Projeto DHnet
Ponto de Cultura
Podcasts
 
 Linha do Tempo
 Nossa História
 Institucional
 Ações e Projetos
 Encontros Nacionais
 Conferências Nacionais
 Regionais do Movimento
 ABC Entidades Filiadas
 ABC Militantes
 Banco de Dados MNDH
 MNDH Documentos
 MNDH Áudios
 MNDH Vídeos
 MNDH Imagens
 Direitos Humanos
 Desejos Humanos
 Educação EDH
 Cibercidadania
 Memória Histórica
 Arte e Cultura
 Central de Denúncias
 Rede Brasil
 Redes Estaduais
 Rede Estadual RN
 Rede Lusófona
 Rede Mercosul

História dos Direitos Humanos no Brasil
Encontros Nacionais do MNDH
Movimento Nacional de Direitos Humanos

 

 

 

 

1982 | 1983 | 1984 | 1986 | 1988 | 1990 | 1992 | 1994 | 1996
1998 | 2000 | 2002 | 2004 | 2006 | 2008 | 2010 | 2112

 

1982
I Encontro Nacional de Direitos Humanos do MNDH
1982, Petrópolis-RJ

 

Missa dos Quilombos
Transcrevemos este documento do Boletim do CIMI, n.º 76 – Dezembro/1981

Apresentação

A Missa dois Quilombos é a irmã mais nova da Missa da “Terra-sem-Males”. Nasceu de preocupações semelhantes. Busca objetivos semelhantes: desenterrar a História dos massacres perpetrados contra a raça negra. Trazer à luz do dia, mesmo que cegue a hipocrisia de alguns, o metódico terror com que a civilização branca, cristã e ocidental — em nome da fé — converteu milhões de africanos em lenha para alimentar a fornalha capitalista do chamado «Novo Mundo».

Teria que ser no Brasil. Neste Brasil que finge ser branco, mas não consegue esconder na pele ou nos traços dos seus filhos que é o segundo pais negro do mundo. As classes dominantes se esforçam por levar ás últimas consequências o Assassinato da História da Escravidão proposto e iniciado por Rui Barbosa. Este, em nome dos Senhores de escravos que dizia combater, pretendeu esconder do futuro a carnificina da escravatura. Propôs e conseguiu que se queimassem os documentos deste crime.

Seus sucessores, hoje, se empenham em vender a ideologia do embranquecimento. E se perdem na busca de sua própria identidade, da identidade deste país que não quer encarar no espelho da História a metade negra do seu rosto. Por isso tinha que ser aqui esta Missa.

A Missa dos Quilombos quer desnudar a mentira que os ex-senhores de escravos e seus filhos no poder tentam nos impingir. Por isso ela não celebra a subserviência, mas a dignidade, não celebra o medo, mas a rebeldia, não celebra o desespero, mas a esperança de negros e brancos construírem um dia seu Novo Palmares.

O Boletim do CIMI se despede dos seus leitores com a Homília proferida por D. José Maria Pires, um dos únicos Bispos negros do Brasil. Uma multidão de quase sete mil pessoas a ouviram na Praça do Carmo, Recife, na noite de 22 de novembro último. Segue depois o texto integral da Missa dos Quilombos, corno um testemunho de solidariedade ã causa dos negros oprimidos nas fábricas, nos portos, nas favelas, nos mocambos desta América.

O destino dos milhões de negros deste continente não se separa do destino dos milhões de índios, irmãos na escravidão ontem, irmãos na luta e na esperança de hoje e amanhã.

Axé.

 

HOMILIA

Pretos, meus irmãos:

Estamos recolhendo hoje e aqui os frutos do sangue de Zumbi, símbolo da resistência de nossos antepassados. Eles foram trazidos á força da África para essas terras, arrancados de sua Pátria, separados de seu povo e de sua família, misturados com pretos de outras línguas e de outros costumes. Violentaram-lhes a consciência impuseram-lhes uma nova religião que não escolheram. Até o nome lhes roubaram e os chamaram por nomes destituídos de significados para eles.

Estamos presenciando hoje e aqui os sinais de ama nova aurora que vem despertar a Igreja de Jesus Cristo. No passado, ela não se mostrou suficientemente solidária com a causa dos escravos. Não condenou a escravidão do negro, não denunciou a tortura de escravos, não amaldiçoou o pelourinho, não abençoou os quilombos, não excomungou os exércitos que se organizaram para combatê-los. A Igreja não estava com os negros e hoje parece que começa a estar. Começa a nos querer bem. A respeitar nossa cultura e a não tratá-la mais como grosseira superstição. A Igreja começa a ficar do nosso lado, a nos ajudar a ressuscitar nossa memória histórica, a incentivar nossa organização.

