História
dos Direitos Humanos no Brasil
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1982
I
Encontro Nacional de Direitos Humanos do
MNDH
1982, Petrópolis-RJ
Missa
dos Quilombos
Transcrevemos
este documento do Boletim do CIMI, n.º 76
– Dezembro/1981
Apresentação
A
Missa dois Quilombos é a irmã mais nova
da Missa da “Terra-sem-Males”. Nasceu de
preocupações semelhantes. Busca objetivos
semelhantes: desenterrar a História dos
massacres perpetrados contra a raça negra.
Trazer à luz do dia, mesmo que cegue a hipocrisia
de alguns, o metódico terror com que a civilização
branca, cristã e ocidental — em nome da
fé — converteu milhões de africanos em lenha
para alimentar a fornalha capitalista do
chamado «Novo Mundo».
Teria
que ser no Brasil. Neste Brasil que finge
ser branco, mas não consegue esconder na
pele ou nos traços dos seus filhos que é
o segundo pais negro do mundo. As classes
dominantes se esforçam por levar ás últimas
consequências o Assassinato da História
da Escravidão proposto e iniciado por Rui
Barbosa. Este, em nome dos Senhores de escravos
que dizia combater, pretendeu esconder
do futuro a carnificina da escravatura.
Propôs e conseguiu que se queimassem os
documentos deste crime.
Seus
sucessores, hoje, se empenham em vender
a ideologia do embranquecimento. E se perdem
na busca de sua própria identidade, da identidade
deste país que não quer encarar no espelho
da História a metade negra do seu rosto.
Por isso tinha que ser aqui esta Missa.
A
Missa dos Quilombos quer desnudar a mentira
que os ex-senhores de escravos e seus filhos
no poder tentam nos impingir. Por isso ela
não celebra a subserviência, mas a dignidade,
não celebra o medo, mas a rebeldia, não
celebra o desespero, mas a esperança de
negros e brancos construírem um dia seu
Novo Palmares.
O
Boletim do CIMI se despede dos seus leitores
com a Homília proferida por D. José Maria
Pires, um dos únicos Bispos negros do Brasil.
Uma multidão de quase sete mil pessoas a
ouviram na Praça do Carmo, Recife, na noite
de 22 de novembro último. Segue depois o
texto integral da Missa dos Quilombos, corno
um testemunho de solidariedade ã causa
dos negros oprimidos nas fábricas, nos portos,
nas favelas, nos mocambos desta América.
O
destino dos milhões de negros deste continente
não se separa do destino dos milhões de
índios, irmãos na escravidão ontem, irmãos
na luta e na esperança de hoje e amanhã.
Axé.
HOMILIA
Pretos,
meus irmãos:
Estamos
recolhendo hoje e aqui os frutos do sangue
de Zumbi, símbolo da resistência de nossos
antepassados. Eles foram trazidos á força
da África para essas terras, arrancados
de sua Pátria, separados de seu povo e de
sua família, misturados com pretos de outras
línguas e de outros costumes. Violentaram-lhes
a consciência impuseram-lhes uma nova religião
que não escolheram. Até o nome lhes roubaram
e os chamaram por nomes destituídos de
significados para eles.
Estamos
presenciando hoje e aqui os sinais de ama
nova aurora que vem despertar a Igreja de
Jesus Cristo. No passado, ela não se mostrou
suficientemente solidária com a causa dos
escravos. Não condenou a escravidão do
negro, não denunciou a tortura de escravos,
não amaldiçoou o pelourinho, não abençoou
os quilombos, não excomungou os exércitos
que se organizaram para combatê-los. A Igreja
não estava com os negros e hoje parece que
começa a estar. Começa a nos querer bem.
A respeitar nossa cultura e a não tratá-la
mais como grosseira superstição. A Igreja
começa a ficar do nosso lado, a nos ajudar
a ressuscitar nossa memória histórica, a
incentivar nossa organização.
Pretos,
meus irmãos! Como nossos antepassados,
viemos de vários lugares. Diferentes deles
e menos puros do que eles, trazemos na pele
colorações variadas. Na alma, crenças diferentes.
Mas neles e em nós estão presentes e são
indeléveis as marcas da negritude. Somos
negros e não nos envergonhamos, não queremos
mais nos envergonhar de sê-lo.
Brancos,
nossos amigos! Conosco vos reunís. Descendentes
embora dos que nos humilharam e torturaram
nossa raça, viestes hoje nos aplaudir. Não
sendo negros, vos mostrais solidários com
nossa causa e não quereis ver prolongadas
em nós as conseqüências nefastas da escravidão
que oprimiu nossos avós.
