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Educação em Direitos Humanos

A Educação para os Direitos Humanos e para a cidadania em Cabo Verde

Não pretendemos expor e maçar os ouvintes com o que se propõe concretamente como programa, métodos e estratégias para o ensino – especialmente depois de ter falado a especialista MRAfonso – partilhar reflexões sobre o problema no contexto cabo-verdiano.

Uma útil e feliz coincidência a realização deste Colóquio sobre Direitos Humanos: exactamente num momento em que acontecimentos, que geram legitimamente uma forte e genuína emotividade em importantes sectores da sociedade, também propiciam sentimentos de alguma sub-valorização, senão mesmo desconfiança ou, até, de rejeição  face aos DH, seus fundamentos  e suportes institucionais, éticos e jurídicos. Um momento em que – no que não constitui propriamente novidade ou singularidade cabo-verdiana, mas, pelo contrário, consubstancia discurso e comportamentos colectivos afins em quase todas as latitudes, mesmo em países à partida mais avançados do que nós – as emoções se sobrepõem à racionalidade, o epidérmico se superioriza ao que se mostra empírica  ou cientificamente sustentado, o fácil e contagioso parecem triunfar sobre a argumentação sofisticada e complexa.

Não poderia ter acontecido este foro em mais propícia ocasião, quando surgem, por vezes de forma subtil ou envergonhada, mas outras vezes à superfície da mais colorida mediatização, discursos e posições que, à míngua de respostas para problemas reais e por vezes complexos na suas causas e na sua configuração, desembarcam em qualquer porto ou apeadeiro que se revele «abrigador», diríamos melhor, desresponsabilizador ou, no mínimo, desculpabilizante.   

Quem não tem ouvido, lido ou acompanhado, mesmo entre nós, e em momentos de dificuldades nas respostas a problemas sociais e comunitários de dimensão e gravidade que legitimamente preocupam os cidadãos (problemas de segurança, de emergência de formas novas de criminalidade grave, mormente), discursos que quase transformam os fundamentos e as instituições – oficiais ou não – ligados à defesa e promoção dos Direitos Humanos ou Fundamentais ou o seu depositário maior (a CRCV) em «abrigos» do crime e seus agentes ou, no mínimo, como seus potenciadores e facilitadores. E, diga-se desde já, em muitos dos casos, discursos e exacerbadas asserções construídos com base em equívocos interpretativos, em excessiva e redutora singeleza de  processos argumentativos, quando não em desconhecimento de regras e procedimentos que deveriam ser instrumento quotidiano do labor profissional. Discursos e asserções que não raro assentam em pressupostos e sugerem soluções que contrariam frontalmente o modo de vida sufragado há muito pelos cabo-verdianos, traduzido num determinado sistema político, num determinado regime político e, até, forma de vivência colectiva.  Diríamos, numa linguagem mais rasa, que, algumas vezes, a aceitar-se a proposta de remédio para os males que nos apoquentam correríamos o risco de morrer da cura , em vez da doença. Enfim, como já tivemos a oportunidade de referir noutra ocasião, a defesa da eficácia como critério determinante e incondicionado levar-nos-ia, por exemplo, a privilegiar a tortura como método de obtenção da confissão e esta como critério eleito e decisivo de prova; ou a sufragar um modelo em que, p.e., se a polícia detém uma pessoa como suspeita de certo crime, seguir-se-ia o cumprimento de uma pena por ela decidida, suprimindo-se o controlo jurisdicional da privação da liberdade ou até a existência de julgamento. Seria tudo bem mais fácil, mais célere, e tremendamente eficaz, mas, talvez, tragicamente eficaz, pois seriam os próprios defensores de uma tal eficácia a, numa primeira oportunidade, sendo tocados pela tragédia individual ou familiar, a propugnar a revolta da colectividade e a pedir a cabeça dos «sanguinários» e «violadores dos DH».

