Marco
Antônio Diniz Brandão*
& Benoni Belli**
Introdução
O
objetivo principal deste artigo é apresentar, em suas linhas gerais, o
funcionamento dos mecanismos de proteção dos direitos humanos erigidos
sob a égide da Organização dos Estados Americanos (OEA) e suas
perspectivas nos próximos anos. O ponto de partida será a descrição
da evolução do sistema interamericano de proteção dos direitos
humanos, buscando evidenciar a dinâmica que tem produzido o incremento
da supervisão das obrigações contraídas pelos Estados membros da
OEA. Em um segundo momento, passar-se-á à análise do funcionamento
dos órgãos de supervisão do sistema, com ênfase na tramitação, no
âmbito Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), de comunicações
e petições individuais sobre casos de violações aos direitos
consagrados nos instrumentos interamericanos. Finalmente, na conclusão,
serão sumariadas as mudanças mais relevantes que estão sendo
cogitadas com vistas ao aperfeiçoamento do sistema. A questão do diálogo
do Brasil com os mecanismos de proteção perpassará todo o texto.
Antes
de tratar da evolução do sistema interamericano, vale a pena recordar
que a legitimidade da proteção internacional dos direitos humanos nem
sempre foi ponto pacífico. Progressivamente foi-se consolidando a idéia
de que os direitos humanos devem ser encarados como um ramo especial do
direito internacional. Segundo o Professor, e Juiz da Corte
Interamericana de Direitos Humanos, Antônio Augusto Cançado Trindade,
o "Direito Internacional dos Direitos Humanos" constitui um
“direito de proteção”, marcado por uma lógica própria, pois
busca salvaguardar os direitos dos seres humanos e não dos Estados. O
Direito Internacional dos Direitos Humanos não procura “(...) obter
um equilíbrio abstrato entre as partes, mas remediar os efeitos do
desequilíbrio e das disparidades na medida em que afetam os direitos
humanos. Não se nutre das barganhas da reciprocidade, mas se inspira
nas considerações de ordre
public em defesa de interesses comuns superiores, da realização da
justiça”.
É, nesse sentido, um instrumento para a proteção dos mais fracos em
toda e qualquer circunstância. O Direito Internacional dos Direitos
Humanos se insurge contra a visão estática tradicional, reconhecendo
que o ser humano é sujeito tanto de direito interno quanto de direito
internacional, dotado em ambos, como sublinha Cançado Trindade, de
personalidade e capacidade jurídicas próprias.
Ainda
hoje, malgrado os avanços alcançados, os mecanismos de proteção
internacional dos direitos humanos são mal compreendidos em muitos círculos
– jurídicos ou não –, onde se insiste em encarar a idéia mesma de
direitos humanos internacionalmente protegidos e de capacidade
processual internacional dos indivíduos como ameaças ou como fontes de
intromissões indevidas nos assuntos internos dos Estados. Mas o que se
deve recordar é que a própria ação estatal perde legitimidade se os
direitos básicos da pessoa humana não servirem de baliza para as decisões
tomadas em nome da coletividade. Mais do que argumentos lógicos e acadêmicos,
o que está por trás da luta pela afirmação do Direito Internacional
dos Direitos Humanos é a elevação do ser humano ao patamar de fonte
última do exercício do poder estatal. Em vez de aderir a máximas tão
amplamente aceitas do tipo “fins que justificam os meios”, que ainda
povoam o universo conceptual dos estudiosos das relações
internacionais e da ciência política, os direitos humanos enveredam
por caminhos claramente distintos. A luta pelos direitos humanos permite
conferir à busca da transformação social um sentido profundamente
democrático, posto que o ser humano torna-se sujeito e beneficiário da
mudança, enquanto ao Estado é negada a possibilidade de agir como se
possuísse uma racionalidade própria e independente capaz de justificar
o exercício desimpedido do poder.
A
evolução do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos
tem-se traduzido tanto na consolidação de uma base jurídica quanto no
fortalecimento dos mecanismos criados para supervisionar o cumprimento
das obrigações assumidas pelos Estados nesse contexto. Pode-se dizer
que a evolução do sistema, apesar de não ter seguido um processo
linear, refletiu a necessidade de conferir aos direitos humanos a
especificidade acima referida, trazendo a pessoa humana para o centro
das preocupações internacionais. No entanto, como não poderia deixar
de ser, a aceitação do incremento das prerrogativas dos mecanismos de
supervisão ocorreu lentamente, como resultado de um processo árduo de
negociações. Também tiveram influência nesse processo as mudanças
na conjuntura política mundial, especialmente o andamento do conflito
Leste/Oeste, e as situações nacionais nos Estados membros da OEA.
Evolução legal e institucional do
Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos
A
9ª Conferência Interamericana, celebrada em Bogotá, de 30 de março a
2 de maio de 1948, além de ter levado à adoção da Carta da OEA,
aprovou a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem.