Nesse
encontro histórico, faltam muitos irmãos
negros que levando ainda vida de escravos,
não puderam compartilhar dessa celebração
da liberdade. E faltam descendentes daqueles
que reduziram nossa gente ao cativeiro.
Eles não acreditam que os negros, enquanto
tais, são os mais marginalizados do Brasil.
Vêem nosso encontro como uma espécie de
provocação ou uma demonstração de racismo
que, segundo eles, não existe nem deve ser
despertado entre nos, um gesto de conteúdo
mais ideológico e político do que evangélico
e religioso.
Somos
gratos aos que, sem serem negros, se mostram
partidários de nossa causa, lamentamos que
alguns não vejam em nossa movimentação um
sinal de que «a Boa-Nova está sendo anunciada
aos pobres» (Lc 4,18), mas asseguramos que
não iremos retroceder em nossa caminhada
pelo fato de alguns nos interpretarem mal.
—
Mais longa que a escravidão do Egito, mais
dura do que o cativeiro da Babilônia foi
a escravidão do negro no Brasil.
Podemos
entender aceitar não a escravidão como
conseqüência de unia guerra ou em pagamento
de urna divida. Só mesmo um total desrespeito
à pessoa humana associado à torpe ambição
do lucro pode levar homens a transformar
outros homens em propriedade sua a fim de
explorá-los igualando-os a animais de carga.
No Egito como na Babilônia os hebreus foram
submetidos a dura servidão. Puderam, entretanto,
conservar sua consciência de povo e a dignidade
de pessoa. O africano ao invés foi desenraizado
de seu meio e separado propositalmente de
sua gente e de sua família. Foi reduzido
à condição de um objeto que se pode vender,
se pode dor, trocar ou destruir.
Do
escravo se exigia o máximo de produção como
o mínimo de despesa. Não havia preocupação
com saúde 011 alimentação. A média de vida
dos cativos era baixíssima. Castigos os
mais humilhantes por qualquer ato de desobediência
ou gesto de rebeldia. Submissão absoluta,
aniquilamento de si, renúncia total à própria
vontade tornaram-se para os escravos condição
de sobrevivência. Leis houve e não poucas
destinadas a coibir os excessos nos maus
tratos aos cativos. Ficaram, porém, letra
morta, pois era o próprio sistema que legitimava
a escravidão. A Igreja, por sua vez, a aceitou
sem maior relutância e procurou justificá-la
com a teoria do mal que veia para o bem
se os negros perdiam a liberdade do corpo,
em compensação, ganhavam a alma e se incorporavam
à civilização cristã abandonando o paganismo.
Bela Teologia!
Hoje
não falta quem condene a Teologia da Libertação
— também chamada do Cativeiro — que justifica
e incentiva à luz da Palavra do Deus, os
esforços dos oprimidos para se livrarem
da marginalização a que foram reduzidos.
Essa empreitada a que metem ombros tantos
dos nossos melhores teólogos é certamente
simpática, humana e conforme com a mente
de Deus, características que não podem ser
invocadas em favor da pretensão de legitimar
com a Bíblia qualquer tipo de escravidão.
Houvesse a Igreja da época marcado presença
mais na senzala do que na casa grande, mais
nos quilombos do que nas cortes, outros
teriam sido os rumos da História do Brasil
desde os seus primórdios, outra teria sido
a contribuição do negro ao desenvolvimento
porque, mesmo desenraizado de seu povo e
de sua terra, mesmo reduzido ao cativeiro
e sujeito a jornadas de até 18 horas de
trabalho, conservou em si forças de aglutinação
e de preservação de seus valores originais.
Estas forças foram principalmente a religião
e a combatividade.
Obrigado
a abandonar suas divindades e trocar o nome
no «Batismo», o negro soube fazer a síntese
do antigo com o novo: aceitou a religião
de seus opressores transformando-a por vezes
em símbolo da crença dos seus antepassados.
As imagens de santos tornaram-se as materializações
de seus orixás. Nossa Senhora da Conceição
é lemanjá, São Jorge é Ogum, Santa Bárbara,
lansã... Por mais alienados e alienantes
que pudessem parecer essas formas populares
de devoção, foram elas que proporcionaram
a muitos escravos africanos o meio de comunicação
que lhes permitiu conservar valores que,
de outro modo, teriam sido tragados na voragem
cruel do cativeiro. Nas irmandades de Nossa
Senhora do Rosário para os Homens Pretos,
no candomblé ou no Xangó, a religião ofereceu
aos escravos uni espaço de liberdade onde,
pelo menos enquanto durava o ato religioso,
eles podiam sentir-se eles mesmos e recuperar
a dimensão de pessoa humana.