Pretos, meus irmãos! Como nossos antepassados, viemos de vários lugares. Diferentes deles e menos puros do que eles, trazemos na pele colorações variadas. Na alma, crenças diferentes. Mas neles e em nós estão presentes e são indeléveis as marcas da negritude. Somos negros e não nos envergonhamos, não queremos mais nos envergonhar de sê-lo.

Brancos, nossos amigos! Conosco vos reunís. Descendentes embora dos que nos humilharam e torturaram nossa raça, viestes hoje nos aplaudir. Não sendo negros, vos mostrais solidários com nossa causa e não quereis ver prolongadas em nós as conseqüências nefastas da escravidão que oprimiu nossos avós.

Nesse encontro histórico, faltam muitos irmãos negros que levando ainda vida de escravos, não puderam compartilhar dessa celebração da liberdade. E faltam descendentes daqueles que reduziram nossa gente ao cativeiro. Eles não acreditam que os negros, enquanto tais, são os mais marginalizados do Brasil. Vêem nosso encontro como uma espécie de provocação ou uma demonstração de racismo que, segundo eles, não existe nem deve ser despertado entre nos, um gesto de conteúdo mais ideológico e político do que evangélico e religioso.

Somos gratos aos que, sem serem negros, se mostram partidários de nossa causa, lamentamos que alguns não vejam em nossa movimentação um sinal de que «a Boa-Nova está sendo anunciada aos pobres» (Lc 4,18), mas asseguramos que não iremos retroceder em nossa caminhada pelo fato de alguns nos interpretarem mal.

— Mais longa que a escravidão do Egito, mais dura do que o cativeiro da Babilônia foi a escravidão do negro no Brasil.

Podemos entender aceitar não a escravidão como conseqüência de unia guerra ou em pagamento de urna divida. Só mesmo um total desrespeito à pessoa humana associado à torpe ambição do lucro pode levar homens a transformar outros homens em propriedade sua a fim de explorá-los igualando-os a animais de carga. No Egito como na Babilônia os hebreus foram submetidos a dura servidão. Puderam, entretanto, conservar sua consciência de povo e a dignidade de pessoa. O africano ao invés foi desenraizado de seu meio e separado propositalmente de sua gente e de sua família. Foi reduzido à condição de um objeto que se pode vender, se pode dor, trocar ou destruir.

Do escravo se exigia o máximo de produção como o mínimo de despesa. Não havia preocupação com saúde 011 alimentação. A média de vida dos cativos era baixíssima. Castigos os mais humilhantes por qualquer ato de desobediência ou gesto de rebeldia. Submissão absoluta, aniquilamento de si, renúncia total à própria vontade tornaram-se para os escravos condição de sobrevivência. Leis houve e não poucas destinadas a coibir os excessos nos maus tratos aos cativos. Ficaram, porém, letra morta, pois era o próprio sistema que legitimava a escravidão. A Igreja, por sua vez, a aceitou sem maior relutância e procurou justificá-la com a teoria do mal que veia para o bem se os negros perdiam a liberdade do corpo, em compensação, ganhavam a alma e se incorporavam à civilização cristã abandonando o paganismo. Bela Teologia!

Hoje não falta quem condene a Teologia da Libertação — também chamada do Cativeiro — que justifica e incentiva à luz da Palavra do Deus, os esforços dos oprimidos para se livrarem da marginalização a que foram reduzidos. Essa empreitada a que metem ombros tantos dos nossos melhores teólogos é certamente simpática, humana e conforme com a mente de Deus, características que não podem ser invocadas em favor da pretensão de legitimar com a Bíblia qualquer tipo de escravidão. Houvesse a Igreja da época marcado presença mais na senzala do que na casa grande, mais nos quilombos do que nas cortes, outros teriam sido os rumos da História do Brasil desde os seus primórdios, outra teria sido a contribuição do negro ao desenvolvimento porque, mesmo desenraizado de seu povo e de sua terra, mesmo reduzido ao cativeiro e sujeito a jornadas de até 18 horas de trabalho, conservou em si forças de aglutinação e de preservação de seus valores originais. Estas forças foram principalmente a religião e a combatividade.