É verdade que tais construções aparecem apenas de vez em quando e que, amiúde, confrontadas com respostas bem alimentadas e cozidas a partir de argumentos racionais, esgrimidos a frio e não «à flor da pele» e alicerçados em razões técnicas, caem por terra à primeira estocada. Mas voltam sempre quando há um acontecimento mais doloroso, um homicídio que surge aberrante, um caso de violência gratuita e bárbara e, porque não dizê-lo desde já, quando as respostas operacionais não surgem atempada ou adequadamente .

E o preocupante – e que, por isso, merece reparo cirúrgico e carece de explicação paciente e segura – é que o fácil, o imediato, a resposta a quente, a solução redutora, a medida sugerida que apenas vê um aspecto do problema e esquece as consequências para o conjunto ou para a própria subsistência dos valores comunitariamente aceites por vezes são... rapidamente propagados de boca a boca, de comentário em comentário, nos media e, o mais perigoso, transformados em instrumento de esgrima política e/ou eleitoral. E quantas vezes não se tem assistido, um pouco por todo o lado, à adopção de medidas restritivas de Dtos e garantias, precisamente em nome da defesa de valores outros e do combate a «inimigos» do Estado de Direito, sem que quaisquer resultados práticos se tenham obtido, ou verificando-se mesmo a agravação dos problemas para os quais elas seriam remédio evidente?! De tal forma isso é verdade e preocupante que – o que parece,  a quem esteja numa observação mais serena porque menos interessada a curto prazo, estranho senão absurdo – é o próprio grupo político que se considera  o mais fiel depositário de certo ideário ou doutrina política ou ética a... dar tiros no pé, propondo ou sugerindo medidas que precisamente vão de encontro aos valores, princípios e regras que diz defender como causa primeira e sua. Não vale a pena entrar em detalhes para que quem me ouve  se aperceba do que falo e porque falo. Não queremos dar ou vir a dar razão a NICOLA MATTEUCI, quando, já num escrito de 1986, nos advertia para o facto de «... as ameaças pode(re)m vir do Estado, como no passado, mas podem vir também da sociedade de massa, com seus conformismos, ou da sociedade industrial, com sua desumanização [e crescentávamos nós: da sociedade do risco (na esteira do sociólogo Ulrich Beck) pós-industrial, com o seu manancial de formas novas e sofisticadas de ameaça a bens comunitários, justificadoras de um sistema penal de cariz totalitário ou, pelo menos, de risco ou de excepção [1] ]. É significativo... na medida em que a tendência do século atual e do século passado parecia dominada pela luta em prol dos direitos sociais, e agora se assiste a uma inversão de tendências e se retoma a batalha pelos direitos civis» [2] .

O que têm estas considerações a ver com o tema que aqui nos traz?! Certamente para alguns parece este nosso arrazoado deslocado deste ambiente e deste auditório e mais apropriado se o tema fosse a candente e cada vez mais actual questão da segurança no Estado de direito ou, então, a da compatibilização entre o fenómeno da criminalidade violente e a necessidade de seu combate e as exigências de um Estado de Direito e de Democracia. Temas que têm merecido a nossa atenção e algumas intervenções recentes. e as nossa respostas de ontem são as mesmas de hoje: é necessário, evidentemente, adequar os sistemas de justiça criminal e da segurança aos novos fenómenos da criminalidade

(concordância prática – adequação, proporcionalidade/ escutas; SIR; alargamento prazos prisão preventiva certos casos; agente infiltrado; protecção testemunhas; revistas efectuadas em casos especiais por órgãos de polícia criminal, sem autorização judicial prévia )

Os desafios impostos, nomeadamente ao direito penal (no seu todo), na adaptação aos novos tempos e às novas e sofisticadas formas de criminalidade, para além das razoáveis e equilibradas formas de «concordância prática» acima ilustradas, exigem o estudo aprofundado e imaginativo de mecanismos de adequação dos instrumentos da coacção penal à nova fenomenologia criminal, tanto no plano interno, quanto no supra-estatal; o que deverá conduzir a modelos distintos de investigação, à especialização de seus responsáveis, introdução de assessorias técnicas e científicas junto dos decisores judiciais, à maior consistência institucional e apetrechamento técnico-científico do Ministério Público e polícias criminais, a novos métodos de acesso e posterior tratamento da informação e à instauração de estruturas de colaboração e cooperação nos planos nacional e supra-estatal.