A
combatividade de nossos antepassados pareceu
ter se apagado no coração da maioria. O
escravo mostrava-se conformado e submisso.
Chegou a colaborar com seu opressor. A afeiçoar—se
a ele. Essas atitudes, porém, podiam ser
interpretadas como uni expediente de natureza
humana em busca da sobrevivência. No fundo,
mesmo adormecido, permanecia vivo o sentimento
de altivez que se rebelava contra a escravidão
e buscava formas de expressar a revolta.
Não foram poucos os casos em que os escravos
mataram feitores ou eliminaram senhores
cruéis. A rebelião teve também sua manifestação
coletiva, mais organizada e, por isso mesmo,
mais eficaz. Foram os Quilombos. A estas
verdadeiras comunidades de escravos fugidos
se uniam freqüentemente índios que viviam
situação parecida e até alguns brancos,
vitimas, eles também, da exploração.
Pela
sua extensão territorial, pela sua organização
social e política e pela sua longa duração,
o Quilombo dos Palmares foi o mais importante
de quantos existiram entre nós. Os Quilombos
jamais constituíram um perigo para as cidades,
as povoações, os engenhos ou fazendas.
Os
negros fugidos procuravam terras até então
inabitadas e desconhecidas, ai se instalavam,
organizavam a produção de modo a se tornarem
o mais possível auto-suficientes e acolhiam
outros negros que buscavam refúgio e liberdade
no quilombo. Não se tem notícias de ataques
feitos por quilombolas contra as povoações.
Não há vestígio de organização militar entre
eles a não ser em Palmares quando tiveram
necessidade de se defenderem. No entanto
os quilombos foram severamente perseguidos.
Temia-se que esta organização rudimentar
de negros se tornasse cada vez mais poderosa
e infligisse um golpe de morte na escravidão
o que viria prejudicar os interesses econômicos
da classe dominante. E, como sempre, a
policia foi acionada contra humildes escravos.
As torças militares receberam a incumbência
de destruir os quilombos, apoderar-se das
lavouras feitas pelos quilombolas, prendê-los
e reconduzi-los ao cativeiro ou exterminá-los.
Muito sangue correu, muita esperança se
afogou.
Tudo
em Vão ou terá havido algum proveito?
II
— Chegou o tempo de tanto sangue
ser semente, de tanta semente germinar.
Está sendo longa a espera, meus irmãos.
Da morte de Zumbi até nós são decorridos
já quase três séculos. Mas a terra conservou
o sangue dos nossos mártires. Este sangue
fala, clama e seu clamor começa a ser ouvido.
Primeiro por nós negros que estamos recuperando
nossa identidade e começando a nos orgulhar
do que somos e do que foram nossos antepassados.
A sociedade também escuta esse clamor. Muitos
do seio dela nos apóiam e se colocam ao
nosso lado para caminharmos juntos. A viagem
é longa e penosa. Quase tudo está por fazer,
O negro como negro continua marginalizado.
Não
existe em grau de embaixador, em posto de
general, em função de Ministro de Estado.
Na própria Igreja, são tão poucas as exceções
que não abalam a tranqüilidade do preconceito
racial. Tomar consciência do problema de
negros que gostariam de ser ou ao menos
de parecer brancos, e de brancos que negam
que haja racismo no Brasil, já é uni passo
importante nessa caminhada. Na Eucaristia
que estamos celebrando, negros e brancos
se encontram não como escravos ~ senhores
mas feitos irmãos no mesmo Cristo que a
todos resgatou da escravidão do pecado.
Aqui descendentes dos que humilharam nossos
pais se humilham e pedem perdão enquanto
nós, acolhendo-os no abraço da paz, renunciamos
a todo tipo de revanchismo e protestamos
não admitir que ódio e violência se instalem
em nossos corações. Se, no inicio, ouvimos
as lamentações do Profeta Jeremias, ouvimos
depois no Evangelho as palavras de conforto
e as promessas da esperança. Que tudo isso
que estamos celebrando impregne nossas vidas
e invade as relações sociais para que de
verdade se realize hoje o que, nos tempos
do Apóstolo Paulo, já começava a ser a maneira
de viver dos discípulos de Cristo: “Já não
há judeu nem grego, nem escravo nem livre,
nem homem nem mulher, pois todos vós sois
um em Cristo Jesus” (GI 3,20).
MISSA
DOS QUILOMBOS
D.
