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Os Direitos Humanos e a Identidade Cultural dos Povos*
 

BERNARDO DE AZEVEDO BRITO

(Embaixador - Representante do Itamaraty em SC) 
 

Introdução

A percepção dos direitos humanos

Os direitos humanos no mundo ocidental

Os direitos humanos nas sociedades da África subsaárica

Os direitos humanos nos países muçulmanos e na Ásia em geral

A indivisibilidade dos direitos humanos

 

Introdução

Estas notas foram preparadas da perspectiva, não do jurista, mas do observador e analista de sociedades que é o diplomata. Não pretendo que sejam  conclusivas. Espero, apenas, que possam servir de estímulo ao debate. Caberia salientar, também, que escrevo em caráter pessoal, não podendo pois as minhas observações serem construídas como refletindo a posição oficial do Governo brasileiro.

Na primeira parte do texto será feito um rápido “tour d´horizon” de diferentes sociedades, com o objetivo de nelas identificar características que possam condicionar a sua visão dos direitos humanos; o relativismo cultural emerge claramente nessa parte da exposição. Já no final, valendo-me sobretudo das conclusões da Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, realizada em Viena em 1993, procurarei mostrar como foi ali equacionada a questão das diferenças culturais, de modo a que se reiterasse o reconhecimento da universalidade dos direitos humanos – sem a qual ficaria debilitada a luta contra as suas violações.
 
 

A percepção dos direitos humanos

A percepção dos direitos humanos – tal como entendidos aqueles direitos considerados fundamentais e inerentes a qualquer ser humano – tem evoluído no tempo, ao longo da história das diferentes sociedades. O caso da pena de morte, hoje banida por quase todos os países civilizados como uma pena desumana e uma violação do direito à vida, é um bom exemplo desse processo evolutivo. No caso do aborto, para citar mais um exemplo, estamos ainda em presença de opiniões divergentes, mesmo nos países ocidentais. Os direitos humanos não são assim conceitos imutáveis, mas percepções que se têm aperfeiçoado à medida mesmo em que os grupos sociais se tornam mais críticos e  mais inclinados a identificar direitos e suas violações.

Numa apreciação defendida por certos segmentos da comunidade internacional – e não apenas por lideranças muçulmanas - , os direitos humanos teriam, ademais, uma clara diferenciação no espaço, à luz das características culturais de cada povo. A essa tese se contrapõe a percepção da indivisibilidade e universalidade dos direitos humanos – percepção esta que inspirou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e se viu confirmada pela Declaração aprovada pela Conferência de Viena de 1993. São posições conflitivas que poderão provocar ainda muito debate, particularmente tendo em conta o lugar que o tema passou a ocupar na agenda internacional, com a cooperação internacional ficando condicionada muitas vezes a uma “folha corrida” de bom comportamento em matéria de respeito aos direitos individuais.
 

Os direitos humanos no mundo ocidental

Para a melhor compreensão da questão, pareceria útil tecer breves considerações sobre algumas das características culturais de grupos representativos das diferentes civilizações. Serão meras ilustrações, sem qualquer pretensão a uma análise mais profunda ou mais completa. Refiro-me em primeiro lugar às sociedades de tradição cultural judaico-cristã, ou seja ao chamado mundo ocidental – isto pelo simples fato de serem as sociedades que têm procurado balizar os direitos humanos no mundo contemporâneo, bem como extrapolar os seus próprios valores nessa área para outras civilizações.

No mundo ocidental os direitos humanos são vistos como sendo inerentes à pessoa humana. Cobrem uma área temática cada vez mais ampla e, o que é mais importante, todos os países do grupo (em geral desenvolvidos) aceitaram já que os Estados não podem invocar a soberania e o princípio da não intervenção em assuntos internos para impedir que os mecanismos de controle da ONU se pronunciem sobre as violações cometidas dentro das suas fronteiras. É esta possivelmente a conquista de maior significação para o estabelecimento de condições capazes de assegurar que os direitos humanos sejam respeitados; terá sido talvez a conquista mais difícil e delicada, cabendo recordar a propósito as reservas mantidas a respeito, por muito tempo, pelos Estados Unidos.

