Andréa Beltrão e a peça Lady tempestade
Sérgio Abranches, 07.01.2024
Andrea Beltrão espera, paciente, que a sala do Teatro Poeira se encha. Cumprimenta os conhecidos. Faz o papel de anfitriã, sem perder a concentração. Sabe-se que é assim, quando ela inicia Lady Tempestade, depois de pedir de forma bem-humorada que desliguem os celulares, sem interrupção, em um contínuo que vai da recepção à encenação.
É uma peça forte, baseada nos diários da advogada pernambucana de presos políticos Mércia Albuquerque Ferreira. Quem viveu aqueles tempos sombrios e infames dos anos 1973-1974 conseguia identificar algumas das vítimas da ditadura dos casos que Mércia cuidou, sempre indignada.
Lady Tempestade é muito mais do que um monólogo que recita as entradas no diário de Mércia. É uma apropriação dramática e dramatúrgica, que se transforma em diálogo e conversa com a plateia. Andrea Beltrão é duas, A. e Mércia. Em muitos momentos, ela se torna polifônica, podemos ouvir muitas vozes, algumas se materializam no silêncio ou no olhar de A. ou de Mércia.
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Andrea Beltrão cria um ambiente tenso para uma narrativa forte que emerge da conversa. A reconstrução dos sequestros, das torturas e assassinatos nos porões das dependências do Estado brasileiro tem momentos impressionantes. É impossível não se emocionar com o que se ouve, em silêncio reverente. O teatro tem esse mistério, essa magia, ele é muito próximo e, ao mesmo tempo, promove o distanciamento crítico. Desde a tragédia grega, onde o distanciamento é dado pelo deslocamento espacial. A plateia está em Atenas, mas a tragédia se desenrola em Tebas, o outro lugar. Aqui, o distanciamento ocorre no diálogo com o filho, nos pequenos detalhes de trocar de sapatos, afastar o sofá, a linguagem corporal. É teatro, nos diz a consciência. Mas o que está ali encenado é real.
Há um momento em que a cena conversa com Antígona, uma família tem o direito de enterrar seu filho, ouve-se. Antígona, como sabemos, assume o papel da mãe ao assumir a responsabilidade e o direito de enterrar o irmão. Novamente, uma mulher, no caso de Lady Tempestade, volta-se para o representante do Estado para falar do direito natural, inviolável, de uma família enterrar os seus. Andrea sabe, foi Antígona e, agora, é Lady Tempestade.
A peça abre a temporada, nas artes e na cultura, de remembramento dos desmandos da ditadura. É necessário relembrar para que não nos esqueçamos jamais. Em 2024, completam-se 60 anos do golpe que levou à sangrenta ditadura militar. Neste 8 de janeiro de 2024, completa-se um ano da tentativa de golpe urdida no governo Bolsonaro. Foi um alerta de que eles estão ainda por aí, rondando como hienas a democracia, esperando que ela mostre seu lado frágil para atacar. A punição dos autores intelectuais, dos mentores da tentativa de golpe e de seus financiadores, além dos seguidores que executaram a invasão e depredação dos prédios dos Três Poderes, é essencial para blindar a democracia. Fazer o que não fizeram com os crimes dos anos de chumbo. Mércia, diz a um torturador que a ditadura acabaria… e ela ainda o veria no tribunal respondendo por seus crimes. Não aconteceu ainda.
Lady Tempestade é teatro de qualidade. Texto e encenação. Cenografia, sonoplastia e direção. É, também, vou usar um termo ultrapassado, engajado. Nada tenho contra a arte, o teatro, a literatura engajada. É diferente de panfletária. Lady Tempestade é engajada e nada panfletária. Está no Teatro Poeira, em Botafogo, até 4 de fevereiro. Imperdível.
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