Enquanto a Carta da OEA proclama, de modo genérico, que um dos deveres
dos Estados membros é o de respeitar os direitos da pessoa humana, a
Declaração Americana especifica quais são os direitos humanos
fundamentais que devem ser observados e garantidos. Entre os direitos
protegidos pela Declaração Americana, que antecedeu em 7 meses a adoção
da Declaração Universal, destacam-se os seguintes: direito à vida, à
liberdade, à segurança e à integridade da pessoa; direito de
igualdade perante a lei; direito à liberdade religiosa e à liberdade
de expressão e opinião; direito de sufrágio e de participação no
Governo; direito de associação e de reunião; direito à proteção
contra prisão arbitrária; direito à justiça.
A
adoção da Declaração foi um passo importante da edificação do
sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, pois definiu
um conjunto de direitos inalienáveis. A Declaração reconhece, logo no
preâmbulo, que “os direitos essenciais do homem não derivam do fato
de ser ele cidadão de determinado Estado, mas sim do fato dos direitos
terem como base os atributos da pessoa humana”. No entanto, as declarações
adotadas em foros multilaterais têm caráter de recomendação e, apesar de constituírem
importante esteio moral para a ação dos Estados, não vinculam
juridicamente. Logo teve início um movimento para a elaboração de um
tratado internacional que tivesse condições de conferir aos direitos
enunciados na Declaração Americana uma base legal de que ainda
careciam, de modo a criar, pela ratificação e adesão dos Estados,
obrigações mais concretas e exigíveis no plano jurídico. Vários
anos se sucederiam para que esse projeto se tornasse realidade.
A
5ª Reunião de Consultas dos Ministros de Relações Exteriores,
realizada em Santiago do Chile de 12 a 18 de agosto de 1959 – ou seja,
cerca de onze anos após a adoção da Declaração Americana –
encarregou o Conselho Interamericano de Juristas de elaborar um projeto
de Convenção sobre Direitos Humanos. A mesma reunião resolveu criar
uma Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), inicialmente
prevista para funcionar provisoriamente até a adoção da Convenção
encomendada, e com a função de promover o respeito aos direitos
humanos nos Estados membros da OEA. Como assinala Héctor Faúndez
Ledesma, a Comissão teve, nos seus primeiros anos de existência, uma
condição jurídica bastante frágil. De acordo com o estatuto aprovado
pelo conselho da OEA em 1960, a CIDH foi concebida como entidade autônoma
daquela organização, de caráter não convencional, cujo mandato se
limitava estritamente a promover
o respeito aos direitos humanos consagrados na Declaração Americana,
mas destituída de competências para assegurar sua proteção.
A
II Conferência Interamericana Extraordinária, realizada no Rio de
Janeiro em 1965, resolveu modificar o Estatuto da Comissão e ampliar
suas funções e faculdades. A decisão emanada dessa reunião
transformou a CIDH em verdadeiro órgão de controle, com autorização
para receber e examinar petições individuais sobre alegadas violações
de direitos humanos, dirigir-se aos Estados para solicitar informações
e formular recomendações que se fizessem necessárias com vistas a
garantir uma observância mais efetiva dos direitos humanos
fundamentais. Em outras palavras, a função de proteção aos direitos
humanos foi agregada à tradicional tarefa de promoção. No entanto, a
CIDH contava ainda com base jurídica relativamente frágil, pois havia
sido criada por resolução adotada em Reunião de Ministros. Alguns países
começavam a questionar a obrigação real de dialogar, fornecer informações
ou mesmo levar em conta as recomendações de uma Comissão cujo
instrumento de criação não era dotado da força de obrigação jurídica.
Essa
dificuldade foi superada em 1967, com o chamado “Protocolo de Buenos
Aires”, que incorporou a CIDH à própria Carta da OEA. A Carta
reformada entrou em vigor em 1970 e, em seu artigo 112, a principal função
da CIDH é definida como a de “promover o respeito e a defesa dos
direitos humanos e servir como órgão consultivo da Organização na
matéria”. Além disso, expressa que “uma convenção interamericana
sobre direitos humanos” deveria determinar “a estrutura, a competência
e as normas de funcionamento da referida Comissão, bem como as dos
outros órgãos encarregados de tal matéria”. Mas o mais importante
está contido no novo artigo 51 introduzido pelo Protocolo de Buenos
Aires, que conferiu à CIDH o status
de órgão principal da OEA, transformando-a em parte da estrutura
permanente da organização. A partir dessa mudança, qualquer tentativa
de dissolução da CIDH teria de passar pela modificação da Carta da
OEA. Outra conseqüência prática da nova condição da Comissão é o
fato de que a colaboração com esse órgão deixou de ter o sentido de
mera recomendação.
A
CIDH continuou com a composição que possui até hoje: 7 membros, que
devem ser pessoas de alta autoridade moral e de reconhecido saber em matéria
de direitos humanos, eleitos a título pessoal para um mandato de 4 anos
com a possibilidade de uma reeleição. Apesar de indicados pelos seus
Estados de origem e eleitos em escrutínio secreto durante a Assembléia
Geral da OEA, os membros da CIDH são peritos independentes. Suas decisões
devem, em tese, basear-se no livre convencimento e obedecer aos
imperativos da proteção dos direitos humanos. As funções da CIDH
foram melhor definidas com a adoção, em 1969, da Convenção Americana
de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica). O Pacto de São
José, porém, só entrou em vigor no ano de 1978, depois que o número
mínimo de 11 ratificações foi atingido. A Convenção, ademais de
dotar a CIDH de competências específicas, estabeleceu a Corte
Interamericana de Direitos Humanos como um segundo órgão de controle.
