Carlos Alberto Barcellos
Cotidiano e Escola, razões para fazer e para
sonhar
" Tente, de alguma maneira, fazer alguém feliz.
Aperte a mão, dê um abraço, um passo em sua direção. Aproxime-se,
sem cerimônia. Dê um pouco de calor de seu coração. Assente-se
bem perto e deixe-se ficar, muito tempo, ou pouco tempo. Não
conte tempo de dar. Deixe o sorriso acontecer. E não se espante,
se a pessoa mais feliz for você."
( Clara e Marcio Miranda)
Peço licença aos meus amigos da Associação
de Educação Católica do Brasil (AEC) para adotar, neste prefácio,
o mesmo título de seu Congresso Brasileiro ocorrido em julho
de 2001, na cidade de Curitiba. Certamente as motivações da
AEC em discutir o cotidiano da educação e a educação do cotidiano
não são reflexões diferentes daquelas que hoje são promovidas
em todos os cantos do Brasil.
A Secretaria de Estado dos Direitos Humanos,
por exemplo, através, do programa PAZ NAS ESCOLAS, vem construindo
com o conjunto dos educadores do Brasil uma experiência que
permite ir além da mera repetição de uma educação domesticadora,
castradora da criatividade, estática e bancária. Quando falo
aqui em educadores, falo em todos os sujeitos que contribuem
na formação de outros sujeitos, onde a educação do cotidiano
torna-se, de fato, a condição e a compreensão que todo o educando
adquire para o exercício de outros direitos, já que a educação
é condição necessária para que isso aconteça.
Olhando esse cotidiano, salta aos olhos que
vivemos uma grande crise de sentido. Crise marcada pela inexistência
de valores que sejam bons fundamentos da estrutura da personalidade
das crianças e adolescentes e da organização da sociedade
onde eles transitam.
Falar que clamamos por uma sociedade ética,
justa, tolerante e solidária é explicitar, aqui, aquele que
é o sonho de cada ser humano. A crise de sentido de vida nasce
da ausência e da incapacidade de enxergarmos experiências
que reforcem a Utopia.
O cotidiano é domesticador, é estático. Ele
amordaça a capacidade criadora e de participação das pessoas.
Vivemos, também, um cotidiano marcado por profunda
crise de identidade. Não apenas uma crise de ordem pessoal
mas crise de instituições que não tem clareza de sua identidade.
Às vezes, quando conseguem definir alguma identidade em discursos
e explicitações bem articuladas, acabam desmentindo-se em
múltiplas formas de práticas implícitas que reforçam o modelo
educativo autoritário e imobilizante.
A crise de identidade nasce da incapacidade
das instituições e de seus sujeitos responderem às perguntas
fundamentais que indicam o início de um Projeto. Perguntas
como: Que escola queremos?, Em nome de quem educamos?, Qual a nossa Utopia?,
Que tipo de relações humanas queremos gestar?... Sem
dúvida, uma “educação” repetida mecanicamente no cotidiano
não pode conseguir vislumbrar respostas a estes questionamentos,
mergulhada que está na repetição das mesmas fórmulas passadas
de geração a geração.
O conteúdo pré estabelecido, o professor falando
todo o tempo e sozinho, a avaliação excludente e classificatória, a neurose do vestibular, são
características de uma escola morta, acomodada, incapaz de
sonhar e, por isso, incapaz de gerar encanto. De fato, a crise
de sentido existente no macro-sistema é reproduzida nesse
micro-sistema chamado Escola.
Tenho me perguntado sobre quem paga essa conta.
Creio que ela é paga por todos nós, na medida em que nos imobilizamos,
deixamos de ousar e garantir que a Escola seja um lugar propício
para a experiência vital do protagonismo, em especial do protagonismo
juvenil.
Parece que precisamos enfrentar com coragem
as armadilhas que o cotidiano nos traz. Para isso, é importante
que as identifiquemos- pelo menos algumas delas- com clareza.
Para fazê-lo, busco inspiração no tema do Congresso que citava
acima.
A primeira armadilha do cotidiano é acharmos que podemos transformar a escola sem
transformarmos a nós mesmos e ao nosso modo de pensar sobre
ela. É preciso coragem para percebermos que muito da
transformação passa pela revisão de nossa forma de pensar,
sentir e fazer educação.
A segunda armadilha é pensarmos que o maior projeto que podemos construir consiste na elaboração
do documento central e final da escola, seu Marco Referencial,
certamente muito bem escrito, certamente com uma belíssima
capa, guardado em alguma gaveta qualquer para quem quiser
ler de vez em quando.
A terceira armadilha é acharmos que o Projeto Pedagógico definido e assumido não trará fortes
conseqüências para o dia a dia da instituição. Conseqüências
aqui chamadas de metodologia,
de span
style='mso-bidi-font-style:italic'>novo jeito de avaliação, de nova forma de inserção na comunidade,
enfim, de Projeto
que mexe nas relações humanas.
A quarta armadilha é aquela que nos propõe
como indiferente
o modelo de planejamento que escolhemos, como se fosse
possível coadunarmos uma forma de planejamento que só avalia
produto (índices de aprovação em vestibular) com outra que
brota das perguntas que aqui nos fazemos.
A quinta armadilha é aquela que nasce da nossa
ânsia imediatista,
quando concluímos que basta apenas planejarmos a
curto prazo.
Parecida com esta é acharmos que o projeto político-pedagógico da escola é um documento como
qualquer outro, para se ler como quem lê a ata da formatura.
Esta é a sexta armadilha.