Pedro Casaldáliga — Pedro Tierra — Milton
Nascimento
1.
ABERTURA ESTAMOS CHEGANDO
(Coro Cantado)
A
DE O (Chegamos, estamos aqui)
Estamos
chegando do fundo da terra. estamos chegando
do ventre da noite, da carne do açoite nós
somos
viemos
lembrar.
Estamos
chegando da morte nos mares, estamos chegando
dos turvos porões, herdeiros do banzo nós
somos, viemos chorar.
Estamos
chegando dos pretos rosários, estamos chegando
dos nossos terreiros, dos santos malditos
nós somos, viemos dançar.
Estamos
chegando do cl1áo da oficina, estamos chegando
do som e das formas, da arte negada que
somos, viemos criar.
Estamos
chegando do fundo do medo, estamos chegando
das surdas correntes, um longo lamento nós
somos, viemos louvar.
A
DE O (Recitado)
Do
Exílio da vida, das Minas da Noite, da carne
vendida, da Lei do açoite, do Banzo dos
mares. aos novos Albores! vamos a Palmares
todos os tambores!!!
Estamos
chegando dos ricos fogões, estamos chegando
dos pobres bordéis, da carne vendida nós
somos, viemos amar.
Estamos
chegando das velhas senzalas, estamos chegando
das novas favelas, das margens do mundo
nós somos, viemos dançar.
Estamos
chegando dos trens dos subúrbios, estamos
chegando nos loucos pingentes, com a vida
entre os dentes chegamos, viemos ·cantar.
Estamos
chegando dos grandes estádios, estamos chegando
da escola de samba, sambando a revolta chegamos,
viemos gingar.
A
DE O (Recitado)
Estamos
chegando do ventre das Minas, estamos chegando
dos tristes mocambos, dos gritos calados
nós somos viemos cobrar.
Estamos
chegando da Cruz dos Engenhos, estamos sangrando
a cruz do Batismo, marcados a ferro nós
fomos, viemos gritar.
Estamos
chegando do alto dos morros, estamos chegando
da lei da Baixada, das covas seu nome chegamos,
viemos clamar.
Estamos
chegando do chão dos Palmares, estamos chegando
do som dos tambores, dos Novos Palmares
nós somos, viemos lutar.
(Coro
— Cantado)
Em
nome do Deus de todos os nomes
—
Javé
Obatalá
Olorum
Oió.
Em
nome do Deus, que a todos os Homens nos
faz da ternura e do pó.
Em
nome do Pai, que faz toda carne, a preta
e a branca, vermelhas no sangue.
Em
nome do Filho, Jesus nosso irmão que nasceu
moreno da raça de Abraão.
Em
nome do Espirito Santo, bandeira do canto
do negro folião.
Em
nome do Deus verdadeiro que amou-nos primeiro
sem dividição.
Em
nome dos Três, que são um Deus só, Aquele
que era, que é, que será.
Em
nome do povo que espera, na graça da Fé,
à voz do Xangó, o Quilombo-Páscoa que libertará.
Em
nome do Povo sempre deportado pelas brancas
velas no exílio dos mares; marginalizado
nos cais, nas favelas e até nos altares.
Em
nome do Povo que fez seu Palmares, que ainda
fará Palmares de novo
—
Palmares, Palmares, Palmares do Povo!!!
III.
RITO PENITENCIAL
(Coro
— Cantado)
Kyrie
eleison Christe eleison, Kyrie eleison.
Alma
não é branca luto não é negro, negro não
é tolk.
Kyrie
eleison.
—
Senhor do Bonfim do bom começar: não seja
a alegria apenas de um dia; não seja a folia
para desfilar na avenida sua. Que seja,
por fim, a tua Alforria e nossa a rua, Senhor
do Bonfim!
Kyrie
eleison, Christe eleison, Kyrie eleison.
(Recitado)
Da
raça maldita gratuitamente, a raça de Cam.
Secular estigma da escrava Agar, Mãe espoliada,
Ismael dos Povos, denegrida África.
(Coro
Negro — Cantado)
Terras
de Luanda,
Costa
do Marfim,
Reino
de Guiné,
Pátria
de Aruanda
Awa
de’
(Estamos
aqui)
(Recitado)
Carne
em toneladas, fardos de porão. Quota da
Coroa ficha de Batismo, marcados a ferro
para a Salvação. Entregues à Morte, sendo
Cristo a vida. Humanos leilões, peças de
cobiça, 300 milhões de africanos mortos
na Segregação. Caça das Bandeiras, do Esquadrão
da Morte. Exus do destino, capitães-de-mato.