Na Europa e nas Américas, bem como em outras projeções do mundo ocidental que não cabe aqui enumerar, os avanços em matéria de direitos humanos têm sido assim importantes. Haveria que ter em conta, não obstante, que os países industrializados, até recentemente, se mostravam reticentes ou menos engajados em relação aos direitos coletivos, como o direito à autodeterminação dos povos e, sobretudo, o direito ao desenvolvimento – de particular interesse para o Terceiro Mundo. Caberia recordar, ademais, que os direitos políticos e as liberdades individuais só se consolidaram no século XX, ainda assim ao preço de duas guerras mundiais, de práticas de perseguição e genocídio que envergonharam a civilização ocidental nos períodos nazista e fascita, e de sérios e conhecidos retrocessos que mancharam a história recente da América Latina.

Haveria que ter presente, também, que se trata com freqüência de conquistas imperfeitas, na medida, por exemplo, em que são negadas aos países do Terceiro Mundo as condições necessárias ao seu desenvolvimento; em que o processo democrático é ainda por vezes viciado pelo abuso do poder econômico em campanhas eleitorais milionárias; e em que as liberdades individuais tendem com incidência cada vez maior a serem violadas por um sistema “orwelliano” de informação, que devassa a vida dos indivíduos, tirando-lhes a privacidade. Desenvolvimento, democracia e direitos humanos representam, pois, um tripé em que as fraquezas não são pequenas, mesmo em sociedades que pretendem projetar um modelo de comportamento no campo dos direitos humanos.

Com referência ao direito à autodeterminação, algumas apreciações pareceriam também oportunas, pois em muitas situações grupos têm pretensões sobre o mesmo território, ou etnias diferentes coexistem em delicado equilíbrio. Mesmo regimes democráticos têm-se provado incapazes, por vezes, de encontrar solução pacífica para as disputas que costumam então surgir. Nesses casos procura-se favorecer fórmulas nos modelos, por exemplo, da Suíça ou das Ilhas Aaland, mas o resultado é freqüentemente bem diverso, como ocorreu na ex-Iugoslávia, na Geórgia e no conflito em torno de Nagorno-Karabakh. É em razão justamente de experiências do gênero que se pode observar certa reticência – sobretudo no Ocidente – em relação à expansão da aplicação dos direitos coletivos na esfera política.

Das novas percepções que emergiram nas últimas décadas em matéria de direitos humanos, de particular importância é o direito ao trabalho – que já se acha refletido no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Concluído em 1966, este instrumento entrou em vigor dez anos depois. Quando o desemprego registra índices elevados em quase todo o mundo, fica cada vez mais evidente que não se pode falar em respeito aos direitos humanos em sociedades que marginalizam parcelas crescentes da mão-de-obra, sacrificadas no altar de uma reestruturação econômica que substitui os trabalhadores pelos “robots”. Mesmo quando a economia tem condições de suportar níveis adequados de auxílio-desemprego, a dignidade do trabalhador fica ferida.

Menção especial mereceria por outro lado a melhoria que se vem observando em numerosos países do Ocidente – inclusive latino-americanos – no que diz respeito à situação da mulher. Refiro-me aos direitos políticos; à igualdade de oportunidades em matéria de educação e emprego; ao direito de família; ao planejamento familiar, etc. As variações de país para país são, entretanto, significativas – e não se pode dizer que, no Brasil, a situação seja das mais brilhantes. Marginalização no processo decisório, inclusive nos escalões mais elevados do governo, e discriminação no que diz respeito a empregos e salários poderiam ser citadas como exemplos de desigualdades existentes. Violência doméstica e prostituição de meninas representam nódoas adicionais na sociedade brasileira no que diz respeito aos direitos da mulher.

Nos países em que já se atingiu um nível maior de igualdade entre os sexos e de respeito aos direitos da mulher, chega-se a observar, pelo contrário, o curioso fenômeno de que as mulheres se sentem por vezes “culpadas”, quando as suas carreiras profissionais têm menor êxito. Para dar uma idéia dos progressos notáveis que já se alcançaram em algumas sociedades, registraria o exemplo da Finlândia, que retrata bem a situação da Europa nórdica: naquele país as mulheres não sofrem discriminação em matéria de emprego e salários; detêm posições de liderança nos grandes grupos econômicos; ocupam cerca de 40% dos assentos no Parlamento – inclusive a respectiva Presidência - ; e exercem as funções de Ministras do Exterior, da Defesa, da Saúde e da Educação, além de Presidente do Banco da Finlândia (ou seja o Banco Central).