[Um direito penal ad hoc ou de excepção, no âmbito da criminalidade organizada, da corrupção ou do tráfico de estupefacientes apenas, que faça preterição do respeito dos direitos, liberdades e garantias individuais, constituídos como limite do exercício do poder estatal; um sistema de direito penal que assuma a primazia da razão de Estado sobre a razão jurídica como critério informador do Direito e do processo penal, é não só inaceitável, porque abala o princípio irrenunciável da dignidade da pessoa humana, sem a qual não se pode falar sequer de Estado de Direito, e faz perder a legitimidade do Estado democrático enquanto garante de «um projecto de convivência fundado nos direitos humanos», como acaba por se mostrar ineficaz a prazo [3] .

Mas o que dissemos tem a ver, sim, com o tem que hoje está sob análise. O que dissemos, em jeito de mera ilustração, tende a reflectir a necessidade de uma educação para os DH e a cidadania em Cabo Verde. Porquê? Antecipando noções,  diremos que, hodiernamente, é pacífica a ideia de que cidadania não se resume a um estatuto formal, qual seja a condição de pertença a um estado ou à noção de nacionalidade. Ela tem, além de outras [4] , uma dimensão ligada à emancipação, à capacidade de participação, mormente nas decisões públicas da comunidade. Já a partir da Revolução francesa, a cidadania era vista como qualidade de pertença e participação em um Estado democrático [5] . Hoje a cidadania , sendo um status, é simultaneamente objecto de um direito fundamental das pessoas: o de beneficiar da defesa e da promoção de direitos que aquele status confere [6] . A própria CRCV diz-nos que a educação  deve «preparar e qualificar os cidadãos ... para a participação cívica e democrática na vida activa e para o exercício plena da cidadania»  (art.º 77.º, n.º 1, b)) e que deve também «promover os valores da democracia, o espírito de tolerância... e de participação» (f)), ao mesmo tempo que, num extenso capítulo sobre o que, sintomaticamente, apelida de «Direitos, Liberdades e Garantias de participação política e de exercício de cidadania» (art.ºs 54.º ss.), define normativamente esta relação estreita, umbilical, entre a condição de cidadania e a afirmação da democracia. Enfim, apesar de uma tal expressão se mostrar redundante hoje a noção de cidadania traduz-se pela de «cidadania democrática» [7] .

Por outro lado, é inquestionável hoje que a aprendizagem e o aprofundamento da cidadania política, social e cultural permitem tanto desfrutar os direitos humanos e exercer as liberdades fundamentais, quanto compreender os deveres e as restrições inerentes à preservação da «coisa pública». Igualmente o ser cidadão importa acesso e fruição de direitos, desde os de participação política aos sociais, económicos e culturais, sob pena de, servindo-nos de uma imagem de DALMO DALLARI, a cidadania matar a pessoa [8] , numa visão integrada (bem que susceptível de autonomização) dos DH que, hodiernamente, as NU perfilham e divulgam («Os dtos humanos estão fundados numa demanda crescente da população mundial por uma vida decente e civilizada, em que a dignidade de cada ser humano receberá respeito e protecção. Qdo falamos de DH, não falamos apenas das necessidades físicas, mas tb. das condições de vida que nos permitam desenvolver e utilizar plenamente as nossas qualidades de inteligência e de consciência e de satisfação as nossas necessidades espirituais».)

. [a DDHC, de 1789, proclamava que os direitos naturais impõem-se ao Estado como direitos do cidadão].

Atrever-me-ia a concluir, como faz ELÍAZ DÍAZ, que «Em definitivo, a razão de ser do ED é a protecção e a realização dos DH. A universalização destes e da democracia exige, pois, a universalização do Estado social e democrático de Direito [9] ).

