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Ditadura Militar no RN
Ditadura
Militar de 1964 no Rio Grande do Norte
Glênio
Fernandes de Sá
Repressão no RN
Textos
Glênio
Sá: De um especial brasileiro às
novas gerações
Luiz
Carlos Antero*
Numa
época em que a política sofre
profundamente a ação das práticas
culturais de uma das elites mais atrasadas
do planeta, o resgate da memória
de Glênio Fernandes de Sá enobrece
o espírito e remete ao exemplar orgulho
revolucionário de uma geração
de lutadores. Daquela safra de jovens que
viveu intensamente a opção
de transformar um mundo caduco e enfermo.
Este legado às novas gerações
que adveio do auge de uma era de transformações
e nos conduzia, de modo inexorável,
a acreditar sob todos os riscos num generoso
sentimento de solidariedade capaz de realizar
os sonhos de uma nova sociedade.
Foi nessas circunstâncias que conhecemos,
na Fortaleza de final dos anos 1960 e início
dos ’70, o altivo e sobranceiro Glênio,
um bravo potiguar de rosto proeminente,
fala comedida, olhar sereno e determinado,
um desarvorado rebento nascido no município
de Caraúbas, no Rio Grande do Norte,
em abril 1950, distando somente alguns dias
ou meses de idade em relação
ao próprio nascimento de cada um
de nós, então estudantes secundaristas.
Era o caçula de sete irmãos
do casal Raimunda Fernandes de Sá
e Epitácio Martins de Sá,
entre os quais Gil Fernandes de Sá,
que também adotara o Ceará
como espaço adotivo de sua trajetória
de vida e luta.
Mais amadurecido, Glênio já
percorrera o caminho da resistência
desde os 16 anos: seu ingresso na luta democrática
ocorrerra dois anos após o golpe
militar de 1964, ainda no Colégio
Estadual de Mossoró (RGN), integrando-se
a partir de 1968, em Fortaleza, às
fileiras do Partido Comunista do Brasil
(PCdoB), quando desenvolvia uma forte atuação
no Centro de Estudantes Secundários
do Ceará (CESC) e no movimento estudantil
cearense.
No crepúsculo dos anos ‘60,
Glênio já despontara como uma
das principais lideranças do movimento
secundarista em Fortaleza, tornando-se um
destacado e querido dirigente da resistência
à ditadura militar com uma clara
compreensão da importância
da restauração das liberdades
democráticas no Brasil.
Com uma visão ampla da vida, compreendia
também as circunstâncias da
bipolaridade que dividia o mundo entre Estados
Unidos e União Soviética,
numa intensa e marcante luta de classes
no plano internacional com reflexos em nosso
país, onde o regime de exceção
se instalara para conter os avanços
sociais sob o declarado temor da opção
comunista e de uma mudança de lado
na posição brasileira.
Naquele momento, as liberdades políticas
foram gradualmente cerceadas, tornando as
atividades da resistência mais arriscadas.
A propagação do pensamento
libertário, antes (do Ato Institucional
nº 5, o AI-5, em 1968) possível
nos espaços públicos, inclusive
no interior das instituições
de ensino, passou a depender de ações
que deviam contar sempre com um planejamento
que envolvia a questão da segurança
em comícios relâmpagos nos
colégios e universidades, panfletagens
na madrugada em cada casa, pichamentos nos
muros mais visíveis, etc.
Em síntese, o conteúdo das
falas e panfletos conclamava os estudantes
e o povo brasileiro à obra da resistência
ao arbítrio, à defesa das
liberdades democráticas e da nossa
soberania, à necessidade de uma vida
melhor para a classe operária e os
trabalhadores em geral, de um regime de
justiça social capaz de valorizá-los
e promovê-los à posição
de protagonistas das transformações.
Um conteúdo que se estendia à
rejeição da presença
do intervencionismo imperialista em nosso
país, em particular dos Estados Unidos.
Na atuação da União
da Juventude Patriótica (UJP), inspiração
do PCdoB, uma das suas consignas consistia
na defesa da extensão de 200 milhas
para o nosso mar territorial em contraponto
à pretensão imperial de limitá-lo
às 12 milhas. Eram comuns os comícios-relâmpago
nos restaurantes universitários e
em outros lugares, culminando com a queima
da bandeira dos EUA.
Nossa atuação encontrava em
Glênio e na sua presença invariavelmente
firme e combativa à frente do CESC,
na organização e liderança
das manifestações estudantis,
não obstante os perigos e atribulações
ocasionados pela repressão policial.
Nessas circunstâncias, compareceu
ao Congresso da União Brasileira
dos Estudantes Secundaristas (UBES), realizado
em 1968, em Salvador, numa delegação
de quatro eleitos – que, na passagem
por Aracaju, soube da notícia do
AI-5, decretado pelos generais.
Diante da privação das liberdades
em todo o país, a luta se radicalizava
pelo próprio agravamento das operações
militares repressivas, restringindo cada
vez mais as possibilidades de atuação
estudantil, criminalizadas pela ditadura.
