Fiquei afetivamente amarrada': Andrea Beltrão faz peça sobre advogada de presos políticos na Ditadura
CBN SP, Amada Mazzei, 18.01.2024
Em entrevista ao Estúdio CBN, Andrea Beltrão fala sobre sua peça em cartaz, 'Lady Tempestade'. A atriz destaca admiração por advogada que lutou na Ditadura Militar e relembra alegria de trabalhar em Tapas & Beijos com Fernanda Torres.
Por Amanda Mazzei, CBN — São Paulo
"Quando a Yara de Novaes me disse 'vamos fazer uma peça sobre essa mulher', eu fiquei muito encantada. Eu estava muito admirada com a coragem dela, com tudo que ela fez na vida, mas não fiquei muito… animada, risos. Porque eu tinha acabado de fazer Antígona, e eu queria fazer uma coisa um pouco diferente. Não queria fazer agora a 'filha' da Antígona. Mas, depois de ler aquele diário, ficou impossível fingir que não tinha lido o que eu li. Impossível esquecer e fazer outra coisa. Eu fiquei, da melhor maneira possível, presa. Fiquei afetivamente amarrada à obra dela." |
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A mulher de quem a premiada atriz, produtora, diretora, roteirista e comediante Andréa Beltrão, 60, está falando é Mércia Albuquerque, a 'advogada dos mil casos'. Mércia salvou presos políticos durante a Ditadura Militar brasileira. 'É a pessoa que tirou mais de mil pessoas da cadeia. A Mércia era uma humanitária, uma humanista em último grau.'
Em entrevista ao Estúdio CBN, Andreia conversa com as âncoras Tatiana Vasconcellos e Marcella Lourenzetto sobre sua peça em cartaz no Teatro Poeira, no Rio de Janeiro -- em que trabalha, inclusive, com o filho Chico BF. Dirigida por Yara de Novaes e com roteiro de Silvia Gomez, 'Lady Tempestade' conta a história de Mércia Albuquerque, que apesar de ter estudado Direito, havia decidido viver como professora de crianças. 'Ela tinha questões em ver pessoas mortas, machucadas, baleadas.'
A vida de Mércia mudou completamente, porém, quando aconteceu o golpe militar. 'No dia 2 de abril de 1964, ela vê Gregório Bezerra, que foi um grande líder comunista, ser preso de cueca. Ele estava todo amarrado, machucado por conta de torturas, e foi arrastado por um jipe pelas ruas de Casa Forte, que é um bairro do Recife. A partir desse episódio assombroso, ela decide então se dedicar à defesa de Gregório e de quem mais precisasse dela.'
"Tirou mais de mil pessoas da cadeia"
"Mércia é conhecida como a advogada dos mil casos. Tirou mais de mil pessoas da cadeia, salvou muitas vidas. Ela tem uma participação importantíssima no episódio do José Carlos Novaes da Mata Machado, que era um líder estudantil de Belo Horizonte que foi assassinado e enterrado com identidade desconhecida, e ela conseguiu exumação do corpo, e então a família enterrou o corpo.
É uma advogada da qual eu nunca tinha ouvido falar. Fiquei conhecendo a Mércia através da Yara, a diretora dessa peça, porque a Yara foi fazer um filme justamente sobre a história do Zé Carlos, e nesse filme aparecia um trecho sobre a Mércia. Yara foi atrás da história da Mércia, descobriu que ela tinha deixado um diário que tinha sido escrito entre 1973 e 1974 -- um período sombrio, terrível, de muitas torturas e desaparecimentos. Yara conseguiu acesso a esse diário e a gente leu.
A Mércia é foi uma pessoa extraordinária, conhecida como uma heroína destemida, uma advogada das liberdades e uma mulher muitíssimo bem-humorada. Eu acho que determinadas pessoas que tem uma coragem notória, estranha, totalmente diferente de mim, por exemplo -- eu não sei se eu teria a coragem da Mércia, de enfrentar o que ela enfrentou, de ver as coisas que ela viu --, quando eu me deparo com uma figura como ela, me soa natural que eu a chame de heroína. Mas eu duvido que ela se visse como tal.
A Mércia, nos diários, se coloca o tempo todo não como uma heroína, mas como alguém que está trabalhando. Ela é uma advogada, ela tem ferramentas para fazer com que as coisas tomem outro caminho, para que certas injustiças não sejam cometidas.
O recorte que a Silvia Gomez, a Yara de Novaes e eu escolhemos para a vida da Mércia na peça é a relação dela com mães, pais e filhos de desaparecidos. Essas mães que têm um olhar suplicante, vidrado, de 'onde está meu filho? Me deem notícias'.
A vida da Mércia foi totalmente negligenciada em prol da vida dos outros. Ela diz que faltou muito ao próprio filho, ao marido, é uma vida de visões e escolhas muito difíceis, muita cisão afetiva."
"Não escolhemos fazer 'Lady Tempestade' por conta dos 60 anos do golpe"
"A Silvia Gomez teve uma sacada muito genial para a peça, que é: uma mulher recebe esse diário. E essa mulher fica com aquele diário e pensa: 'o que eu faço com isso?', 'eu não queria ter recebido isso, não quero ficar me lembrando do passado, queria esquecer tanta coisa'. E ela fica em um dilema, em um desespero.
Acho que essa personagem sou eu e somos todos nós de certa maneira, as pessoas que se afetam com essa história. A personagem dessa mulher, que a gente poderia chamar de narradora e interlocutora da Mércia e de todos nós, representa um pouco a angústia que eu sinto em relação a esse assunto.
No começo, eu ficava muito aflita, pensando: como tratar desse assunto de maneira respeitosa, sóbria, mas também com afeto, alguma leveza, alguma esperança de alguma coisa? E foi bom, algumas pessoas disseram que não sofreram durante a peça, mas se emocionaram. Esse é um bom lugar que acho que a peça conseguiu.
No meio dos ensaios alguém disse para nós: 'vocês sabiam que esse ano se completam 60 anos do golpe militar?' E a gente falou que não. Ficamos surpresas e com medo de que parecesse que estávamos fazendo uma peça aproveitando essa efeméride, essa data terrível. O teatro conta uma história, ele não faz uma retratação. Em nenhum momento tivemos a pretensão de fazer um marco desses 60 anos. Foi uma coincidência quase inocente. A gente queria falar da Mércia e a Mércia veio com tudo isso... e muito mais."
"Gosto de ler livros de mil páginas para mais"
"Se eu vou fazer um filme, uma peça ou uma novela, se tenho uma história para contar e uma personagem para vivenciar, tudo o que me leva a inaugurar o que penso sobre essa personagem, a construir como ela é, parte do mesmo lugar: muita leitura.
Eu sou uma leitora voraz, adoro livros. A Fernanda Torres estava comentando que ela gosta de livros imensos, e eu também. Só gosto de livro que você tem que apoiar na almofada para ler. Amo coisas de mil páginas para mais. É nos livros que eu pego muita coisa [para os personagens]. No jornal também, guardo colunas que leio. Ouço muito rádio, muita música. Tenho uma coisa muito solitária na preparação, de ficar lendo aquele texto e imaginando, pensando sozinha, em silêncio. Vou à praia, jogo bola, nado, penso. Gosto muito dessa busca solitária e sem saber o que vai dar."
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