federal, algemas. 
                                      Deixaram-me várias vezes algemado, 
                                      em posição bastante incômoda. 
                                      Novamente caras conhecidas passavam por 
                                      mim. Uns, faziam que não me viam. 
                                      Outros, ainda arriscavam uma tímida 
                                      saudação. E vi, ali , caras 
                                      que ninguém desconfiava fossem agentes. 
                                      Que se infiltravam nos bares,nas assembléias 
                                      estudantis,nos debates culturais. Até 
                                      que botaram óculos de borracha. Deitaram-me 
                                      numa “Veraneio”. Antes, porém, 
                                      pude vê-los. Entre eles, estava o 
                                      “Doutor Aníbal”, com 
                                      seu sotaque carioca e que viria a se transformar 
                                      num dos mais frios e sádicos torturadores 
                                      dos tantos que enfrentei. O carro rodava 
                                      e rodava. Uma parada. Alguém mais 
                                      era colocado no veículo. E fomos 
                                      os dois para aquilo que se chamava de “Circo 
                                      de Horrores” da Ditadura. Ao longo 
                                      do percurso, aproveitando o barulho do carro, 
                                      me identifiquei para o outro preso. Ele 
                                      também. Era um ex-companheiro de 
                                      rádio aqui, em Natal.E que sofreu 
                                      muito também. 
                                     
                                      Viajamos durante cerca de quatro horas. 
                                      O óculos de borracha queimava meus 
                                      olhos. As algemas apertavam, cortando meus 
                                      pulsos. E a Veraneio parou. Fomos tirados. 
                                      Meu corpo era um dor só. Aos empurrões 
                                      e pancadas fui levado para uma cela estreita 
                                      e imunda. Não tinha a menor noção 
                                      de onde estava. O carcereiro, de nome (ou 
                                      codinome?) Valdeck, chegou. 
                                    - 
                                      Tire a roupa. Prepare-se para apanhar muito. 
                                      Um grito lancinante penetrou cela à 
                                      dentro. Meu corpo cansado sobressaltou-se. 
                                      Os músculos ficaram tensos, retesados. 
                                      Mais gritos. Depois, puro silêncio. 
                                      Aí, comecei a compreender o que era 
                                      o ruído do silêncio. Comecei 
                                      a perceber a necessidade de estar com a 
                                      cabeça no lugar, de nunca perder 
                                      a lucidez. Isto seria a minha única 
                                      condição de resistir aos horrores 
                                      que não tardariam a chegar. 
                                     
                                      Três homens abriram a cela. Puseram-me 
                                      um capuz e amarraram meus pulsos com cordas 
                                      de náilon. E uma voz falou: “Vamos, 
                                      filho da puta, sua hora chegou!”. 
                                       
                                      
                                      
