Centro
de Direitos Humanos e Memória Popular-CDHMP
Movimento
Nacional de Defesa dos Direitos Humanos-MNDDH
DEPOIMENTO
Aos 20 dias do
mês de Fevereiro do ano de mil novecentos e noventa (1990), às
16:00 hs, no prédio do Centro de Direitos Humanos e Memória
Popular, compareceu, perante membros, da Comissão Pontifícia
Justiça e Paz da Arquidiocese de Natal, do Secretário-Executivo
do MNDDH, Sr. Augustino Pedro Viet, todos abaixo assinado, o Sr.
RUBENS MANOEL LEMOS, brasileiro, casado, jornalista, nascido aos
07.06.41, natural de Cerro Corá-RN, RG 133.632-SSP/RN, residente
e domiciliado em Natal-RN, à rua José Aurino Rocha, n.º 2232,
Pt. 102, Bairro de Lagoa Nova, para prestar o presente depoimento,
cientes todos da gravidade de suas afirmações, que serão
levadas ao conhecimento público, através do
Secretário-Executivo do MNDDH, aqui representado pelo seu
titular, já mencionado. Pelo depoente foram feitas as seguintes
afirmações:
De acordo com o
que já afirmei diante de várias entidades, em depoimento
gravados, tanto em fita magnética como em vídeo cassete, eu
exponho e denuncio o seguinte: no dia 20 de Janeiro de 1990, na
Rádio Poti de Natal, no programa chamado “MPB – Espaço
Livre”, eu denunciei haver reconhecido pela televisão, quando
da apresentação dos novos ministros militares, pelo presidente
eleito Fernando Collor de Mello, eu, reconheci, repito, a pessoa,
do Brigadeiro Sócrates de Costa Monteiro, escolhido ministro da
Aeronáutica, como a mesma pessoa que me interrogou em
dependências do DOI-CODI, organismo clandestino de repressão e
tortura da ditadura militar, isso ocorrendo em Recife. O
interrogatório a que fui submetido, durou, aproximadamente, 40
minutos, e ocorreu na segunda quinzena de janeiro de 1973, época
em que eu, na qualidade de preso político, estava recolhido ao
lado de outros presos políticos, àquele organismo que era
conhecido, embora fosse um organismo clandestino, mas se sabia, e
hoje há documentos que provam a existência desse braço
clandestino, desse organismo clandestino, por documentos já
exibidos e já apresentados, que são do domínio público, por
várias entidades que são de credibilidade nacional e
internacional; então eu me recordo perfeitamente que, fui tirado
da cela de onde vinha de uma série de torturas – eu passei 60
dias certamente no DOI-CODI, e desses 60 dias, 44 foram de
torturas as mais variadas e as mais diferentes; todas as que se
possa imaginar. Então os carcereiros, um de nome Teles e outro de
nome Leite, me tiraram, me puseram um capuz, me algemaram, eu sem
camisa, e trajando apenas cueca, e me colocaram dentro daquilo que
era um carro, não sei que marca; e rodaram e rodaram comigo e, de
repente, eu sou tirado desse veículo e me vejo numa escada,
subindo uma escada, levado por duas outras pessoas que com o capuz
eu já não saberia dizer se eram os mesmos carcereiros que haviam
me tirado da cela; de repente uma porta se abre; eu sou colocado
dentro de uma sala com ar condicionado; eu sinto a presença dos
efeitos do ar condicionado, e ouço uma voz dizer: “Podem
retirar o capuz. Podem retirar o capuz e se retirarem”. Eu
estava sentado naquilo que vim a ver era um sofá e diante de mim,
uma sala muito ampla, estava, e num amplo birô, uma mesa, estava
uma pessoa, de cara atarrachada, nariz de boxeur; moreno, forte e
trajando uma camisa bege. Não dava para eu ver a cor da calça
pois ele permaneceu sentado ao longo de todo o interrogatório.
