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Tecido Social
Correio Eletrônico da Rede Estadual de Direitos Humanos - RN

N. 005 – 31/10/03

"Que a caneta seja também uma espada"

Subcomandante Marcos (tradução de Antonino Condorelli)

Bom dia, boa tarde, boa noite. Meu nome é Marcos, subcomandante insurgente Marcos. Fui convidado ao Fórum em defesa da humanidade para dizer umas palavras. Agradeço o convite, mas preciso avisar-lhes que sou um soldado, um soldado do Ejército Zapatista de Liberación Nacional. Aviso isso porque, segundo o que me disseram, compartilharei minha palavra com intelectuais e líderes políticos e sociais. Por isso talvez minha voz soe discordante e fora do lugar. Ou não, talvez haja, no que vou dizer, pontes e coincidências. Às vezes acontece que a caneta e a espada coincidem.

Talvez coincidamos na inquietação por um debate necessário e uma troca de idéias que ajudem a esclarecer um pouco este confuso e desordenado horizonte que alguns chamam de história contemporânea e que, às vezes, faz do trivial e grotesco assunto de interesse e escândalo mundial; e outras vezes faz do terrível e aberrante algo que, por tanto se repetir, torna-se um som monótono e desapercebido.

Mencionarei algumas anotações apressadas sobre a globalização e o neoliberalismo, ou melhor, sobre o que nós alcançamos a perceber (e sofrer) deles, e sobre as resistências em geral e nossa resistência particular.

Como é para se esperar, em estas anotações reinam o esquematismo e a redução, mas acredito que têm condição de desenhar uma ou muitas linhas de discussão, diálogo e reflexão. Ou, melhor ainda, de memória e vergonha.

(...)

PRIMEIRO. Se na política antiga (ou seja, desde a Atenas grega até as repúblicas modernas) o Estado era a "mãe" do individuo e o seio no qual se gerava, crescia e se reproduzia a sociedade, no mundo globalizado o Estado já não pode cumprir esta função. O individuo já não tem porque se referir a uma pátria, uma cultura, uma raça ou uma língua. O ventre materno é agora esta megaesfera que alguns ainda chamam de "planeta terra". O "cidadão" já não é o membro da polis, mas o navegante da megapolis, portanto necessita de "outros" conhecimentos e habilidades que o Estado nacional não pode lhe oferecer.

SEGUNDO. Da mesma maneira, os "homens de Estado", estes super-homens autores de citações clássicas, guerras, impérios, leis e repressões, já não existem como tais. Aquele velho "treinamento" interno que existia nas classes políticas para preparar os seus membros para substituir-se uns aos outros é obsoleto, as habilidades da política clássica (oratória, liderança, sensibilidade, temperança, conhecimentos históricos, filosofia, jurisprudência, relacionamento adequado) parecem agora mais próprias das saudades circenses. O protocolo do poder, esta complexa mistura de sinais e atitudes, já não se aprende nem se exerce no Estado.

TERCEIRO. O Estado nacional tende a não ser mais o encarregado da reprodução dos homens (entendendo "reprodução" em seu sentido mais amplo, ou seja, as condições econômicas, políticas, culturais e sociais para a sua reprodução social), mas o administrador é o que contêm as desordens desta reprodução. O megapoder, esta entidade da qual se sabe tão pouco, agora impõe uma reprodução mais importante: a do dinheiro.

QUARTO. A luta contra a globalização do poder (e contra seu suporte ideológico: o neoliberalismo) não é exclusiva de um pensamento ou uma bandeira política ou de um território geográfico, é uma questão de sobrevivência humana. Assim como na Segunda Guerra Mundial uma multidão de forças resistiu e lutou contra o fascismo, agora são muitas as forças que resistem e lutam contra o neoliberalismo.

QUINTO. Nos Estados nacionais o processo da dupla globalização-neoliberalismo produz um fenômeno de resistência que, de forma cada vez mais acentuada, incorpora a amplos setores da população SEM QUE SEJA PRIMORDIAL SUA CLASSE SOCIAL OU O LUGAR QUE OCUPAM NO PROCESSO DE REPRODUÇÃO DO CAPITAL.