Quantos
Jorge Velho de todos os Lucros, de todos
os Tempos, de todas as Guardas! Quantas
Áureas Leis da Justiça Branca!
(Coro
Branco — Cantado)
Queimamos,
de medo – do medo da História – os nossos
arquivos.
Pusemos
em branco
a
nossa memória.
(Recitado)
Cultura
à margem.
Culto
condenado,
Fé
de freguesia,
Giro
tolerado,
Revolta
ignorada,
História
mentida.
Ressaca
dos Portos,
Harlem
dos Impérios,
Apartheid
em casa,
favela
do mundo. Com "direito a enterro",
sem direito à vida. Pelourinhos brancos,
flagelados pretos. Negro sem emprego, sem
voz e sem vez, sem direito a ser, a ser
e a ser Negro.
Dobrados
nos eitos os peitos quebrados. Os peitos
sugados por filhos alheios, senhores ingratos.
Bebês imolados pelas Anas Paes. Testas humilhadas
nas águas dos cais. Bronze incandescente
nas bocas dos tornos. Peões de fazenda,
pé de bóia-fria artista varrido no pó da
oficina garçom de boteco, sombra de cozinha,
mão de subemprego, carne de bordel... Pixotes
nas ruas caçados nos morros mortos no xadrez!
Negro
embranquecido pra sobreviver. (Branco enegrecido
para gozação). Negro embranquecido, morto
mansamente pela integração.
(Coro
Negro — Cantado)
Mulato
iludido, fica do teu lado, do lado do negro.
Não faças, Mulato, a branca traição.
(Recitado)
Padres
estudados,
Pastores
ouvidos,
Freiras
ajeitadas,
Doutores
da sorte,
Cantores
de turno,
Monarcas
de estádio.
Não
negueis o Sangue,
o
grito dos Mortos,
o
cheiro do Negro,
o
aroma da Raça,
a
força do Povo,
a
voz de Aruanda,
a
volta aos QUILOMBOS!
(Solo
— Cantado)
—
Bom Jesus de Pirapora, na procura desta
hora, tem piedade de nós.
(Coro)
—
.Kyríe eleison!
(Solo
— Cantado)
Senhor
Morto, Deus da Vida, nesta luta proibida,
tem piedade de nós.
(Caro)
—
Christe eleison!
(Solo
— Cantado)
Irmão
Mor da Irmandade,
na
Paixão da Liberdade,
tem
piedade de nós.
(Coro)
—
Kyrie eleison
IV.
ALELUIA
(Coro
— Cantado)
Aleluiá,
aleluiá, aleluiá!
Fala,
Jesus, Palavra de Deus:
Tu
tens a palavra!
AIeIuiá...
Irmão
que fala a Verdade aos Irmãos. dá-nos tua
nova Libertação. Quilombolas livres do lucro
e do medo, nós viveremos o teu Evangelho,
nós gritaremos o teu Evangelho!
Aleluiá.
Nenhum
poder
nos
calará!
Aleluiá,
aleluiá, aleluiá!
Contra
tantos mandatos do Ódio,
Tu
nos trazes a Lei do Amor.
Frente
a tanta Mentira
Tu
és a Verdade, Senhor.
Entre
tanta notícia de Morte,
Tu
tens a Palavra da Vida.
Sob
tanta promessa fingida, sobre tanta esperança
frustrada, Tu tens, Senhor Jesus, a última
palavra. E nós apostamos em Ti!!!
Aleluia...
A
tua Verdade nos libertará.
Aleluiá...
V.
OFERTÓRIO
(Recitado)
Na
cuia das mãos trazemos o vinho e o pão,
a luta e a fé dos irmãos, que o Corpo e
o Sangue do Cristo serão.
(Recitado)
O
ouro do Milho
e
não o dos Templos,
o
sangue da Cana
e
não os Engenhos,
o
pranto do Vinho
no
sangue dos Negros,
O
Pão da Partilha
dos
Pobres Libertos.
(Recitado)
Trazemos
no corpo o mel do suor trazemos nos olhos
a dança da vida, trazemos na luta, a morte
vencida. No peito marcado trazemos o Amor.
Na Páscoa do Filho a Páscoa dos filhos recebe,
Senhor.
(Solo
— Cantado)
Trazemos
nos olhos,
as
águas dos rios,
o
brilho dos peixes,
a
sombra da mata,
o
orvalho da noite,
o
espanto da caçá,
a
dança dos ventos,
a
lua de prata,
trazemos
nos olhos
o
mundo, Senhor!