Saíram as
pessoas que me trouxeram e num dado momento eu vi uma porta como
que, batendo, se abrindo, e eu, instintivamente me virei, e
percebi que estava dentro de uma dependência das Forças Armadas;
porque via todo um aparato ou aparelho de transmissão e
recepção sendo operado por uma pessoa que vestia farda do
Exército. E diante de mim estava o que, hoje, é, sei tratar-se
de Sócrates da Costa Monteiro, a quem vim reconhecer, repito, no
dia em que ele foi anunciado como Ministro escolhido. Depois de
várias perguntas, onde naturalmente, eu entendia e via, também,
com detalhe, pois os meus sentidos estavam todos alertas, apesar
do estado de fragilidade, de debilidade física, eu vi sobre a
mesa uma flâmula da bandeira brasileira e um brasão na parede,
um brasão pequeno, que representava todas as Forças Armadas do
Brasil. Aquele brasão que deve ser do EMFA – Estado Maior das
Forças Armadas. A pessoa que me interrogava, no caso, o hoje
reconhecido Sócrates da Costa Monteiro, fazia, entre tantas
perguntas, demonstrava, entre perguntas, um profundo conhecimento
das estruturas das organizações que faziam a luta armada naquele
processo de até 1972, 1973, e por aí. Discorria com facilidade
sobre as diferenças teóricas entre o marxismo-leninismo, o
marxismo com suas variantes, o maoismo, o foquismo, e por aí, e
detalhava organizações e suas estruturas, e me acusava de
pertencer a uma dessas organizações, coisa que, em nenhum
momento, e em qualquer dependência, mesmo sob tortura, eu
confirmei, nem afirmei. Me acusaram de pertencer ao PCBR. Me
acusavam, em alguns momentos, de eu pertencer ao então existente
PCR, sigla que representava o Partido Comunista Revolucionário,
como o PCBR, hoje conhecido, e todas esses siglas conhecidas pelas
declarações feitas ao longo do tempo, em documentos também
espalhados por esse país e a nível de exterior, o PCBR era o
Partido Comunista Brasileiro Revolucionário ou considerado como
tal. Depois disso, ele queria saber de pessoas ligadas a
organizações, quem eu conhecia, quem não conhecia, tentava me
levar, na realidade, a denunciar pessoas, o que eu não havia
feito e nem o fiz, em momento algum, mesmo sob as torturas, no
DOI-CODI, as torturas físicas. Quero deixar claro que não fui
torturado fisicamente, não sofri nenhuma agressão física por
parte do Sr. Sócrates Monteiro, mas estabeleceu-se, na verdade,
uma outra forma, no meu entendimento, de tortura, era tentar,
dizer que já sabia de tudo, e que não adiantava mais eu esconder
nada, e que era um jogo, era um quebra-cabeça, faltavam duas ou
três “pecinhas” eu lembro da expressão, e que eu estava
incluído entre essas “pecinhas” que faltavam. Eu então, ele
usava trajes civis, ele usava uma camisa que eu me lembro: bege
clara. Lembro perfeitamente disso. Mas não usava trajes
militares. Agora, depois, ao longo do chamado interrogatório, ele
apertou, acredito, pois ele mexeu com a mão, deve ter apertado
alguma cigarra ou um botão, e surgiu uma pessoa magra, na sala, e
ele pediu que trouxesse café e cigarro.