A
Convenção proporcionou a melhor definição dos direitos enunciados da
Declaração Americana e vinculou juridicamente os Estados partes. A ênfase
da Convenção é dada aos direitos civis e políticos (Capítulo II,
artigos 3 a 25), enquanto os direitos econômicos, sociais e culturais
foram objeto de um único artigo, que se limita a comprometer os Estados
a adotar providências a fim de alcançar progressivamente tais direitos
(artigo 26). A partir da entrada em vigor da Convenção, a CIDH passou
a ter, segundo Ledesma, dualidade de funções: a) atribuições
essencialmente políticas e diplomáticas para os Estados membros da OEA
que não são partes da Convenção; b) para os Estados que são partes
da Convenção, além das atribuições políticas e diplomáticas, a
CIDH teria importantes funções de caráter “quase judicial”.
Na prática, porém, a CIDH tem dado tratamento análogo às comunicações
individuais recebidas sobre Estados partes e não partes da Convenção,
com a diferença de que o procedimento aplicado aos Estados partes abre
a possibilidade de remissão de casos à Corte e prevê um mecanismo de
conciliação, conhecido pelo nome de solução amistosa.
De
acordo com a Convenção, o reconhecimento pelos Estados partes da
competência da CIDH para consideração de queixas individuais é
obrigatório. No que tange à Corte Interamericana de Direitos Humanos,
foram previstas as competências consultiva e contenciosa. Todos Estados
membros da OEA e órgãos da organização podem solicitar pareceres da
Corte, as chamadas “opiniões consultivas”, sobre interpretação da
Convenção Americana e outros tratados de direitos humanos. A competência
contenciosa, por sua vez, somente é aplicável aos Estados partes da
Convenção que fizeram a declaração facultativa prevista no artigo
62. O parágrafo 1º deste artigo reza o seguinte: “Todo Estado Parte
pode, no momento do depósito de seu instrumento de ratificação desta
Convenção ou de adesão a ela, ou em qualquer momento posterior,
declarar que reconhece como obrigatória, de pleno direito e sem convenção
especial, a competência da Corte em todos os casos relativos à
interpretação ou aplicação desta Convenção”. A Corte é composta
de 7 juízes eleitos para um período de 6 anos com a possibilidade de
uma reeleição.
O
Brasil aderiu ao Pacto de São José em setembro de 1992. A Mensagem
Presidencial que submeteu o texto do Pacto à aprovação do Congresso
(Mensagem nº 621, de 28/11/85) referia-se nos seguintes termos às cláusulas
facultativas: “No tocante às cláusulas facultativas contempladas no
parágrafo 1º do Artigo 45 – referente à competência da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) para examinar queixas
apresentadas por outros Estados sobre o não cumprimento das obrigações
– e no parágrafo 1º do Artigo 62 – relativo à jurisdição
obrigatória da Corte – não é recomendável, na presente etapa, a
adesão do Brasil”. A jurisdição obrigatória da Corte é
reconhecida atualmente por Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Costa
Rica, El Salvador, Equador, Guatemala, Nicarágua, Panamá, Paraguai,
Peru, Suriname, Uruguai e Venezuela. Cumpre assinalar que Canadá e EUA
sequer são partes da Convenção, enquanto apenas sete Estados partes não
reconhecem a competência contenciosa da Corte (Barbados, Brasil,
Grenada, Haiti, Jamaica, México e República Dominicana),
sendo que o México anunciou que deverá reconhecê-la ainda em 1998.
É
importante ter presente que a Convenção Americana representou o
coroamento de um processo de codificação dos direitos humanos iniciado
com a Declaração de 1948, mas foi além da simples definição dos
direitos substantivos. Estabeleceu também dispositivos voltados para o
controle das obrigações assumidas, as quais passaram a vincular
juridicamente os Estados partes. Outros instrumentos posteriores foram
adotados para complementar o arcabouço jurídico do sistema
interamericano de direitos humanos. A exemplo do ocorrido no sistema da
ONU,
sentiu-se a necessidade de proteger setores mais vulneráveis da
sociedade, conferir tratamento específico a determinadas violações
particularmente graves e de maior incidência, e preencher a lacuna em
relação aos direitos econômicos, sociais e culturais. Em 1988, a
Assembléia Geral da OEA adotou o “Protocolo Adicional à Convenção
Americana de Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais” (Protocolo de São Salvador), ratificado pelo
Brasil em 1996.
O
sistema interamericano de direitos humanos compõe-se ainda dos
seguintes instrumentos: a) Convenção Interamericana para Prevenir e
Punir a Tortura, adotada em 1985 e ratificada pelo Brasil em 1989; b)
Protocolo Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos
relativo à Abolição da Pena de Morte, adotado em 1990 e ratificado
pelo Brasil em 1996; c) Convenção Interamericana para Prevenir, Punir
e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará),
adotada em 1994 e ratificada pelo Brasil em 1995; d) Convenção
Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas, adotada em
1994 e atualmente sob exame no Congresso Nacional. Dos instrumentos
adotados no âmbito do sistema interamericano, apenas o Protocolo de São
Salvador ainda não se encontra em vigor, em razão de não ter atingido
o número mínimo de 11 ratificações e/ou adesões. Apesar de 17 países
terem assinado, até o presente momento apenas nove depositaram os
respectivos instrumentos de ratificação e adesão.
