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Direitos Humanos e Literatura

ANTONIO CÂNDIDO

I 

O assunto que me foi confiado nesta série é aparentemente meio desligado dos problemas reais: “Direitos humanos e literatura”. As maneiras de abordá-lo são muitas, mas não posso começar a falar sobre o tema específico sem fazer algumas reflexões prévias a respeito dos próprios direitos humanos.

É impressionante como em nosso tempo somos contraditórios neste capítulo. Começo observando que em comparação a eras passadas chegamos a um máximo de racionalidade técnica e de domínio sobre a natureza. Isto permite imaginar a possibilidade de resolver grande número de problemas materiais do homem, quem sabe inclusive o da alimentação. No entanto, a irracionalidade do comportamento é também máxima, servida frequentemente pelos mesmos meios que deveriam realizar os desígnios da racionalidade. Assim, com a energia atômica podemos ao mesmo tempo gerar força criadora e destruir a vida pela guerra: com o incrível progresso industrial aumentamos o conforto até alcançar níveis nunca sonhados, mas excluímos dele as grandes massas que condenamos à miséria; em certos países, como o Brasil, quanto mais cresce a riqueza, mais aumenta a péssima distribuição dos bens. Portanto, podemos dizer que os mesmos meios que permitem o progresso podem provocar a degradação da maioria.

Ora, na Grécia antiga, por exemplo, teria sido impossível pensar numa distribuição equitativa dos bens materiais, porque a técnica ainda não permitia superar as formas brutais de exploração do homem, nem criar abundância para todos. Mas em nosso tempo é possível pensar nisso, e no entanto pensamos relativamente pouco. Essa insensibilidade nega uma das linhas mais promissórias da história do homem ocidental, aquela que se nutriu das idéias amadurecidas no correr dos séculos XVIII e XIX, gerando o liberalismo e tendo no socialismo a sua manifestação mais coerente. Elas abriram perspectivas que pareciam levar à solução dos problemas dramáticos da vida em sociedade. E de fato, durante muito tempo acreditou-se que, removidos uns tantos obstáculos, como a ignorância e os sistemas despóticos de governo, as conquistas do progresso seriam canalizadas no rumo imaginado pelos utopistas, porque a instrução, o saber e a técnica levariam necessariamente à felicidade coletiva. No entanto, mesmo onde estes obstáculos foram removidos a barbárie continuou impávida entre os homens.

Todos sabemos que a nossa época é profundamente bárbara, embora se trate de uma barbárie ligada ao máximo da civilização. Penso que o movimento pelos direitos humanos se entronca aí, pois somos a primeira era da história em que teoricamente é possível entrever uma solução para as grandes desarmonias que geram a injustiça contra a qual lutam os homens de boa vontade, à busca, não mais do estado ideal sonhado pelos utopistas racionais que nos antecederam, mas no máximo viável de igualdade e justiça, em correlação a cada momento da história.

Mas esta verificação desalentadora deve ser compensada por outra, mais otimista: nós sabemos que hoje existem os meios materiais necessários para nos aproximarmos desse estágio melhor, e que muito do que era simples utopia se tornou possibilidade real. Se as possibilidades existem, a luta ganha maior cabimento e se torna mais esperançosa, apesar de tudo o que o nosso tempo apresenta de negativo. Quem acredita nos direitos humanos procura transformar a possibilidade teórica em realidade, empenhando-se em fazer coincidir uma com a outra. Inversamente, um traço sinistro do nosso tempo é saber que é possível a solução de tantos problemas e no entanto não se empenhar nela. Mas de qualquer modo, no meio da situação atroz em que vivemos há perspectivas animadoras.

É verdade que a barbárie continua até crescendo, mas não se vê mais o elogio, como se todos soubessem que ela é algo a ser oculto e não proclamado. Sob este aspecto, os tribunais de Nuremberg foram um sinal de novos, mostrando que já não é admissível a um general vitorioso mandar fazer inscrições dizendo que construiu uma pirâmide com as cabeças dos inimigos mortos, ou que mandou cobrir as muralhas de Nínive com as suas peles escorchadas. Fazem-se coisas parecidas e até piores, mas elas não constituem motivo de celebração. Para emitir uma nota positiva no fundo do horror, acho que isso é um sinal favorável, pois se o mal é praticado, mas não proclamado, quer dizer que o homem não o acha mais tão natural.

