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EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS

11 de setembro de 2000 - Auditório Nereu Ramos - Câmara dos Deputados 

Embaixador GILBERTO VERGNE SABOIA

Secretário de Estado dos Direitos Humanos

Gostaria de iniciar com os agradecimentos devidos à Comissão de Direitos Humanos e à Comissão de Educação, Cultura e Desporto, da Câmara dos Deputados, representadas aqui pelos seus Presidentes, Deputado Marcos Rolim e Deputado Pedro Wilson, assim como a todas as organizações que estão promovendo e apoiando este evento. Trata-se de iniciativa que exemplifica o desenvolvimento de uma cultura de direitos humanos no Brasil, que se expande para além do Estado e das instituições, e que passa a integrar o conjunto dos temas de interesse da sociedade, ainda que de forma pulverizada, em pólos de irradiação.

O Brasil, como é do conhecimento de todas as senhoras e senhores, enfrenta graves problemas no campo da proteção dos direitos humanos. A Alta Comissária das Nações Unidas para Direitos Humanos, Senhora Mary Robinson, em visita que fez ao Brasil em junho último, referindo-se à defesa dos direitos humanos no Brasil, apontou o ‘reconhecimento’ dos problemas enfrentados como um dado importante. Segundo informou, há muitos países que têm dificuldade em reconhecer problemas relacionados a direitos humanos. O Brasil, ao contrário, reconhece os problemas que enfrenta e, sobretudo, a necessidade de superá-los.

Nesse sentido, a visita do Relator Especial das Nações Unidas para a Tortura, Senhor Nigel Rodley, agora em seus momentos finais, tem oferecido alguns indícios sobre os problemas que dificultam a ‘efetivação’ de direitos humanos no Brasil. E são problemas cuja solução não depende apenas de certas medidas, sejam de natureza legislativa ou sejam políticas públicas. São problemas mais profundos, de natureza estrutural, cujas raízes se estendem à história de nossa formação social, em que a força e o poder coercitivo que a Constituição e as leis conferem ao Estado foram freqüentemente exercidas em arrepio dos princípios da igualdade de todos perante a lei. No caso da tortura, por exemplo, a visita do relator das Nações Unidas serviu para nos mostrar que a edição da Lei nº 9.455/97, que tipifica o crime de tortura, não foi suficiente para eliminar o problema. Foi apenas o primeiro passo.

Os passos subseqüentes dependem da aplicação efetiva da lei por todos os agentes que têm a responsabilidade de fazê-lo. Somente a aplicação integral, eqüitativa e abrangente da lei pode demonstrar a existência de recursos institucionais capazes de promover a justiça e defender os agredidos pelos atos de tortura, punindo não só os torturadores mas, também, como determina a lei, agentes do Estado que, tendo a obrigação de faze-lo, não impediram nem denunciaram os atos de tortura ou tratamento desumano e cruel. Infelizmente, no Brasil, os órgãos encarregados de oferecer esses recursos ainda não estão suficientemente equipados ou, em certos casos, demonstram até mesmo hesitação em dar cumprimento eficaz e pronto ao processamento de violações, o que resulta em alto grau de impunidade. O conjunto dos cidadãos não percebe com clareza que a justiça se faz conforme a lei, desenvolvendo-se a percepção de impunidade e de ineficácia do sistema policial e judiciário.

Nesse sentido, é grande a expectativa da sociedade brasileira com relação à reforma do Poder Judiciário, em tramitação nesta casa, para que venha a conferir maior agilidade e eficiência à aplicação da justiça. O dispositivo da reforma que determina a federalização dos crimes graves contra direitos humanos nos casos em que os órgãos competentes se mostrem incapazes de promover, dentro de um prazo aceitável, o devido processo legal é, a meu ver, mecanismo extremamente importante para debelar a impunidade. Do mesmo modo, é preciso dar célere andamento ao projeto de lei, atualmente em exame no Senado federal, que determina que todos os crimes de violência praticados por policiais militares contra civis sejam da alçada da justiça comum.