A
evolução legal e institucional do sistema interamericano de proteção
dos direitos humanos não foi apenas decorrência lógica do objetivo
geral proclamado na Carta da OEA em relação à observância dos
direitos humanos fundamentais. Outros fatores foram tão ou mais
determinantes na adoção dos instrumentos jurídicos e no processo que
levou à ampliação do mandato da CIDH. Seria impensável que durante
os anos 70, no momento em que a região era caracterizada pela existência
de regimes autoritários de diversos matizes, fosse adotada uma convenção
sobre desaparecimento forçado de pessoas. Do mesmo modo, a
relativamente lenta ampliação do mandato da CIDH pode ser atribuída
à oposição de regimes autoritários à idéia de ter a situação
interna examinada por órgão independente de peritos. A conjuntura
internacional da Guerra Fria, por seu turno, ajudou a minimizar a importância
da proteção dos direitos humanos diante do objetivo estratégico da
contenção do comunismo. O fim da Guerra fria e a democratização dos
países latino-americanos prepararam o terreno para avanços importantes
no campo dos direitos humanos, não apenas porque foram estabelecidas
novas obrigações internacionais, mas sobretudo em função da cooperação
e do diálogo que passou a caracterizar o relacionamento dos Governos
com os órgãos de supervisão do sistema.
Tanto
a adesão do Brasil aos principais tratados de direitos humanos quanto a
disposição política para dialogar com os mecanismos de supervisão
das obrigações convencionais foram resultado do processo de
democratização do país. A resistência ao regime autoritário
galvanizou uma opinião pública e um importante leque de forças políticas
para a causa dos direitos humanos. Nesse sentido, a Constituição de
1988, após proclamar que o Brasil se rege em suas relações
internacionais pelo princípio da prevalência dos direitos humanos
(art. 4º, inciso II), constituindo-se em Estado Democrático de Direito
e tendo como fundamento, inter
alia, a dignidade da pessoa humana (art. 1°, inciso III),
estabelece que os direitos e garantias nela expressos não excluem
outros decorrentes dos regimes e dos princípios por ela adotados, ou
dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte (art. 5º, inciso
II). E acrescenta que as normas definidoras dos direitos e garantias
fundamentais têm aplicação imediata (art. 5º, inciso I).
Este
processo iniciado nos anos 80 e consolidado nos 90 tem contribuído para
que se torne muitas vezes difícil distinguir entre as dimensões
interna e externa dos compromissos assumidos em matéria de direitos
humanos. Com efeito, as posições defendidas pelo Brasil nos foros
multilaterais e as obrigações que assumimos com a adesão a tratados
apenas refletem a realidade nacional, constituindo espelho das obrigações
e compromissos assumidos internamente. São, na realidade, expressão de
uma comunidade nacional que quer ver consagrados na prática os direitos
fundamentais da pessoa humana e utiliza os instrumentos internacionais
como importante complemento dos esforços que são primordialmente
nacionais, do Estado e da sociedade brasileira.
Funcionamento dos órgãos de supervisão
do sistema
A
Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)
Conforme
ensina Cançado Trindade, os órgãos de supervisão dos tratados de
direitos humanos têm seguido três métodos ou sistemas de implementação:
mecanismos de petições, de relatórios e de determinação de fatos ou
investigações.
No caso da CIDH, os três métodos são utilizados. Muitas vezes os
relatórios são resultado de visitas ou observações in
loco efetuadas pela Comissão. Até 1977 a Comissão atuou sem
regras definidas para visitas in
loco, mas naquele ano foi elaborado regulamento como parte da
preparação para visita ao Panamá. No essencial, o regulamento
permitia que os membros da Comissão visitassem qualquer lugar no país
da forma que considerassem mais adequada, coletassem material e provas,
e tivessem a liberdade para manter os contatos que escolhessem
livremente.
O
regulamento atualmente em vigor praticamente reproduz as regras
estabelecidas em 1977. A título de exemplo, vale recordar que, em
dezembro de 1995, a CIDH realizou, a convite do Governo federal, visita
ao Brasil com vistas a observar a situação dos direitos humanos no país.
Na oportunidade, a Comissão recebeu apoio do Governo para efetuar sua
missão, que incluiu contatos com entidades da sociedade civil,
personalidades do mundo acadêmico, político e religioso, além de
autoridades em todos os níveis da administração pública. Com base
nas informações colhidas durante a visita e nos esclarecimentos
prestados pelo Governo brasileiro, a CIDH elaborou relatório sobre a
situação dos direitos humanos no Brasil – publicado em outubro de
1997 –, que identifica obstáculos à realização dos direitos
consagrados na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São
José), reconhece o empenho do Governo para superá-los e formula
recomendações.