Em 1969, Glênio foi preso duas vezes;
logo na primeira prisão, na cidade
do Crato (CE), permaneceu detido três
meses, indiciado num Inquérito identificado
pelo número 18/69, instaurado pela
Superintendência Regional do Departamento
de Polícia Federal do Ceará
e remetido à Auditoria da 10ª
Circunscrição Judiciária
Militar, depois arquivado por solicitação
da Procuradoria Militar, que o extinguiu
pela patética inexistência
de crime a punir.
Na segunda prisão, também
ocorrida no Crato, quando convocava os estudantes
para integrar o CESC, o jornalista Paulo
Verlaine, companheiro de lutas de Glênio
e também membro do Comitê Secundarista
do PCdoB, fora preso numa ação
de pichamentos contra a presença
no Brasil de Nelson Rockfeller, destacado
membro de uma poderosa família dos
EUA e agente dos interesses imperiais enviado,
à frente de uma Missão, pelo
então presidente Richard Nixon.
Ao chegar no então Quartel General
da PM, na Praça José Bonifácio,
em Fortaleza, Verlaine já encontrou
Glênio, que foi liberado cerca de
20 dias depois: “Já nos conhecíamos
muito bem e foi muito bom tê-lo encontrado
ali, apesar de se tratar de uma prisão
(...) A imagem que guardo de Glênio
é a de um jovem aguerrido, solidário
e preocupado com os destinos do País.
Um estudante que dedicava toda a sua vida
à luta contra a ditadura militar
e se preocupava com o sofrimento do povo.
Um grande brasileiro”.
E foi essa a lembrança que permaneceu
em seus mais próximos contemporâneos.
José Auri Pinheiro, também
membro da direção do CS do
PCdoB, hoje professor universitário
aposentado, fixou em sua memória
“uma pessoa afável, gentil,
solidária, ousada, de uma coragem
invejável, uma pessoa muito inteligente,
de discurso fluente, habilidoso ao lidar
com as demais correntes políticas
(a exemplo da AP, dos trotskistas ou reformistas).
Nos embates políticos das reuniões
ou congressos do CESC, nós sempre
contávamos com sua firmeza ideológica
no arremate final, convencencendo aqueles
indecisos, sem partido, na conquista para
as posições do PC do B. Apesar
da firmeza política, ideológica,
no discurso e na prática, mesmo tratando
de temas áridos fazia com humor,
com graça. Não era aquele
cara chato, era admirado por todos. Era
comunista 24 horas por dia, sempre maquinando
situações para colocar em
cheque a ditadura num momento em que as
pequenas ações se revestiam
de grande importância, naqueles momentos
difíceis em que era preciso ser ousado,
corajoso. E nisto o Glênio era mestre.
Foi com estas ideias, ações,
atos cumulativos, que chegamos ao fim da
ditadura”.
Seu irmão Gil até hoje considera
muito dificil falar do mano Glênio
sem o peso da saudade e emoção:
“Ele se tornou cedo o espelho do combatente
determinado sem perder nunca a leveza e
amabilidade na relação com
todos que o cercavam. Morreu lutando pelos
ideais que o seguiram por toda a sua existência
contra a injustiça social e pela
igualdade de oportunidades para todos. Sua
vida foi sempre alimentada por sonhos libertários”.
E foi pela convicção de todas
essas razões entremeadas que a direita
militar submissa ao Império nunca
o perdoou, perseguindo todos os seus passos
até exterminá-lo fisicamente.
A militância no movimento estudantil
de Glênio foi interrompida no início
de 1970, com a desarticulação
e a proscrição das entidades
mais atuantes, a exemplo do Diretório
Central dos Estudantes (DCE) da Universidade
Federal do Ceará (UFC), diretórios
acadêmicos e do próprio CESC,
declarados ilegais. Dispostos a prosseguir
na resistência, inúmeros estudantes
ingressaram na clandestinidade ainda que
os riscos se tornassem maiores, pois a ditadura
passava a listá-los para execução
física, no caso do confronto direto,
ou para a tortura e o assassinato nas masmorras
do regime.
Logo Glênio optou pelo deslocamento
rumo ao sul do Pará, onde aqueles
cidadãos marcados para morrer adotaram
uma nova qualidade de resistência,
na organização e conscientização
dos camponeses da região na luta
contra grileiros e latifundiários.
Foi o movimento que permaneceu conhecido
como Guerrilha do Araguaia e que guarda
mistérios até hoje ocultos
nos arquivos das forças armadas sobre
seus acontecimentos. Até abril de
1972, quando a repressão militar
localizou e atacou os que se refugiaram
na região, homens e mulheres de todas
as idades, Glênio participou da preparação
de uma resistência sem data marcada
e que poderia ser de médio ou longo
prazo.