(Recitado)
Na
palma das mãos trazemos o milho, a cana
cortada, o branco algodão,
o
fumo-resgate, a pinga-refúgio, da carne
da terra moldamos os potes que guardam a
água, a flor de alecrim, no cheiro de incenso,
erguemos o fruto do nosso trabalho, Senhor!
Olorum!
(Solo
— Cantado) O som do atabaque marcando a
cadência dos negros batuques nas noites
imensas da África negra, da negra Bahia,
das Minas Gerais, os surdos lamentos, calados
tormentos, acolhe Olorum!
(Recitado)
—
Com a força dos brancos lavramos a terra
cortamos a cana, amarga douçura na mesa
dos brancos.
—
Com a força dos braços cavamos a terra colhemos
o ouro que hoje recobre a igreja dos brancos.
—
Com a força dos braços plantamos na terra,
o negro café, perene alimento do lucro dos
brancos.
—
Com a força dos braços, o grito entre os
dentes, a alma em pedaços, erguemos impérios,
fizemos a América dos filhos dos brancos!
(Coro
— Cantado)
A
brasa dos ferros lavrou-nos na pele, lavrou-nos
na alma, caminhos de cruz.
Recusa
Olorum o grito, as correntes e a voz do
feitor, recebe o lamento, acolhe a revolta
dos negros, Senhor!
(Recitado)
—
Trazemos no peito os santos rosários, rosários
de penas rosários de fé, na vida liberta,
na paz dos quilombos de negros e brancos
vermelhos no sangue. A Nova Aruanda dos
filhos do Povo acolhe, Olorum!
(Recitado)
Recebe,
Senhor a cabeça cortada do Negro Zumbi,
guerreiro do Povo, irmão dos rebeldes nascidos
aqui, do fundo das veias, do fundo da raça,
o pranto dos negros, acolhe, Senhor!
(Coro
— Cantado)
Os
pés tolerados na roda de samba,
o
corpo domado nos ternos do congo,
inventam
na sombra a nova cadência,
rompendo
cadeias, forçando caminhos,
ensaiam
libertos
a
marcha do Povo,
a
festa dos negros, acolhe, Olorum!
(Estribilho)
VI.
O SENHOR SANTO
(Coro
Cantado)
O
Senhor é Santo, O Senhor é Santo,
O
Senhor é Santo.
O
Senhor é o só Senhor.
Todos
nós somos iguais.
Oxalá
o Reino do Pai
seja
sempre o nosso Reino.
O
Senhor é Santo...
O
Reino nos vem
em
Cristo Rei Salvador.
O
Reino se faz
no
Povo Libertador.
Hosana,
Hosana, Hosana.
VII.
RITO DA PAZ
(Coro
— Cantado)
Saravá,
A-i-é
Abá.
A
Paz d’Aquele, que é nossa Paz!
A
louca esperança de ver todo irmão
caindo
na dança da vida, cantando vencida toda
Escravidão!
Vai
ser abolida
a
paz da Abolição
que
agora temos.
E
contra a paz cedida,
a
Paz conquistada teremos!!!
Saravá,
do novo Quilombo de amanhã.
A-i-é
dessa «festa de todos, que virá!
(À
maneira de um Pregão)
—
Aos treze de maio de mil-oitocentos-e-oitenta-e-oito,
nos deram apenas decreto em palavras. Mas
a Liberdade vamos conquistá-la!
(Coro
— Cantado)
A-i-é
A
paz d’Aquele, que é nossa Paz!
Abá,
a
Paz que o Povo fará!
Palmares
das lutas da Libertação. Palmeiras da Páscoa
da Ressurreição.
Saravá,
A-i-é, Abá!!!
VIII.
COMUNHÃO
(Recitado)
Bebendo
a divina bebida do teu Sangue Limpo, Senhor,
lavamos as marcas da vida, libertos na Lei
do Amor.
Comendo
a carne vivente do Teu Corpo morto na Cruz,
vencemos a Morte insolente na vida mais
forte, Jesus.
Nutrindo
a luta na Aliança e a Marca em teu novo
Maná, queremos firmar a Esperança da Aruanda
que um dia virá.
Ara
wara kosi mi tara.
Todos
unidos num mesmo Corpo, nada no mundo nos
vencera.
Todos
unidos em Cristo Jesus, Oxalá!
Ara
wara kosi mi fara.
(Solo
— M)
—
Partilha diária em mesa de irmãos. Porque
não é livre quem não tem seu pão. (Soto
— F)
—
Partilha constante, na festa e na dor. Porque
não é livre quem não sente amor.