Eu disse para ele
que não aceitava, que recusava. Ele tornou-se um tanto quanto
ríspido, embora não o tivesse sido até aquele momento, e me
disse que eu estava sendo deselegante, eu respondi ou
contra-respondi dizendo que eu estava sendo apenas precavido,
porque eu não sabia o que estava dentro do café ou dentro do
cigarro. Eu começava a denunciar; também ter passado
inicialmente 9 dias sem comer e 3 dias sem tomar sequer água, nos
porões do DOI-CODI, disse na hora, mostrei as marcas das torturas
que eu estava e que vinha sofrendo; denunciei que outras pessoas,
outros presos políticos estavam sendo espancados, torturados e,
alguns, já até mortos, como é o caso de MATIA MACHADO, que era,
então, líder de uma organização chamada AÇÃO POPULAR, todas
essas denúncias, inclusive o caso que eu já tivera informações
que ocorrera ali mesmo no DOI-CODI, a morte de um estudante de
Natal, um ex-líder estudantil de Natal, chamado Emmanuel Bezerra;
eu denunciei torturas várias, em vários outros presos
políticos, e a resposta que ele me deu foi a de que “nós
estamos numa guerra”.
Perguntado sobre
a que distância se encontrava do Brigadeiro, respondeu:
“Olha, eu sou
muito bom de guardar fisionomias, eu não sou muito bom em
matemática, mas seria uma distância de, mais ou menos, dois
metros e meio a três metros”.
Perguntado,
ainda, se a sala estava bem iluminada, afirmou:
“Bem iluminada
(a sala), bem iluminada; esse é um detalhe que eu não esqueço,
a sala muito bem iluminada”.
Depois desse
longo interrogatório, ele mandou que me tirassem da sala, e eu
fui novamente encapuzado, desci aquelas, presumo que as mesmas
escadas, e já, de repente, eu sou levado para uma outra
dependência, fui colocado de novo dentro do carro, rodaram,
rodaram mas eu percebia o mesmo barulho de carros, que ouvira ao
ser trazido, era como se fosse uma garagem. Depois eu vim a
identificar e localizar até a dependência do DOI-CODI em Recife,
que era uma casa, que era ocupada pelos antigos generais que
comandavam o IV Exército, e que fica em frente à Faculdade de
Direito do Recife. Quem me revelou que eu estava no DOI-CODI foi
um outro preso político que sofreu bastante torturas, chamado
CARLÚCIO CASTANHA, que hoje é líder sindical em São Paulo. Ele
me disse: “Esse relógio que você está ouvindo é o relógio
da Faculdade de Direito, e, aí, depois, eu pude identificar
pessoalmente, quando saí da prisão, eu estive em Recife e fiz
questão de verificar se era realmente ali, sentia realmente que
era ali o centro de horror, de torturas das Forças Armadas
daquela época da ditadura, pelo menos em Pernambuco.
Perguntado se o
declarante havia notado alguma mudança na fisionomia do
Brigadeiro, respondeu:
“É natural que
17 anos, marcam qualquer fisionomia, qualquer físico, qualquer
estrutura física. Eu, pelo menos, àquela época não tinha os
cabelos grisalhos que tenho hoje”.
Talvez ele não
tenha condições de me reconhecer, porque outros deverão ter
passado, devem ter sido interrogados. E eram eles (...) que, um a
um, um ao menos, ele poderia perfeitamente confundir. Só que eu
era o torturado. E fisionomicamente a gente não consegue
esquecer. A minha própria profissão, como jornalista, como
repórter, há mais de 30 anos, me levava, evidentemente a estar
atento a tudo. A perceber detalhes, a guardar coisas importantes.
Eu até pensava: Se sair vivo daqui... Realmente o tempo muda
alguma coisa, mas não muda de forma alguma aquilo que represente
a pessoa, que represente a estrutura natural do ser humano. E eu
não tenho a menor dúvida de que se trata do mesmo homem,
evidente que embora um pouco mais velho.
Sofri, sofri
imediatamente depois (torturas, após o interrogatório), eu digo
esse imediatamente até o momento em que me retiraram, eu desci de
novo as escadas e fui colocado para dependência de tortura e fui
espancado brutalmente por várias pessoas. Eu não fui devolvido
à cela nessa noite. Nós éramos retirados da cela, os presos
políticos, quando para a tortura, era um corredor estreito,
quatro celas de frente para outras quatro, e, nós até já
sabíamos quando íamos levar choque porque quando os carcereiros
vinham, nós éramos amarrados com barbantes ou cordas de nylon,
já sabíamos que íamos levar choque. Quando era para outro tipo
de tortura, ou seja, pau-de-arara, afogamento, ou isso ou aquilo,
eles colocavam algemas, além dos capuzes.