A sétima é muito importante: julgar que o currículo oculto e a linguagem
não verbal são irrelevantes. Se assim procedermos,
estaremos passando um atestado de incompetência. Tudo na instituição
fala (os cartazes colocados nas paredes, as festas, as normas...)
e reafirma os postulados da violência ou constrói a paz.
Enfim, a primeira parte deste prefácio, em
consonância com o restante do livro, quis, desde já, começar
a levantar discussão a respeito do cotidiano da educação que
fazemos. Se antes falávamos em crise de sentido, agora devemos
afirmar que a escola deve ser local gerador da ética, da cidadania,
da saúde e da paz.
Terezinha Rios, em seu livro Ética e Competência, afirma que esta
tal competência precisa ser traduzida em um saber fazer bem.
Saber fazer bem do ponto de vista ético. Logo, é mister que
tenhamos clareza e convicção dos fundamentos que sustentam
nossa prática. Saber fazer bem traduzido no compromisso, nosso,
no dia-a-dia da prática da cidadania participativa e saber
fazer bem tecnicamente, traduzido na forma segura, generosa,
competente e comprometida com a dignidade humana. Esse saber
técnico, humanamente orientado, deve acontecer todos os dias
no exercício de nossa profissão.
Saber fazer bem, igualmente, é perceber que
vivemos o tempo da descoberta das múltiplas
inteligências. Paz também é respeitar e promover as
diferenças no plano das características individuais. Não é
mais possível pensarmos a educação centrada apenas na inteligência
lógico-matemática e na inteligência lingüística. Quem desconhece
e não ousa aproximar-se da cinestesia, da música, da dança,
do teatro, tende a parar na história. A educação do cotidiano
exige a presença da emoção, da sensibilidade, da corporeidade,
da afetividade e da garantia de um mergulho profundo naquilo
que de fato é essencial na construção de um ser humano dotado
de autonomia moral e intelectual, capaz de edificar relações
de reciprocidade e de assumir responsavelmente seu protagonismo.
Uma educação do cotidiano capaz de promover
Redes de Engajamento Cívico. Educação, de fato, comprometida
com a comunidade. A escola voltada para a comunidade e aberta
a intercambiar com essa comunidade. Educadores realmente engajados
na melhoria e na transformação das condições de vida de seus
lugares. Educadores formais ou não formais. Educadores policiais,
professores, educadores que lidam com drogaditos, educadores
ambientais, educadores que trabalham com deficientes, enfim
todos aqueles que, de múltiplas maneiras, lançam-se a melhorar
a sociedade. Uma educação do cotidiano que construa o sentido
de vida, que realize concretamente experiências de engajamento
social, gerando, gradativamente, uma expressiva cidadania
organizada.
A escola que assume como mandato a transformação
do cotidiano é aquela que tem clareza de que é lugar por excelência
da construção da cidadania e da paz. É ali, também, que se
plasma a edificação da identidade dos sujeitos em formação,
de maneira pessoal e coletiva. Na escola, crianças, adolescentes
e jovens não apenas podem conhecer instrumentos de participação
política mas igualmente vivencia-los real e efetivamente.
Por fim, a escola que opta pela transformação
do cotidiano assume um compromisso social em educação pois
reconhece que o mesmo é valor humano e direito fundamental.
"Muitas coisas de que temos necessidade
podem esperar, a criança não pode esperar. Agora mesmo ela
cresce, consolida seus ossos, cria seu sangue e ensaia seus
sentidos.Não se lhe pode responder amanhã: ela se chama agora."
(Gabriela Mistral)
A educação do cotidiano requer um educador
que conheça sua tarefa e faça o que deve ser feito. Um educador
capaz de viver pessoal e comunitariamente sua experiência
educativa, apaixonado pelo que faz porque é alguém desacomodado.
Sua metodologia de trabalho provoca revisão de vida e constante
convite para uma interação de grupo. Tem convicção e conduz
de forma afetiva as questões centrais que envolvem as vidas
das crianças, adolescentes e jovens com quem trabalha. Possui
liderança sem tolher a liberdade de participação. Sua grande
gratificação é perceber o despertar de sujeitos dotados de
autonomia moral e intelectual. O educador do cotidiano conhece
as causas de suas lutas. É alguém que usa o espaço do seu
fazer técnico para deixar-se perpassar pelas grandes questões
da vida humana que chegam na chamada transversalidade. Enfim,
é alguém que revisa sempre sua vida e sua prática social.
Pergunta sempre pelos valores e pelas causas que norteiam
seu fazer educativo. Assume o seu projeto político pedagógico
como testemunho da palavra empenhada.
Paulo Freire, entre tantas coisas marcantes
que nos legou, deixou-nos uma provocação que nasceu de uma
das muitas falas suas, cujo título sugestivo foi traduzido
numa pergunta "COMO COMEÇAR SEGUNDA FEIRA"?
Não pare de sonhar. Persiga a Utopia.
"Ela está no horizonte. Aproximo-me dois
passos, caminho dez passos e o horizonte fica dez passos mais
longe. Por muito que eu caminhe, nunca o alcançarei.
Para que serve a UTOPIA? Serve para isso: para caminhar."
(Eduardo Galeano)
Este é o convite que faço a todos nós. A você
que me lê e que lerá o conjunto desta obra convido a, corajosamente,
revisar a forma como anda acontecendo o seu cotidiano educativo
e, nele, como se inserem as vivências de construção da paz.
Peço mais: discuta isso na sua escola. Problematize. Pergunte.
Inquiete. Desacomode. Questione certezas. Trabalhe em grupo.
Saia para conhecer sua comunidade.
É preciso ser permanentemente um aprendiz.