No mesmo sentido eu interpretaria certas mudanças no comportamento cotidiano e na fraseologia das classes dominantes. Hoje não se afirma com a mesma tranquilidade do meu tempo de menino que haver pobres é a vontade de Deus, que eles não têm as mesmas necessidades dos abastados, que os empregados domésticos não precisam descansar, que só morre de fome quem for vadio – e coisas assim. Existe em relação ao pobre uma nova atitude, que vai do sentimento de culpa até o medo.

Nas caricaturas dos jornais e das revistas, o esfarrapado e o negro não são mais tema predileto das piadas, porque a sociedade sentiu que eles podem ser um fator de rompimento do estado de coisas, e o temor é um dos caminhos para a compreensão.

Sintoma complementar eu vejo na mudança do discurso dos políticos e empresários quando aludem à sua posição ideológica ou aos problemas sociais. Todos eles, a começar pelo Presidente da República, fazem afirmações que até pouco seriam consideradas subversivas e hoje são parte do palavreado bem-pensante. Por exemplo, que não é mais possível tolerar as grandes diferenças econômicas, sendo necessário promover uma distribuição equitativa. É claro que ninguém se empenha para que de fato isto aconteça, mas tais atitudes e pronunciamentos parecem mostrar que agora a imagem de injustiça social constrange, e que a insensibilidade em face da miséria deve ser pelo menos disfarçada, porque pode comprometer a imagem dos dirigentes. Esta hipocrisia generalizada, tributo que a iniquidade paga à justiça, é um modo de mostrar que o sofrimento já não deixa dão indiferente a média da opinião.

Do mesmo modo, os políticos e empresários de hoje não se declaram conservadores, como antes, quando a expressão “classes conservadoras” era um galardão. Todos são invariavelmente de “centro”, e até de “centro-esquerda”, inclusive os francamente reacionários. E nem poderiam dizer outra coisa, num tempo em que a televisão mostra a cada instante em imagens cujo intuito é mero sensacionalismo, mas cujo efeito pode ser poderoso para despertar as consciências – crianças nordestinas raquíticas, populações inteiras sem casa, posseiros massacrados, desempregados morando na rua.

De um ângulo otimista, tudo isso poderia ser encarado como manifestação infusa da consciência cada vez mais generalizada de que a desigualdade é insuportável e pode ser atenuada consideravelmente no estádio atual dos recursos técnicos e de organização. Nesse sentido, talvez se possa falar de um progresso no sentimento do próximo, mesmo sem a disposição correspondente de agir em consonância. E aí entra o problema dos que lutam para que isso aconteça, ou seja: entra o problema dos direitos humanos.

 

II

 

Por quê? Porque pensar em direitos humanos tem um pressuposto: reconhecer que aquilo que consideramos indispensável para nós é também indispensável para o próximo. Esta me parece a essência do problema, inclusive no plano estritamente individual, pois é necessário um grande esforço de educação e auto-educação a fim de reconhecermos sinceramente este postulado. Na verdade, a tendência mais funda é achar que os nossos direitos são mais urgentes que os do próximo.

Nesse ponto, as pessoas são frequentemente vítimas de uma curiosa obnubilação. Elas afirmam que o próximo tem direito, sem dúvida, a certos bens fundamentais, como casa, comida, instrução, saúde – coisas que ninguém bem formado admite hoje em dia sejam privilégio de minorias, como são no Brasil. Mas será que pensam que o seu semelhante pobre teria direito a ler Dostoievskl ou ouvir os quartetos de Beethoven? Apesar das boas intenções no outro setor, talvez isto não lhes passe pela cabeça. E não por mal, mas somente porque quando arrolam os seus direitos não estendem todos eles ao semelhante. Ora, o esforço para incluir o semelhante no mesmo elenco de bens que reivindicamos está na base da reflexão sobre os direitos humanos.