                                      
                                    Ele 
                                      vai ver que aqui não adianta ser 
                                      macho?  
                                      Parte 6 - Memórias do Exílio, 
                                      por Rubens Lemos  
                                    Fui 
                                      levado através do que me parecia 
                                      um longo estreito corredor. Uma porta se 
                                      abre. Empurrara-me com toda violência 
                                      possível. As mãos atadas, 
                                      capuz sobre o rosto. Escuridão total, 
                                      um breu só. A porta se fechou. E 
                                      ali fiquei. O silêncio era total e, 
                                      acreditem, doía. Os minutos passavam 
                                      lentos. Nada acontecia. Eu, em pé. 
                                      O coração batendo forte, como 
                                      um tamborim em carnaval de fim trágico. 
                                      Descompasso. Minha cabeça era caleidoscópio. 
                                      Tudo e todos passavam. Vi-me menino nas 
                                      ruas de Currais Novos. Avistei caras de 
                                      velhos companheiros de correrias e brincadeiras 
                                      nas ruas ensolaradas de Mossoró. 
                                      Até o burro "Chá Preto", 
                                      lá de Pixoré, aparecia calmo 
                                      e pachorrento. Nenhum ruído. Uma 
                                      vontade de gritar, um desejo naturalmente 
                                      tolo. Vejo-me, de novo, em Nova Dimensão. 
                                      O violão de Roberto Maranhão, 
                                      a voz: 
                                    Esta 
                                      saudade, 
                                      tão cruel que alucina(...) 
                                      Quero que voltes 
                                      como a primavera(...) 
                                    Roberto 
                                      Maranhão, Magnólia, Renato, 
                                      Andréa, amigos que nunca fugiram 
                                      ao difícil e grande gesto de solidariedade. 
                                      A música me arrancava, por instantes, 
                                      do terror em que me encontrava. Até 
                                      que um grito estourou na escuridão: 
                                    - 
                                      Seu nome, corno! 
                                      O coração bateu mais forte. 
                                      E a resposta veio mecanicamente: 
                                    - 
                                      Rubens, Rubens Manoel Lemos 
                                    - 
                                      Está querendo brincar, subversivo 
                                      de araque! Eu quero o sue nome de guerra, 
                                      o nome da Organização, tudo, 
                                      tudinho, entendeu? 
                                    - 
                                      Não tenho nome de guerra. 
                                    Uma 
                                      pancada violenta em atingiu a cabeça. 
                                      Caí. De repente , chutes. Alguém 
                                      pulou sobre minha barriga. Vomitei. Puseram-me 
                                      novamente em pé. A voz sádica 
                                      do doutor Aníbal: 
                                    - 
                                      Vamos fazer uma ligação direta 
                                      nesse sacana. Aí, ele vai ver que 
                                      não adianta ser macho. 
                                    Amarraram-me 
                                      a uma cadeira. Um fio foi amarrado no dedão 
                                      do pé. E uma maquininha começou 
                                      a funcionar. O choque elétrico. Era 
                                      como formigas raivosas me penetrando. Depois, 
                                      como labaredas queimando a alma. Gritei 
                                      muito. A máquina parou. Os doutores 
                                      da lei riam. Sem esperar, duas mãos 
                                      explodiram contra os meus ouvidos.Um golpe 
                                      terrível que me fez perder a noção 
                                      das coisas. Em seguida, um soco fulminante 
                                      no estômago. Desmaiei. Acordei pendurado 
                                      tal qual um porco. Os pés sustentados 
                                      em duas latas de óleo, que cortavam. 
                                      As latas não suportavam o peso, caíam, 
                                      e eu ficava apenas com a ponta dos dedos 
                                      roçando o chão. Senti o cheiro 
                                      da morte. Foi toda uma noite de tortura. 
                                     
                                      Companheiro eu vou me suicidar 
                                    Nove 
                                      dias sem receber qualquer comida. Os três 
                                      primeiros, sem tomar um copo de água. 
                                      Única alimentação: 
                                      torturas de toda espécie. Choques, 
                                      pancadas, afogamento, roleta russa eram 
                                      a diversão dos torturadores. E eu 
                                      sem saber onde estava. O que estaria acontecendo 
                                      lá fora? Só uma coisa me sustentava: 
                                      eu não podia ser indigno. Não 
                                      poderia revelar nomes e fatos. Era isso 
                                      o que eles queriam. Passaram a me chamar 
                                      de Chileno, eles os torturadores. 
                                     