SEXTO. Aparecem, por exemplo, grupos desconcertantes (de fato, a teoria tinha decretado seu desaparecimento ou sua "absorção" pelos que estão encima): por um lado, indígenas que falam línguas incompreensíveis (ou seja, imprestáveis para trocar mercadorias) e que desafiam com armas de pau a helicópteros, tanques, aviões, metralhadoras, bombas; por outro lado, jovens desempregados (os "lumpen" que, segundo o que manda a teoria, deveriam estar engrossando as filas dos aparelhos repressivos do Estado) se mobilizando contra o governo e exigindo respeito à sua maneira; ou, mais além, homossexuais, lésbicas e transexuais pretendendo reconhecimento da sua diferença.

SÉTIMO. Estes fenômenos de resistência ("bolsas de resistência" as chamamos nós para opô-las às "outras" bolsas, às de valores) tendem a procurar comunicação com fenômenos semelhantes em outras partes do mundo. As superestradas da informação, concebidas para facilitar o fluxo de mercadorias e dinheiro, começam a ver (não sem pavor) que são transitadas por velhas carretas, animais de carga e pedestres que não trocam mercadorias e capitais, mas algo muito perigoso: experiências, apoios mútuos, HISTÓRIAS.

Claro que estou falando do que há na mão: nossa guerra, nossas armas, nossa história. Mas tem outros exemplos que nos falam de uma nova emergência, de algo novo que irrompe aqui e acolá e que não acabamos nem de dirigir nem de entender, em parte porque somos um fragmento destes fenômenos, em parte pelo caráter precipitado dos acontecimentos, em parte porque o presente é o pior lugar para se pensar o hoje, em parte porque ainda tem muitas coisas para se definir.

Mas algo começa a ficar cada vez mais claro: não é verdade que nós perdemos e, sobretudo, não é verdade que eles ganharam. A história que conta, a que fazemos nós homens e mulheres, tem ainda muitas linhas a se tecer e não acaba se adivinhando sequer o desenho nem a cor deste gigantesco tapete que a humanidade haverá de ter. Nós, e conosco muitos como nós, já sabemos que, em qualquer caso, a cor não é o cinza que agora impõem, nem o desenho é somente dor e morte. Há também muitas outras cores. E há também muita esperança.

Não só: se o planeta tem feridas abertas e sangrentas na sua redonda geografia, nomeando-as não as sanamos, é verdade, mas fazemos um gesto de humanidade que às vezes parece perdido.

(...)

Nomeemos qualquer canto do planeta e sejamos perseguidos junto com homossexuais, lésbicas e transexuais; resistamos com as mulheres ao imposto destino de decoração idiota; resistamos com os jovens à máquina trituradora de inconformismos e rebeldias; resistamos com operários e camponeses ao mecanismo sangrento que, na alquimia neoliberal, converte mortes em dólares; caminhemos ao passo dos indígenas da América Latina e com seus pés façamos o mundo redondo para que gire.

Nomeemos aos que não têm nome. Olhemos para os que não têm rosto.

Nomeemos e olhemos para o mundo que não existe agora, mas que começará a existir em nossas palavras e nossos olhares.

Nomeemos, pois, as dores da humanidade. Não só porque são também nossas dores. Também porque, as nomeando, nos tornamos um pouco mais humanos. Porque diante destas feridas o silêncio é renúncia, rendição, claudicação, morte.

Se há quem fez da caneta uma espada, que cintile no ar com seu brilho, que assinalando nossas feridas se enobreça, que nos nomeando nos torne partes de um quebra-cabeça que amanhã será um mundo onde não faltarão memória nem vergonha.

Porque as duas, a memória e a vergonha, são o que nos fazem seres humanos.

Não sejamos os alcagüetes da nossa história, da nossa consciência, os traidores da palavra que levantamos ontem e que hoje nos convoca para ser afiada e unida na memória e na vergonha.

Valeu. Saúde e que a caneta seja também uma espada, e que seu fio corte o muro escuro pelo qual haverá de se colar o amanhã.

Desde as montanhas do sudeste mexicano.

Subcomandante Insurgente Marcos

Fonte: La Jornada do 26/10/03

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