Ora bem, tudo isto é dito para sugerir que, entre nós, a educação para os DH e a cidadania – ao fim e ao cabo, para a democracia, diríamos, para o Estado de Direito e seus valores, plasmados na CRCV – é uma exigência geral que não se esgota, pois, na escola. Ela deve ser dirigida a toda a sociedade, como, aliás, preconiza a CNDHC no seu Plano de Acção («desenvolver programas de educação para os direitos humanos e cidadania, dirigidos às organizações estatais, organizações da sociedade civil, associações comunitárias e comunidade escolar»), seja directamente no que respeita à «capacitação em matéria de direitos humanos» [10] , seja no que tange à «difusão de uma Cultura de Paz»,  um dos elementos integradores da trilogia fundamentadora de uma cultura de democracia (DH-Cidadania-Paz). Ela deve ser levada aos agentes da autoridade, aos magistrados, aos partidos políticos, aos professores, aos guardas prisionais, aos profissionais da comunicação social, aos deputados e políticos em geral. No nosso caso, e tendo em atenção o que atrás referimos mas, sobretudo, o que tem sido considerado os verdadeiros calcanhares de Aquiles do nosso Estado de Direito (sistema prisional; esquadras policiais;  relações na família; imprensa) quer por instâncias internacionais ou estrangeiras, quer por observadores e organizações nacionais ligadas aos DH, a educação para os DHC deverá incidir em particular nos sectores atinentes àquelas áreas. E, tratando-se de agentes e responsáveis pela autoridade, nomeadamente policial ou de investigação criminal , ou a responsáveis técnicos e políticos no processo de exercício do poder democraticamente legitimado, antecipando de novo algumas reflexões, parece-nos decisivo que a formação de traduza e tenha por objectivo a capacitação no que se tem chamado «competências cognitivas», técnicas, de carácter jurídico-político, de carácter histórico-cultural e igualmente de carácter procedimental, para usarmos uma terminologia de AUDIGIER [11] .  [a chamada de atenção de JORGE MIRANDA para a necessidade de formação em DF para os magistrados no CEJ/ benvinda].- A comunicação de hoje de Dallari (DH para as autoridades e para os magistrados

Não quer isto dizer que não haja razões para privilegiar a educação para os DHC pela via do ensino formal, tal como está previsto venha a acontecer entre nós já a partir do próximo ano lectivo, a título experimental, em todos os níveis de ensino. Referimo-nos ao projecto, em curso, de introdução, nos currículos escolares, de disciplina sobre Direitos Humanos, Cidadania e Cultura da Paz.  Não será difícil perceber o papel que, em especial, deve caber à escola, como instituição que, na actualidade, assume um relevo particular no percurso educativo dos jovens e das crianças. Um programa de educação para  as escolas – do pré-primário ao secundário – sobretudo num país como o nosso, de população maioritariamente jovem e já com elevados índices de escolarização a tais níveis, a ser bem sucedido, constituiria um elemento importante de irradiação de uma cultura humanista e centrada no respeito pelos Dtos Humanos, capaz de facilitar um desenvolvimento integral e progressivo do país nos planos cultural, social e político.

E o sucesso dependerá de muitos factores, entre os quais vontade política dos governantes e das oposições; mobilização, motivação e formação dos docentes (exigência de saberes específicos); e, no plano concreto do ensino, a selecção de conteúdos a serem trabalhados, em função dos diferentes níveis de ensino, e das metodologias e estratégias mais adequadas, tendo sempre em consideração as especificidades da sociedade cabo-verdiana, nomeadamente no plano cultural (tanto os bons hábitos, quanto os maus hábitos) e das representações colectivas, gerais e tb. do mundo da nossa escola e do nosso ensino, sem esquecer o nível de desenvolvimento educativo do país ou da concreta comunidade.