A este respeito é fundamental o ponto de vista de um grande sociólogo francês, o dominicano Padre Louis-Joseph Lebret, fundador do movimento Economia e Humanismo, com quem tive a sorte de conviver e que atuou muito no Brasil entre os anos de 1940 e 1960. Penso na sua distinção entre “bens compressíveis” e “bens incompressíveis”, que está ligada a meu ver com o problema dos direitos humanos, pois a maneira de conceber a estes depende daquilo que classificamos como bens incompressíveis, isto é, os que não podem ser negados a ninguém.

Certos bens são obviamente incompressíveis, como o alimento, a casa, a roupa. Outros são compressíveis, como os cosméticos, os enfeites, as roupas extras. Mas a fronteira entre ambos é muitas vezes difícil de fixar, mesmo quando pensamos nos que são considerados indispensáveis. O primeiro litro de arroz de uma saca é menos importante do que o último, e sabemos que com base em coisas como esta se elaborou em Economia Política a teoria da “utilidade marginal”, segundo a qual o valor de uma coisa depende em grande parte da necessidade relativa que temos dela. O fato é que cada época e cada cultura fixam os critérios de incompressibilidade, que estão ligados à divisão da sociedade em classes, pois inclusive a educação pode ser instrumento para convencer as pessoas de que o que é indispensável para uma camada social não o é para outra. Na classe média brasileira, os da minha idade ainda lembram o tempo em que se dizia que os empregados não tinham necessidade de sobremesa nem de folga aos domingos, porque, não estando acostumados a isso, não sentiam falta... Portanto, é preciso  ter critérios seguros para abordar o problema dos bens incompressíveis, seja do ponto de vista individual, seja do ponto de vista social. Do ponto de vista individual, é importante a consciência de cada um a respeito, sendo indispensável fazer sentir desde a infância que os pobres e desvalidos têm direito aos bens materiais (e que portanto não se trata d exercer caridade), assim como as minorias têm direito à igualdade de tratamento. Do ponto de vista social é preciso haver leis específicas garantindo este modo de ser.

Por isso, a luta pelos direitos humanos pressupõe a consideração de tais problemas, e chegando mais perto do tema eu lembraria que são bens incompressíveis não apenas os que asseguram a sobrevivência física em níveis decentes, mas os que garantem a integridade espiritual. São incompressíveis certamente a alimentação, a moradia, o vestuário, a instrução, a saúde, a liberdade individual, o amparo da justiça pública, a resistência à opressão etc.; e também o direito à crença, à opinião, ao lazer e, por que não, à arte e à literatura.

Mas a fruição da arte e da literatura estaria mesmo nesta categoria? Como noutros casos, a resposta só pode ser dada se pudermos responder a uma questão prévia, isto é, elas só poderão ser consideradas bens incompressíveis segundo uma organização justa da sociedade se corresponderem a necessidades profundas do ser humano, a necessidade que não podem deixar de ser satisfeitas sob pena de desorganização pessoal ou pelo menos de frustração mutiladora. A nossa questão básica, portanto, é saber se a literatura é uma necessidade deste tipo. Só então estaremos em condições de concluir a respeito.

 

III

 

Chamarei de literatura, da maneira  ais ampla possível, todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações.

Vista deste modo a literatura aparece claramente como manifestação universal de todos os homens em todos os tempos. Não há povo e não há homem que possam viver sem ela, isto é,  sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação. Assim como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar as vinte e quatro horas do dia sem alguns momentos de entrega ao universo fabuloso. O sonho assegura durante o sono a presença indispensável desse universo, independentemente da nossa vontade. E durante a vigília a criação ficcional ou poética, que é a mola da literatura em todos os seus níveis e modalidades, está presente em cada um de nós, analfabeto ou erudito – como anedota, causo, história em quadrinho, noticiário policial, canção popular, moda de viola, samba carnavalesco. Ela se manifesta desde o devaneio amoroso ou econômico no ônibus até a atenção fixada na novela de televisão ou na leitura corrida de um romance.

Ora, se ninguém pode passar vinte e quatro horas sem mergulhar no universo da ficção e da poesia, a literatura concebida no sentido amplo a que me referi parece corresponder a uma necessidade universal, que precisa ser satisfeita e cuja satisfação constitui um direito.