Em matéria de respeito quer dos direitos das minorias étnicas e religiosas, quer da liberdade de culto da população em geral, quer dos direitos dos trabalhadores migrantes, as variações na Europa – e em alguns casos também nas Américas – têm sido grandes, com repetidos exemplos de perseguições e de manifestações de racismo e de xenofobia. Para nos limitarmos apenas ao passado recente ou mesmo a situações que na verdade ainda perduram, caberia mencionar o “holocausto” à época da II Guerra Mundial; o racismo ainda presente em alguns países, como nos Estados Unidos e mesmo no Brasil; os atos de violência perpetrados contra os trabalhadores migrantes em países europeus; as manifestações neo-nazistas em alguns países da Europa; as práticas de limpeza étnica na ex-Iugoslávia, etc.

Mesmo em regiões supostamente identificadas mais de perto com o respeito aos direitos humanos, não faltam pelo visto as violações daqueles direitos. Às situações já aludidas haveria que acrescentar, por exemplo, o recurso crescente à pena de morte em diversos Estados norte-americanos, a ponto de alegar-se estar a pena capital sendo aplicada por vezes com objetivos eleitorais, face ao desejo de alguns governantes de se identificarem com uma posição severa no campo da segurança pública. Condições desumanas nos presídios, violência policial e seqüestros oferecem por sua vez, no caso do Brasil, um quadro não muito edificante. Na Europa do Leste caberia salientar sobretudo a situação da Rússia, onde o processo de redemocratização parece ainda incipiente e a máfia estende os seus tentáculos com audácia cada vez maior.

Nas sociedades ocidentais seria possível afirmar que assistimos a uma forte conscientização da importância dos direitos humanos – numa evolução que parece haver adquirido uma nova dinâmica a partir dos eventos ocorridos na França em maio de 1968, quando os estudantes se bateram nas ruas de Paris, não pelo poder ou por reformas políticas, mas pelo reconhecimento dos direitos individuais e por uma nova ética. É de perguntar-se, agora, se o processo de afirmação crescente dos direitos humanos não poderá ter a sua progressão interrompida ou de algum modo afetada como conseqüência indireta das novas tendências neo-liberais, bem exemplificadas na regressão dos mecanismos de proteção social.
 
 

Os direitos humanos nas sociedades da África subsaárica

Para que se possa avaliar o quadro dos direitos humanos na África subsaárica é necessário fazer uma distinção entre os direitos do indivíduo, tal como se refletem nas relações familiares e tribais, e os direitos políticos. No primeiro caso, as peculiaridades das sociedades africanas resultam em graves restrições, sobretudo no que diz respeito à situação da mulher – situação esta à qual irei me referir após. Os direitos políticos, por sua vez, são violados com grande freqüência, em virtude da forma pela qual o estado moderno foi introduzido no Continente africano pelas potências coloniais, com tribos divididas e administrações coloniais concebidas com a preocupação principal de assegurar a manutenção do status quo.

Malgrado a proliferação de regimes ditatoriais que resultou das características mesmas do colonialismo na África e da forma pela qual o processo de descolonização foi conduzido – com o favorecimento de “condottieri” em detrimento de lideranças civis - , haveria que reconhecer que existe uma “democracia de base” na maioria das tribos africanas. Nas aldeias, as decisões são tomadas assim por consenso, em reuniões do conselho dos anciãos. Não há tema que escape à atenção destes últimos, cabendo-lhes opinar sobre os assuntos os mais variados, como relações com as tribos vizinhas, modalidades de cultivo nas áreas comuns da tribo, disputas familiares, festejos, etc. Os conflitos entre tribos pela posse da terra são raros, pois, na concepção africana, é a terra que possui o homem, e não vice-versa.

Para uma etnia que tem sido alvo, nas Américas sobretudo, de algumas das manifestações mais generalizadas de racismo, é de certa forma paradoxal que tenha ela encontrado no próprio Continente de origem o exemplo mais dramático de discriminação. Refiro-me ao regime do “apartheid”, através do qual a minoria branca pretendeu manter-se no poder na África do Sul. Caberia salientar a propósito que, embora tenham sido os afrikaners ou boers que institucionalizaram o “apartheid”, foram os ingleses que introduziram no referido país os ingredientes básicos daquele sistema. O drama vivido por africanos, mestiços e asiáticos na África do Sul merece registro no quadro panorâmico que procuro apresentar, quer pela extrema gravidade com a qual direitos fundamentais foram violados, quer pelo papel desempenhado pelas Nações Unidas na eliminação de prática tão odiosa.