A
realização da visita, a primeira realizada pela Comissão ao país, e
a publicação do relatório são evidências do aprofundamento da
cooperação do Brasil com o sistema interamericano de proteção e
promoção dos direitos humanos. O relatório dedica amplo espaço às
políticas de direitos humanos do Governo federal, reconhecendo “a
sincera vontade política do Governo do Brasil de incorporar em sua
agenda política o tema dos direitos humanos, dando-lhe prioridade”. A
CIDH recorda que a implementação do Programa Nacional de Direitos
Humanos (PNDH) começa a mostrar resultados e melhorias em alguns
indicadores. Reconhece também que suas recomendações coincidem com as
metas do PNDH. Entretanto, o relatório não se furta – como é de
praxe em informes desse tipo – a descrever vários exemplos de violações
graves dos direitos humanos e chamar atenção para a necessidade de
medidas eficazes e urgentes.
As visitas in loco podem ser
solicitadas por diversos motivos, inclusive para averiguar situações
específicas relacionadas à tramitação de uma petição individual.
Esse não foi o caso da visita realizada ao Brasil, que teve um objetivo
mais geral de elaboração de uma espécie de retrato da situação
brasileira em matéria de direitos humanos. Os casos específicos
citados nos relatórios gerais servem apenas para ilustrar a incidência
deste ou daquele problema em determinadas regiões ou no seio de
determinados setores da população.
A
CIDH tem adotado a prática de incluir em seu relatório anual à
Assembléia Geral da OEA um outro tipo de relatório sobre determinados
países cuja situação interna é considerada particularmente grave. Os
critérios estabelecidos pela CIDH para que um país seja objeto desse
tipo de relatório são os seguintes: 1) Estados em que os Governos não
tenham chegado ao poder mediante eleições populares, pelo voto
secreto, genuíno, periódico e livre, segundo as normas e princípios
internacionalmente aceitos; 2) Estados onde o livre exercício dos
direitos consignados na Declaração Americana ou na Convenção
Americana tenham sido suspensos de fato em virtude de medidas de exceção,
tais como estado de sítio ou de emergência; 3) Estado que comete violações
sistemáticas e graves dos direitos humanos garantidos na Convenção
Americana, na Declaração Americana e nos demais instrumentos de
direitos humanos aplicáveis; 4) Estados que se encontrem em processo de
transição em relação às situações anteriores; 5) Estados que
enfrentam situações conjunturais ou estruturais que afetam gravemente
o exercício de direitos fundamentais consagrados na Convenção e na
Declaração Americana.
Grande
parte do trabalho da CIDH consiste na tramitação de petições sobre
denúncias de violações dos direitos consagrados na Convenção
Americana de Direitos Humanos ou na Declaração Americana de Direitos e
Deveres do Homem. A tramitação segue um modelo quase judicial,
contemplando réplicas, tréplicas e audiências. Caso não seja possível
alcançar uma solução amigável, e terminada a tramitação
regulamentar, o caso é encerrado e inicia-se a fase de elaboração do
relatório, que poderá declarar o Estado responsável por violações
de direitos humanos no que tange ao caso específico examinado. De
acordo com a Convenção Americana e o regulamento da CIDH, o peticionário
pode ser qualquer pessoa, grupo de pessoas ou entidade não-governamental
reconhecida em um dos Estados membros da OEA, não havendo a necessidade
de obter o assentimento da vítima ou de seus familiares. A vítima, porém,
deve ter estado sujeita à jurisdição do Estado contra o qual se
apresenta a denúncia no momento da alegada violação. Os direitos
protegidos são os definidos na Declaração Americana, no caso dos
Estados que não são partes da Convenção, e os direitos estabelecidos
tanto na Declaração quanto na Convenção, no caso dos Estados partes
do Pacto de São José.
São
as ações e omissões dos agentes do Estado que podem gerar a
responsabilidade internacional e justificar o pronunciamento de um órgão
de supervisão. Como ressalta Mónica Pinto: “(...) todo menoscabo a
los derechos humanos que pueda ser atribuido, según las reglas del
derecho internacional, a la acción u omisión de cualquier autoridad pública,
constituye un hecho imputable al estado que compromete su
responsabilidad internacional en los términos del derecho internacional
de los derechos humanos”.
A responsabilidade do Estado pode ainda ser invocada no caso de atos de
grupos aparentemente civis quando há evidências de vínculos com as
autoridades ou de tolerância do Estado.
Nesse
sentido, a jurisprudência interamericana tem dado a seguinte interpretação
ao artigo 2 da Convenção (“Dever de adotar disposições do direito
interno”): “La segunda obligación de los Estados Partes es de
‘garantizar’ el libre y pleno ejercicio de los derechos reconocidos
en la Convención a toda persona sujeta a su jurisdicción. Esta
obligación implica el deber de los Estados Partes de organizar todo el
aparato gubernamental y, en general, todas las estructuras a través de
las cuales se manifesta el ejercicio de los derechos humanos. Como
consecuencia de esta obligación los Estados deben prevenir, investigar
y sancionar toda violación de los derechos reconocidos por la Convención
y procurar, además, el restablecimiento (...) del derecho conculcado y
(...) la reparación de los daños producidos (...)”.