Obrigado a abandonar suas divindades e trocar o nome no «Batismo», o negro soube fazer a síntese do antigo com o novo: aceitou a religião de seus opressores transformando-a por vezes em símbolo da crença dos seus antepassados. As imagens de santos tornaram-se as materializações de seus orixás. Nossa Senhora da Conceição é lemanjá, São Jorge é Ogum, Santa Bárbara, lansã... Por mais alienados e alienantes que pudessem parecer essas formas populares de devoção, foram elas que proporcionaram a muitos escravos africanos o meio de comunicação que lhes permitiu conservar valores que, de outro modo, teriam sido tragados na voragem cruel do cativeiro. Nas irmandades de Nossa Senhora do Rosário para os Homens Pretos, no candomblé ou no Xangó, a religião ofereceu aos escravos uni espaço de liberdade onde, pelo menos enquanto durava o ato religioso, eles podiam sentir-se eles mesmos e recuperar a dimensão de pessoa humana.

A combatividade de nossos antepassados pareceu ter se apagado no coração da maioria. O escravo mostrava-se conformado e submisso. Chegou a colaborar com seu opressor. A afeiçoar—se a ele. Essas atitudes, porém, podiam ser interpretadas como uni expediente de natureza humana em busca da sobrevivência. No fundo, mesmo adormecido, permanecia vivo o sentimento de altivez que se rebelava contra a escravidão e buscava formas de expressar a revolta. Não foram poucos os casos em que os escravos mataram feitores ou eliminaram senhores cruéis. A rebelião teve também sua manifestação coletiva, mais organizada e, por isso mesmo, mais eficaz. Foram os Quilombos. A estas verdadeiras comunidades de escravos fugidos se uniam freqüentemente índios que viviam situação parecida e até alguns brancos, vitimas, eles também, da exploração.

Pela sua extensão territorial, pela sua organização social e política e pela sua longa duração, o Quilombo dos Palmares foi o mais importante de quantos existiram entre nós. Os Quilombos jamais constituíram um perigo para as cidades, as povoações, os engenhos ou fazendas.

Os negros fugidos procuravam terras até então inabitadas e desconhecidas, ai se instalavam, organizavam a produção de modo a se tornarem o mais possível auto-suficientes e acolhiam outros negros que buscavam refúgio e liberdade no quilombo. Não se tem notícias de ataques feitos por quilombolas contra as povoações. Não há vestígio de organização militar entre eles a não ser em Palmares quando tiveram necessidade de se defenderem. No entanto os quilombos foram severamente perseguidos. Temia-se que esta organização rudimentar de negros se tornasse cada vez mais poderosa e infligisse um golpe de morte na escravidão o que viria prejudicar os interesses econômicos da classe dominante. E, como sempre, a policia foi acionada contra humildes escravos. As torças militares receberam a incumbência de destruir os quilombos, apoderar-se das lavouras feitas pelos quilombolas, prendê-los e reconduzi-los ao cativeiro ou exterminá-los. Muito sangue correu, muita esperança se afogou.

Tudo em Vão ou terá havido algum proveito?

II — Chegou o tempo de tanto sangue ser semente, de tanta semente germinar. Está sendo longa a espera, meus irmãos. Da morte de Zumbi até nós são decorridos já quase três séculos. Mas a terra conservou o sangue dos nossos mártires. Este sangue fala, clama e seu clamor começa a ser ouvido. Primeiro por nós negros que estamos recuperando nossa identidade e começando a nos orgulhar do que somos e do que foram nossos antepassados. A sociedade também escuta esse clamor. Muitos do seio dela nos apóiam e se colocam ao nosso lado para caminharmos juntos. A viagem é longa e penosa. Quase tudo está por fazer, O negro como negro continua marginalizado.

Não existe em grau de embaixador, em posto de general, em função de Ministro de Estado. Na própria Igreja, são tão poucas as exceções que não abalam a tranqüilidade do preconceito racial. Tomar consciência do problema de negros que gostariam de ser ou ao menos de parecer brancos, e de brancos que negam que haja racismo no Brasil, já é uni passo importante nessa caminhada. Na Eucaristia que estamos celebrando, negros e brancos se encontram não como escravos ~ senhores mas feitos irmãos no mesmo Cristo que a todos resgatou da escravidão do pecado. Aqui descendentes dos que humilharam nossos pais se humilham e pedem perdão enquanto nós, acolhendo-os no abraço da paz, renunciamos a todo tipo de revanchismo e protestamos não admitir que ódio e violência se instalem em nossos corações. Se, no inicio, ouvimos as lamentações do Profeta Jeremias, ouvimos depois no Evangelho as palavras de conforto e as promessas da esperança. Que tudo isso que estamos celebrando impregne nossas vidas e invade as relações sociais para que de verdade se realize hoje o que, nos tempos do Apóstolo Paulo, já começava a ser a maneira de viver dos discípulos de Cristo: “Já não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus” (GI 3,20).