Alterando um conceito de Otto Ranke sobre o mito, podemos dizer que a literatura é o sonho acordado das civilizações. Portanto, assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem a literatura. Deste modo, ela é fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade, inclusive porque atua em grande parte no subconsciente e no inconsciente. Neste sentido, ela pode ter importância equivalente à das formas conscientes de inculcamento intencional, como a educação familiar, grupal ou escolar. Cada sociedade cria as suas manifestações ficcionais, poéticas e dramáticas de acordo com os seus impulsos, as suas crenças, os seus sentidos, as suas normas, a fim de fortalecer em cada um a presença e atuação deles.

Por isso é que nas nossas sociedades a literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação, entrando nos currículos, sendo proposta a cada um como equipamento intelectual e afetivo. Os valores que a sociedade preconiza, ou os que considera prejudicial, estão presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia e da ação dramática. A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas. Por isso é indispensável tanto a literatura sancionada quanto a literatura proscrita; a que os poderes sugerem e a que nasce dos movimentos de negação do estado de coisas predominantes.

A respeito destes dois lados da literatura, convém lembrar que ela não é uma experiência inofensiva, mas uma aventura que pode causar problemas psíquicos e morais, como acontece com a própria vida, da qual é imagem e transfiguração. Isto significa que ela tem papel formador de personalidade, mas não segundo as convenções; seria antes segundo a força indiscriminada e poderosa da própria realidade. Por isso, nas mãos do leitor o livro pode ser fator de perturbação e mesmo de risco. Daí a ambivalência da sociedade em face dele, suscitando por vezes condenações violentas quando ele veicula noções ou oferece sugestões que a visão convencional gostaria de proscrever. No âmbito da instrução escolar o livro chega a gerar conflitos, porque o seu efeito transcende as normas estabelecidas.

Numa palestra feita há mais de quinze anos em reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência sobre o papel da literatura na formação do homem, chamei a atenção entre outras coisas para os aspectos paradoxais desse papel, na medida em que os educadores ao mesmo tempo preconizam e temem o efeito dos textos literários. De fato (dizia eu), há “conflito entre a idéia convencional de uma literatura que eleva e edifica (segundo os padrões oficiais) e a sua poderosa força indiscriminada de iniciação na vida, com uma variada complexidade nem sempre desejada pelos educadores. Ela não corrompe nem edifica, portanto; mas, trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver”.

A função da literatura está ligada à complexidade da sua natureza, que explica inclusive o papel contraditório mas humanizador  (talvez humanizador porque contraditório). Analizando-a, podemos distinguir pelo menos três faces: 1) ela é uma construção de objetos autônomos como estrutura e significado; 2) ela é uma forma de expressão, isto é, manifesta emoções e a visão do mundo  dos indivíduos e dos grupos; 3) ela é uma forma de conhecimento, inclusive como incorporação difusa e inconsciente.

Em geral pensamos que a literatura atua sobre nós devido ao terceiro aspecto, isto é, porque transmite uma espécie de conhecimento, que resulta em aprendizado, com se ela fosse um tipo de instrução. Mas não é assim. O efeito das produções literárias é devido à atuação simultânea dos três aspectos, embora costumemos pensar menos no primeiro, que corresponde à maneira pela qual a mensagem é construída; mas esta maneira é o aspecto, senão mais importante, com clareza crucial, porque é o que decide se uma comunicação é literária ou não. Comecemos por ele.

Toda obra literária é antes de mais nada uma espécie de objeto, de objeto construído; e é grande o poder humanizador desta construção, enquanto construção.

De fato, quanto elaboram uma estrutura, o poeta ou o narrador nos propõem um modelo de coerência, gerado pela força da palavra organizada. Se fosse possível abstrair o sentido e pensar nas palavras como tijolos de uma construção, eu diria que esses tijolos representam um modo de organizar a matéria, e que enquanto organização eles exercem papel ordenador sobre a nossa mente. Quer percebamos claramente ou não, o caráter de coisa organizada da obra literária torna-se um fator que nos deixa mais capazes de ordenar a nossa própria mente e sentimentos; e em consequência, mais capazes de organizar a visão que temos do mundo.