Em jeito de realce de uma minúcia, cremos que, particularmente no ensino secundário, a selecção dos conteúdos, a escolha das metodologias, em especial de avaliação, a definição do perfil e da natureza da disciplina e do perfil do professor, a carga horária, deverão ter em conta experiências recentes afins e, sobremaneira, a necessidade de motivar os destinatários da formação e os formadores e combater todo o assomo de uma cultura desresponsabilizante  que atinge tanto discentes, quanto docentes ( a visão do aluno como «coitadinho», incapaz de aprender «coisas difíceis», que apenas é capaz de assimilar com exemplos, «bonecos» ou «histórias de quadradinhos»). Como, aliás, dizemos numa nótula de apresentação do esboço de programa para o secundário, «... Se é aceitável que, no ensino básico, e, especialmente no ensino pré-escolar, os métodos integrem essencialmente jogos, exploração de materiais, descrição de gravuras, etc. – aceita-se que, nestes ciclos escolares, o ensino de Direitos Humanos e Cidadania seja «transversal» - no ensino secundário deve ter-se em vista o objectivo decisivo de aquisição de conhecimentos, sem a qual dificilmente se poderão alcançar objectivos de desenvolvimento de capacidades e de mudança de atitudes e procedimentos. 

Enfim, de uma forma singela e, eventualmente, caricatural: dificilmente se pode ter uma atitude positiva e construtiva face a Direitos Humanos (dos detidos e presos, dos doentes mentais, dos refugiados políticos, por exemplo), sem um conhecimento mínimo do que são tais Direitos e forma de seu exercício e defesa; do mesmo modo, não se poderá exercer uma cidadania plena, sem formação radicada em conhecimentos básicos de elenco de direitos, forma de seu exercício ou instrumentos de sua protecção. Sobremaneira, sem esse conhecimento, não se poderá almejar a formação de uma consciência cívica crítica, indispensável a uma democracia que exija efectiva participação numa sociedade de homens livres [12] .

Aliás, são os especialistas em pedagogia a dizerem que «... não há... oposição entre conhecimentos, desenvolvimento de competências e acção/participação cívica. Pelo contrário, todas estas componentes são úteis na consecução dos objectivos da educação para a Cidadania...» [13] .

Como já se deixou salientado, neste âmbito, a formação dos professores revela-se decisiva, seja ela inicial, seja contínua, sendo certo que – como judiciosamente  aponta MAÏMOUNA TANKANO DOUSSA (Burkina Faso) - « a primeira exigência de uma EDH é fazer com que os estabelecimentos escolares funcionem e sejam dirigidos como lugares de direito» [14] . A EDH começa, pois, pelo educador ou adulto, na sua prática de todos os dias, na sua forma de viver com os alunos, na forma como ensina

Outrossim, a tarefa de uma tal educação deverá caber não só ao ensino formal. «Toda a sociedade é educativa», proclama-se.  **

O tema que me foi sugerido para esta intervenção reza o seguinte: «Educação para a cidadania em Cabo Verde». Damo-nos conta, ao ler um texto interessante e provocador (de consciências) de Geneviève Koubi («Entre “civismo” y “Civilidad”. La Educación de la Ciudadanía»), de uma sua asserção central, segundo a qual em França, por exemplo, a «instrução cívica» se converteu em «educação para a cidadania» e que isso implicou, e cito, «un deslizamiento desde la formación en el espíritu crítico hacia la obediencia a la autoridad». Mais: o «civismo», com uma função política essencial em democracia, ter-se-á dissimulado ou ocultado em «civilidade», que tem uma conotação inegavelmente moral e exclui a apreensão das solidariedades inerentes ao nexo social e não investiga «... las vias de la socialización política de los (futuros) ciudadanos» [15] .

Num sentido aparentemente diferente, diríamos mesmo contrário, perguntamo-nos se terá alguma razão António Barreto, quando diz que «a formação cívica e religiosa deve ser deixada a quem de direito: aos pais e aos párocos» e que «a escola deve ser democrática, mas não deve impingir a democracia».  

O que pensar destas posições?

O pensamento de KOUBI é tributário da ideia revolucionária (setecentista) que liga umbilicalmente a «instrução pública» à  qualidade de cidadão. A Declaração dos DHC era o «livro» fundador da política educativa e adquiria uma força simbólica tal que participava das estratégicas pedagógicas, deste modo expressa por Condorcet quando, em 1791, no seu Premier mémoire sur l’ instruction publique, dizia:    «a instrução pública é um dever da sociedade para com os cidadãos» [16] .]