                                      Trinta e três dias depois, corpo massacrado, 
                                      jogam dentro da cela um outro preso político. 
                                      Carlúcio, um operário, trazia 
                                      as costas banhadas de sangue. Apanhara muito.Eu,havia 
                                      chegado de mais uma sessão de tortura. 
                                      Ele contou sua história e ,quase 
                                      em desespero, falou: 
                                    - 
                                      Companheiro, eu vou me suicidar. 
                                    Gritos, 
                                      gemidos, choro de torturados enchiam todos 
                                      os espaços daquele Circo de Horrores. 
                                      Sem muitas forças, voz cansada, falei: 
                                    - 
                                      Não faça isso. É isso 
                                      o que eles querem. Será sua derrota 
                                      e a vitória deles.  
                                    Um 
                                      relógio bateu ao longe. As badaladas 
                                      eram nítidas e pungentes. Foi Carlúcio 
                                      quem me disse: 
                                    - 
                                      Você está em Recife. Isto aqui 
                                      é o DOI-CODI. Esta é casa 
                                      que servia aos generais comandantes do IV 
                                      Exército. O relógio que você 
                                      está ouvindo é o da Faculdade 
                                      de Direito do Recife. 
                                    As 
                                      pernas doíam muito. Estavam inchadas. 
                                      Trinta e três dias sem ver a luz do 
                                      sol, sem tomar banho. As necessidades eram 
                                      feitas numa garrafa plástica partida 
                                      ao meio. O carcereiro Teles, com o seu sadismo 
                                      de sempre chegou: 
                                    - 
                                      Chileno, vamos ali. Você, hoje, vai 
                                      conversar com uma pessoa muito importante.É 
                                      a maior autoridade em subversão da 
                                      América Latina. 
                                    Outra 
                                      vez o capuz, algemas e pancadas. A voz com 
                                      sotaque paulistano. O tom direto e cruel. 
                                      Eu estava diante do Delegado Fleury, que 
                                      veio de São Paulo para me interrogar. 
                                      E, antes de qualquer pergunta,me deferiu 
                                      um violento soco no estômago. Caí, 
                                      como um saco vazio. 
                                     
                                      Fleury queria saber dos exilados. Quem era 
                                      quem. Onde está Bruno Maranhão? 
                                      E o Sargento Prestes? Eu sei que você 
                                      morou na casa de Geraldo Vandré. 
                                     
                                      - Ou você conta tudo ou não 
                                      sai vivo daqui.  
                                    A 
                                      minha resposta foi a mesma: 
                                    - 
                                      Desconheço tudo isso. 
                                    Uma 
                                      voz conhecida apareceu na escuridão 
                                      do meu capuz. Era a voz do Major Alcântara 
                                      ,aquele que comandava os interrogatórios 
                                      em Natal. Outra voz falou: 
                                    - 
                                      Esse imbecil tá pedindo pra morrer! 
                                     
                                      VOCÊ NÃO VAI MORRER 
                                     
                                      Fui tirado da cela. Diante de mim, o doutor 
                                      Fernando?, com uma bíblia na mão. 
                                      Perguntou se eu acreditava em Deus. Respondi 
                                      que minha formação religiosa 
                                      era evangélica. Ele falou: 
                                    - 
                                      Então você compreende que a 
                                      própria bíblia justifica a 
                                      violência. Cristo expulsou os vendilhões 
                                      do templo à chibatadas. Pedro cortou 
                                      a orelha de um centurião. Você 
                                      está aqui para purgar seus pecados. 
                                      O martírio é necessário 
                                      para resgatar e purificar almas. 
                                    Eu 
                                      arrisquei a perguntar: 
                                    - 
                                      O senhor considera, então, a tortura 
                                      como um ato de fé religiosa e cristã? 
                                    O 
                                      doutor Fernando chamou o carcereiro Leite 
                                      e ordenou: 
                                    - 
                                      Leve esse canalha. Eu mesmo quero mostrar 
                                      a ele o que é a bíblia. 
                                    Fui 
                                      torturado por horas seguidas. E a pior tortura 
                                      ocorreu quando puseram diante de mim um 
                                      velho chamado Holanda, de Recife. Ele tinha 
                                      o peito queimado por isqueiro. Um olho estava 
                                      quase fora de órbita. Como se tivesse 
                                      acontecido uma briga mortal entre dos galos. 
                                      O velho Holanda me olhou, altaneiro: 
                                    - 
                                      Irmão, eu sei que vou morrer, mas 
                                      a ele não digo nada! 
                                    Diante 
                                      dos torturadores eu disse: 
                                    - 
                                      Não velho. Você não 
                                      vai morrer. Mesmo que eles lhe matem. 
                                    Explodiu 
                                      dentro de mim uma revolta enorme e, buscando 
                                      coragem, não sei aonde, comecei a 
                                      cantar: 
                                    Angústia, 
                                      solidão, um triste adeus em cada 
                                      mão, lá vai meu bloco, vai 
                                      só desse jeito é que ele sai(...) 
                                      Por isso, quando eu passar, 
                                      Batam palmas pra mim 
                                     