Por isso, um poema hermético, de entendimento difícil, sem nenhuma alusão tangível à realidade do espírito ou do mundo, pode funcionar neste sentido, pelo fato de ser um tipo de ordem, sugerindo um modelo de superação do caos. A produção literária tira as palavras do nada e as dispõe como todo articulado. Este é o primeiro nível humanizador, ao contrário do que geralmente se pensa. A organização da palavra comunica-se ao nosso espírito e o leva, primeiro, a se organizar; em seguida, a organizar o mundo. Isto ocorre desde as formas mais simples, como a quadrinha, o provérbio, a história de bichos, que sintetizam a experiência e a reduzem à sugestão, norma, conselho ou simples espetáculo mental.

“Mais vale quem Deus ajuda do que quem cedo madruga”. Este provérbio é uma frase solidamente construída, com dois membros de sete sílabas cada um, estabelecendo um ritmo que realça o conceito, tornando mais forte pelo efeito da rima toante: “aj-U-D-A”, “madr-U-g-A”. a construção consistiu em descobrir a expressão lapidar e ordená-la segundo meios técnicos que impressionam a percepção. A mensagem é inseparável do código, mas o código é a condição que assegura o seu efeito.

Mas as palavras organizadas são mais do que a presença de um código: elas comunicam sempre alguma coisa, que nos toca porque obedece a certa ordem. Quando recebemos o impacto de uma obra literária, oral ou escrita, ele é devido à fusão inextricável da mensagem com a sua organização. Quando digo que um texto me impressiona, quero dizer que ele impressiona porque a sua possibilidade de impressionar foi determinada pela ordenação recebida de quem o produziu. Em palavras usuais, o conteúdo só atua por causa da forma, e a forma traz em si, virtualmente, uma capacidade de humanizar devido à coerência mental que pressupõe e que sugere. O caos originário, isto é, o material bruto a partir do qual o produtor escolheu uma forma, se torna ordem; por isso o meu caos interior também se ordena e a mensagem pode atuar. Toda obra literária pressupõe esta superação do caos, determinada por um arranjo especial das palavras e fazendo um proposta de sentido.

Pensamos agora num poema simples, como a lira de Gonzaga que começa com o verso “Eu, Marília, não fui nenhum vaqueiro”. Ele a escreveu no calabouço da Ilha das Cobras e se põe na situação de quem está muito triste, separado da noiva. Então começa a pensar nela e imagina a vida que teriam tido se não houvesse ocorrido a catástrofe que o jogou na prisão. De acordo com a convenção pastoral do tempo, transfigura-se no pastor Dirceu e transfigura a noiva na pastora Marília, traduzindo o seu drama em termos da vida campestre. A certa altura diz:

 

Proponha-me dormir no teu regaço

As quentes horas da comprida sesta;

Escrever teus louvores nos olmeiros,

Toucar-te de papoulas na floresta.

 

A extrema simplicidade desses versos remete a atos ou devaneios dos namorados de todos os tempos: ficar com a cabeça no colo da namorada, apanhar flores para fazer uma grinalda, escrever as respectivas iniciais na casca das árvores. Mas na experiência de cada um de nós esses sentimentos e evocações são geralmente vagos, informulados, e não têm consistência que os torne exemplares. Exprimindo-os no enquadramento de um estilo literário, usando rigorosamente os versos de dez sílabas, explorando certas sonoridades, combinando  as palavras com perícia, o poeta transforma o informal ou o inexpresso em estrutura organizada, que se põe acima do tempo e serve para cada um representar mentalmente as situações amorosas deste tipo. A alternância regulada de sílabas tônicas e sílabas átonas, o poder sugestivo da rima, a cadência do ritmo – criaram uma ordem definida que serve de padrão para todos e, deste modo a todos humaniza, isto é, permite que os sentimentos passem do estado de mera emoção para o da forma construída, que assegura a generalidade e a permanência. Note-se, por exemplo, o efeito do jogo de certos sons expressos pelas letras T e P no último verso, dando transcendência a um gesto banal de namorado:

 

Toucar-Te PaPoulas na floresTa.