Daí que se manifeste contra a concentração da instrução no ensino privado.

Ora bem: não é legítimo, num ED, num Estado de liberdades, que o ensino procure uma qualquer «ideologização» ou «doutrinação». Não deve almejar formar um «homem novo» ou pessoas bem formadas moralmente. O ensino deve, sim, contribuir para a formação de homens e mulheres livres, de cidadãos de corpo inteiro.

[La profundización de la conciencia cívica es de una factura innegablemente crítica: la educación  para la ciudadanía es, en democracia, una formación para el espíritu crítico e  incluso, llegado el caso, para la desobediencia civil [17] . ]

Nos nossos dias, o conceito de DH está muito mais indeterminado do que no séc. XVIII porque nos falta o consenso nos exemplos que os concretizam [18] (James Griffin pergunta: «trinta líderes mundiais, numa declaração apresentada através do SG das NU, proclamam que “a possibilidade de decidir o número de filhos e quando os ter é um direito fundamental básico dos pais. Sê-lo-á? Infringe realmente a política chinesa de um filho por casamento um DH? Sê-lo-ia também uma política de cinco ou dez filhos? E continua: o direito de uma pessoa à segurança(inegável consensualmente) será muito diferente, na sua configuração, de um direito a decidir sobre o próprio corpo, impedindo-se, p.e., que se seja submetido a uma inoculação para evitar uma perigosa enfermidade?

Poder-se-ia dizer que há DH qdo e só qdo estamos perante direitos que temos simplesmente porque somos pessoa humana. As NU referem-se  a direitos que decorrem da natureza humana, da condição humana. Mas não há consenso sobre o que isso pode significar.

Os que vem nas Declarações e Pactos/os direitos fundamentais na Constituição, os «básicos». [poder-se-ia dizer que um «direito constitucional» é um direito eleito por uma certa convenção de cidadãos e e dada em certa espécie de lugar fundacional no sistema jurídico. Efectivamente «lo que se sacrificaria tomando este camino seria la Idea de que ciertos derechos tienen su estatuto fundacional no en convenciones o lugares en el sistema legal, sino en su estatuto moral» [19] .

A resposta não será segura. Mas.... CRCV aberta, compromissória, receptáculo DIC e dtos funadamentais análogos/DIC tutela complementar.

 



[1] Cfr., sobre o problema, nomeadamente sobre as dificuldades postas pela “sociedade do risco” à subsistência do paradigma penal actual, FIGUEIREDO DIAS, Temas básicos da doutrina penal – Sobre os fundamentos da doutrina penal – Sobre a doutrina geral do crime, Coimbra Editora, 2001, particularmente 158 ss..

[2] NICOLA MATTEUCI, «Direitos Humanos», in Dicionário de Política (Norberto Bobbio, Nicola Matteuci e Gianfranco Pasquino), 2.ª edição, editorial Universidade de Brasília, 1986, 355.

[3] Por todos, veja-se FERRAJOLI, Derecho y razon – Teoria del garantismo penal, Editorial Trotta, Madrid, 1997, 807 ss.; JOAQUÍN GONZÁLEZ, ob.cit., 204 -205. Referindo-se à corrupção, diz este último autor que deve estar presente a ideia de que «no es misión del Derecho penal la erradicación de la corrupción; aspiración ingénua, por imposible, como es la hipotética eliminación de la criminalidad en general. Además, tal pretensión convertiría el Derecho penal en instrumento de poder totalitário y, por tanto, ilegítimo» (205). E cita asserção curiosa de J. Habermas: «... un poco de corrupción siempre es mejor que las virtudes de un dictador»; o mesmo autor , perante o que considera uma «crise regressiva do direito penal», sem respostas racionais e eficazes face ao problema da criminalidade organizada – houve uma «acentuação dos tradicionais aspectos irracionais e classistas do direito penal» - propõe como urgente «... uma batalha política e cultural em torno de um programa penal garantista», a que chama «direito penal mínimo» - « Criminalidade e globalização», in R.M.P., n.º 96, 2003, 7 ss.; ANABELA MIRANDA RODRIGUES, «Criminalidade organizada – Que política criminal?», in Themis, n.º 6, 2003, 29 ss., autora que nomeadamente se refere à indução, pelo discurso da ineficácia das respostas até hoje dadas para o fenómeno da criminalidade globalizada, de um «... processo circular de défice-agravação/expansão-défice punitivos, traduzido num “frenesim” ou “stress” legislativo...» (44).