                                      Gritos e gemidos calaram. E das imundícies 
                                      das celas, uma voz tímida começou 
                                      a cantar também. Outra voz de juntou. 
                                      Outras vozes se juntaram. E os torturados 
                                      fizeram um coro maravilhoso: 
                                    Merece 
                                      uma homenagem quem tem forças pra 
                                      cantar, 
                                      Tão grande é minha dor, 
                                      Pede passagem quando sai. 
                                      Por isso só, lá vai meu bloco, 
                                      vai... 
                                    E 
                                      todos os prisioneiros políticos do 
                                      DOI-CODI assumiram a música como 
                                      uma das formas de resistência. Apesar 
                                      das ameaças do doutor Fernando, coronel 
                                      à época, cujo verdadeiro nome 
                                      é Cúrcio Neto. Que torturava 
                                      presos, lia a bíblia e, depois ia, 
                                      possivelmente, fazer amor com as mulheres. 
                                       
                                     
                                       
                                      
                                      
                                    “Minha 
                                      morte havia sido decretada, mas fui salvo 
                                      pelo gongo” 
                                      Parte 7 - Memórias do Exílio, 
                                      por Rubens Lemos (Final) 
                                    Foram 
                                      exatamente 60 dias no DOI-CODI, Recife.Quarenta 
                                      e quatro dos quais de quase ininterruptas 
                                      torturas. Dias de terror e solidão. 
                                      Corpo dilacerado. Misturando medo e coragem,lágrimas 
                                      escondidas por trás do capuz. Vendo 
                                      seres humanos sofrendo iguais e piores horrores. 
                                      Assistindo o desfile diuturno de pessoas 
                                      em desespero e o orgasmo sádico de 
                                      homens que representavam “a defesa 
                                      da Lei e da Ordem”. Homens que permitiam 
                                      que seus rostos fossem vistos. Os centuriões 
                                      da Ditadura. 
                                    Esses 
                                      “doutores”, sob o comando do 
                                      então coronel Cúrcio Neto, 
                                      espancaram jovens e velhos, violentaram 
                                      mulheres, mataram brasileiros.Assassinaram 
                                      ali mesmo, no DOI-CODI, na mesma casa que 
                                      antes era usada pelos generais que comandaram 
                                      o IV Exército, jovens como Emmanuel 
                                      Bezerra,norte-rio-grandense e ex-presidente 
                                      da casa do estudante.Emmanuel foi morto 
                                      com um tiro de misericórdia, depois 
                                      de cortado a tesoura por esses ensandecidos 
                                      guardiães da “Democracia”.Mas, 
                                      à época, os jornais publicavam 
                                      de forma diferente. Diziam que Emmanuel 
                                      morrera em São Paulo, depois de resistir 
                                      e trocar tiros com as forças repressoras 
                                      do Regime Militar. 
                                    Da 
                                      mesma forma, o líder estudantil Mata 
                                      Machado,a quem vi massacrando ensanguentado 
                                      e digno.Vestindo cueca vermelha, já 
                                      quase sem poder falar, olhou para mim e 
                                      falou: 
                                     
                                      - Companheiro.Sou Mata Machado, dirigente 
                                      da AP(Ação Popular). Eles 
                                      vão me matar.Se você puder, 
                                      avise aos outros que fiquem firmes, pois 
                                      eu não falei, não abri nada. 
                                     
                                      E MATARAM MATA MACHADO 
                                     
                                      Sessenta dias, depois trouxeram minha roupa, 
                                      as sandálias e o relógio. 
                                      Novamente o capuz e as algemas.Fui levado 
                                      ao que parecia uma garagem, pois era grande 
                                      o barulho de carros.Depois de muito tempo, 
                                      uma voz falou rápido e baixinho: 
                                     
