Ricardo B. Balestreri
“Meu pai era
um cientista e em sua juventude, na Inglaterra, gostava
muito de caminhar. Levou seu amor pelas caminhadas para
o outro lado do Atlântico e, durante toda a minha infância
e depois, ele e eu fizemos longas excursões juntos. Não
posso imaginar-me sendo o que sou se aqueles tempos de
passeios juntos não tivessem acontecido. Neles, meu pai
me perguntava sobre minha vida, meus atuais interesses,
esperanças e atividades. Compartilhava comigo- ele compartilhava
tantas coisas comigo!
Os anos que
nos separavam pareciam se dissolver quando andávamos,
longas excursões que nos tornavam camaradas embora ele
fosse sempre meu pai também...O mais importante é que
ele me falou das pessoas que conheceu, quais as que apreciou
ou não e por quê. Suas razões para gostar ou não de determinados
indivíduos, mais tarde compreendi, foram em resumo seus
valores, que me ofereceu inconscientemente, em uma contínua
narrativa, enquanto nossas pernas se moviam-uma ajuda,
talvez, para a franqueza que lhe acometia e a mim também,
porque, como um filho grato que o amava e admirava eu
fazia o mesmo, falava-lhe de meus amigos, dos companheiros,
de quem gostava, dos caras de quem não gostava e por quê....Suas
sensatas opiniões tinham sempre um grande valor para mim-
em contraste com toda essa propaganda diária que nos aflige
atualmente. De certo modo, grande parte de minha educação
moral ocorreu durante aquelas caminhadas- quilômetros
e quilômetros de histórias contadas, as idéias e ideais
de um pai, seus valores incluídos nelas.”
(Robert Coles)
A paz, tema deste artigo, tem suas mais profundas raízes fincadas no singelo
solo das relações interpessoais: o nosso comum cotidiano.
Da mesma forma, as grandes guerras têm sua origem nos
pequenos embates de crueldade competitiva, intolerância
e indiferença, que travamos cronicamente em nossa cultura
do dia-a-dia. Infelizmente,
na senda da globalização que tudo submete à pressa do
mercado, vai se agravando o ritmo da perda de nossa humana
capacidade contemplativa, de olhar-nos e olharmos todos
os seres e coisas com olhos, a um só tempo, afetuosos
e críticos. Assim, gente da superfície, estamos apagando
a luz da consciência moral, perdendo qualquer norte existencial,
abdicando do desejo de plenitude, afastando-nos da paz
que habita dentro e ingressando no jogo infernal e insaciável
do poder exterior e das aparências. Para jogar conforme
as regras propostas é proibido pensar com autonomia, é
proibido propor a ousadia, é proibido crer em utopias,
é proibido ser.
O tema da paz, portanto, longe de ser tão somente um macro-tema sócio-político-econômico,
que mira a superação dos grandes conflitos históricos
de massa, carrega uma gravidade individual, pessoal, nominal,
irrecusável e intransferível. É, de tal forma, uma reflexão
feliz e, ao mesmo tempo, perturbadora. Feliz porque, como
toda reflexão, nos pode apontar alternativas e perturbadora
porque estamos, obviamente, diante de um mundo onde não
se vive e nem se busca, com real determinação, uma cultura
de paz.
A partir deste ponto, peço permissão para escrever um pouco mais sobre
a antítese da paz, para deter-me nos espinhos antes de
chegar à bela flor. Para que nosso discurso sobre a paz
apresente-se com alguma conseqüência, é preciso que tenhamos
a coragem de debruçar-nos dolorosamente, copiosamente
(por que não?), sem escamoteios, sobre o fenômeno da violência.
Aparentemente, estamos muito cansados de ouvir falar em
violência. Estamos saturados de tanta conversa sobre isso,
de tantas imagens, de tantos testemunhos. Parece-me, contudo,
que, como em tudo, estamos superficialmente saturados.
Ao abordarmos ou escutarmos abordagens sobre violência,
geralmente o fazemos em um patamar bastante rasteiro e
muito pouco analítico. Sofremos os efeitos tremendos,
é verdade, que se tornam ainda mais tremendos porque não
compreendemos minimamente as causas. Por medo, quão pouco
desvelamos o que se encontra por trás dos fenômenos que
nos causam medo! Contudo, não é apenas por medo que deixamos
de incursionar pelos bastidores, onde o importante acontece.
Também não o fazemos por interdito de um mundo onde, apesar
de todas as declarações em contrário, é cada vez mais
subversivo pensar livremente. Assim, em geral, as reflexões
sobre o tema da violência se restringem ao discurso horrorizado,
condenatório (e meritório, nesse sentido), mas muito superficial.
Para que não caiamos na vala comum de tal visão lírica sobre a paz, precisamos
enfrentar cognitivamente, ainda muito mais, ainda que
desgostosos, a anti-paz, a violência, a dor que nos assola.
Em geral, rejeitamos essa perspectiva que nos incomoda
por seu aparente negativismo. Ao final de muitas conferências
que realizo sobre a paz há, quase sempre, gente contrariada
que “não foi até lá para falar em violência”. Não creio,
contudo, que isso ocorra por consciente falta de vontade
pessoal de enfrentar a dura realidade. Ocorre, sim, como
manifestação de uma espécie de lavagem cerebral coletiva,
como processo de negação intelectual internalizado em
decorrência da falta de interesse das elites e estruturas
que nos dominam. Aprofundando-se criticamente a discussão
sobre a violência, muitas máscaras daquilo que genericamente
chamamos de “sistema” cairiam, revelando todo o podre
esquema de articulação e funcionamento do mundo em que
vivemos. Ao caírem tais máscaras, muitos entendimentos
seriam obtidos sobre a dinâmica de exclusão, de exploração
e de opressão das grandes massas que constroem as sociedades.
Assim, uma análise mais profunda sobre a questão da violência
não interessa aos estratos sociais dominantes. É por isso
que se fala muito no assunto sem que, em geral, se dê
a tais falas uma dimensão crítico-analítica.
Na contra-corrente, quero conclamar-nos a fazer uma tentativa, a lançarmos
a nós mesmos uma provocação intelectual, a pensarmos nisso,
ainda que sem pretensões a sermos os donos da verdade.
Paulo Freire dizia que ninguém ensina ninguém. A educação
vive esse dilema, ao mesmo tempo assustador e maravilhoso:
só podemos aprender sozinhos mas não podemos aprender
sem o outro. O outro nos provoca, nos desafia, e nos lançamos
pessoal e intransferivelmente na jornada da aprendizagem.
Por isso, desculpo-me se algumas das presentes abordagens
possam parecer demasiado enfáticas. Essa é a função de
um texto: provocar reação intelectual. Lembro que o intento
básico, aqui, não é produzir material acadêmico mas refletir
sobre algo tão significativo em nossas vidas, passando
pela senda do coração. A radicalidade das afirmações,
portanto, é paixão e não pretensão. Tal paixão incendeia
os sentimentos e o intelecto e nos provoca a enfrentarmos
nossos limites corajosamente, a encararmos de frente as
reflexões que nos são difíceis e caras, a voltarmos a
sonhar e a construir utopias realizáveis. Nesse contexto
é que gostaria de inserir estes singelíssimos pensamentos
sobre violência e paz.
Instigado por tal ousadia que nos inspira a paixão, penso que chegou o
momento de afirmar que a violência não é um fenômeno solto,
desarticulado, casual, indesejável às entranhas do macro-sistema
político e econômico que a todos domina. A emblemática
destruição das torres gêmeas em N.York, por exemplo, não
pode ser encarada como mero resultado de disparidades
culturais e cronológicas, como somente um fenômeno destrutivo
gestado à partir da indisposição de uma das muitas díspares
arestas da fragmentada pós-modernidade. Não é um embate,
apenas, entre extremadas civilizações. O “ovo da serpente”
foi chocado entre nós, é fenômeno nosso, é um produto,
entre tantos, da cultura que nós mesmos produzimos, cultura
da violência banalizada e “necessária”.