 

MISSA DOS QUILOMBOS
D. Pedro Casaldáliga — Pedro Tierra — Milton Nascimento

1. ABERTURA ESTAMOS CHEGANDO (Coro Cantado)

A DE O (Chegamos, estamos aqui)

Estamos chegando do fundo da terra. estamos chegando do ventre da noite, da carne do açoite nós somos

viemos lembrar.

Estamos chegando da morte nos mares, estamos chegando dos turvos porões, herdeiros do banzo nós somos, viemos chorar.

Estamos chegando dos pretos rosários, estamos chegando dos nossos terreiros, dos santos malditos nós somos, viemos dançar.

Estamos chegando do cl1áo da oficina, estamos chegando do som e das formas, da arte negada que somos, viemos criar.

Estamos chegando do fundo do medo, estamos chegando das surdas correntes, um longo lamento nós somos, viemos louvar.

A DE O (Recitado)

Do Exílio da vida, das Minas da Noite, da carne vendida, da Lei do açoite, do Banzo dos mares. aos novos Albores! vamos a Palmares todos os tambores!!!

Estamos chegando dos ricos fogões, estamos chegando dos pobres bordéis, da carne vendida nós somos, viemos amar.

Estamos chegando das velhas senzalas, estamos chegando das novas favelas, das margens do mundo nós somos, viemos dançar.

Estamos chegando dos trens dos subúrbios, estamos chegando nos loucos pingentes, com a vida entre os dentes chegamos, viemos ·cantar.

Estamos chegando dos grandes estádios, estamos chegando da escola de samba, sambando a revolta chegamos, viemos gingar.

 

A DE O (Recitado)

Estamos chegando do ventre das Minas, estamos chegando dos tristes mocambos, dos gritos calados nós somos viemos cobrar.

Estamos chegando da Cruz dos Engenhos, estamos sangrando a cruz do Batismo, marcados a ferro nós fomos, viemos gritar.

Estamos chegando do alto dos morros, estamos chegando da lei da Baixada, das covas seu nome chegamos, viemos clamar.

Estamos chegando do chão dos Palmares, estamos chegando do som dos tambores, dos Novos Palmares nós somos, viemos lutar.

(Coro — Cantado)

Em nome do Deus de todos os nomes

— Javé

Obatalá

Olorum

Oió.

Em nome do Deus, que a todos os Homens nos faz da ternura e do pó.

Em nome do Pai, que faz toda carne, a preta e a branca, vermelhas no sangue.

Em nome do Filho, Jesus nosso irmão que nasceu moreno da raça de Abraão.

Em nome do Espirito Santo, bandeira do canto do negro folião.

Em nome do Deus verdadeiro que amou-nos primeiro sem dividição.

Em nome dos Três, que são um Deus só, Aquele que era, que é, que será.

Em nome do povo que espera, na graça da Fé, à voz do Xangó, o Quilombo-Páscoa que libertará.

Em nome do Povo sempre deportado pelas brancas velas no exílio dos mares; marginalizado nos cais, nas favelas e até nos altares.

Em nome do Povo que fez seu Palmares, que ainda fará Palmares de novo

— Palmares, Palmares, Palmares do Povo!!!

 

III. RITO PENITENCIAL

(Coro — Cantado)

Kyrie eleison Christe eleison, Kyrie eleison.

Alma não é branca luto não é negro, negro não é tolk.

Kyrie eleison.

— Senhor do Bonfim do bom começar: não seja a alegria apenas de um dia; não seja a folia para desfilar na avenida sua. Que seja, por fim, a tua Alforria e nossa a rua, Senhor do Bonfim!

Kyrie eleison, Christe eleison, Kyrie eleison.

(Recitado)

Da raça maldita gratuitamente, a raça de Cam. Secular estigma da escrava Agar, Mãe espoliada, Ismael dos Povos, denegrida África.

(Coro Negro — Cantado)

Terras de Luanda,

Costa do Marfim,

Reino de Guiné,

Pátria de Aruanda

Awa de’

(Estamos aqui)

(Recitado)

Carne em toneladas, fardos de porão. Quota da Coroa ficha de Batismo, marcados a ferro para a Salvação. Entregues à Morte, sendo Cristo a vida. Humanos leilões, peças de cobiça, 300 milhões de africanos mortos na Segregação. Caça das Bandeiras, do Esquadrão da Morte. Exus do destino, capitães-de-mato.