                                      - Fique tranqüilo. Você vai ser 
                                      levado de volta para Natal. 
                                     
                                      Nunca mais ouvi aquela voz, a única 
                                      - no meio de tanto desprezo pelo ser humano 
                                      – que me trouxe de volta um fio de 
                                      esperança, pois eu estava, também, 
                                      marcado para morrer. Vim saber disso tempos 
                                      depois: alguém, até hoje não 
                                      identificado, fizera chegar a Roberto Furtado 
                                      um bilhete dizendo: “Seu amigo foi 
                                      salvo pelo gongo.” Na verdade, o CENIMAR 
                                      já determinara minha execução. 
                                    E 
                                      voltei para Colônia Penal “João 
                                      Chaves”, onde cheguei por volta da 
                                      meia-noite.Os pés, a muito custo, 
                                      sustentavam meu corpo estropiado. 
                                     
                                       
                                      JAILSON, “O BANDIDO”, 
                                      ME SALVOU A VIDA 
                                     
                                      Para surpresa minha, quem me recebeu à 
                                      porta da penitenciária foi o Tenente 
                                      Adel, aquele mesmo que conhecera, nos anos 
                                      60, como ator do Teatro de Amadores de Natal 
                                      e, depois, incorporado ao Grupo Jesiel Figueiredo. 
                                      Adel me entregou ao Corpo da Guarda, de 
                                      onde fui levado para uma cela de isolamento, 
                                      chamada ironicamente de “lua”. 
                                      Um velho e sujo colchão, um espaço 
                                      estreito e um corpo quebrado.As calças 
                                      não sustentavam no corpo esquálido. 
                                      Dia seguinte a visita do médico. 
                                      De forma profissional e correta me examinava.Era 
                                      Berilo de Castro , irmão de Ney Leandro 
                                      de Castro. O Berilo de grandes jogadas como 
                                      centro-médio do América e 
                                      do Alecrim.E sobre quem tantos comentários 
                                      eu fizera quando nos microfones da Rádio 
                                      Poty. 
                                    Os 
                                      dias iam passando pesados. Nenhuma visita.Tudo 
                                      era proibido. Até que semanas depois,fui 
                                      levado à sala do diretor.À 
                                      minha frente, Ivan Tavares, meu cunhado, 
                                      escolhido para comprovar que eu estava vivo.Ele 
                                      não conseguiu dizer uma palavra. 
                                      Percebi que o choro estava entalado em sua 
                                      garganta.”Tudo bem,tudo bem” 
                                      eu disse.Logo depois,apareceu Isolda, minha 
                                      mulher, num vestido amarelo bonito, como 
                                      ela própria, ou como girassóis 
                                      viçosos. 
                                    Levaram-me 
                                      de volta à “lua”. Visitas 
                                      só vieram a ocorrer muito depois 
                                      .E dessa “lua” vi coisas dolorosas, 
                                      senti a violência do cárcere.Presos 
                                      comuns torturados, mortes ocorriam no presídio.E,uma 
                                      noite, noite alta, acordei com uma gritaria 
                                      enorme.A porta da minha estreita cela era 
                                      aberta.não havia luz Mais ou menos 
                                      onze presos comuns, considerados de alta 
                                      periculosidade, aparentemente embriagados, 
                                      foram postos (ou espremidos) dentro da cela 
                                      Pressenti o perigo.Gritavam e brigavam.Entre 
                                      eles, estavam “Mudinho”,”Penerá 
                                      o Pé” e “Negro Anchieta”.Alguém 
                                      falou : 
                                     
                                      - Vamos logo fazer o serviço nesse 
                                      barão... 
                                     
                                      Levantei e só pude dizer coisas pouco 
                                      convincentes. Mas, minha voz valeu porque 
                                      outra voz surgiu perguntando: 
                                     
                                      - É Rubens Lemos quem está 
                                      falando? 
                                       
                                      A voz era de Jailson Fortunato de Lima, 
                                      que conheci criança,filho de gente 
                                      querida dos tempos de Rádio Poty. 
                                      E, das sombras da lua, Jailson disse: 
                                     