O que nos poderia parecer, em ligeira análise, um gesto de traumático simbolismo,
no ataque à única grande potência que restou, é, na verdade,
o emblema de um fenômeno há décadas vivenciado e multiplicado
por nossa dita civilização. Para ilustrar um pouco melhor
tais afirmações, recorro a uma declaração de grande autoridade
no campo em questão, porque produzida por um dos maiores
cineastas vivos, Robert Altman: “Os filmes de Hollywood
ditam o padrão e os terroristas seguiram esse padrão.
Ninguém teria cometido uma atrocidade dessas sem nunca
ter visto filmes na vida”.
Falamos, aqui, do fenômeno globalizado da violência que se encontra no
dia-a-dia de todas as culturas e de todas as pessoas,
inclusive no nosso. Se formos bem honestos , teremos que
reconhecer que a violência está internalizada dentro de
cada um de nós, ainda que procuremos alternativas. Somos
também produtos desse mundo violento.
O professor Robert Putnam, da Universidade de Harvard, tem se dedicado
a pesquisar as razões do desenvolvimento dos países e
as conexões disso com as chamadas “redes de engajamento
cívico”, ou seja, as motivações e ações morais dos cidadãos
em relação às nações a que pertencem. Uma de suas terríveis
conclusões é que, a par de todo o desenvolvimento científico
e tecnológico sem precedentes, nos encontramos em um dos
mais temerários processos de involução moral de nossa
história. Essa é uma fórmula profundamente explosiva:
muita ciência com pouca consciência! Assim, a violência,
cada vez mais sistêmica, ao extrapolar os controles-e
não poderia ser diferente- está, hoje, atingindo até mesmo
os grandes símbolos desse mesmo sistema que a gesta. Em
certo sentido, podemos dizer que estamos padecendo num
falso paraíso: o falso paraíso de todas as conquistas
materiais que alcançamos. No entanto, não sabemos bem
o que fazer e onde queremos chegar com isso. Como humanidade,
falta-nos orientação moral, norte existencial, consciência
de sentido.
Em um belo metaforismo, Daniel Quinn (Ismael, Ed. Fundação Peirópolis,1998),
compara nossa civilização aos primeiros aeronautas que,
desconhecendo a inexorável lei da gravidade, ousavam “voar”
em máquinas que, à pedaladas, batiam asas mecânicas. Jogavam-se
de imensos penhascos e, por breve e intenso tempo, tinham
a exata sensação de libertar-se das amarras da terra,
de ganhar o espaço, de transcender limites, de, verdadeiramente,
voar. No espaço de tempo que lhes permitia o impulso e
a altura, julgavam-se vitoriosos conquistadores da natureza.
O chão, no entanto, parecia aproximar-se rapidamente.
Assim mesmo, eles, encantados, só julgavam que bastava
pedalar mais rápido. O chão “crescia” e, ao invés de perceberem
o equívoco de sua invenção, inebriados pelo vento, pelo
vasto horizonte, pela aparente ausência de limitações
e pela glória que supostamente os aguardava, só eram capazes
de pensar: “mais rápido, mais rápido, mais rápido! Tudo
foi bem até aqui, é só acelerar e ficará bem ao final”.
Mais ou menos como o suicida da anedota que lança-se de
nonagésimo andar e, ao passar pelo décimo, exclama: “até
aqui, tudo bem!”. No dizer tragicômico de Quinn, nossa
civilização é uma espécie de “Thunderbolt” em queda livre
mas repleta de sensações de grandeza. Optamos por modelos
de desenvolvimento nada sustentáveis, não apenas do ponto
de vista do ecosistema mas também do ponto de vista das
relações inter-pessoais, da moralidade. Quando grupos
de pesquisadores e cientistas alertam que nos próximos
cinquenta anos poderemos encontrar-nos com a irreversibilidade
de nossa extinção, isso parece-nos exagerado e os olhamos
como messiânicos alarmistas, ecologistas sectarizados,
nessa hora, “certamente”, menos científicos. Facilmente
retrucamos: “basta pedalarmos mais rápido. Já chegamos
até aqui, não? Vamos encontrar uma saída”. Nossa única
vantagem é que, ao contrário dos primeiros aeronautas,
contamos com o tempo histórico. Nossa queda livre é mais
prolongada, ao ponto de podermos
corrigir a geringonça que criamos, desconstruí-la
em pleno ar, fazer dela outra nova, que respeite as tais
leis inexoráveis que, no caso em questão, se atém à ordem
da consciência moral. Mas estamos muito distraídos com
nossas glórias, vitórias, aquisições e sentimentos de
onipotência. Além disso, pela proporção geométrica de
aumento do poder científico-tecnológico que adquirimos
nas últimas décadas, o tempo histórico vai sendo acelerado.
Nossa máquina vai sendo aperfeiçoada, é verdade, mas não
repensamos todo o projeto para ver se é sustentável. É
apenas no mesmo inquestionável modelo que estamos dispostos
a mexer. As asas são cada vez mais leves, a mecânica é
estonteantemente perfeita, os batimentos derivados das
pedaladas se multiplicam incessantemente. A máquina, tão
sofisticada, contudo, não voa. As leis da aerodinâmica,
em interface com a gravidade, não são por nós reconhecidas.
Cada vez temos menos base de sustentação, as correntes
de ar que nos iludiam no trajeto vão desaparecendo, o
horizonte vai sumindo, o chão vai ficando “mais perto”,
cada vez mais rápida e assustadoramente, e temos a impressão
de ir ao encontro dele com cada vez maior velocidade.
Talvez os cientistas estejam corretos. Teremos uns cinquenta
anos pela frente, para corrigir o voo, e então bateremos.
Não resolverá se apenas “pedalarmos mais rápido”.
Sem depreciar, de forma alguma, a importância de nossos avanços em conhecimentos
astrofísicos, matemáticos, cibernéticos, robóticos, químicos,
biológicos, precisamos repensar o projeto. Nosso problema
não é de evolução material mas de involução moral.
É possível elencarmos alguns elementos que comprovam
esse processo de involução . Recentemente, pesquisa da
UNESCO, realizada em 23 países, incluindo o Brasil, trouxe-nos
dados alarmantes, que nos podem fazer compreender melhor
a dimensão que alcança o fenômeno da violência. Uma das
coisas que a UNESCO desejava saber era qual o herói mais
significativo na vida dos adolescentes iniciais desses
países. Poderia ser Jesus, poderia ser Gandhi, poderia
ser Buda, poderia ser Martin Luther King, poderia ser
Madre Tereza, poderia ser Bahá’U’Lláh , poderia
ser Einstein, poderia ser Freud, poderia ser Marx, poderia,
para os brasileiros, ser Irmã Dulce ou Cora Coralina,
poderia ser Alan Kardec, poderia ser o Dalai Lama, ou
qualquer outro ou outra que tenha prestado contribuição
efetiva ao desenvolvimento da humanidade.
Nenhum deles foi muito citado, no entanto, diante
do grande vencedor: o “Exterminador do Futuro”, ente ficcional
holliwoodiano, encarnado por Arnold Schwazeneger. A maioria
da adolescência planetária declarou que o seu maior herói,
sua maior fonte de inspiração, é um personagem que sequer
existe. Que mundo é este? Que mundo é este que legamos
aos nossos jovens? Dá muita tristeza ver o lixo que estamos
entregando a eles e nossa profunda ausência qualitativa
como adultos. Sequer percebemos claramente o que está
por trás de tudo . Agimos como peões, jogamos o jogo,
não nos perguntamos, tememos “virar a mesa”. Percebemos
a violência que a mídia produz e ficamos queixosos. É
tudo. E não chega nem perto de bastar. Falta-nos perguntar-nos
os “porquês” e sugerir, com urgente insistência, que os
que nos cercam também o façam. Episodicamente, como na
onda de atentados terroristas, nos sentimos atazanados,
ameaçados e queremos entender. Mas não temos prática em
entender e nem suficiente perseverança. Por isso mal conseguimos
tangenciar as causas. Quando aparece alguma ponta desse
iceberg, nos apavoramos durante um tempo, até as notícias
se banalizarem e esquecermos novamente. Contudo, as pontas
são cada vez maiores e a qualquer momento podemos colidir
com o perigoso colosso submerso do qual fingimos não ter
conhecimento.
Sabemos, contudo, que uma criança norte-americana passa, em média, 21 horas
semanais diante da televisão. Sabemos que uma criança
brasileira passa, em média, 28 horas sob seu efeito hipnótico.