 

Tês no começo e no fim, cercando os Pês do meio formando com eles uma sonoridade mágica que contribui para elevar a experiência amorfa ao nível da expressão organizada, figurando o efeito por meio de imagens que marcam com eficiência a transfiguração do meio natural. A forma permitiu que o conteúdo ganhasse maior significado e ambos juntos aumentaram a nossa capacidade de ver e sentir.

Digamos que o conteúdo atuante graças à forma constitui com ela um par indissolúvel que redunda em certa modalidade de conhecimento. Este pode ser uma aquisição consciente de noções, emoções, sugestões, inculcamentos, mas na maior parte se processa nas camadas do subconsciente e do inconsciente, incorporando-se em profundidade como enriquecimento difícil de avaliar. As produções literárias, de todos os tipos e todos os níveis, satisfazem necessidades básicas do ser humano, sobretudo através dessa incorporação, que enriquece a nossa percepção e a nossa visão do mundo. O que ilustrei por meio do provérbio e dos versos de Gonzaga ocorre em todo o campo da literatura e explica por que ela é uma necessidade universal imperiosa, e por que fruí-la é um direito das pessoas de qualquer sociedade, desde o índio que canta as suas proezas de caça ou evoca dançando a lua cheia, até o mais requintado erudito que procura captar com sábias redes os sentidos flutuantes de um poema hermético. Em todos esses casos ocorre humanização e enriquecimento, da personalidade e do grupo, por meio de conhecimento oriundo da expressão submetida a uma ordem redentora da confusão.

Entendo aqui por humanização (já que tenha falado tanto nela) o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante.

Isto posto, devemos lembrar que além do conhecimento por assim dizer latente, que provém da organização das emoções e da visão do mundo, há na literatura níveis de conhecimento internacional, isto é, planejados pelo autor e conscientemente assimilados pelo receptor. Estes níveis são o que chamam imediatamente a atenção e é neles que o autor injeta as suas intenções de propaganda, ideologia, crença, revolta, adesão etc. Um poema abolicionista de Castro Alves atua pela eficiência da sua organização formal, pela qualidade do sentimento que exprime, mas também pela natureza da sua posição política e humanitária. Nestes casos a literatura satisfaz, em outro nível, a necessidade de conhecer os sentimentos e a sociedade, ajudando-nos a tomar posição em face deles. É aí que se situa a “literatura social”, na qual pensamos quase exclusivamente quando se trata de uma realidade tão política e humanitária quanto a dos direitos humanos, que partem de uma análise do universo social e procuram retificar as suas iniquidades.

Falemos portanto alguma coisa a respeito das produções literárias nas quais o autor deseja expressamente assumir posição em face dos problemas. Disso resulta uma literatura empenhada, em parte de posições éticas, políticas, religiosas ou simplesmente humanísticas. São casos em que o autor tem convicção e deseja exprimi-las; ou parte de certa visão da realidade e a manifesta com totalidade crítica. Daí pode surgir um perigo: afirmar que a literatura só alcança a verdadeira função quando é deste tipo. Para a Igreja Católica, durante muito tempo, a “boa literatura“ era a que mostrava a verdade de sua doutrina, premiando a virtude, castigando o pecado. Para o regime soviético, a literatura autêntica era a que descrevia as lutas do povo, cantava a construção do socialismo ou celebrava a classe operária. São posições falhas e prejudiciais à verdadeira produção literária, porque têm como pressuposto que ela se justifica por meio de finalidades alheias ao plano estético, que é o decisivo. De fato, sabemos que em literatura uma mensagem ética, política, religiosa ou mais geralmente social, só tem eficiência quando for reduzida à estrutura literária, à forma ordenadora. Tais mensagens são válidas como quaisquer outras, e não podem ser proscritas; mas a sua validade depende da forma que lhes dá existência como um certo tipo de objeto.

 

V

 

Feita essa ressalva, vou me demorar na modalidade de literatura que visa a descrever e eventualmente a tomar posição em face das iniquidades sociais, as mesmas que alimentam o combate pelos direitos humanos.