A
petição possui requisitos formais e outros que requerem uma análise
mais detida por parte da CIDH. Os requisitos meramente formais são os
seguintes: deve, em geral, ser apresentada por escrito; deve conter um
relato dos fatos e, se possível, o nome das vítimas assim como de
qualquer autoridade pública que tenha tomado conhecimento da situação;
deve indicar o Estado que o peticionário considera responsável pela
violação. Os requisitos, ou condições de admissibilidade, que exigem
análise mais cuidadosa são: esgotamento dos recursos de jurisdição
interna; petição deve ser apresentada no prazo de seis meses a partir
da notificação da decisão definitiva de jurisdição interna; a matéria
da petição não deve estar pendente de outro procedimento
internacional. A razão de ser do requisito do prévio esgotamento dos
recursos internos, segundo a Corte Interamericana, é de dispensar o
Estado de responder ante um órgão internacional por atos a ele
imputados sem que tenha tido oportunidade de remediá-los pelos próprios
meios. No entanto, para aplicação desse requisito, é necessária não
só a existência formal de recursos internos, mas também que eles
sejam adequados e eficazes. A regra do esgotamento é desconsiderada
quando ocorre uma das três exceções previstas no artigo 46. 2 da
Convenção e no artigo 37. 2 do regulamento da CIDH: a) inexistência
do devido processo legal para a proteção dos direitos que se alegue
tenham sido violados; b) quando o prejudicado foi impedido de ter acesso
aos recursos da jurisdição interna ou foi impedido de esgotá-los; c)
quando há demora injustificada na prestação jurisdicional.
A
Comissão deverá declarar a inadmissibilidade da petição na falta dos
requisitos prévios citados ou quando: a) o peticionário não expuser
fatos que caracterizem violação dos direitos garantidos na Convenção
Americana ou na Declaração Americana; b) a petição for
manifestamente infundada ou improcedente, segundo se verifique da exposição
do próprio peticionário ou do Estado. Esses dois requisitos deveriam
evitar o que se poderia chamar de “banalização” do mecanismo de
queixas, ou seja, a utilização do sistema de modo espúrio, seja para
alcançar vantagens pessoais, seja para tentar “rever” decisões
internas que, apesar de observarem as leis vigentes e as garantias do
devido processo, levam a um resultado desfavorável para o peticionário.
A
Comissão já estabeleceu uma jurisprudência para evitar sua utilização
como uma espécie de “quarta instância” de apelação das decisões
tomadas por tribunais nacionais: “A Comissão é competente para
declarar admissível uma petição e dispor sobre seu funcionamento
quando esta se refere a uma sentença judicial nacional que foi
proferida à margem do devido processo, ou que aparentemente viola outro
direito garantido pela Convenção. Se, em contrapartida, se limita a
afirmar que a decisão foi equivocada ou injusta em si mesma, a petição
deve ser rechaçada conforme a fórmula acima exposta. A função da
Comissão consiste em garantir a observância das obrigações assumidas
pelos Estados partes da Convenção, mas que não pode fazer-se de
tribunal de alçada para examinar supostos erros de direito ou de fato
que possam ter cometido os tribunais nacionais que tenham atuado dentro
dos limites de sua competência”.
Quanto
à tramitação propriamente dita, o objetivo é favorecer o
“contraditório” entre as partes. Depois de recebida uma comunicação
sobre alegada violação dos direitos humanos, o Estado denunciado
recebe, por intermédio da CIDH, cópia da petição inicial e dos
documentos apresentados com a solicitação de que preste informações
sobre o caso no prazo de 90 dias. O Estado poderá pedir até três
prorrogações de 30 dias depois de vencido o prazo inicialmente
estabelecido. Em uma segunda etapa, as informações fornecidas pelo
Estado são transmitidas ao peticionário, que recebe, por sua vez, um
prazo de 30 dias para apresentar suas observações e provas em contrário.
Essas observações, uma vez recebidas pela Comissão, são enviadas ao
Estado para que apresente no prazo de 30 dias suas alegações finais.
Caso não seja possível alcançar uma solução amistosa, e terminada a
tramitação descrita, o caso é encerrado e inicia-se a fase de elaboração
do relatório.
O
relatório sobre um caso específico é baseado na documentação e nas
alegações das partes, bem como em informações colhidas em eventuais
visitas in loco e em audiências realizadas na sede da Comissão. O relatório
contém, em geral, um resumo dos fatos, dos argumentos das partes e da
tramitação da petição, uma parte relativa às conclusões da Comissão
sobre violação ou não de dispositivos da Convenção Americana e da
Declaração, e um capítulo dedicado às recomendações para remediar
a situação e/ou compensar os danos causados. O relatório sempre é
enviado ao Estado interessado, que possui um prazo de três meses para
apresentar seus comentários e eventuais informações sobre o
cumprimento das recomendações da Comissão. Se no prazo de três meses
a Comissão julgar que o caso não foi solucionado, um segundo relatório
é elaborado com vistas à apresentação das recomendações finais e o
estabelecimento de um prazo para que o Governo tome as medidas necessárias.
Transcorrido o prazo fixado nesta última etapa, a Comissão decide se o
Estado tomou ou não as medidas adequadas e se publica ou não o relatório.