E sabemos o que passa na TV. Como, então, podemos não
imaginar o resultado? Como podemos ser tão alienados ou
dissimulados? O que talvez não saibamos é que as pesquisas
apontam, nos EUA, para uma média semanal de 38 minutos
de conversa dessas crianças com seus pais. Por que nos
é tão difícil imaginar as consequências? Por que nos surpreendemos,
ainda, com as barbaridades que acontecem, diariamente,
no mundo inteiro? A quem cabe a paternagem e a maternagem
real das crianças e adolescentes do mundo de hoje? Mais,
terá a UNESCO pesquisado o conteúdo desses 38 minutos
semanais de conversa? Quantos pais assistem TV com os
filhos e se encorajam a ser “chatos” e analisar, com eles,
o conteúdo do que é visto? Quantos professores abordam,
em sala de aula, em estratégia contra-hipnótica, o que
os alunos assistem na TV ou jogam nos Games? Sei, é preciso
“dar a matéria”...
“Nos últimos quarenta anos, mais de 3.500 estudos de pesquisa dos efeitos
da violência na televisão sobre os espectadores foram
conduzidos nos EUA, e durante a década de 90 foram feitas
diversas análises desta literatura, incluindo o relatório
de 1.991 dos Centros para Controle de Doenças, que declarou que a violência na televisão é um mal para a saúde
pública; o estudo da violência na vida norte-americana,
de 1993, feito pela Academia Nacional de Ciências, que
relacionou a mídia, juntamente com outros fatores sociais
e psicológicos, como um fator que contribui para a violência;
e o estudo da Associação Psicológica Norte-Americana,
de 1.992, que também comprometeu a violência na mídia.
Todas estas três análises apoiaram a conclusão de que
a mídia de massa contribui para o comportamento e atitudes
agressivas, assim como conduz a efeitos de dessensibilização
e medo.” (Carlsson, Ulla e von Feilitzen, Cecília, A Criança e a Violência na Mídia, Cortez Editora/UNESCO, São Paulo,
1.999, pág. 64).
Depois dos episódios em N.York- uma extrapolação da violência desejada-
há quem diga que talvez, alguma coisa mude nos roteiros
da ficção (ainda que os presentes sinais não estejam apontando
nessa direção). Até então, contudo, não se produzia em
Hollywood um montante significativo de filmes que não
se apresentassem embalados em muita violência, mesmo quando
o pano-de-fundo dos roteiros era excelente. A razão é
simples: não se vende filme que não venha pintado de sangue
, sonorizado por tiros e estrondos e enfeitado por efeitos
visuais de grandes explosões. “Ao terminar o primeiro
Grau, uma criança norte-americana comum terá visto mais
de 8 mil assassinatos e mais de 100 mil outros atos de
violência.” (A
Criança e a Violência na Mídia, pág. 62).
Lembram dos adolescentes que fuzilaram os colegas na Columbine
School ,dando declarações em que se diziam inspirados
no filme Matrix ? Trata-se de uma película excelente,
de profundo conteúdo. Isso, no entanto, não foi percebido.
A lavagem cerebral que se processou nas últimas décadas
abriu, nos jovens cérebros, espaços privilegiados para
a captação de rajadas de bala, de tripas saltando, de
sangue escorrendo e os bloqueou para a compreensão de
mensagens. Na sociedade do espetáculo, a forma substituiu,
em gênero, número e grau, o conteúdo. É evidente que tal
forma é vendável e que, em última instância, atende às
nossas pulsões agressivas e de morte. A pergunta, no entanto,
é: precisamos fragilizar tanto o superego individual e
coletivo, trazendo a tona o que, em boa linguagem psicanalítica,
deveria ficar recalcado no insconsciente? Que perigosa
legitimação de pulsões moralmente condenáveis, como exercício,
estamos introduzindo com banalidade em nossos universos
conscientes? Qual será o paradeiro disso tudo? Indo além,
com que objetivo? A mídia, corporativamente, assume o
argumento de que “vende o que as pessoas estão interessadas
em comprar”. Não é sequer preciso apelar para o cinismo
que acoberta o descompromisso com o papel educativo que
os meios de comunicação estriam obrigados a ter, para
contraditar tal simplismo. Melhor é perguntar: vende-se
o que as pessoas compram ou as pessoas compram o que se
quer vender?
“É importante notar que as pessoas, em média, preferem assistir a programas
de televisão não-violentos, pelo menos de acordo com uma
análise norte-americana (Gerbner, 1997)...Contudo, essas
alternativas são poucas ou inexistentes.” (A
Criança e a Violência na Mídia, pág. 50).
Por aí chegamos
mais fundo no fulcro perigoso do que não se deseja
explicar. Há muito conhecemos a questão das necessidades
criadas. Ora, hoje os seres humanos não são mais capazes,
de forma geral, do exercício de vontades autônomas. A
mídia, o primeiro poder, determina o que é necessário,
o que se deve consumir, em quem se deve votar, quem deve
cair em desgraça, quais as notícias mais importantes,
contra quem se deve fazer guerra, qual a hora de parar,
etc. Toda vez que alguém tem a coragem de enfrentar esse
tema, a corporação midiática fala em censura, com a intenção
deliberada de confundir , de mistificar, de ganhar apoio
em cima do passado. Pierre Bordieu, em seu excelente ensaio
“Sobre a Televisão” (Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro,
1997) desmascara com precisão todas as formas de censura
ideológica e fundadas no capital às quais a mídia está
voluntária e deliberadamente afeta. É primário atacar
como censores os que questionam a censura real que dita
as regras, fundada em interesses de ordem política e econômica.
É primário mas funciona e mantém o jogo acontecendo. É
fácil dizer: “quem não quer ver que troque de canal ou
desligue”. Quantos, em nosso tempo, contudo, teriam tal
força psicológica para desligar (já que, na TV aberta-que
é a que está em todas as casas- excetuando-se algumas
emissoras educativas, trocar de canal, em geral, seria
trocar lixo por lixo).? Mais, quantos possuem o privilégio
das imagens e sons do Discovery Channel
na sala-de-estar ou no home theater?
A grande massa, que precisa ser manipulada, só tem mesmo
acesso à TV aberta, essa velhaca, vilmente comercial,
caixa de patifarias dourada por uns raros momentos de
qualidade (como o “Globo Repórter” ou o “Passando a Limpo”,
para citar dois exemplos de horário nobre). O conteúdo
não requer muita análise acadêmica. Basta assistir. A
má qualidade e a falta de ética são evidências empíricas.
É o “óbvio ululante”. Só não quer vê-lo quem tem interesses
e só não o vê quem já se deixou hipnotizar (lamentavelmente,
a quase totalidade das pessoas). Quero deixar claro que
não estou propondo, aqui, o fim da televisão. Seria ridiculamente
saudosista supor que isso fosse possível. Também não seria
justo, uma vez que, liberta dos mega interesses político-econômicos
que a dominam, a TV seria uma das melhores ferramentas
de educação, de difusão de conhecimentos, de lazer saudável
e de promoção das legítimas culturas populares. Em uma
palestra para pais, que proferi há alguns dias, atordoado
pelas angústias que gera o desvelamento desse tema, um
senhor declarou, com ar decidido e candidamente verdadeiro:
“hoje, quando chegar em casa, vou colocar no lixo o aparelho
de televisão” ( diante do que não pude evitar a lembrança
do slogan
da campanha ”coloque o lixo no lixo”). Elogiei a boa intenção
mas observei que não resolveria. Os filhos assistiriam em outro lugar ou, na melhor
das hipóteses, se contaminariam com a cultura de quem
assiste. O que está faltando não é colocar fora a TV mas
começar a interpretar aquilo que se vê. Também começar a pressionar os canais, as redes, por
mais qualidade. O Brasil está atrasadíssimo nisso. Fico
escandalizado com o que somos capazes de engolir passivamente,
por anos a fio, sem reclamar, como se fosse uma fatalidade.
Alguém sabe de alguma forte associação de consumidores
de TV, que lute pelos direitos que temos a uma programação
ética, educativa, com sentido, lúdica sem ser chula ou
destrutiva? Isso não tem feito parte dos direitos do consumidor
em nosso país. E, com certeza, importa tanto quanto a
data de vencimento na embalagem dos produtos ou a pureza
dos medicamentos. Há drogas que nos envenenam poderosamente
e que não são consumidas por via oral. Praticamente, como
sociedade, não fomos capazes de organizar nada com força
suficiente para questionar esse império da televisão.