Agora, nessa
noite, e as luzes estavam acessas, eu me lembro bem. Fui levado
então para essa outra dependência, onde estavam os torturadores
que não saberia identificá-los porque eu estava de capuz, mas,
inclusive, lembro bem que a primeira pancada que sofri foi dada
por um torturador, que fazia questão de dizer, com um sotaque
carioca, que se chamava, usava o codinome de Dr. Aníbal; que eu
saberia reconhecê-lo se o visse, porque tive oportunidade de
vê-lo sem capuz.
E levei um
violento soco, desse próprio Dr. Aníbal, na boca do estômago,
que quase perdi naquele momento os sentidos; fui chutado e levei
uma, que eu chama, de surra inesquecível embora dolorosa.
Eu devo,
inclusive, dizer que tenho procurado me colocar à disposição de
qualquer entidade, de qualquer autoridade constituída deste
país, de qualquer poder, seja ele Executivo, seja ele
Judiciário, seja ele Legislativo, a ser submetido a qualquer
acareação, com o Ministro escolhido Sócrates Monteiro. Já por
duas oportunidades, fui informado por repórteres, porque estava,
inicialmente, diante de notícia que eu tenho guardado, anunciada
pelo próprio Sócrates Monteiro, de que ele iria me chamar para
um reconhecimento. E perguntado, ele marcou uma entrevista
coletiva, que seria transmitida em cadeia nacional de rádio e
televisão. Fui, então, perguntado por repórteres que
telefonavam de Brasília, se eu topava uma acareação com o
Ministro. Eu disse que não apenas toparia mas exigiria. Depois,
eu já em Brasília, o próprio jornal O Globo publica que o
Brigadeiro convocava uma entrevista coletiva para tratar do
assunto no dia subsequente, é, isto ocorreu a 14.02.1990.
O jornal O Globo
publicava essa notícia. O jornal saía pela manhã e seria a
entrevista no outro dia. Então eu sou perguntado, de novo, se
queria, se toparia uma acareação que não teria havido. E eu
disse sim. Pouco depois, veio a informação dada através da
Federação Nacional dos Jornalistas do Brasil, de que o ministro
negava a entrevista que teria sido “barriga” do jornal.
E,
coincidentemente, o jornalista DERMI AZEVEDO, da sucursal d’O
Globo em São Paulo, foi sumariamente demitido, e eu tenho a
cópia de telex, uma nota oficial do Sindicato dos Jornalistas de
São Paulo, em que é denunciada a demissão de Dermi exatamente
pelo fato de ele ter feito repercutir a minha denúncia.
Então, essa
denúncia também tem que ser incorporada à minha porque outras
cabeças também já rolaram nessa sequência, como a do
jornalista Flávio Marinho, ocorrida aqui em Natal. Ele, ainda nos
quadros do Diário de Natal, foi demitido também sumariamente,
por ordem expressa de Brasília, e o Sindicato dos Jornalistas do
Rio Grande do Norte, publicou nota oficial repudiando
veementemente a demissão do jornalista e repudiando, inclusive,
os ataques de que fui vítima e que estão publicados na 1ª
página de jornais do Brasil, pelo Serviço de Comunicação
Social da Aeronáutica, e também por nota oficial assinada pelo
Ministro Brigadeiro Moreira Lima.
Sendo tudo que
foi dito, nada mais sendo perguntado, e ficado o depoente ciente
de que a este material será dada ampla divulgação, a nível
nacional, foi encerrado o depoimento, e assinado pelos presentes
este termo.
(Assinaturas).
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