Mas o que nos reúne aqui nesta manhã é o fato de que a promoção dos direitos humanos não depende apenas da existência de leis e de instituições. Depende também do desenvolvimento de uma cultura de direitos humanos, fundamental para garantir a institucionalização de mecanismos de prevenção e resolução de conflitos. Nesse sentido, a reforma dos mecanismos institucionais de garantia dos direitos humanos será tanto mais efetiva quanto mais se desenvolver a capacidade individual e coletiva de organização. Trata-se de uma via de mão dupla.

O estabelecimento dos direitos humanos na consciência dos indivíduos está estreitamente relacionado ao processo educativo, ao que se tem denominado educação para valores. Particularmente, creio que a educação em direitos humanos, tema deste Seminário, é ferramenta extremamente importante para que se estabeleça um mecanismo de permanente justificação e interpretação dos princípios de direitos humanos. Nunca é demais recordar as raízes humanistas e acompanhar a configuração histórica dos direitos humanos, lenta, mas constante e evolutiva. Sabemos que as declarações de direitos humanos raramente correspondem, de imediato, a uma materialização prática. O cumprimento efetivo para as pessoas e sociedades vem sempre muito depois do direito declarado.

Felizmente, no Brasil, há que se constatar alguns avanços importantes da política educacional, visíveis graças ao desenvolvimento de um sistema nacional de avaliação e de indicadores de desempenho. Destaco, nesse sentido, a garantia da universalização do acesso, a ênfase na melhoria da qualidade da educação básica, apoiada no processo de descentralização dos programas e dos recursos públicos, a implantação de um novo modelo de financiamento, o FUNDEF, e a criação de mecanismos destinados a incentivar a participação da comunidade na gestão escolar.[1]

Não poderia deixar de mencionar ainda a introdução dos Parâmetros Curriculares Nacionais, com a inovação trazida pelos chamados temas transversais, orientados para a construção da cidadania e destinados a integrar as áreas convencionais de estudo, relacionando-as a questões da atualidade e ao convívio escolar. Para definir e escolher os temas transversais foram estabelecidos os critérios de urgência social, abrangência nacional, possibilidade de ensino e aprendizagem no ensino fundamental e favorecimento à compreensão da realidade e à participação social.

Como resultado das políticas educacionais implementadas na década de noventa, pôde-se observar a queda substancial das taxas de analfabetismo, especialmente nas faixas mais jovens da população; o aumento sistemático das taxas de escolaridade média da população, com maior velocidade na população feminina; o crescimento acentuado da matrícula em todos os níveis de ensino, de forma particularmente intensa no ensino médio; a melhoria das taxas de transição no ensino fundamental, com queda das taxas de repetência e evasão e aumento das taxas de promoção; a melhoria da qualificação dos professores da educação básica; e a redução dos desníveis regionais em relação aos principais indicadores educacionais.

E aqui me aproximo do tema deste Seminário, na qualidade de aprendiz.

A educação para a cidadania, assim como a educação para direitos humanos, é uma educação essencialmente voltada para valores. Talvez a melhor maneira de transmitir valores seja respeitar a coerência entre a formulação de valores e sua vivência. Formular valores é perguntar por suas raízes, por suas interações, pelas tensões existentes entre diferentes opções de valor. A análise dos valores deve vir acompanhada da análise dos modos através dos quais concordamos com eles. E o mais importante: devemos pautar nossa ação pelos valores que propagamos. Nesse sentido, a lembrança de Paulo Freire, cujos ensinamentos tão bem caracterizavam a educação como uma prática de liberdade: "antes de aprender qualquer coisa, uma pessoa precisa ler primeiro o seu mundo ... analisar e interpretar os limites e as potencialidades, a correlação de forças históricas e políticas, para se dar o passo necessário e possível”. Ou seja, o respeito a uma cultura de direitos humanos começa essencialmente na família, onde, para que possa florescer, devem prevalecer formas de relacionamento baseadas no respeito à igualdade, não uso da violência e livre expressão do pensamento e da criatividade de cada indivíduo.

