Sua trajetória de vida, trilhando este campo minado em que abundavam as perseguições políticas e as prisões, era lidar com pessoas que haviam sofrido torturas físicas e psicológicas, que estavam marcadas nos seus corpos e almas, e também com os familiares, amigos ou colegas de trabalho que passavam por aqueles martírios; ouvir os lamentos trágicos de mães, pais, irmãos, amigos, desesperados pelos assassinatos dos quais se inteiravam ou pelo desespero de não saber se seus entes queridos estavam mortos ou desaparecidos, se poderiam ter pelo menos a certeza da dolorosa informação de que tal pessoa estava morta e que seu corpo poderia ser sepultado, ainda que mutilado pelos torturadores que ela encontrava no dia a dia ou que ameaçavam fazer com ela o que faziam com suas vítimas; apaziguar o choro de mães aos gritos ou sem força para expelir mais lágrimas.
Ouvir os relatos das torturas dos sobreviventes daquele inferno era quase uma vitória naquela guerra suja. Ouvir testemunhos ou súplicas dos torturados ou dos familiares, às vezes de diferentes famílias, era coisa de todos os dias. Dra. Mércia sobreviveu para contar parte desta história trágica depois que morreu. Deixou um diário que mostra o sofrimento não apenas das pessoas que ela defendia, mas os padecimentos, as dúvidas, as dores, os medos, que ela carregava e registrava num diário, que pode ter incorreções, e mesmo algumas injustiças, pois num diário não se tem o tempo da apuração da verdade e dos fatos, mas apenas o registro do momento que sobrou entre uma dor e outra para dizer: estou viva e foi isto que senti no momento em que escrevo.
Apegar-se a um cliente preso ou a um familiar é apegar-se às suas dores e sofrimentos.
Dra. Mércia deixa um Diário, raro para quem vive com tamanha intensidade de riscos e em empatia com as dores alheias. Bertolt (Berthold) Brecht dizia não ser fácil ser bom e viver em tempos sombrios ao mesmo tempo... Estes escritos de Mércia constituem uma espécie de memorial da resistência democrática contra a ditadura militar e civil e em favor dos direitos humanos, memorial este composto pelo Diário, por várias cartas e por documentos pessoais e aqueles ligados às centenas de processos nos quais atuou. O levantamento da sua atuação profissional e suas lutas em defesa dos presos políticos, inclusive em seus “bastidores”, pode servir de inspiração e polo de aglutinação não apenas no contexto nordestino, mas também no âmbito nacional, devendo fomentar um amplo trabalho de levantamento retrospectivo da atuação de muitos outros advogados do Brasil, e como importante iniciativa no resgate da memória das lutas contra a ditadura.
Vale salientar que grande parte dos textos da Dra. Mércia, ora reunidos num mesmo espaço crescente, já esteve disponível “online”, mas passou recentemente por uma ampla revisão editorial que resgatou textos inéditos e procurou elucidar passagens pouco claras e referências incompletas, sem prejuízo do acesso aos originais, que estarão disponíveis para consulta nos arquivos da DHnet e em outras bases de dados.
Além do Diário ela deixou centenas de cartas recebidas e escritas, onde novamente emerge como sobrevivente de um mundo trágico, que marca definitivamente o corpo e alma de maneira que a vida se funde na dor, se oculta nas lágrimas entre as inalações de quem está nos estertores da morte. Mércia foi mãe amiga e companheira daqueles com quem dividiu seu amor, suas dores, suas dúvidas e angústias, sem deixar de acreditar que é preciso continuar, ainda que a esperança seja pequena e que as luzes sejam vindas de pequenas frestas por um tempo diminuto.
Dra. Mércia defendeu centenas de presos e presas políticas, acompanhou e sofreu as dores desses clientes e de seus familiares e, principalmente, defendeu a Democracia e a Liberdade, e não apenas para essas pessoas com quem compartilhava esses momentos sombrios, que não podem ser esquecidos jamais e que foram registrados e resgatados por ela nos momentos em que sua vida, seu trabalho e seu amor, pelo filho Aradin e pelo companheiro Octávio, se confundiam num só existir.
Perly Cipriano é militante político desde 1960; coordena o Centro Cultural Triplex Vermelho.
Nilmário Miranda, Assessor Especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade no Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania do governo Lula
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