Na África subsaárica são grandes as contradições no que diz respeito à situação da mulher. Por um lado haveria que mencionar o papel importante, ainda que trabalhoso e árduo, desempenhado pelas mulheres na economia do Continente: nas comunidades rurais são elas as responsáveis pela lavoura, da preparação dos campos para o cultivo às atividades da colheita; nos centros urbanos, são elas as vendedoras nos mercados e, em muitos casos, operam já pequenas empresas, com demonstrações freqüentes de grande habilidade comercial. Sua participação no processo decisório é contudo indireta, na melhor das hipóteses, pois não são ouvidas nos conselhos tribais e, nas estruturas governamentais, a sua presença limita-se quase sempre a cargos de menor relevo.

As desvantagens que as mulheres sofrem na África subsaáarica se estendem a outros setores, cabendo mencionar, por exemplo, a humilhação que representa o regime do “lobola”, em que elas são compradas pelos noivos, freqüentemente sob a forma de troca por animais domésticos; as mutilações sexuais, que violam as suas personalidades; os inconvenientes não  menores que padecem em sociedades em que a poligamia é prática generalizada; o desrespeito que representa, em algumas tribos, o costume de as viúvas serem “herdadas” pelos cunhados; e a própria falta de reconhecimento dos direitos mais elementares, de herança e outros, em caso de falecimento dos maridos. São costumes arraigados, que operam em flagrante contravenção dos direitos da mulher africana.

Como se pode compreender, é difícil a convivência dos padrões que conhecemos no Ocidente com aspectos da estrutura familiar e social na África subsaárica. O que existe é um delicado modus vivendi, dificultado ainda mais pela própria promiscuidade que caracteriza a vida nas aldeias e nos centros urbanos da referida região. Nas sociedades africanas não é possível afirmar, em suma, que haja uma percepção mais clara dos direitos humanos. São sociedades que, em geral, não superaram ainda a fase tribal, guardando por vezes um verniz apenas da cultura ocidental que lhes foi legada – o que explica, por exemplo, os sangrentos conflitos étnicos presenciados na África Central em época ainda recente. No lado positivo, haveria que reconhecer, entretanto, que se trata de civilizações mais de molde a aceitar os valores de outras culturas.
 
 

Os direitos humanos nos países muçulmanos e na Ásia em geral

Um quadro bastante diverso, mas igualmente em conflito com os direitos humanos tal como definidos nas formulações universalistas que as Nações Unidas têm endossado, nos é oferecido pelos países muçulmanos e por alguns ao menos dos países asiáticos. Na impossibilidade de fazer, no contexto de uma exposição que pretende ser sintética, uma apresentação exaustiva da situação dos direitos humanos nos países aludidos, limitar-me-ei a indicar aqui, de forma sucinta e exemplificativa, algumas das dificuldades que surgem em matéria de aplicação dos direitos humanos nos países em questão. Em resumo pode-se afirmar que, também no norte da África, no Oriente Próximo e na Ásia, o relativismo cultural cria um fosso entre a universalidade dos direitos humanos – tal como emergem da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, da Proclamação de Teerã de 1968 e da Declaração de Viena de 1993 – e a realidade prática da sua aplicação naqueles territórios.

Mais conhecida será certamente a situação dos países muçulmanos, em decorrência da aplicação da “shari´ah” – que o novo fundamentalismo islâmico tende a enfatizar. A “fatwa” imposta ao escritor Salmon Rushdie foi disso uma mostra reveladora. Em 1988 o Representante Permanente do Irã junto às Nações Unidas escrevia que “...não há problema insolúvel decorrente da compatibilidade do direito islâmico com o direito internacional”. Trata-se, contudo, de uma apreciação um tanto otimista, pois pareceria difícil dar acolhida, à base dos direitos humanos tal como definidos nos instrumentos da ONU, a penalidades tais como a pena de morte por apostasia, ou a execução por apedrejamento para o adultério cometido pela mulher casada, ou ainda a amputação da mão direita para o roubo – para mencionar apenas alguns exemplos.