Quantos Jorge Velho de todos os Lucros, de todos os Tempos, de todas as Guardas! Quantas Áureas Leis da Justiça Branca!

(Coro Branco — Cantado)

Queimamos, de medo – do medo da História – os nossos arquivos.

Pusemos em branco

a nossa memória.

(Recitado)

Cultura à margem.

Culto condenado,

Fé de freguesia,

Giro tolerado,

Revolta ignorada,

História mentida.

Ressaca dos Portos,

Harlem dos Impérios,

Apartheid em casa,

favela do mundo. Com "direito a enterro", sem direito à vida. Pelourinhos brancos, flagelados pretos. Negro sem emprego, sem voz e sem vez, sem direito a ser, a ser e a ser Negro.

Dobrados nos eitos os peitos quebrados. Os peitos sugados por filhos alheios, senhores ingratos. Bebês imolados pelas Anas Paes. Testas humilhadas nas águas dos cais. Bronze incandescente nas bocas dos tornos. Peões de fazenda, pé de bóia-fria artista varrido no pó da oficina garçom de boteco, sombra de cozinha, mão de subemprego, carne de bordel... Pixotes nas ruas caçados nos morros mortos no xadrez!

Negro embranquecido pra sobreviver. (Branco enegrecido para gozação). Negro embranquecido, morto mansamente pela integração.

(Coro Negro — Cantado)

Mulato iludido, fica do teu lado, do lado do negro. Não faças, Mulato, a branca traição.

(Recitado)

Padres estudados,

Pastores ouvidos,

Freiras ajeitadas,

Doutores da sorte,

Cantores de turno,

Monarcas de estádio.

Não negueis o Sangue,

o grito dos Mortos,

o cheiro do Negro,

o aroma da Raça,

a força do Povo,

a voz de Aruanda,

a volta aos QUILOMBOS!

(Solo — Cantado)

— Bom Jesus de Pirapora, na procura desta hora, tem piedade de nós.

(Coro)

— .Kyríe eleison!

(Solo — Cantado)

Senhor Morto, Deus da Vida, nesta luta proibida, tem piedade de nós.

(Caro)

— Christe eleison!

(Solo — Cantado)

Irmão Mor da Irmandade,

na Paixão da Liberdade,

tem piedade de nós.

(Coro)

— Kyrie eleison

 

IV. ALELUIA

(Coro — Cantado)

Aleluiá, aleluiá, aleluiá!

Fala, Jesus, Palavra de Deus:

Tu tens a palavra!

AIeIuiá...

Irmão que fala a Verdade aos Irmãos. dá-nos tua nova Libertação. Quilombolas livres do lucro e do medo, nós viveremos o teu Evangelho, nós gritaremos o teu Evangelho!

Aleluiá.

Nenhum poder

nos calará!

Aleluiá, aleluiá, aleluiá!

Contra tantos mandatos do Ódio,

Tu nos trazes a Lei do Amor.

Frente a tanta Mentira

Tu és a Verdade, Senhor.

Entre tanta notícia de Morte,

Tu tens a Palavra da Vida.

Sob tanta promessa fingida, sobre tanta esperança frustrada, Tu tens, Senhor Jesus, a última palavra. E nós apostamos em Ti!!!

Aleluia...

A tua Verdade nos libertará.

Aleluiá...

 

V. OFERTÓRIO

(Recitado)

Na cuia das mãos trazemos o vinho e o pão, a luta e a fé dos irmãos, que o Corpo e o Sangue do Cristo serão.

(Recitado)

O ouro do Milho

e não o dos Templos,

o sangue da Cana

e não os Engenhos,

o pranto do Vinho

no sangue dos Negros,

O Pão da Partilha

dos Pobres Libertos.

(Recitado)

Trazemos no corpo o mel do suor trazemos nos olhos a dança da vida, trazemos na luta, a morte vencida. No peito marcado trazemos o Amor. Na Páscoa do Filho a Páscoa dos filhos recebe, Senhor.

(Solo — Cantado)

Trazemos nos olhos,

as águas dos rios,

o brilho dos peixes,

a sombra da mata,

o orvalho da noite,

o espanto da caçá,

a dança dos ventos,

a lua de prata,

trazemos nos olhos

o mundo, Senhor!

(Recitado)

Na palma das mãos trazemos o milho, a cana cortada, o branco algodão,

o fumo-resgate, a pinga-refúgio, da carne da terra moldamos os potes que guardam a água, a flor de alecrim, no cheiro de incenso, erguemos o fruto do nosso trabalho, Senhor! Olorum!

