Aspectos
globais de enquadramento legal e institucional
e justificação sumária do Programa
1.
A Lei de Bases do Sistema Educativo
(LBSE) – Lei n.º 103/III/90, de 29
de Dezembro – contém um ou outro afloramento
de princípios gerais que dizem respeito
à formação de jovens em valores atinentes
ao humanismo e à cidadania. No seu
art.º 4.º, diz-se que a educação «visa
a formação integral do indivíduo...»;
no art.º 10.º, entre os «objectivos
da política educativa» estão os de
«... formação integral e permanente
do indivíduo, numa perspectiva universalista»,
«formar a consciência ética e cívica
do indivíduo», «contribuir para o
conhecimento e o respeito dos Direitos
do Homem e desenvolver o sentido e
o espírito de tolerância e solidariedade».
2.
No entanto, a LBSE é marcada sobremaneira
por traços essenciais ligados à ideia
de dever da educação (art.º 4.º, n.º
1), de ligação estreita ao trabalho
(art.º 5.º, n.º 2; 10.º, n.º 1, d)),
de «formação... contribuindo em geral
para o desenvolvimento global e harmonioso
do país e, em particular, para o desenvolvimento
da economia, do bem estar das populações
e para a realização pessoal do cidadão»
(art.º 8.º), sem esquecer referências
significativas ao reforço da «consciência
e unidade nacionais« ou ao «sentido
patriótico e a dedicação a todas as
causas de interesse nacional» (art.º
11.º, n.º 2, b).
3.
Em especial sobre o ensino secundário,
a LBSE, numa linha geral do mesmo
teor, acentua a vertente de aquisição e aprofundamento
dos conhecimentos científicos, tecnológicos
e culturais que são necessários «ao
prosseguimento dos estudos e ingresso
na vida activa» (art.º 21.º, n.º 2);
entre os objectivos estão os de: «desenvolver a capacidade de análise e despertar
o espírito de pesquisa e investigação»,
de «propiciar a aquisição de conhecimentos
com base na cultura humanística, científica
e tecnológica visando nomeadamente
a sua ligação com a vida activa»,
«garantir a orientação e formação
profissional permitindo maior abertura
para o mercado de trabalho sobretudo
pela via técnica»; «permitir os contactos
com o mundo do trabalho visando a
inserção dos diplomados na vida activa»
(art.º 22.º).
4.
É a Constituição da República de Cabo
Verde (CRCV) de 1992 a abraçar de
forma clara e aprofundada a ligação
estreita entre educação e direitos
Humanos e Cidadania, o que se compreende
se se tiver em conta a época em que
ela surge.
4.1.
Desde logo, porque a CRCV concebe
a educação – direito de todos a ser
realizado nomeadamente através da
escola - como verdadeiro «direito,
liberdade ou garantia» (e não apenas
como direito social),
enquanto liberdade
de educar (art. 49.º), a qual
compreende, entre outras exigências,
«a proibição de o estado programar
a educação e o ensino segundo quaisquer
directrizes filosóficas, estéticas,
políticas, ideológicas ou religiosas»
e a de «ensino público confessional».
4.2.
O que, diga-se, está de acordo com
o objectivo de a educação «ser integral
e contribuir para a promoção humana,
moral, social e cultural... dos cidadãos»,
mas, sobretudo, o de «preparar e qualificar
os cidadãos ... para a participação
cívica e democrática na vida activa
e para o exercício plena da cidadania» (art.º 77.º, n.º 1, b)) e de «promover os valores
da democracia, o espírito de tolerância,
de solidariedade, de responsabilidade
e de participação» (f)). Ao
mesmo tempo, num extenso capítulo
sobre o que, sintomaticamente, apelida
de «Direitos, Liberdades e Garantias
de participação política e de exercício
de cidadania» (art.ºs 54.º ss.),
define normativamente esta relação
estreita, umbilical, entre a condição
de cidadania e a afirmação da democracia.
Enfim, apesar de uma tal expressão
se mostrar redundante hoje a noção
de cidadania traduz-se pela de «cidadania
democrática».
5.
Mesmo de uma perspectiva estritamente
pedagógica (o ensino), a educação
para a cidadania é vista como educação
para a cidadania democrática, que
«... não se cinge a um mero estatuto
formal, antes se assume como a capacidade
efectiva de agir como cidadão. Por
ser assim, a Educação para a Cidadania
não pode, para alguns, ser percebida
como uma estabilizada área de conhecimento,
passível de um qualquer trabalho exegético,
mas sim como o desenvolvimento de
potencialidades de produção de práticas
e atitudes em contextos diversificados».
6.
Hoje a cidadania , sendo um status,
é simultaneamente objecto de um
direito fundamental das pessoas: o
de beneficiar da defesa e da promoção
de direitos que aquele status
confere.
7.