Por alimentarem justamente uma visão diferente dos direitos humanos, e alegarem não haverem participado com raras exceções das negociações que conduziram à Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, os países muçulmanos, em Reunião de Chanceleres da Organização da Conferência Islâmica, fizeram aprovar em 1990 a Declaração do Cairo sobre Direitos Humanos. Em Viena, o referido documento não sobreviveu contudo à pressão dos países industrializados, inflexíveis na insistência da universalidade dos direitos humanos. Face ao fundamentalismo inaugurado com o regime de Khomeini e hoje bastante expandido, no Oriente Próximo e no norte da África, é de perguntar-se, entretanto, que efeito prático poderá ter, nos países islâmicos mais engajados, o consenso que acabou prevalecendo na Conferência de 1993.

Nesta breve amostragem do relativismo cultural, a China mereceria também uma atenção especial. Com um sistema judiciário primitivo, no qual o direito de defesa é limitado ou inexistente; com a pena capital sendo aplicada após julgamentos sumários; com prisioneiros de consciência sendo sentenciados à “reeducação” sob a forma de trabalhos forçados; com práticas de aborto impostas às mulheres que não obedeceram às regras do planejamento familiar; com restrições à liberdade de movimentos no país, inclusive para obtenção de melhores empregos – para mencionar apenas algumas das situações mais penosas - , os governantes de Pequim não têm primado pelo respeito dos direitos individuais. Haveria que reconhecer não obstante que, a partir de 1980, tem-se observado, no papel ao menos, algum progresso, com a China ratificando convenções sobre direitos da mulher e da criança, sobre refugiados, contra o genocídio, contra a discriminação racial e contra a tortura.
 
Malgrado o quadro pouco encorajador que acabei de descrever e que reflete a situação na China após a “Grande Marcha” que levou os comunistas chineses ao poder em 1949, seria possível afirmar que o regime de Mao prestou ainda assim um serviço notável ao desenfeudalizar o país – embora a ênfase dada aos objetivos coletivos da sociedade tenha-se provado pouco propícia a uma atenção maior  para com os direitos individuais. Essa visão coletivista vem condicionando a percepção que os dirigentes chineses (e até mesmo alguns dos grupos dissidentes do país) têm dos direitos humanos. Passada a fase pioneira do regime comunista na China, presenciamos hoje naquele país o culto da ciência, do poder econômico e, de certa forma, do capitalismo. Interessante será ver agora se a abertura da economia conduzirá a uma política mais afirmativa e individualista em matéria de direitos humanos, e se o novo consumismo contribuirá (como se espera) para a afirmação dos direitos individuais.

Bem diversa é a situação da Índia, a justo título considerada a maior democracia do mundo. Graças à visão de Gandhi e de Nehru, o país nasceu com um governo secular, e na verdade o Mahatma sacrificou a vida no ideal de construir uma sociedade em que não houvesse distinções de casta ou de religião. O êxito obtido foi marcante, mas o sistema de castas não foi ainda totalmente erradicado, com os “intocáveis” sujeitos por vezes a tratamento discriminatório – não na lei mas na prática. Outras características de uma cultura milenar também perduram, como os casamentos de crianças, contratados pelos pais. Com o poder crescente dos partidos nacionalistas, usualmente identificados com as correntes induístas mais radicais, é possível que a coexistência de indianos de diferentes religiões se torne mais difícil, com pressões sendo exercidas sobre a minoria muçulmana. Em tal contexto, grande pareceria ser o risco de um retrocesso em matéria de direitos humanos.
 
 

A indivisibilidade dos direitos humanos

Concluído este “tour d´horizon” do panorama cultural de diferentes sociedades, caberia indagar se, face às particularidades e mesmo antagonismos culturais que se observam, seria realista definir uma plataforma de direitos humanos de aplicação universal, que todos os países pudessem subscrever. Sobre a matéria as Nações Unidas já se pronunciaram em três ocasiões ao menos: na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, cujo artigo II dispõe que toda pessoa humana, sem distinção de qualquer espécie, tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos na Declaração; na Proclamação de Teerã de 1968; e na Declaração de Viena, de 1993, que no item 1 do Capítulo I proclama a natureza universal dos direitos humanos e liberdades fundamentais, para indicar após, no item 5 do mesmo Capítulo, que “todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados”.