(Solo — Cantado) O som do atabaque marcando a cadência dos negros batuques nas noites imensas da África negra, da negra Bahia, das Minas Gerais, os surdos lamentos, calados tormentos, acolhe Olorum!

(Recitado)

— Com a força dos brancos lavramos a terra cortamos a cana, amarga douçura na mesa dos brancos.

— Com a força dos braços cavamos a terra colhemos o ouro que hoje recobre a igreja dos brancos.

— Com a força dos braços plantamos na terra, o negro café, perene alimento do lucro dos brancos.

— Com a força dos braços, o grito entre os dentes, a alma em pedaços, erguemos impérios, fizemos a América dos filhos dos brancos!

(Coro — Cantado)

A brasa dos ferros lavrou-nos na pele, lavrou-nos na alma, caminhos de cruz.

Recusa Olorum o grito, as correntes e a voz do feitor, recebe o lamento, acolhe a revolta dos negros, Senhor!

(Recitado)

— Trazemos no peito os santos rosários, rosários de penas rosários de fé, na vida liberta, na paz dos quilombos de negros e brancos vermelhos no sangue. A Nova Aruanda dos filhos do Povo acolhe, Olorum!

(Recitado)

Recebe, Senhor a cabeça cortada do Negro Zumbi, guerreiro do Povo, irmão dos rebeldes nascidos aqui, do fundo das veias, do fundo da raça, o pranto dos negros, acolhe, Senhor!

(Coro — Cantado)

Os pés tolerados na roda de samba,

o corpo domado nos ternos do congo,

inventam na sombra a nova cadência,

rompendo cadeias, forçando caminhos,

ensaiam libertos

a marcha do Povo,

a festa dos negros, acolhe, Olorum!

(Estribilho)

 

VI. O SENHOR SANTO

(Coro Cantado)

O Senhor é Santo, O Senhor é Santo,

O Senhor é Santo.

O Senhor é o só Senhor.

Todos nós somos iguais.

Oxalá o Reino do Pai

seja sempre o nosso Reino.

O Senhor é Santo...

O Reino nos vem

em Cristo Rei Salvador.

O Reino se faz

no Povo Libertador.

Hosana, Hosana, Hosana.

 

VII. RITO DA PAZ

(Coro — Cantado)

Saravá, A-i-é

Abá.

A Paz d’Aquele, que é nossa Paz!

A louca esperança de ver todo irmão

caindo na dança da vida, cantando vencida toda Escravidão!

Vai ser abolida

a paz da Abolição

que agora temos.

E contra a paz cedida,

a Paz conquistada teremos!!!

Saravá, do novo Quilombo de amanhã.

A-i-é dessa «festa de todos, que virá!

 

(À maneira de um Pregão)

 

— Aos treze de maio de mil-oitocentos-e-oitenta-e-oito, nos deram apenas decreto em palavras. Mas a Liberdade vamos conquistá-la!

(Coro — Cantado)

A-i-é

A paz d’Aquele, que é nossa Paz!

Abá,

a Paz que o Povo fará!

Palmares das lutas da Libertação. Palmeiras da Páscoa da Ressurreição.

Saravá, A-i-é, Abá!!!

 

VIII. COMUNHÃO

(Recitado)

Bebendo a divina bebida do teu Sangue Limpo, Senhor, lavamos as marcas da vida, libertos na Lei do Amor.

Comendo a carne vivente do Teu Corpo morto na Cruz, vencemos a Morte insolente na vida mais forte, Jesus.

Nutrindo a luta na Aliança e a Marca em teu novo Maná, queremos firmar a Esperança da Aruanda que um dia virá.

Ara wara kosi mi tara.

Todos unidos num mesmo Corpo, nada no mundo nos vencera.

Todos unidos em Cristo Jesus, Oxalá!

Ara wara kosi mi fara.

(Solo — M)

— Partilha diária em mesa de irmãos. Porque não é livre quem não tem seu pão. (Soto — F)

— Partilha constante, na festa e na dor. Porque não é livre quem não sente amor.

(Solo — M)

Partilha fraterna de bantus iguais. Porque não é livre quem junta demais.

(Solo — F)

— Partilha de muitos unidos na fé. Porque não é livre quem não é o que é.

(Solo — M)

— Partilha arriscada de vir a perder. Porque não é livre quem teme morrer. (Solo — F)

— Partilha segura da Libertação, que o Cristo partilha a Ressurreição.

Ara wara kosi mi fara, etc.