Por outro lado, é inquestionável hoje
que a aprendizagem e o aprofundamento
da cidadania política, social e cultural
permitem tanto desfrutar os direitos
humanos e exercer as liberdades fundamentais,
quanto compreender os deveres e as
restrições inerentes à preservação
da «coisa pública». Igualmente o ser
cidadão importa acesso e fruição de
direitos, desde os de participação
política aos sociais, económicos e
culturais,
numa visão integrada (bem que
susceptível de autonomização) dos
DH que, hodiernamente, as NU perfilham
e divulgam («Os direitos humanos estão
fundados numa demanda crescente da
população mundial por uma vida decente
e civilizada, em que a dignidade de
cada ser humano receberá respeito
e protecção. Quando falamos de DH,
não falamos apenas das necessidades
físicas, mas também das condições
de vida que nos permitam desenvolver
e utilizar plenamente as nossas qualidades
de inteligência e de consciência e
de satisfação as nossas necessidades
espirituais».).
8.
Aliás, a educação em matéria dos DH
enquadra-se nas preocupações contidas
nos diferentes instrumentos internacionais
a eles relativos.
8.1.
A DUDH, no seu art.º 26.º, prevê uma
tal ligação entre educação e DH e
cidadania, ao estatuir que ela «deve
visar a plena expansão da personalidade
humana e ao reforço dos Direitos do
Homem e das liberdades fundamentais»,
fazendo, significativamente, ressaltar
as interrelações DH – Cidadania –
Paz («... deve favorecer a compreensão,
a tolerância e a amizade entre todas
as nações e todos os grupos raciais
ou religiosos, bem como o desenvolvimento
das actividades das Nações Unidas
para a manutenção da paz».).
8.2.
Fá-lo ainda o PIDESC: os Estados signatários
reconhecem que a educação deve ser
orientada até ao pleno desenvolvimento
da personalidade humana e do sentido
da sua dignidade e deve fortalecer
o respeito pelos direitos humanos
e liberdades fundamentais (art.º 13.º);
a educação deverá, assim, capacitar
todas as pessoas a participar efectivamente
numa sociedade livre», acabando, como
a DUDH, por estabelecer pontes valorativas
entre DH, cidadania e paz. Daí que,
concretamente sobre o ensino secundário,
ele reconheça que deve ser generalizado
e tornado acessível a todos, nomeadamente
implantação progressiva do ensino
gratuito (n.º2, b) do art.º 13.º).
8.3.
A CADHP de alguma forma igualmente
consagra idêntica exigência ao estabelecer,
no seu ar.º 25.º, que os Estados Partes
têm o dever de promover e assegurar,
pelo ensino, pela educação e pela
difusão, «o respeito dos direitos
e das liberdades contidos na presente
Carta, e de tomar medidas para que
essas liberdades e esses direitos
sejam compreendidos assim como as
obrigações e deveres correspondentes».
8.4.
A Convenção das Nações Unidas sobre
os Direitos da Criança, no seu art.º
29.º, impõe que a educação da criança
se destine a«inculcar na criança o
respeito pelos direitos do Homem e
liberdades fundamentais e pelos princípios
consagrados na Carta...» e também
a «preparar a criança para assumir
as responsabilidades da vida numa
sociedade livre, num espírito de compreensão,
paz, tolerância, igualdade entre os
sexos e de amizade entre todos os
povos...».
8.5.
Enfim, encontramos disposições afins
em outros instrumentos específicos,
como a Convenção Internacional sobre
a Eliminação de todas as formas de
discriminação racial (art.º 7.º) ou
a Convenção sobre a eliminação de
todas as formas de discriminação face
ás mulheres (art.º 10.º c)).
9.
Entre nós, e numa linha de orientação
que dá sequência ao disposto na CRCV,
o PNADHC prevê, entre outras acções
a desenvolver para a promoção e protecção
dos DH, «a educação para os direitos
humanos e a para a cidadania». Educação
que, segundo o documento da CNDHC,
deve dirigir-se aos «órgãos estatais,
organizações da sociedade civil, associações
comunitárias e comunidade escolar»,
seja directamente no que respeita
à «capacitação em matéria de direitos
humanos», seja no que tange
à «difusão de uma Cultura de Paz», um dos elementos integradores da trilogia fundamentadora
de uma cultura de democracia (DH-Cidadania-Paz).
10.
Entre nós, pois, a educação para os
DH e a cidadania – ao fim e ao cabo,
para a democracia, diríamos, para
o Estado de Direito e seus valores,
plasmados na CRCV – é uma exigência
geral que não se esgota, pois, na
escola. Ela deve ser dirigida a toda
a sociedade. Ela deve ser levada aos
agentes da autoridade, aos magistrados,
aos partidos políticos, aos professores,
aos guardas prisionais, aos profissionais
da comunicação social, aos deputados
e políticos em geral.
11.
Não quer isto dizer que não haja razões
para privilegiar a educação para os
DHC pela via do ensino formal. Não
será difícil perceber o papel que,
em especial, deve caber à escola,
como instituição que, na actualidade,
assume um relevo particular no percurso
educativo dos jovens e das crianças.
Um programa de educação para as escolas, sobretudo num país como o nosso,
de população maioritariamente jovem
e já com elevados índices de escolarização,
a ser bem sucedido, constituiria um
elemento importante de irradiação
de uma cultura humanista e centrada
no respeito pelos Direitos Humanos,
capaz de facilitar um desenvolvimento
integral e progressivo do país nos
planos cultural, social e político.