É interessante observar que, em Viena, só foi possível chegar a um entendimento sobre o parágrafo em que se proclama, de maneira taxativa, a universalidade dos direitos humanos após ter sido acertada a redação algo tortuosa do já citado artigo 5 do Capítulo I – em cuja parte final se indica que “as particularidades  nacionais e regionais devem ser levadas em consideração, assim como os diversos contextos históricos, culturais e religiosos, mas é dever  dos Estados promover e proteger todos os direitos e liberdades fundamentais, independentemente  de seus sistemas políticos, econômicos e culturais”. Parece evidente que, sem esta concessão, ainda que qualificada, às teses relativistas, não poderia haver consenso em torno do reconhecimento da indivisibilidade e da universalidade dos direitos humanos, nas quais os países desenvolvidos e os países latino-americanos insistiam.

Neste ponto do exame do tema, creio necessário salientar que, ao enfatizarem a universalidade dos direitos humanos, os países do Ocidente e os seus aliados na questão têm em mente sobretudo os direitos individuais, que erigiram freqüentemente em vigas mestras de suas políticas externas. Para os países industrializados em particular, os direitos coletivos representam uma preocupação bem menor, quando não um incômodo – face ao risco de lhes serem cobradas prestações financeiras, ou de se verem envolvidos em “imbroglios” políticos. Nem Washington nem as demais capitais ocidentais se sentem confortáveis assim quando vêem invocados, por exemplo, os direitos das minorias emergentes de regiões como a Ossetia ou a Transilvânia. Nas deliberações que tiveram lugar em Roma, em meados de 1998, sobre a criação de uma corte penal internacional, as reservas das grandes potências, exceto Reino Unido, à referida iniciativa seguiram a mesma linha de raciocínio.

Embora a proclamação pelas Nações Unidas da universalidade dos direitos humanos não possa modificar, num passe de mágica, realidades sociais de civilizações centenárias ou mesmo milenárias, parece evidente que a negação da universalidade poderia conduzir a um retrocesso inaceitável na aplicação dos direitos  humanos, pois serviria quase certamente de pretexto para novas violações de tais direitos. Em uma conferência eminentemente política – como foi a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, realizada em Viena em 1993 - , o que houve foi, portanto, uma solução política. É interessante observar, aliás, que enquanto a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, foi aprovada por 48 votos a favor, 8 abstenções e nenhum voto em contra, numa ONU que contava então com 56 estados-membros apenas, a Declaração de Viena foi aprovada por consenso, isto é sem votação, pelos 165 países que participaram da Conferência de 1993.

Seria possível argüir que, em Viena, houve um nível mais elevado de aprovação para a tese universalista dos direitos humanos? Esta seria a meu ver uma conclusão algo questionável, pois não apenas o mencionado item 5 do Capítulo I  introduz, na sua redação contraditória, um elemento de ambigüidade, mas também é possível afirmar que, na prática da diplomacia multilateral, a aprovação por consenso – tal como ocorreu na Conferência de 1993 e a seguir na Assembléia-Geral da ONU, ao serem as conclusões de Viena apreciadas – representa quase sempre uma maneira de evitar abstenções, explicações de voto ou até mesmo votos em contra. É difícil saber assim quantas abstenções se produziriam se o documento tivesse sido posto em votação. De qualquer forma, mesmo sob o risco de pecar-se por excesso de idealismo ou falta de realismo, prevaleceu a orientação mais condizente com os avanços que se fazem necessários no domínio dos direitos humanos.

Esta avaliação tem naturalmente um caráter político, na melhor acepção do termo, pois se, no contexto da ONU, a situação de direito está pelo visto definida, não é menos verdade que, na falta de uma civilização universal, uma aplicação realmente uniforme dos direitos humanos em todas as sociedades será por muitas gerações mais um ideal do que uma realidade. Irão as diferentes civilizações do mundo de hoje convergir no sentido da aceitação de valores comuns, ou o denominador comum do futuro ficará limitado a aspectos do consumismo ocidental? O respeito de padrões universais de direitos humanos, na acepção dos direitos individuais, pareceria depender em larga medida da resposta que se possa dar a esta indagação. O século XXI poderá vir a ser no particular o século das grandes definições.
 
 
 

*Palestra pronunciada pelo Embaixador Bernardo de Azevedo Brito, em 18 de junho de 1998. no  I Ciclo de Palestras do Programa Especial de Treinamento (PET), da Faculdade de Direito da UFSC, realizado na cidade de Florianópolis, na sede da OAB-SC.

 

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