                                      - Nesse aí, pessoal, ninguém 
                                      vai tocar.Rubens Lemos é gente de 
                                      fé. Quem tocar nele, vai se entender 
                                      comigo. 
                                       
                                      O silêncio foi completo.Minutos depois, 
                                      a porta da cela foi aberta e eles foram 
                                      embora. Antes, porém, Jailson Fortunato 
                                      de Lima me abraçou e garantiu: “O 
                                      serviço foi encomendado. Mas, daqui 
                                      pra frente durma tranqüilo”. 
                                      E nunca mais esqueci aquele gesto de alguém 
                                      que era considerado bandido, mas, que, na 
                                      verdade, me salvara a vida. 
                                    Outras 
                                      coisas aconteceram na prisão.A prisão 
                                      que conheci “Joca de Cininha”, 
                                      Edmar Nunes Leitão, o “Antônio 
                                      Letreiro”, matadores profissionais, 
                                      como conheci marginais de todos os tipos.Homens 
                                      que foram transformados em feras, em animais, 
                                      por uma sociedade injusta, desumana, embora 
                                      “cristã e temente a Deus”. 
                                    Fiquei 
                                      mais de seis meses em “liberdade”. 
                                      Uma liberdade que me impedia de trabalhar, 
                                      de sair de Natal, de rever os filhos de 
                                      uma anterior união, quando ainda 
                                      tinha 19 anos. Lúcia que me fez avô 
                                      aos 37 anos de idade.Marcos Wilson, que 
                                      entrou num seminário do interior 
                                      de São Paulo.Fábio César, 
                                      que hoje, aos 21 anos, é universitário 
                                      e líder sindical em Londrina.Esses, 
                                      os meus filhos de uma relação 
                                      fracassada e que, só muito tempo 
                                      depois, consegui resgatá-los: como 
                                      filhos e como pai. 
                                    Enquanto 
                                      não saía o julgamento na Auditoria 
                                      Militar, em Recife, sofri toda a sorte de 
                                      constrangimentos em Natal.Fui levado, seguidas 
                                      vezes, às salas de interrogatório 
                                      da Polícia Federal e do Dops. Vi 
                                      pessoas, que não imaginava, entre 
                                      os interrogadores e que, hoje, são 
                                      figuras respeitáveis e notáveis 
                                      no Estado. Como vim descobrir, recentemente 
                                      em Cuiabá, escondido sob o nome de 
                                      um respeitabilíssimo advogado,a figura 
                                      de “Cabo Henrique”, um dos mais 
                                      frios torturadores do Brasil e que pertencia 
                                      (?) aos quadros de oficiais das Forças 
                                      Armadas Brasileiras. 
                                     
                                      APESAR DAS AMEAÇAS 
                                     
                                      Termino esta série de depoimentos.Que, 
                                      é lógico não estão 
                                      completos,mas representam a essência 
                                      de todo um período em que fui participante. 
                                      Corajoso ou não. Busco com isso deixar 
                                      o meu testemunho.Algumas omissões 
                                      de nomes e fatos foram necessárias. 
                                      Por questão de segurança(não 
                                      minha), mas de terceiros Apesar das ameaças 
                                      recebidas por telefone, prossegui. Como 
                                      quero prosseguir encarando a vida, como 
                                      encaro meus filhos. Principalmente como 
                                      encaro meu caçula Camilo, que escapou 
                                      “aos perigos daquela vida”, 
                                      vida minha, de Isolda Rubinho e Yasmine.e 
                                      é a Camilo, como a todos os que lutaram 
                                      (mortos ou vivos) e que continuam lutando 
                                      pela verdadeira liberdade deste país, 
                                      que dedico esse trabalho. 
                                      
                                      * O jornalista Rubens Lemos faleceu dia 
                                      04 de junho de 1999 aos 57 anos em Natal, 
                                      vítima de hemorragia, decorrente 
                                      de uma cirrose hepática. 
                                    ^ 
                                      Subir 
                                    < 
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