No máximo, são manifestações individuais corajosas, de
gente que se antipatiza com a corporação e que passa rapidamente
à posição de alvo da mesma.
Preciso, ainda, lembrar que a violência dos filmes é produzida basicamente
nos Estados Unidos. O meu discurso, aqui, não é antiamericano.
É absolutamente indispensável que sejamos solidários com
os que lá foram vitimados pela bestialidade do terrorismo.
Contudo, seria imperdoável esquecermos que os Estados
Unidos produzem quase toda a violência exportada para
o planeta pela televisão. Pasme-se, agora, com outra conclusão
da mesma UNESCO, aqui antes citada: a violência que exportam
é maior do que aquela que consomem internamente. ”Um estudo
feito nos EUA indica que os programas norte-americanos
exportados para outros países contém mais violência que
os programas americanos transmitidos nos EUA.” (Gerbner,
1977, citado em A Criança e a Violência na Mídia, pág 51). ...”Pode-se estimar que cerca de 70% do tempo
de violência seja de origem norte-americana.” (idem, pág.
50). Por quê? Que dado é esse, que parece falar
por si mesmo? É inevitável que a gente comece a perder
a virgindade intelectual, que comece a desconfiar de coisas
mal explicadas nessa aparente espontaneidade de algo que
“se vende porque as pessoas desejam comprar”.
Nossas pulsões de morte não emergem banalmente sozinhas, sem qualquer interesse
escuso e para alguém vantajoso, seja na ordem política,
seja na ordem econômica das coisas.
Não nos fixemos, contudo, nesse lamentável rol, apenas nos filmes. Temos,
hoje, na televisão, pelo menos três tipos de violência
explícita: a representada, ficcional, (dos filmes, por
exemplo), a real, que é repetida à exaustão nos telejornais
e nos programas de auditório de todos os horários e a
simbólica, que aqui no Brasil se expressa fortemente através
da maioria dos programas que se apresentam como humorísticos.
Não há quase opções que fujam a isso. Quando as mortes
e injustiças impunes não estão nos filmes e novelas, estão,
à toda hora, no jornal das oito, por exemplo, para incorporarem-se
ao universo de “normalidade” de nossos filhos e filhas,
alunos e alunas. Sem dúvida alguma, o conteúdo-chave da
TV é a violência, inclusive sob a forma de objetização
do corpo e mercantilização da sexualidade, adulta ou precocemente
representada. Faz parte do sistema e de sua lógica perversa.
Quanto à violência simbólica, como dissemos acima, em
países como o Brasil, se expressa gritantemente através
dos programas pretensamente humorísticos. Estes são, geralmente,
articulados em cima de preconceitos, da má fé em relação
à categorias politicamente minoritárias, de uma crítica
política fundada no achincalhe pessoalizado ( por isso
mesmo inconseqüente e exacerbadora da miopia política
que não permite ver, por detrás das pessoas, as estruturas
e os sistemas), do individualismo e da insensibilidade
irônica e grosseira às dores alheias. Se tomarmos alguns
dos programas de maior audiência e os analisarmos não
será preciso grande esforço para percebermos, neles, claros
elementos de racismo, sexismo, xenofobia, machismo, homofobia,
personalismo e elitismo. Deram, nos últimos tempos, uma
suavizada (a exposição é menos direta mas ainda presente)
apenas em relação aos negros, uma vez que o Movimento
Negro é melhor organizado, processa judicialmente e em
geral ganha. Já os índios, menos organizados, são sistematicamente
ridicularizados... É preconceito de gênero contra mulher,
é preconceito estético contra gente gorda, “feia”, é preconceito
intelectual contra mulheres “louras” e portugueses, é
preconceito sexual contra homossexuais, é preconceito
“geográfico” contra nordestinos, é preconceito contra
categorias profissionais (os policiais , por exemplo,
são todos e sempre, praticamente sem exceções, apresentados
como corruptos e ignorantes, um prato cheio para o crime
organizado que, em contrapartida, quase nunca é ridicularizado;
as empregadas domésticas são sempre burras, inconvenientes
e simplórias), é preconceito físico contra pessoas portadoras
de deficiências, é preconceito etário contra idosos, é
preconceito social na forma de avacalhação dos pobres,
etc.
Em suma, quem não se enquadra na categoria dominante, entre os ricos, descendentes
de europeus, brancos, heterossexuais, homens, jovens,
fisicamente “perfeitos”, escolarizados, bem vestidos,
bem falantes e bem empregados, não vale nada a não ser
como objeto de chacota.
Há algum tempo, quem ligava a TV no
domingo à noite, por exemplo, encontrava um manancial
infindável de escárnio contra os pobres brasileiros, a
quase totalidade de nossa população. Como se não bastasse
a gente viver num país profundamente injusto, o segundo
pior do planeta em termos de divisão de renda (perdendo
apenas para Serra Leoa, como é sabido), precisamos, ainda,
suportar a mídia da elite rendendo os pobres à condição
de ridículos, enxovalhado-os como anti-estéticos, bregas,
inconvenientes, estúpidos e inferiores. Vejam que falo
aqui da rede de TV comercial mais elegante do país, a
mesma que ajuda as criancinhas pobres, por triste mas
compreensível ironia. Nem vale a pena falar das demais.
É daí para baixo... Pois naquela emissora, tecnicamente
uma das melhores do mundo, durante muito tempo, um festejado
personagem humorístico emblematizou o ódio aos pobres.
Fórmula simples e eficiente: a figura do “picareta” simpático
( o “perpetrador atraente”, se colocado nos termos do
estudo realizado pela UNESCO, ao elencar os fatores de
alto risco
em representações violentas), “querido” de todo o Brasil,
o mais aplaudido, carismático e “sincero”. Seu discurso
anti-pobres se incorporou rapidamente ao dia-a-dia nacional.
Em todos os lugares se ouviam e ainda ouvem observações
depreciativas em relação à nossa famélica população. Será
mero acaso, coisa inocente, brincadeira ingênua, fenômeno
sem qualquer intencionalidade? Lembro que a cada investida
contra a pobreza o auditório aplaudia vivamente (havia
“claque” ou era uma reação espontânea da classe média
da platéia?). A verdade é que, em um país rico como o
nosso, os pobres causam muita culpa. É terapêutico rir
deles porque isso desopila nossa consciência. A tal rede
de TV, assim, nos ajuda, ao apresentar-nos a pobreza como
um problema de ordem estética. Não há dolo político ou
econômico nas causas da mesma. A gênese nada tem a ver
com injustiça. Os pobres estão onde merecem. Afinal, são
burros, bregas, mal educados, mal escolarizados, desajeitados,
incompetentes, ridículos. No máximo podem ser “limpinhos”
(“sou pobre mas sou limpinha”, diz a empregada, querendo
revelar-se uma exceção). Não sabem aproveitar a vida,
não sabem ir à praia, não sabem fazer festa, não sabem
se vestir, não sabem falar, não sabem apreciar um bom
vinho ou um bom prato. São estúpidos e estariam mal colocados
em qualquer outro lugar social. Sujam e emporcalham a
praia, têm filhos “ranhentos”, ouvem música de má qualidade.
Ao revelar a si mesma tudo isso, na figura do simpático
cafajeste, cruel mas cheio de razões, a nação inteira
dá risadas e bate palmas. Pior, os pobres riem de si mesmos.
Ao aceitarem-se no papel de ridículos, “reconhecem seu
merecido lugar”. Nada melhor do que o humor para condicionar
as consciências sem os limites do juízo e da razão. Rir
da miséria dos outros e da própria miséria: não poderia
haver processo mais acomodatório, gerador de passividade
e conformidade, aliviador de culpas e mentenedor das distâncias
e preconceitos. Que aconteceu conosco, a ponto de não
mais escandalizar-nos, de aceitarmos passivamente esse
horror?
Não é apenas nessa circunstância, contudo, que a elegante TV nos apresenta
os pobres. Eles também aparecem nas telenovelas. E como
parece ser “light” a vida de pobreza naquela emissora!