A publicação do relatório
sobre o caso poderá ser feita mediante sua inclusão no relatório
anual da CIDH à Assembléia Geral da OEA, como tem sido a prática, ou
por qualquer outra forma que a Comissão julgar apropriada.
Como
já foi mencionado, o sistema prevê a possibilidade de solução
amistosa, capaz de encerrar o caso sem que para isso seja necessária a
publicação de um relatório. A qualquer momento da tramitação de um
caso a CIDH poderá colocar-se à disposição das partes para alcançar
uma solução em comum acordo. Os acordos de solução amistosa envolvem
pagamento, pelo Estado, de indenizações às vítimas e familiares,
assim como outros compromissos relacionados a medidas administrativas,
legais ou de outra natureza. Com a solução amistosa, evita-se que a
CIDH declare a responsabilidade internacional do Estado por violação
de direitos humanos. Em contrapartida, o Estado aceita motu proprio sua responsabilidade e garante reparação mais rápida
dos danos causados. A solução amistosa enseja a elaboração de um
relatório curto em que são apresentados sumariamente os fatos e o
acordo alcançado pelas partes. Em muitos casos o acordo envolve a criação
de algum tipo de mecanismo de seguimento, encarregado de velar pelo fiel
cumprimento dos compromissos assumidos.
A
Corte Interamericana de Direitos Humanos
Para
os Estados que reconhecem a competência contenciosa da Corte
Interamericana de Direitos Humanos, o caso pode ser elevado à consideração
daquele tribunal sediado em São José da Costa Rica. Somente em 1986 os
primeiros casos – relativos a desaparecimentos forçados em Honduras
– foram submetidos à Corte. A Corte assinalou, em opinião consultiva
de 13 de junho de 1993, que a decisão de submeter um caso à sua
consideração deve apoiar-se na alternativa que seja mais favorável
para a tutela dos direitos estabelecidos na Convenção (princípio pro
homine). Outro requisito para remissão de casos à Corte é o
esgotamento da tramitação na Comissão, ou seja, a CIDH deve ter tido
a oportunidade de redigir o relatório previsto no artigo 50 da Convenção
Americana. Vale observar que, diferentemente do que ocorre na CIDH –
onde há acesso direto dos indivíduos, apenas os Estados e a própria
Comissão podem elevar um caso ao conhecimento da Corte. A Corte
Interamericana de Direitos Humanos reproduz o processo de produção de
provas e realização de audiências que também ocorre na CIDH, com a
diferença de que as partes do processo passam a ser, de um lado, o
Estado e, de outro, a CIDH. Os peticionários passaram recentemente a
ter uma pequena participação, limitada à fase de liquidação de
sentenças para determinação do montante das indenizações.
A
Corte Interamericana de Direitos Humanos, tal como a européia, que lhe
serviu de inspiração e modelo, não é um tribunal penal e não
substitui as ações penais relativas às violações cometidas nos
Estados. A Corte apenas julga se o Estado é ou não responsável por
violações à Convenção Americana de Direitos Humanos. Quando o
Estado é considerado responsável, a conseqüência é a obrigação de
fazer cessar a violação e indenizar a vítima ou seus herdeiros
legais. As sentenças da Corte traduzem-se, portanto, em obrigação do
Estado de pagar indenizações pecuniárias às vítimas ou seus
familiares, enquanto as petições que tramitam no âmbito da CIDH podem
resultar, no máximo, na publicação de um relatório em que se declara
a responsabilidade internacional do Estado. A solução amistosa tem um
resultado análogo às sentenças da Corte: o pagamento de indenizações
e outras medidas, conforme explicado acima. No entanto, diferentemente
do resultado de uma solução amistosa, as sentenças não são produto
de uma negociação entre Estado e peticionários, mas simplesmente
produto do livre convencimento dos juízes que prolatam a decisão.
Ainda que o relatório da CIDH contenha uma série de recomendações
dirigidas ao Estado, apenas as sentenças da Corte são obrigatórias.
Alguns
estudiosos acreditam que as decisões da Corte têm força de título
executivo no direito interno. Essa é a posição da Drª Flávia
Piovesan: “A decisão da Corte tem força jurídica vinculante e
obrigatória, cabendo ao Estado seu imediato cumprimento. Se a Corte
fixar uma compensação à vítima, a decisão valerá como título
executivo, em conformidade com os procedimentos internos relativos à
execução de sentença desfavorável ao Estado”.
Não há no sistema, porém, um mecanismo especial encarregado de
verificar a execução das sentenças da Corte análogo ao Conselho de
Ministros do sistema europeu. No sistema interamericano, o próprio
Tribunal de São José tem acompanhado a execução de suas sentenças
e, até o presente momento, não há notícias de que os Estados tenham
desconsiderado as decisões da Corte, as quais se obrigaram a cumprir a
partir do momento em que reconheceram a competência contenciosa daquele
Tribunal.