(Solo
— M)
Partilha
fraterna de bantus iguais. Porque não é
livre quem junta demais.
(Solo
— F)
—
Partilha de muitos unidos na fé. Porque
não é livre quem não é o que é.
(Solo
— M)
—
Partilha arriscada de vir a perder. Porque
não é livre quem teme morrer. (Solo — F)
—
Partilha segura da Libertação, que o Cristo
partilha a Ressurreição.
Ara
wara kosi mi fara, etc.
IX.
LADAINHA
(Leitor)
—
Unidos ã procura dos quilombos da libertação,
celebramos a «memória perigosa» da Páscoa
de Jesus, comungando a força do Seu Corpo
Ressuscitado. Recolhemos na mesma Comunhão
o trabalho, as lutas, o martírio do Povo
Negro de todos os tempos e de todos os lugares.
E
invocamos sobre a caminhada, a presença
amiga dos Santos, das Testemunhas, dos militantes,
dos Artistas, e de todos os construtores
anônimos da Esperança Negra.
(Solo
— Contado)
Porque
está na hora pedimos o auxilio de todos
os santos, chamamos a força dos mortos na
luta porque está na hora, o jeto dos mestres
da reza e do canto; porque está na hora,
cantamos malembes pra Nossa Senhora.
(Coro
— Cantado)
Caô
— Cabê em si — lobá
Todos
os santos nos vão ajudar!
(Recitado)
(Voz
— M)
—
Zumbi dos Palmares, Patriarca mártir de
todos os Quilombos de ontem, de hoje e de
amanhã.
(Voz
— F)
—
Dragão do Mar, Francisco José do Nascimento,
João Cândido que a chibata não dobrou, Pedro
Ivo sombra dos Praieiros pernambucanos,
Angelim dos Cabanos madeira da Resistência
e todos os rebeldes do Povo, na Terra e
no Mar.
(Voz
— M)
(Voz
— F)
—
Haussás, Nagôs e Alfaiates da Negra
Bahia, e todos os Grupos e movimentos Negros
que reivindicam o Futuro.
(Voz
— M)
—
Arturo Alfonso Schomburg, memória "do
Povo sem História", voz libertária
do Caribe. (Voz F)
—
Lumumba, tambor-tempestade da África levantada.
(Voz
— M)
—
Chimpa-Vita, Beatriz do Congo, bandeira
em chamas das negras-coragem, e todas as
mães-pretas arrancadas da pedra morta para
as lutas da vida! E todas as Marlys das
baixadas desmascarando o rosto dos assassinos,
e todas as anônimas heróicas comadres negras,
eixo fecundo da Sobrevivência da Raça.
(Voz
— F)
Negrinho
do Pastoreio, anjo dos vaqueiros das redes
perdidas e todos os guias negros das causas
do Povo.
(Voz
— M)
—
Crianças de Soweto e de Atlanta, massacres
da prepotência racial, colheita prematura
da Juventude Negra.
(Voz
— F)
—
Santeiro Aleijadinho, entalhador dos Santos
do Povo.
(Voz
— M)
—
Louis Armstrong e todos os metais e todas
as cordas e todos os Negros Spirituals da
América Negra.
(Voz
— F)
—
Amilcar Cabral, pai educador da Liberdade
Africana.
(Voz
— M)
—
James Meredith, paixão matinal e todos os
estudantes dos campos e das ruas que marchais
abrindo História.
(Voz
— F)
—
Solano Trindade e todos os poetas da madeira,
da palavra e da alma negra nunca embranquecida.
(Voz
— M)
—
Santo Dias, Companheiro, suor e sangue da
Periferia, mártir na cruz das Empresas,
e todos os retirantes, lavradores, bóias—frias
e operários, construtores do Sindicato livre
e da Comunidade Fraterna.
Caô...
(Voz
— F)
—
Santos Reis dos presentes da terra e do
culto, peregrinos incansáveis á luz da estrela,
atrás do Menino.
(Voz
— F)
—
São Benedito irmão acolhedor dos pedidos
dos Pobres.
(Voz
— F)
—
Santo Agostinho, mente e coração da África
Mãe.
(Voz
— M)
—
São Martinho de Lima, porteiro
solicito da América Negra.
(Voz
— F)
—
Santa Efigênia, discípula do Apóstolo e
congregadora de virgens.
(Voz
— M)
—
São Pedro Claver, escravo fraterno
dos
escravos negros.
(Voz
— F)
—
São Gonçalo de Amarante, peregrino e evangelizador
dos Pobres.