Os pobres geralmente têm casa própria, telefone, um carro
(ainda que meio “passado”), comida na mesa... e se queixam
o tempo toda da vida difícil. Há alguns dias assisti a
uma cena típica, em certa telenovela: um casal de gente
“pobre” se lamentando amargamente da própria pobreza,
à mesa do café da manhã, entre pães, frutas e sucos! “É
que pobre se queixa de barriga cheia. No fundo, no fundo,
a vida deles está indo bem.” É precisamente essa mensagem,
de caráter subliminar, que nos quer passar a televisão.”A
pobreza no Brasil não é tão amarga como parece”. Há algum
tempo, concluiu-se uma novela, de grande audiência, onde
os moradores de uma vila de pescadores não cessavam de
se lamuriar em relação às suas dificuldades. Viviam, contudo,
em casinhas simples mas boas, tinham seus barcos, à noite
iam regularmente à farra, pareciam saudáveis e bem nutridos,
além de beneficiários de uma orla marítima que faria a
alegria de qualquer grande “resort”. Em suma, a vida que
muitos executivos estressados e em crise, fartos das imposições
do próprio status, desejariam ter! É folgada e poliqueixosa
a vida da pobreza, no entender daquela rede de TV. Será
que tramas como essa, que se repetem incessantemente (são
raríssimas as exceções), são produto do mero acaso? Precisamos
deixar de ser ingênuos...
Para falarmos em construção da paz, sem cairmos naquela já citada vala
comum do lirismo emocionado, precisamos perceber que por
trás do fenômeno da violência há uma intencionalidade.
A violência não é casual, é construída socialmente por
um modelo perverso, que dela se nutre.
Evidentemente, essa intencionalidade não supõe que os poderosos do mundo
precisem se reunir em volta de uma mesa e combinar como
é que vão banalizar a dor e, através desse processo, controlar
as pessoas. Tal intencionalidade se dá ao natural, pela
própria dinâmica de funcionamento do sistema. É preciso lembrar que vivemos em um
mundo presidido pela lógica perversa da violência. A maior
evidência disso é o fato de termos pelo menos 1 bilhão
e 200 milhões de pessoas passando fome neste momento.
Não pode haver violência maior! É nessa hora, dessa percepção
dolorosa, que nos colocamos em condições de superar as
análises tão superficiais com que nos defrontamos em nosso
dia-a-dia. É nessa hora que podemos encontrar-nos com
o triste mas necessário desvendamento da tal lógica perversa:
é preciso banalizar a violência como estratégia de “inoculação”
das pessoas com uma espécie de “vacina contra o escândalo”.
Como o planeta é presidido pela violência, é preciso que
percamos a capacidade de escandalizar-nos, de indignar-nos,
de sentir como nossa a dor do outro ( o excelente estudo
da UNESCO, diversas vezes aqui citado, de forma interpretativa,
utiliza o termo “dessensibilização”). É preciso
que a gente olhe para a violência e diga: ‘é normal.’
É preciso que a gente pense que “sempre foi assim e sempre
será”. Chegamos a esse ponto porque acostumamos com violência
de todos os tipos estampada nos jornais, invadindo-nos
pela tela da TV, “distraindo-nos” através dos videogames.
Esses últimos, em geral, são um completo horror! É preciso
que os pais e mães se dêem conta, se apurem, saibam e
passem a acompanhar o que os filhos estão jogando em casa
ou nas ruas. Tem doença cultural para todos os gostos:
games de trânsito onde vence quem dirige sobre as calçadas
e mata mais gente da forma mais cruel, games de estripar
o inimigo e nomear as tripas (há um cuja propaganda chega
ao “requinte” de puxar setas de uma gosma espalhada na
parede e legendá-las: “oitava vértebra toráxica”, “feijoada
de ontem”, “pedra dos rins”, etc.), games de assaltar
e estuprar as vítimas, games com todas as formas de guerra
e com todas as armas imagináveis, games ensinando a dominar
cidades através da corrupção. “Quem não gosta é babaca”.
Quero lembrar, aqui, que os tais games são democráticos: joga-se no computador
Pentium do último tipo ou no boteco da esquina.
Atropela, mata e não socorre. Que exercício de construção de um projeto
moral para a sociedade! O que acontecerá com quem apertar
o botão milhares de vezes, tomando tal decisão virtual?
Em especial, o que acontecerá aos muitos que vêm de estruturas
familiares destroçadas e de escolas cujo impacto ético
é nulo ou insignificante? E ainda estranhamos viver em
um mundo tão mais assustador a cada dia! E ainda estranhamos
a alienação da maioria dos jovens! E ainda estranhamos
as gangues! E ainda estranhamos as pichações! E ainda
estranhamos as mortes no trânsito! E ainda estranhamos
o crescimento do império das drogas! E ainda estranhamos
a brutalidade masculina nos campos de futebol! E ainda
estranhamos a violência nas escolas! Com nossos estranhamentos,
somos uma civilização dissimulada. Semeamos inço e nos
apresentamos surpresos em que não haja crescido um belo
pomar.
Não gostaria de chegar às conclusões finais que o momento já enseja sem,
contudo, “en passant”, lembrar uma das mais difundidas,
dissimuladas e, por isso mesmo, perigosas, formas de banalização
da violência: a música. Exatamente ela, tão sublime, não
escapou, por essa sublimidade, de ser também conspurcada
pelo sistema de idéias , práticas , proposições e interesses
que domina a cena da vida contemporânea. Talvez o leitor
conheça um texto distribuído pela internet, (parece que
falsamente atribuído a Luís Fernando Veríssimo, não sei)
chamado Diga Não às Drogas. Nele, o autor inventa, em
geral com fino humor , um sujeito que se confessa usuário
de drogas pesadas. Mas não é de substâncias psico-ativas
que o texto está falando. Fala de música. O suposto arrependido,
ali, confessa ter entrado no mundo das drogas ao receber
de presente o CD de uma famosa dupla sertaneja.
Gostou e, quando percebeu, estava em uma loja comprando
um CD desses pagodes enlatados. Em seu último estágio,
já estava consumindo o “Bonde do Tigrão” e similares.
Está, contudo, em tratamento radical: para reverter o
quadro, precisa de doses cavalares de Música Popular Brasileira,
Jazz, Clássica, (e, quem sabe, acrescento, para não parecer
elitista, de “samba de raiz”, de hip-hop, etc.). A juventude
brasileira, lamentavelmente, de maneira geral, não conta
com o acesso a essas clínicas imaginárias de “limpeza”
e desintoxicação cultural. Lembremos, por exemplo, só
para ilustrar, da sexualização perversa, da erotização
precoce do mundo infantil, sugerida, cantada, dançada
(às vezes sob o encanto ignorante dos pais) pelas últimas
gerações de brasileirinhos e brasileirinhas. Lembram da
“dança da garrafa”, das menininhas de 6, 7 anos, executando-a
no Domingo à tarde, em rede nacional, para as
famílias brasileiras? De novo, o inço. E a surpresa
com tanta gravidez na adolescência. E a surpresa com tanta
situação de abuso sexual (em especial no seio dessas mesmas
famílias). E a surpresa com as pesquisas revelando uma
super-antecipação fisiológica do surgimento da menstruação
na população infantil do país.
Os meninos rebolam menos (até porque isso, em demasia, é proibido aos homens),
apenas reproduzindo à exaustão -como seus ídolos- os movimentos alusivos ao coito, mas aprendem
que “um tapinha não dói” (tapa com a mão ou “tapa” de
droga, não importa), que as mulheres são “cachorras” -entre outros
singelos qualificativos (sempre explicados com benevolência
exegética pelo pessoal da mídia)- a “passar cerol na mão”
(conforme o “Aurélio”, “mistura de cola de madeira e vidro
moído...” ), provavelmente para dar o tal tapinha que
não dói... Quero deixar claro que nada tenho de moralista.
Contudo, como adulto, felizmente, não perdi um mínimo
senso do que é consciência moral. Sob o argumento de que
qualquer limitação é ditadura, é censura, deixamos nossas
crianças e jovens entregues ao jogo vil do mercado de
lixo midiático.