 

IX. LADAINHA

(Leitor)

— Unidos ã procura dos quilombos da libertação, celebramos a «memória perigosa» da Páscoa de Jesus, comungando a força do Seu Corpo Ressuscitado. Recolhemos na mesma Comunhão o trabalho, as lutas, o martírio do Povo Negro de todos os tempos e de todos os lugares.

E invocamos sobre a caminhada, a presença amiga dos Santos, das Testemunhas, dos militantes, dos Artistas, e de todos os construtores anônimos da Esperança Negra.

(Solo — Contado)

Porque está na hora pedimos o auxilio de todos os santos, chamamos a força dos mortos na luta porque está na hora, o jeto dos mestres da reza e do canto; porque está na hora, cantamos malembes pra Nossa Senhora.

(Coro — Cantado)

Caô — Cabê em si — lobá

Todos os santos nos vão ajudar!

(Recitado)

(Voz — M)

— Zumbi dos Palmares, Patriarca mártir de todos os Quilombos de ontem, de hoje e de amanhã.

(Voz — F)

— Dragão do Mar, Francisco José do Nascimento, João Cândido que a chibata não dobrou, Pedro Ivo sombra dos Praieiros pernambucanos, Angelim dos Cabanos madeira da Resistência e todos os rebeldes do Povo, na Terra e no Mar.

(Voz — M)

(Voz — F)

            Haussás, Nagôs e Alfaiates da Negra Bahia, e todos os Grupos e movimentos Negros que reivindicam o Futuro.

(Voz — M)

— Arturo Alfonso Schomburg, memória "do Povo sem História", voz libertária do Caribe. (Voz F)

— Lumumba, tambor-tempestade da África levantada.

(Voz — M)

— Chimpa-Vita, Beatriz do Congo, bandeira em chamas das negras-coragem, e todas as mães-pretas arrancadas da pedra morta para as lutas da vida! E todas as Marlys das baixadas desmascarando o rosto dos assassinos, e todas as anônimas heróicas comadres negras, eixo fecundo da Sobrevivência da Raça.

(Voz — F)

Negrinho do Pastoreio, anjo dos vaqueiros das redes perdidas e todos os guias negros das causas do Povo.

(Voz — M)

— Crianças de Soweto e de Atlanta, massacres da prepotência racial, colheita prematura da Juventude Negra.

(Voz — F)

— Santeiro Aleijadinho, entalhador dos Santos do Povo.

(Voz — M)

— Louis Armstrong e todos os metais e todas as cordas e todos os Negros Spirituals da América Negra.

(Voz — F)

— Amilcar Cabral, pai educador da Liberdade Africana.

(Voz — M)

— James Meredith, paixão matinal e todos os estudantes dos campos e das ruas que marchais abrindo História.

(Voz — F)

— Solano Trindade e todos os poetas da madeira, da palavra e da alma negra nunca embranquecida.

(Voz — M)

— Santo Dias, Companheiro, suor e sangue da Periferia, mártir na cruz das Empresas, e todos os retirantes, lavradores, bóias—frias e operários, construtores do Sindicato livre e da Comunidade Fraterna.

Caô...

(Voz — F)

— Santos Reis dos presentes da terra e do culto, peregrinos incansáveis á luz da estrela, atrás do Menino.

(Voz — F)

— São Benedito irmão acolhedor dos pedidos dos Pobres.

(Voz — F)

— Santo Agostinho, mente e coração da África Mãe.

(Voz — M)

São Martinho de Lima, porteiro solicito da América Negra.

(Voz — F)

— Santa Efigênia, discípula do Apóstolo e congregadora de virgens.

(Voz — M)

— São Pedro Claver, escravo fraterno

dos escravos negros.

(Voz — F)

— São Gonçalo de Amarante, peregrino e evangelizador dos Pobres.

(Voz — M)

— São Cosme e Damião, curadores do povo sofredor.

(Voz — F)

— Valência Cano, mártir bom pastor do Litoral Negro, Irmão Lourenço de Nossa Senhora, garimpeiro do Evangelho, ermitão da Comunidade.

Frei Gregório de José Maria, deportado para o Amazonas, Padre Canabarro, vigário comprometido no Sul e todos os pastores, romeiros, missionários, ermitães e confrades devotados ao pranto e á Esperança do Povo Negro.

(Voz — M)

— Santo Onofre, anacoreta da longa solidão.

(Voz — F)

— Carlos Lwanga e companheiros Mártires de Uganda.

(Voz — M)

 Martim Luther King, pastor na vida e na morte, voz permanente da marcha da Libertação e todos os mártires da Paz perseguida.