Após o ataque dos militares, entretanto,
internou-se na selva. Em seguida a um período
de combates, contraiu malária e,
gravemente enfermo e febril, foi detido,
barbaramente torturado e transferido sucessivamente,
até que, localizado por sua família,
foi libertado em 1975 numa dramática
situação que envolveu gestões
e pressões de diversas instâncias
sociais. Do mesmo modo que os demais sobreviventes,
num total que não chegaria a uma
dezena (de um contingente de 69 que migraram
para a região do Araguaia em busca
de uma nova perspectiva de vida e de luta),
acerscidos dos camponeses que aderiram à
resistência, Glênio também
jamais foi acusado ou processado por sua
participação na Guerrilha.
E, para ele, a luta não terminaria
com a saída do cárcere, que
significava somente mais uma etapa do processo
versejado pelo amor maior da libertação.
Muito magro e debilitado pelos maus tratos
sofridos no período em que esteve
nas masmorras da ditadura, após a
prisão no Araguaia, Glênio
recebeu um dia a visita de um amigo do seu
irmão Gil, na humilde residência
em que vivia com sua familia. O visitante,
Pedro Carlos Álvares, muito emocionado
com aquele contato, cumpria uma agenda de
trabalho em Natal, egresso de Fortaleza,
onde organizaria a equipe de expansão
de uma empresa cearense do ramo da informática.
Surpreso, o abatido mas sempre altivo Glênio
soube que teria um emprego, na verdade um
desafio para um revolucionário que
vivera por longo tempo distante das novidades
do mundo tecnológico, num tipo de
revolução muito diferente
de tudo que vivenciara nos anos de chumbo
da ditadura. Apresentou-se na empresa no
dia seguinte trajando roupas muito simples,
recebeu as primeiras instruções
sobre o trabalho, que consistia em liderar
sua equipe de vendas, e integrou-se, determinado,
às novas funções.
Dias depois, Álvares viajou para
Fortaleza numa emergência familiar.
No retorno a Natal, encontrou um dos sócios
da firma, um civil potiguar entusiasta da
repressão aos comunistas, indignado.
Glênio, numa reunião com dezenas
de funcionários, havia relatado sua
saga na guerrilha do Araguaia, contextualizando
a luta de resistência. Álvares
foi convocado para uma reunião em
Fortaleza, e, com muita convicção
e habilidade, convenceu a diretoria da irrelevância
do fato; disse que o mais importante estava
na realização das metas de
expansão comercial, apostou na capacidade
de liderança de Glênio e em
seu desempenho. E não deu outra:
a equipe comandada por ele se tornou rapidamente
campeã de vendas no Nordeste.
Mas
o êxito não o afastou da política.
Pelo contrário: sua atividade persistiu
com a mesma determinação.
E, quando a fatalidade o alcançou,
em 1990, estava em pleno curso. Na verdade,
a crônica de uma morte anunciada,
pois a comunidade repressiva persistiu em
atividade após o anúncio formal
do fim da ditadura, cinco anos antes, em
1985. A mesma macabra agenda que determinou
o extermínio de todos os combatentes
no período da terceira campanha de
cerco e aniquilamento da Guerrilha do Araguaia,
e que tornara a Chacina da Lapa, em 1976,
sua derradeira e simbólica batalha,
vitimaria quem ousasse permanecer no prumo
libertário. Buscava-se desse modo
completar o inglório desígnio
de destruição de um pensamento
nacional, consequente e libertário.
Alguns contemporâneos das lutas secundaristas
voltamos a abraçá-lo nos anos
‘80, em Natal ou em Fortaleza, quando
reassumira seu lugar na crista das lutas
e na direção do PCdoB, tornando-se
candidato ao Senado pelo Rio Grande do Norte.
Paulo Verlaine, que o reencontrou, juntamente
com outros militantes, numa visita a Fortaleza,
guardou a impressão de “um
Glênio mais sofrido devido às
torturas e outros sofrimentos enfrentados
durante a prisão”. Mas a sua
preservada firmeza nas convicções
e no jeito humano e comunista de ser, temperados
pelo afeto irresístivel ao povo brasileiro
— e ao nosso milagre territorial hoje
cada vez mais potencializado — são
reveladores de sua contribuição
ao Brasil de liberdades democráticas
e dos avanços pelos quais pugnamos
hoje.
Não houve, portanto, nada de acidental
no estranho acidente automobilístico
que ceifou sua vida. Pois Glênio,
executado, está ao lado de Mauricio
Grabois e de tantos outros, como um especial
brasileiro no panteão de mártires
e heróis, entre os melhores filhos
do nosso povo, exemplo de integridade e
de luta para as atuais e futuras gerações.
Abatido em pleno vôo da liberdade
como na Canção do Novo Mundo,
onde “em menos de um segundo um simples
canalha mata um rei”. Mas com uma
memória tão viva “que
nem a força bruta pode apagar”.
*Luiz Carlos Antero é Mestre em Sociologia,
Jornalista, Escritor e Assessor Parlamentar
no Senado Federal.
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