Por trás de todo esse horror que não parece mais horror, de tão “natural”,
está aquela matriz perversa que preside o planeta, de
que falávamos: a injustiça social, o acúmulo desenfreado,
em poucas mãos, dos bens da terra, o domínio dos “fortes”,
que, por seu hedonismo pessoal e de classe, a tudo e todos
submete. Essa é a batuta que rege a orquestra da violência,
com todas as suas horrendas sinfonias. Dizendo de outra
forma: qual a relação entre as tripas de gente expostas,
ficcionais ou não (cenas vistas aos milhares por nossos
pequenos telespectadores e gamemaníacos) e a pobreza no
planeta? A relação é total e necessária, à partir de um
olhar mais crítico e atento. Se você ficar insensível
às tripas, ao sangue, aos assassinatos, às crueldades
explícitas, por uma correlação
de transferência inevitável, na sua psique, ficará
insensível também aos que morrem de frio ou fome na calçada
da sua rua, ficará insensível aos que tomam para morar
os viadutos, ficará insensível aos que habitam nas favelas,
ficará insensível aos que querem plantar e não possuem
terras, ficará insensível à extinção dos índios -apurada
pelos vermes, pela prostituição, pelo álcool e pelas doenças
dos brancos- ficará insensível aos moribundos desatendidos
nas filas dos hospitais, ficará insensíveis aos idosos-
tratados como trastes pela Previdência. Tudo faz parte
do espetáculo que você vê todos os dias, do circo de horrores
ao qual você já está tão familiarizado. A banalização
gera essa insensibilidade tão cara e tão necessária à
imobilidade do sistema, à sua sustentação passiva, à manutenção
de sua ordem perversa de privilégios. Por nos revoltaríamos,
se já estamos, desde crianças, tão acostumados? Por que
nos daríamos ao trabalho se, de todas as formas, somos
convencidos que nos cabe cuidar apenas de nós mesmos e
daqueles que nos são mais próximos? O outro é o distante,
aquele por quem não podemos sofrer, sob pena de não mais
podemos viver em um mundo tão eivado de sofrimentos. O
outro é a tragédia que precisamos evitar, para preservar-nos.
O outro é a estatística ou o frio símbolo imagético da
dor banal, a qual já nos acostumamos. É um mero reflexo
da tela de nossa TV.
Em síntese, para que o planeta continue presidido pela lógica da violência
é importante jogar, diariamente, nos lares das pessoas,
uma grande carga de sons e de imagens dessa mesma violência,
a fim de que se insensibilizem, se adaptem, sintam-se
pequenas e aplastadas para reagir diante de tal volume
de dor. O refúgio natural será um individualismo cínico
e compensatório no consumismo “garantidor” de salvação
da vala comum das desgraças que assolam a humanidade.
Nesse sentido, é de profundo simplismo afirmar que é a pobreza que gera
a violência. Algumas das cidades mais pobres do mundo
têm índices de violência inferiores aos de megalópolis
consideradas ricas. Os pobres, de maneira geral, são pacíficos,
honestos e trabalhadores. Diria mesmo que são heróicos
em sua resistência moral. Sabe-se que são melhores pagadores
de dívidas, respeitadores de filas, cordatos no trato
do dia-a-dia. Há, entre eles, criminosos, como há em todo
lugar. Certamente, pelo imenso contingente populacional
de pobres em um país como o Brasil, contudo, perceberemos,
em fácil evidência empírica, que os percentuais de delinquentes
entre as classes mais favorecidas é muito mais alto.
Assim, o que gera a violência explícita em atos de agressão, que a todos
apavora, não é a pobreza mas a soma da injustiça social
com o consumismo desenfreado como ideologia onipresente
e dominante. Acabo de ler uma entrevista com especialista
norte-americano, autoridade em arquitetura, que discute
a reconstrução das torres gêmeas em New York. Ele crê
que a corrente de pensamento que deveria vencer é a que
defende que as Torres sejam reconstruídas com trinta andares
a mais. Pensa que esse fenômeno seria comparável ao que
ocorria na Idade Média quando, em conflitos, as catedrais
eram reduzidas a pedras e depois reconstruídas ainda maiores
com o fito de demonstrar poder e pujança. O que me impressionou
em seu depoimento foi a forma aparentemente neutra, não
crítica, com que justifica esse proposto movimento: “Nós
vivemos em um mundo que substituiu Deus pelo mercado”
(numa óbvia analogia entre as Torres e as antigas Catedrais).
É precisamente o que está acontecendo.
Por isso há uma profusão de teses comparando o consumismo a uma religião . Não sou contra o
consumo mas creio que reduzimos drasticamente o sentido
de nossas vidas ao limita-las a isso. As pessoas vivem
numa perspectiva exclusiva de consumir, mergulhadas no
que alguém chamou de “dimensão bovina da existência”.
Ora, essa onipresença da razão consumista, essa obrigatoriedade
incessante, essa compulsão doentia, quando se choca com
o paradoxo da miséria que não consome mas anseia por consumir
e legitimar-se perante a vida como a concebe o mercado,
só pode gerar tremendas , sucessivas e crescentes ondas
de violência. Como já afirmei, os percentuais de delinquência
entre as massas famélicas são inexpressivos em números
relativos (vivemos em um mundo rico onde quase todos são
pobres ou estão abaixo da linha da pobreza e, entre essas
grandes massas, é baixo o percentual estatístico dos que
enveredam pela senda do crime). Contudo, em números absolutos,
os que perdem totalmente a noção moral de limites é suficiente
para que vivamos com medo, trancafiados em nossas casas.
Como fenômeno social, corresponde aos grupos que “enlouqueceram”
de frustração regada à super-estimulação de desejos. A
violência da criminalidade é uma das doenças sociais do
consumismo como proposição para todos e como realização
para poucos.
Ilustrando esse processo, basta pensarmos que a quase totalidade da população
brasileira possui televisão. Algo como 11 ou 12 % apenas
não têm acesso a ela (e suponho que apenas nas regiões
onde não há energia elétrica, de maneira geral). Então,
o sujeito mora na favela mas tem TV. A TV aberta é, ainda,
a mais disputada pelo capital, aquela que chega a todo
mundo. A TV paga não se popularizou suficientemente, uma
vez que parece refluir com a crise da classe média. Nela
estão os programas “elegantes”, que poderiam vender produtos
elegantes, porque assistidos por “gente elegante”. Contudo,
como dito acima, historicamente esses canais ainda não
juntaram forças para serem as grandes vitrines do consumo.
A TV aberta ainda é a que todo mundo assiste, portanto
a que melhor vende todo tipo de coisas. Em associação
com os Shoppings, é a catedral eletrônica, altar dos deuses
de nossa civilização. Nossos deuses não são feitos só
para a adoração. Precisamos possuí-los para que eles nos
possuam. Há uma espécie de processo de “interpenetração”,
que fica irremediavelmente frustrado se apenas os adoramos,
sem leva-los para casa. Esse é o problema daquele sujeito
que mora na favela: está excluído do “círculo de pureza”
da religião do capital. Fica eternamente no “pátio dos
gentios”, porque precisa adorar de longe, sem privar do
convívio íntimo com os ídolos. Se esse sujeito tem 15
ou 16 anos , uma família ausente, uma educação escolar
inexistente ou inexpressiva e não faz parte de nenhum
grupo artístico, esportivo, voluntário ou verdadeiramente
religioso, facilmente surta pelo consumo, comete infrações,
crimes, e tal surto pelo consumo e por um lugar material
ao sol se vai cronificando sem respeitar qualquer forma
de limite, nem mesmo a morte própria ou alheia.
Por isso, há algum tempo atrás, no Rio de Janeiro, durante reunião que
debatia formas de minimizar a violência, um líder comunitário
sugeriu ao Governo comprar determinada marca de tênis
e distribuir aos jovens da favela. A maioria riu mas essa
foi uma legítima expressão da pragmática sabedoria popular.
Aquele homem sabia o que mobiliza o imaginário da criminalidade.
Sabia o que, pontualmente, poderia aplacar um pouco a
violência.
O tal tênis, aliás, é produzido na Ásia também por crianças e adolescentes
em condições de escravidão. Questionada, a fábrica diz
que lamenta, mas “respeita a cultura de trabalho asiática”.
São todos tentáculos de uma mesma cabeça...