12.
Se tivermos em conta particular o
ensino secundário em Cabo Verde, e
apontando já para objectivos, balizar-nos-emos
por aqueles que foram definidos pelo
Congresso Internacional sobre o Ensino
dos Direitos do Homem (Viena, 1978):
«-
Estimular as atitudes de tolerância,
respeito e solidariedade inerentes
aos Direitos do Homem;
-
Fornecer conhecimentos sobre os Direitos
do Homem, nas suas dimensões nacional
e internacional, e sobre as instituições
estabelecidas para a sua implementação;
-
Desenvolver o conhecimento individual
sobre as formas e os meios por que
os Direitos do Homem podem ser traduzidos
em realidades sociais e políticas
nos planos nacional e internacional».
13.
O que não estaria, no essencial, em
falta de sintonia com o que nos assinala
um documento relativamente recente
da Aministia Internacional:
« Ter conhecimentos sobre direitos
humanos torna as pessoas mais aptas
para participarem na vida social e
política das suas comunidades. No
entanto, é necessário fazer a distinção
entre capacidades políticas e analíticas
e política de partidos e ideologia
política ... A educação para os DH
deve ser exploratória, inesperada
e deve solucionar problemas. Também
deve apelar a quem aprende para que
identifique a injustiça e lute pela
sua eliminação.
É
por isso que preferimos falar em educação
sobre e para os Direitos Humanos,
como, aliás, faz o PNADHC ou quando
se afirma que « Toda a educação definida
por reconhecidos Padrões Internacionais
de Direitos Humanos deverá ensinar
sobre e para direitos humanos... A
educação... inclui o desenvolvimento
de capacidades como o pensamento crítico,
capacidades de comunicação, de resolução
de problemas e de negociação.....».
Princípios
orientadores na elaboração do programa,
em atenção aos objectivos gerais
a)
O programa é elaborado na base e no
pressuposto de que, no ensino secundário,
o ensino dos DHCCP deverá fazer-se
através de uma disciplina autónoma,
específica, o que não exclui que possa
haver também referência e ensino de
uma ou outra das matérias nele contidas
em outras disciplinas;
b)
Ele é delineado como um programa de
progressão e de aprofundamento, já
do ponto de vista do programa do EBI
que o antecede, já
de ciclo para ciclo do secundário,
havendo, ainda assim, alguns conteúdos
programáticos comuns a todos os ciclos.
c)
O programa é desenvolvido numa base
tripartida – Direitos do Homem, Cidadania
e Cultura da Paz – sempre de forma
articulada, na descoberta das interrelações
das três componentes, mas que não
põe de parte as especificidades de
cada unidade temática;
d)
O programa é sobre e para os DH, a
Cidadania e a Cultura da Paz, já que a
educação para os direitos humanos
é, singelamente, «... uma aprendizagem
que desenvolve o conhecimento, as
capacidades e os valores dos direitos
humanos». O ensino de Direitos
Humanos e Cidadania
no ensino secundário, e sobremaneira
tendo em conta a realidade vigente
e as necessidades de desenvolvimento
do país, não pode, pois, descurar o objectivo decisivo de aquisição de conhecimentos,
sem a qual dificilmente se poderão
alcançar objectivos de desenvolvimento
de capacidades e de mudança de atitudes
e procedimentos.
Enfim,
de uma forma singela e, eventualmente,
caricatural:
dificilmente se pode ter uma atitude
positiva e construtiva face a Direitos
Humanos (dos presos, dos doentes mentais,
dos refugiados políticos, por exemplo),
sem um conhecimento mínimo do que
são tais Direitos e forma de seu exercício
e defesa; do mesmo modo, não se poderá
exercer uma cidadania plena, sem formação
radicada em conhecimentos básicos
de elenco de direitos, forma de seu
exercício ou instrumentos de sua protecção.
Sem esse conhecimento, não se poderá
almejar a formação de uma consciência
cívica crítica, indispensável a uma
democracia que exija efectiva participação
numa sociedade de homens livres.
e) O programa dá, assim, relevância ao conhecimento
dos instrumentos nacionais e internacionais
de Direitos Humanos – CRCV, DUDH,
CADHP, CIDC, entre outros -, sem esquecer,
na aprendizagem, de abordagens participativas
que partam de situações concretas,
sempre que possível de âmbito nacional
ou local, e de utilização de metodologias
activas de reflexão, participação
crítica e acção criativa .
f)
O programa, tal qual como é concebido,
pretende dar resposta ao imperativo
de um ensino responsabilizante para
alunos e professores e capaz de motivar
e mobilizar para a aprendizagem. Assim,
deve estar associado, no secundário,
a uma avaliação que seja quantitativa
e qualitativa.
g)
O programa inclui exemplificação de
actividades por cada núcleo temático
nele inserto. Trata-se quase sempre
de actividades específicas e indicativas.
Na verdade, estas devem ser vistas
apenas como complemento aos métodos
«normais» de avaliação e aprendizagem
no ensino secundário (diríamos, até,
os métodos formais).