Falei há pouco em Castro Alves, exemplo brasileiro que geralmente lembramos nesses casos. A sua obra foi em parte um libelo contra a escravidão, pois ele assumiu posição de luta e contribuiu para a causa que procurava servir. O seu efeito foi devido ao talento do poeta, que fez obra autêntica porque foi capaz de elaborar em termos esteticamente válidos os pontos de vista humanitários e políticos. Animado pelos mesmos sentimentos e dotado de temperamento igualmente generoso foi Bernardo Guimarães, que escreveu o romance A Escrava Isaura também como libelo. No entanto, visto que só a intenção e o assunto não  bastam, esta é uma obra de má qualidade e não satisfaz os requisitos que asseguram a eficiência real do texto. A paixão abolicionista estava presente na obra de ambos os autores, mas um deles foi capaz de criar a organização literária adequada e o outro não. A eficácia humana é função da eficácia estética e portanto o que na literatura age como força humanizadora é a própria literatura, ou seja, a capacidade de criar formas pertinentes.

Isso não quer dizer a só serve a obra perfeita. A obra de menor qualidade também atua, e em geral  um movimento literário é constituído por textos de qualidade alta e textos de qualidade modesta, formando no conjunto uma massa de significação que influi em nosso conhecimento e nos nossos sentimentos.

Para exemplificar, vejamos o caso do romance humanitário e social do começo do século XIX, por vários aspectos uma resposta da literatura ao impacto da industrialização que, como se sabe, promoveu a centralização urbana em escala nunca vista, criando novas e mais terríveis formas de miséria – inclusive a da miséria posta diretamente ao lado do bem-estar, com o pobre vendo a cada instante os produtos que não poderia obter. Pela primeira vez a miséria se tornou um espetáculo inevitável e todos tiveram de presenciar a sua terrível realidade nas imensas concentrações urbanas, para onde eram conduzidas ou enxotadas as massas de camponeses destinados ao trabalho industrial, inclusive como exército faminto de reserva. Saindo das regiões afastadas e dos interstícios da sociedade, a miséria se instalou nos palcos da civilização e foi se tornando cada vez mais odiosa, à medida que se percebia que ela era o quinhão injustamente imposto aos verdadeiros produtores da riqueza, os operários, aos quais foi preciso um século de lutas para verem reconhecidos os direitos mais elementares. Não é preciso recapitular o que todos sabem, mas apenas lembrar que naquele tempo a condição de vida sofreu uma deterioração terrível, que logo alarmou as consciências mais sensíveis e os observadores lúcidos, gerando não apenas livros como e de Engels sobre a condição da classe trabalhadora na Inglaterra, mas uma série de romances que descrevem a nova situação do pobre.

Assim, o pobre entra de fato e de vez na literatura como tema importante, tratado com dignidade, mas não como delinquente, personagem cômico ou pitoresco. Enquanto de um lado o operário começava a se organizar para a grande luta secular na defesa dos seus direitos ao mínimo necessário, de outro lado os escritores começavam a perceber a realidade desses direitos, iniciando pela narrativa da sua vida, suas quedas, seus triunfos, sua realidade desconhecida pelas classes bem  aquinhoadas. Este fenômeno é em grande parte ligado ao Romantismo, que, se teve aspectos francamente tradicionalistas e conservadores, teve também outros messiânicos e humanitários de grande generosidade, bastando lembrar que o socialismo, que se configurou naquele momento, é sob muitos aspectos um movimento de influência romântica.

Ali pelos anos de 1820-1830 nós vemos o aparecimento de um romance social, por vezes de corte humanitário e mesmo certos toques messiânicos, focalizando o pobre como tema literário importante. Foi o caso de Eugéne Sue, escritor de Segunda ordem mas extremamente significativo de um momento histórico. Nos seus livros ele penetrou no universo da miséria, mostrou a convivência do crime e da virtude, misturando os delinquentes e os trabalhadores honestos, descrevendo a persistência da pureza no meio do vício, numa visão complexa e mesmo convulsa da sociedade
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