Conta-se, sobre esse tênis, que famoso publicitário brasileiro, com veia
humorística, resolveu constranger uma jovem jornalista
que perguntou-lhe o que havia achado da última campanha
publicitária da marca. “Dobre a língua”, disse ele. “Não
trate o tênis “X” como apenas um tênis e nada mais!” “Como
assim?”, retrucou a jornalista. “Ele é mais que um tênis”,
respondeu o publicitário. “É um estilo de vida, é uma
filosofia. É, na verdade, uma religião. Saiba que quem
não for dessa religião não será salvo!”.
O que emblematiza esse tênis que nós, críticos da religião do mercado,
estigmatizamos tanto? Emblematiza todos as coisas que
dão identidade ao mundo em que vivemos, identidade artificial
que rouba de nós, humanos, o papel de sujeitos de nossa
própria história. O recurso à analogia religiosa é plenamente
válido. Lamentavelmente, mentimos quando dizemos que vivemos
em um mundo cristão, que é o cristianismo a religião dominante
em nossa civilização. Vivemos sob a égide do “consumismo”,
de seus ritos, crenças, paramentos e catedrais. Como participar
dessa religião? Para os meninos e meninas da classe média
e alta o ingresso no céu pode ser pegar a mesada, passar
no Shopping, comprar, “resolver”, assim, todas as questões
existenciais e, por um tempo, parecer feliz. Estarão,
dessa forma, vestidos com os paramentos da religião dominante
e terão a concessão de entrada para todos os templos do
consumo e da diversão. Se a crise existencial, típica
da idade, apertar, é porque saiu um produto novo no mercado.
O jeito é ir até lá e renovar o paramento. Os meninos
crescem e suas necessidades evoluem para carros, casas
e viagens. Depois, como todos, eles morrem. Estiveram
aqui para comprar e colecionar. Não lembraram de avisa-los
que as coleções ficam e eles partem. É um crime contra
essas pessoas, que não são menos escravas do que aquelas
sem poder aquisitivo.
Os meninos e meninas da favela que possuem bons valores familiares e presença
marcante de adultos moralmente conscientes em suas vidas
aprendem a resignar-se à frustração da periferia do culto.
Alguns, que não possuem esses valores, vão para as cercanias
das escolas chiques, matam e morrem se preciso, para usar
as vestes sagradas...Precisam delas para entrar nos templos
sem serem ridicularizados (ou, em algumas cidades, para
não serem enxotados pelos seguranças que cuidam para que
no ambiente só haja pessoas “de boa aparência”). Aí a
gente diz, escandalizada: ‘Parece que um tênis vale mais
do que uma vida!’ Não senhores e senhoras, não parece:
vale mesmo. Na lógica perversa que aprendemos do sistema,
a vida sem o tal tênis (e todos os outros produtos) não
tem sentido. É claro que essa violência estrutural, necessária
à dinâmica mesmo de funcionamento do deus mercado, já
fugiu há muito do limite último de controle desejado.
Ao atingir os filhos da elite, esta reclama da “onda de
violência”. Mas não pode fazer nada muito além (além da
repressão pontual, por exemplo), sem recusar suas próprias
bases de sustentação. São contradições insolúveis diante
da desmesurada ganância. É o preço a pagar. Em relação
às crianças e adolescentes , aliás, há muitos séculos
a lógica econômica, que dá o tom da lógica cultural ,
é perversa. Até o século XVII, antes do advento da industrialização,
crianças e adolescentes não tinham valor nenhum. Filhos,
era preciso “fazer muitos para sobrarem alguns”. Não havia,
ainda, com as formas de produção agrícola de então, grande
carência de mão-de-obra no mercado. Com o advento da Revolução
Industrial e o enfoque na produção, crianças e adolescentes
passaram a valer como futuras mãos-de-obra, em uma visão
protetiva dos mesmos, autoritária, que alcançou os dias
dos nossos pais. À partir dos anos 60 e 70 até os nossos
dias, com o crescente enfoque não mais na produção de
bens palpáveis mas nos serviços (a economia mundial, hoje,
não pode mais, facilmente, ser caracterizada como industrial),
as crianças e os adolescentes passaram a ser “consumidores”
(daí a anomia dos pais e o crescente domínio dos filhos
sobre eles- e sobre suas bolsas). Após o abandono do autoritarismo
protetivo adulto, vivemos a era do abandono da autoridade
diante da necessidade de extensão, às novas gerações,
do poder de consumo.
Quero pedir desculpas por esta dissertação tão negativa. Não se pense que,
por assim ser, ela seja desesperançada. Trata-se, muito
mais, de uma provocação de alerta, para que sejamos menos
ingênuos e para que paremos de nos debater rumo ao nada.
Conhecer minimamente as dinâmicas do sistema é fundamental
para desconstruí-lo. Superar os discursos ingênuos pela
paz pode retirar-nos de nossa inocuidade. Para construirmos
a paz é doloroso mas forçoso que passemos pela “não paz”,
por sua compreensão bem situada à luz de uma consciência
crítica, política e moral. Não poderemos construir a paz
se continuarmos acreditando que a violência é um fenômeno
de geração espontânea, fundado simplesmente na destrutividade
e na perversidade inerentes psicologicamente ao ser humano
e ao inconsciente coletivo. A violência é um fenômeno
estrutural, planejado e necessário para a sobrevivência
de um sistema fundado, presidido e mantido
pela lógica perversa do crime, da exploração e
da exclusão. É por isso que é banalizada. Tendo essa consciência
, a gente dá uns 50% dos passos pra começar a resolver,
porque identifica as raízes.
Saídas? Não há “receita de bolo”. Há pistas, contudo. Que cada um use da
própria sabedoria para construir suas próprias formas
e partilha-las com a comunidade.
Além disso, apenas alguns apontamentos:
1º. É fundamental que a sociedade brasileira rume para um efetivo
controle social dos meios de comunicação, hoje exclusivamente
controlados pela normatização e pela censura do capital.
Que nenhum programa de humorismo ouse, novamente, passar
uma cena como aquela da senhora gorda sendo retirada das
águas de Copacabana, com uma faixa ao fundo onde se escreveu
: “Salvem as baleias”. Que isso cause indignação na consciência
nacional, que se peça o cumprimento da lei, a assunção
do obrigatório caráter educativo, o fechamento da emissora
até se regular por padrões de decência e respeito às leis
e à cidadania. Isso supõe cultura popular e cultura popular,
no caso, passa pela organização de associações de defesa
dos direitos dos consumidores da mídia. Estamos longe,
infelizmente, mas é preciso apontar a utopia (realizável)
para que nos lancemos à sua busca. Pelo fim da lavagem
cerebral, que nenhuma emissora possa mais nos fazer de
bobos, usando dos “mecanismos hipnóticos” aos quais se
referem Bourdieu
e Debord, por exemplo (Ver: Debord,Guy, A Sociedade do Espetáculo, Editora Contraponto, Rio de Janeiro,
1997).
Não estou propondo, aqui, a volta da antiga censura ou o Estado assumindo
exclusivamente essa tarefa. Estou dizendo que a sociedade
tem que assumir o zelo pelo que é oferecido diariamente
a seus filhos e filhas;
2º. Precisamos resgatar a busca de utopias. Não me cabe dizer
quais as utopias. Talvez elas nem estejam formuladas.
É preciso que sejamos criativos. É lamentável aceitarmos
passivamente viver em um planeta onde as utopias faliram.
Deploro o fato mas creio que se o grande atentado nos
EUA pode trazer-nos alguma reflexão de significado devemos
aproveita-lo para repensar o sistema, para reconhecer
que as coisas, como estão, se tornaram insustentáveis,
chegaram a seu limite último. Se não sonharmos mais, nossos
jovens também desaprenderão a sonhar, não terão mais provocações
construtivas em suas vidas (cabe-nos, como adultos, desafiá-los
à dimensão do sonho, da “magia” criativa, dando o exemplo).
Precisamos assumir que vivemos tempos existencialmente
medíocres de glória tecnológica e ousar uma reflexão permanente
de sentido.
3º. O voluntariado é fundamental para o bem-estar da sociedade
e a citada pesquisa do professor Putnam comprova que uma
característica de todos os povos que deram bem-estar às
suas populações é que viveram uma história de profundo
engajamento cívico, de trabalho voluntário.