A escola, espaço inicial de convivência e socialização fora da família, deve estimular e permitir à criança e ao jovem a sua introdução ao mundo da cidadania, o que, efetivamente, se fará na sua relação com os outros, com a comunidade, com as organizações e com os poderes constituídos. Creio que o principal objetivo da escola é formar o indivíduo crítico, com capacidade de discernimento. Certamente, a persistência de uma cultura autoritária, hierárquica e pouco participativa dificulta o processo de criação de uma cultura de direitos humanos. Torna-se necessário contribuir para a construção de uma cultura escolar onde predomine a ética da comunicação, o respeito pela diversidade e pela diferença, que valorize o saber universal e o saber trazido pelo aluno de sua experiência de vida quotidiana. Somente em uma cultura escolar democrática e participativa, na qual alunos, pais e professores contribuam e dialoguem sobre seus problemas e objetivos, é possível inserir com autenticidade a educação para os direitos humanos e para a cidadania.

O conhecimento dos direitos humanos e da cidadania não se esgota no meramente informativo, mas incorpora também a afetividade, os comportamentos, os sentimentos e as ações, os valores e as vivências que se desenvolvem na escola. Portanto não pode estar restrito ao conhecimento formal dos instrumentos jurídicos e das instituições e órgãos do Estado que atuam na defesa do cidadão. Podemos nos aproximar do conhecimento dos direitos humanos e da cidadania não somente através da intelectualidade, da racionalidade, mas também do corpo e da afetividade. Como se diz comumente, direitos humanos e cidadania não se aprende só com a cabeça, mas também com o coração e com o corpo inteiro, na experiência individual e coletiva.

As situações vinculadas aos direitos humanos e à cidadania tornam-se conflitantes em muitas ocasiões porque interesses distintos estão em jogo. Especialmente nas tensões que surgem entre liberdade e igualdade, entre interesses públicos e privados, entre o bem comum e o individual, entre liberdade e ordem. Na família, na comunidade e na escola vive-se ao mesmo tempo o respeito e a violação dos direitos humanos, o exercício e a negação da cidadania, cabendo esperar que a experiência desses antagonismos se desenvolva sempre no sentido do progresso. Ou seja, o ser humano não se aproxima da aprendizagem dos direitos humanos e da cidadania e como um papel em branco. Traz consigo sua experiência pessoal e a de outros no exercício e na negação da cidadania, experimenta o exercício e a negação da cidadania a todo momento, sendo preciso que apreenda as formas e os métodos para fazer prevalecer a primeira sobre a última. A educação para os direitos humanos e para a cidadania recolhe estas experiências, as analisa, as sistematiza, as esclarece, e as compara com o conhecimento universal, relacionando a participação individual com as transformações sociais e as mudanças políticas em todo o mundo.

Nesse contexto, creio importante advertir contra um conceito que muitas vezes é defendido por aqueles que desejam enfraquecer os direitos humanos. É a idéia de que o respeito aos direitos humanos leva a uma complacência com o crime e os criminosos. Trata-se de um conceito falacioso. Os princípios de direitos humanos determinam que se aplique ao crime e aos criminosos estritamente o que determina a lei, sem o recurso à violência ilegal, porém com eficiência e tempestividade.

Realizar ações que levem ao exercício da cidadania e dos direitos humanos é uma modalidade motivante e eficiente para a sua aprendizagem. Ligar a aprendizagem com processos de transformação na vida social quotidiana – na escola, na família, na comunidade – produz aprendizagem efetiva.

Para finalizar, creio que estamos vivendo no Brasil um momento de transição muito importante, no qual os brasileiros passam a acreditar em seu poder de transformar e de participar de seu destino. Ainda assim, é necessário investir em educação para a cidadania e para os direitos humanos, e atentar para que esta categoria especial de aprendizagem de valores seja feita a partir da experiência, para que seja uma aprendizagem participativa.

Fica cada vez fica mais nítido que a sociedade brasileira participa, através de organizações não-governamentais, organizações comunitárias e associações, dos assuntos que dizem respeito à coletividade. O Estado, por sua vez, sabe que tem uma dívida enorme com a educação mas sabe também que não dispõe de todos os meios para resolver a questão. Por isso, conclama a todos para que façam um esforço de multiplicação da palavra, que se comuniquem e que busquem convencer a todos a exercer sua cidadania e a pautar sua vida quotidiana pelos ditames dos direitos humanos.


[1] Desempenho do Sistema Educacional Brasileiro: 1994-1999; Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas – INEP/MEC;

 

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