(Coro – Cantado)

Caô...

 

X. LOUVAÇÃO A MARIAMA

(Coro — Cantado)

— Mariama lya, lya, ô, Mãe do Bom Senhor!

Maria Mulata, Maria daquela colônia favela, que foi Nazaré.

Morena formosa,

Mater dolorosa,

Sinhá vitoriosa,

Rosário dos pretos mistérios da Fé.

Mãe do Santo, Santa, Comadre de tantas, liberta mulhé.

Pobre do Presépio, Forte do Calvário,

Saravá da Páscoa de Ressurreição,

Roseira e corrente do nosso Rosário,

Fiel Companheira da Libertação.

Por teu Ventre Livre, que é o verdadeiro, pois nos gera livres no Libertador, acalanta o Povo que está em cativeiro, Mucama Senhora e Mãe do Senhor.

Canta sobre o Morro tua Profecia que derruba os ricos e ·os grandes, Maria.

Ergue os submetidos, marca os renegados, samba na alegria dos pés congregados.

Encoraja os gritos, acende os olhares, ajunta os escravos em novos Palmares.

Desce novamente ás redes da vida do teu Povo Negro, Negra Aparecida!!!

 

Xl. MARCHA FINAL

(Música de Banzo e de Esperança) (Recitado)

— Banzo da Terra que será nossa, banzo de todos na Liberdade, banzo da vida que vai ser outra banzo do Reino, maior saudade em luta do Amanhã, vontade da Aruanda que uni dia virá! Saudade da Terra e dos Céus, o banzo do Homem, saudade de Deus.

(Recitado)

Trancados na Noite Milênios afora forçamos agora, as portas do Dia. Faremos um Povo de igual Rebeldia. Faremos uni Povo de bantus iguais.

Faremos de todos os lares fraternas senzalas sem mais. Faremos a Negra Utopia do novo PALMARES na só Casa Grande dos filhos do Pai.

Os Negros da África

os afros da América

os Negros do Mundo,

na Aliança com todos os Pobres da Terra.

Seremos o Povo dos Povos:

Povo resgatado, Povo aquilombado, livre de senhores, de ninguém escravo, senhores de nós, irmãos de senhores, filhos do Senhor!

(Recitado)

Sendo Negro o Negro, sendo índio o índio, sendo cada um como nos tem feito a mão de Olorum.

(Recitado)

Seremos Zumbis, construtores dos novos QUILOMBOS queridos. Nos muros remidos da nossa Cidade, nos Campos, por fim repartidos, na Igreja do Rei, de novo do Povo, seremos a Lei da nova Irmandade, Iremos vestidos das palmas da vida. Teremos a cor da Igualdade. Seremos a exata medida da humana feliz dignidade.

Berimbaus da Páscoa marcarão o pé, o pé quilombola do novo Toré. Pela Terra inteira juntos dançaremos nossa Capoeira. Seremos bandeira, seremos foliões. No Novo Israel plantaremos as tendas dos filhos do Santo. Os prantos, os gritos, unidos num canto de irmãos corações, na luta e na festa do ano inteiro.

(Recitado)

No rosto de todos os homens sinceros, a marca da tribo de Deus, o Sangue sinal do Cordeiro.

(Recitado)

E à espera do nosso Quilombo total

— o alto Quilombo dos céus —, os braços erguidos, os Povos unidos serão a muralha ao Medo e ao Mal, serão valhacouto da Aurora desperta nos olhos. do Povo, da Terra liberta no QUILOMBO NOVO!!!

(Música final)

^ Subir

1982 | 1983 | 1984 | 1986 | 1988 | 1990 | 1992 | 1994 | 1996
1998 | 2000 | 2002 | 2004 | 2006 | 2008 | 2010 | 2112

Desde 1995 © www.dhnet.org.br Copyleft - Telefones: 055 84 3211.5428 e 9977.8702 WhatsApp
Skype:direitoshumanos Email: enviardados@gmail.com Facebook: DHnetDh
Google
DHnet
MNDH 30 Anos
MNDH Encontros de Direitos Humanos
MNDH Encontros Regionais
MNDH Encontros Estaduais
MNDH Entidades Filiadas
MNDH Militantes
MNDH Multimídia
Sistemas Internacionais de Direitos Humanos
Sistema Nacional de Direitos Humanos
Sistemas Estaduais de Direitos Humanos
História dos Direitos Humanos no Brasil - Projeto DHnet
Projeto Brasil Nunca Mais
Direito a Memória e a Verdade
Rede Brasil de Direitos Humanos