4º Digo, ainda, como
conclusão, que precisamos
retomar nosso papel de adultos, como desafiadores da
formação de consciências morais autônomas. Precisamos
ser multiplicadores de consciência, por exemplo, através
da paternidade, da maternidade e do magistério. As escolas,
nesse campo, têm missão fundamental. Está mais do que
na hora de deixarem de ser meras ”transmissoras de conteúdos”
(função ridiculamente pretensiosa da qual se arvoraram,
acriticamente, com o beneplácito do mercado). É preciso
que repensemos as escolas, nos marcos da visão piagetiana
ou de outros grandes mestres convergentes, como provocadoras
sistêmicas de reflexões e práticas que ajudem a estruturar
nas crianças e jovens o chamado “juízo moral autônomo”.
Sem isso, toda nossa ciência e tecnologia continuarão
desaguando em modelos de desenvolvimento insustentáveis
que, a seguir no atual ritmo, nos levarão à ruína e à
extinção.
Não quero dizer, com isso, que os conteúdos escolares não sejam importantes.
Digo apenas que são veículos para chegarmos a projetos
pessoais e sociais sustentáveis, solidários,e libertadores.
Também a família precisa assumir seu papel. Dialogando, perguntando, instigando
a consciência de seus filhos, até mesmo tendo a coragem
de interferir balisadora e limitadoramente em um mundo
descontrolado por ilimitado hedonismo consumista de coisas
e pessoas coisificadas.
5º Sou um antigo militante dos direitos humanos. Com vinte e
cinco anos de dedicação a essa causa, me sinto insuspeito
para propor o que segue: precisamos ousar falar mais em
deveres, em um planeta que só fala em direitos (ainda
que não os respeite, no caso da maioria). Um jurista disse-me
que deveres estão pressupostos nos direitos e basta. Não
creio. Vivemos em uma cultura hedonista e não queremos
reconhecer limites. Não se respeitam os Direitos Humanos
porque não se assumem as responsabilidades dos Deveres
Humanos.
Finalmente, quero dizer que precisamos assumir nosso poder como sociedade.
Vivemos em um país com mais de 500 anos de história de
espera. É grave o fato de, no Brasil, o Estado ter surgido
muito antes da Nação. Alguns historiadores dizem que a
nação emergiu com face própria apenas no período do Estado
Novo. E era uma face horrenda, extremamente autoritária.
Assim, vivemos, até hoje, filial e ingenuamente, esperando
que o Estado resolva os nossos problemas.
É claro que temos que cobrar do Estado, é claro que temos que pressiona-lo,
mas só isso não resolve. Não resolve se não “arregaçarmos
as mangas” e não fizermos a nossa parte para que as coisas
se transformem. É uma grande injustiça dizer que “cada
povo tem o Governo que merece”. Há povos bons, como o
brasileiro que, historicamente, não tiveram, de maneira
geral, os Governos que mereciam. Permitam-me, contudo,
reformar um pouco a frase, e ela assumirá uma grandeza
de desafio impulsionador, não paternalista: “Cada povo
é responsável pelos Governos que tem”.
Está, há muito, passada a hora de pararmos de esperar e lamentar-nos. 500
anos de insatisfações inócuas não resolveram os problemas
do Brasil. Somos um país de cultura poliqueixosa e nela
nutrimos nossa alienada sensação de dever cumprido. Nada
se transforma por isso. Tal retórica não faz sequer cócegas
no sistema, que tem larga prática de como reagir com indiferença.
É preciso que, lá onde estamos,
assumamos o poder de fazer com qualidade crítica
e criativa o nosso trabalho de transformação das consciências.
Há uma singela história, expressão do saber popular, que quero contar para
encerrar, ilustrando este último apontamento:
Conta-se que um famoso escritor mexicano, há muitos anos, foi passar suas
férias em bela praia da costa mexicana. Costumava acordar
todas as madrugadas e caminhar pela areia, em hora que
a maré se encontrava muito baixa. Nessas caminhadas, todos
os dias, via ao longe um vulto que se agachava, juntava
algo na areia e jogava ao mar.
Homem refinado, disse a si mesmo: ‘Estou curioso mas não vou me aproximar,
em respeito à privacidade do cidadão.’
Um dia antes de partir, no entanto, a curiosidade venceu. Aproximou-se
e encontrou um velho índio mexicano. Magro, roupa rota,
frágil. Admirou-se ainda mais, ao pensar no vento frio
daquela hora, fustigando o homem de idade avançada.
-“Cidadão, desculpe burlar a sua privacidade. Vou-me embora amanhã e antes
gostaria de perguntar-lhe algo. Todas as madrugadas venho
fazer minha caminhada e o vejo, ao longe, durante mais
ou menos uma hora, abaixar-se, juntar algo na areia e
jogar ao mar. O que faz?”
-“É muito simples, Doutor. Nós índios amamos muito a Mãe Terra com tudo
o que a compõe. Um dos meus projetos de vida é vir aqui
todas as madrugadas para salvar essas lindas estrelas-do-mar
que estão morrendo encalhadas. Olhe em volta! Veja que
maravilhosas!”
O escritor não contém uma gargalhada.
-
“Meu velho, desculpe rir do senhor.
Creio que é um homem de bom coração mas muito ingênuo.
Chama isso de projeto de vida? É perda de tempo! Por sua
pobreza, desculpe dizer, imagino que nunca tenha saído desta praia. Eu,
no entanto, conheço praticamente toda a costa mexicana
e quero contar-lhe algo lamentável:
nesta mesma hora, há dezenas de praias parecidas
com esta, onde milhares de estrelas-do-mar morrem
sem que possamos fazer nada. Vá para casa, proteger
a sua saúde e guardar, assim, a sua velhice. O que o senhor
está fazendo não vai adiantar nada!”
O velho índio se agacha, junta uma
estrela mais na areia, joga-a ao mar e aponta para ela
com a mão enrugada.
-
“Viu aquela que eu joguei?”
-
“Vi, e daí?”
-
“O senhor disse que não vai adiantar
nada devolve-las ao mar, que há muitas delas morrendo.
Só sei de uma coisa: para aquela que acabei de jogar vai
fazer toda a diferença!”
Dizem-não sei se é verdade- que
no dia seguinte havia duas pessoas catando estrelas.
As nossas estrelas-do-mar são as pessoas que convivem conosco, os nossos
familiares, os nossos filhos e filhas, nossas esposas,
nossos maridos, as crianças da nossa escola, as pessoas
da nossa ONG, aqueles a quem nós atendemos, aqueles a
quem nós tentamos beneficiar de alguma maneira. Salvar
essas estrelas, não solitariamente, mas junto a elas,
é a mais bela missão para dar sentido às nossas vidas.
Talvez não mude tudo do dia para
a noite, mas ao longo do tempo, com certeza, com o afinco
que tivermos, com a vontade que cultivarmos, com a paixão
que manifestarmos, esse mundo que ocupamos será um pouco
diferente por nossa causa.
Há uma velha sabedoria oriental que diz: “é melhor acender uma vela do
que maldizer a escuridão”.
Brilhemos. A chama somos nós.
Referências Bibliográficas
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Rio de Janeiro, 1.997;
Carlson e Feilitzen(orgs). A Criança
e a Violência na Mídia, Cortez Editora/ Edições
UNESCO do Brasil, São Paulo, 1.999;
Debord,Guy. A Sociedade do Espetáculo, Editora Contraponto,
Rio de Janeiro, 1.997;
Dejours, Christophe. A Banalização
da Injustiça Social, Editora FGV, Rio de Janeiro,
2.000;
Duska, R. e Welan,M. O Desenvolvimento
Moral na Idade Evolutiva, Edições Loyola, São Paulo,
1.994;
Morin, Edgard. Ciência com Consciência,
Editora Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 1.996;
Piaget, Jean. O Juízo Moral na
Criança, Summus Editorial, São Paulo, 1.994;
Putnam, Robert. Comunidade e Democracia,
Fundação Getúlio Vargas Editora, Rio de Janeiro, 1.996;
Quinn, Daniel. Ismael,
Ed. Fundação Peirópolis, Rio de Janeiro,1.998.