(Voz
— M)
—
São Cosme e Damião, curadores do povo sofredor.
(Voz
— F)
—
Valência Cano, mártir bom pastor do Litoral
Negro, Irmão Lourenço de Nossa Senhora,
garimpeiro do Evangelho, ermitão da Comunidade.
Frei
Gregório de José Maria, deportado para o
Amazonas, Padre Canabarro, vigário comprometido
no Sul e todos os pastores, romeiros, missionários,
ermitães e confrades devotados ao pranto
e á Esperança do Povo Negro.
(Voz
— M)
—
Santo Onofre, anacoreta da longa solidão.
(Voz
— F)
—
Carlos Lwanga e companheiros Mártires de
Uganda.
(Voz
— M)
—
Martim
Luther King, pastor na vida e na morte,
voz permanente da marcha da Libertação e
todos os mártires da Paz perseguida.
(Coro
– Cantado)
Caô...
X.
LOUVAÇÃO A MARIAMA
(Coro
— Cantado)
—
Mariama lya, lya, ô, Mãe do Bom Senhor!
Maria
Mulata, Maria daquela colônia favela, que
foi Nazaré.
Morena
formosa,
Mater
dolorosa,
Sinhá
vitoriosa,
Rosário
dos pretos mistérios da Fé.
Mãe
do Santo, Santa, Comadre de tantas, liberta
mulhé.
Pobre
do Presépio, Forte do Calvário,
Saravá
da Páscoa de Ressurreição,
Roseira
e corrente do nosso Rosário,
Fiel
Companheira da Libertação.
Por
teu Ventre Livre, que é o verdadeiro, pois
nos gera livres no Libertador, acalanta
o Povo que está em cativeiro, Mucama Senhora
e Mãe do Senhor.
Canta
sobre o Morro tua Profecia que derruba os
ricos e ·os
grandes, Maria.
Ergue
os submetidos, marca os renegados, samba
na alegria dos pés congregados.
Encoraja
os gritos, acende os olhares, ajunta os
escravos em novos Palmares.
Desce
novamente ás redes da vida do teu Povo Negro,
Negra Aparecida!!!
Xl.
MARCHA FINAL
(Música
de Banzo e de Esperança) (Recitado)
—
Banzo da Terra que será nossa, banzo de
todos na Liberdade, banzo da vida que vai
ser outra banzo do Reino, maior saudade
em luta do Amanhã, vontade da Aruanda que
uni dia virá! Saudade da Terra e dos Céus,
o banzo do Homem, saudade de Deus.
(Recitado)
Trancados
na Noite Milênios afora forçamos agora,
as portas do Dia. Faremos um Povo de igual
Rebeldia. Faremos uni Povo de bantus iguais.
Faremos
de todos os lares fraternas senzalas sem
mais. Faremos a Negra Utopia do novo PALMARES
na só Casa Grande dos filhos do Pai.
Os
Negros da África
os
afros da América
os
Negros do Mundo,
na
Aliança com todos os Pobres da Terra.
Seremos
o Povo dos Povos:
Povo
resgatado, Povo aquilombado, livre de senhores,
de ninguém escravo, senhores de nós, irmãos
de senhores, filhos do Senhor!
(Recitado)
Sendo
Negro o Negro, sendo índio o índio, sendo
cada um como nos tem feito a mão de Olorum.
(Recitado)
Seremos
Zumbis, construtores dos novos QUILOMBOS
queridos. Nos muros remidos da nossa Cidade,
nos Campos, por fim repartidos, na Igreja
do Rei, de novo do Povo, seremos a Lei da
nova Irmandade, Iremos vestidos das palmas
da vida. Teremos a cor da Igualdade. Seremos
a exata medida da humana feliz dignidade.
Berimbaus
da Páscoa marcarão o pé, o pé quilombola
do novo Toré. Pela Terra inteira juntos
dançaremos nossa Capoeira. Seremos bandeira,
seremos foliões. No Novo Israel plantaremos
as tendas dos filhos do Santo. Os prantos,
os gritos, unidos num canto de irmãos corações,
na luta e na festa do ano inteiro.
(Recitado)
No
rosto de todos os homens sinceros, a marca
da tribo de Deus, o Sangue sinal do Cordeiro.
(Recitado)
E
à espera do nosso Quilombo total
—
o alto Quilombo dos céus —, os braços erguidos,
os Povos unidos serão a muralha ao Medo
e ao Mal, serão valhacouto da Aurora desperta
nos olhos. do Povo, da Terra liberta no
QUILOMBO NOVO!!!
(Música
final)
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