[4] GIOVANNA ZINCONE fala de quatro dimensões do conceito de cidadania: a de «pertença a um Estado», pertença que não se limita a uma dimensão jurídica, mas também cultural (a autopercepção e a heteropercepção da cidadania como identidade); a de emancipação; a de dotação comum («... un conjunto de tutelas y de benefícios materiales garantizados publicamente a todos los miembros de una comunidad pública»; a de normalización («... lo contrario de comunitario, entendido como miembro de una específica comunidad local, religiosa, étnica, linguística, nacional...») - «Los cuatro significados de la Ciudadanía y las Migraciones», in Ciudadanía e inmigración,  Anales de la Cátedra Francisco suárez, N.º 37- 2003, 202 ss..

[5] Assim, explicitamente, JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo III, 3.ª edição, Coimbra Editora, 1996,  93.

[6] JORGE MIRANDA, loc. cit., 96.

[7] Cfr., entre outros, MANUEL SALGUERO, «Socialización Política para la Ciudadanía Democrática», Educación y Democracia, Anales de la Cátedra Francisco Suárez, n.º 38 – 2004,  95 ss., autor que considera que, já de uma perspectiva jurídico-política, «... la noción de ciudadanía se conecta sistematicamente com los derechos de participación y con la categoría de status subjetivo para la titularidad de esos derechos» - 97. Mesmo de uma perspectiva pedagógica (o ensino) , a educação para a cidadania é vista como educação para a cidadania democrática, que «... não se cinge a um mero estatuto formal, antes se assume como a capacidade efectiva de agir como cidadão. Por ser assim, a Educação para a Cidadania não pode ser percebida como uma estabilizada área de conhecimento, passível de um qualquer trabalho exegético, mas sim como o desenvolvimento de potencialidades de produção de práticas e atitudes em contextos diversificados» -  in Educação para a cidadania – Cursos Gerais e Cursos Tecnológicos- 2, Ministério da Educação, Departamento do Ensino Secundário, Lisboa, 2001, 37.

[8] «Estado de Direito e Cidadania», in Direito e Cidadania (DeC), - 4, Praia, 1998, 129.

[9] «La universalización de la Democracia: los hechos y los derechos», in Anales..., N.º 36, 2002, 45.

[10] COMITÉ NACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS – CNDH-, plano Nacional de Acção para os direitos Humanos e a Cidadania em Cabo Verde (PNADHC), Praia, 2004,  31.

[11] Citado em  Educação para a cidadania, cit.,  39-40.

[12] GENEVIÈVE KOUBI diz que a educação para a cidadania é, em democracia, «... uma formação para o espírito crítico e, inclusivamente, se for o caso, para a desobediência civil» - «Entre “Civismo” y “Civilidad”. La Educación de la Ciudadanía», in Educación y democracia, Anales de la Cátedra Francisco Suárez, n.º 38-2004, 70.

[13] Educação para a Cidadania..., 43.

[14] MAÏMOUNA TANKANO DOUSSA, «Quelle Pédagogie des Droits de l’ Homme pour l’ Afrique, 180.

[15] GENEVIÈVE KOUBI, «Entre “Civismo” y “Civilidad”. La Educación de la Ciudadanía», in Educación y democracia, Anales de la Cátedra Francisco Suárez, N.º 38-2004, 47.

[16] GENEVIÈVE KOUBI, loc. cit., 50.

[17] GENEVIÈVE KOUBI, loc. cit., 70.

[18] JAMES GRIFFIN, «Derechos Humanos: uma Idea incompleta», in Educación y democracia, Anales..., N.º 38 -2004, 143.

[19] JAMES GRIFFIN, loc. cit., 152.

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