O
Brasil, embora até o momento em que foi redigido este trabalho não
tenha feito a declaração facultativa de reconhecimento da competência
contenciosa da Corte, tem aprofundado nos últimos anos sua inserção
no sistema interamericano de direitos humanos. A adesão à Convenção
Americana em 1992, na esteira do processo de democratização,
constituiu passo importante em termos de obrigações substantivas para
o Estado brasileiro. Além disso, houve um incremento significativo de
casos relativos ao Brasil que passaram a ser tratados pela CIDH, muito
provavelmente em função da ampliação da liberdade e da superação
do autoritarismo, que criaram um ambiente interno propício à atuação
das organizações de defesa dos direitos humanos. Com efeito, ONGs como
o Centro Santos Dias de Direitos Humanos, a “Human Rights Watch/Americas”
e o CEJIL ("Center for Justice and International Law”) passaram a
apresentar número crescente de petições sobre alegadas violações
dos direitos humanos em território nacional. Em contraste com o período
autoritário, em que as solicitações de órgãos internacionais de
direitos humanos recebiam respostas lacônicas, o Governo brasileiro tem
procurado obter informações pormenorizadas e dialogar como a CIDH,
tendo em vista o reconhecimento do princípio da legitimidade da
preocupação internacional com os direitos humanos em qualquer país e
as obrigações jurídicas decorrentes da Convenção Americana.
A
questão do reconhecimento pelo Brasil da jurisdição obrigatória da
Corte deve ser vista, portanto, de uma perspectiva dinâmica, já que o
próprio Programa Nacional de Direitos Humanos, lançado pelo Governo
federal em maio de 1996, prevê como uma de suas metas o estreitamento
da cooperação com a CIDH, com a Corte e com o Instituto Interamericano
de Direitos Humanos. Além disso, entidades e importantes personalidades
do mundo jurídico, político, acadêmico e religioso vêm fazendo
campanha para que o Brasil aceite a jurisdição da Corte. O principal
argumento para que o Brasil reconheça a competência contenciosa da
Corte segue a seguinte linha de raciocínio: não faz sentido aceitar as
obrigações substantivas e evitar a plena inserção nos mecanismos
capazes de monitorar o cumprimento de tais obrigações. Além disso,
poder-se-ia agregar outros argumentos, como o de que a Corte é um
mecanismo mais avançado para a proteção dos direitos humanos,
baseando suas decisões em um arrazoado calcado no Direito, o que
garante um grau mais elevado de isenção e segurança jurídica às
partes. Do ponto de vista da política externa, a aceitação da jurisdição
obrigatória da Corte seria condizente com a linha de atuação do
Brasil nos foros multilaterais e com o interesse brasileiro em assumir
responsabilidades crescentes no cenário internacional. Não parece
temerário afirmar que tal gesto provavelmente já se inscreve em um
horizonte de curto prazo.
Antes
de finalizar esta seção, é importante esclarecer um aspecto que
gera muitas confusões. Quando se fala em responder
internacionalmente pelas violações cometidas em território
brasileiro, o que está em jogo não é apenas o julgamento da
vontade política do Executivo federal, mas a responsabilidade jurídica
internacional do Estado. O fato da União – como a pessoa jurídica
de direito internacional público – representar o Estado
brasileiro no cenário internacional não pode obscurecer a natureza
da obrigação jurídica, que engaja todos os poderes do Estado e
todos os níveis da administração pública (federal, estadual e
municipal). O esforço de cumprimento das obrigações contraídas
no âmbito internacional é, portanto, um esforço nacional, que
envolve necessariamente parceria entre o poder público e a
sociedade civil.
É forçoso reconhecer que a aplicação das normas de proteção
dos direitos humanos não depende apenas de um raciocínio silogístico
simples, capaz de subsumir um fato particular a uma lei geral. A
aplicação das normas de direitos humanos possui uma dimensão que
transcende as fronteiras da lógica jurídica, dependendo também
– e, talvez, principalmente - de condições propícias no campo
societário. Seria de pouca valia consagrar uma ampla carta de
direitos nas legislações nacionais ou em tratados internacionais
e, além disso, solicitar aos tribunais que apliquem as normas
vigentes, se a organização social ou a cultura prevalecente
impedissem a eficácia concreta dos direitos abstratamente
assegurados. É preciso transformar estruturas longamente
sedimentadas, o que requer a parceria constante de todos os atores
sociais na realização de projetos capazes de conferir
tangibilidade aos direitos enunciados nos instrumentos jurídicos.
Conclusão: aperfeiçoamento do
sistema interamericano
O
tema do aperfeiçoamento do sistema interamericano de direitos
humanos tem ocupado lugar de destaque nas preocupações de
estudiosos do assunto. Em artigo publicado em 1996, Fabián Omar
Salvioli
faz um balanço e identifica os aspectos do sistema interamericano
de direitos humanos que mereceriam ser mantidos e aqueles que
necessitariam sofrer modificações. Segundo o autor, o primeiro
aspecto a ser mantido é o próprio sistema, que correria riscos em
função de seu bom funcionamento, ou seja, sempre haveria a
possibilidade de que determinados Estados procurassem esvaziar o
sistema para evitar condenações por violações de direitos
humanos. Quanto aos outros aspectos a manter, o autor menciona os
seguintes: as atuais faculdades da CIDH, o valor jurídico da
Declaração Americana sobre Direitos e Deveres do Homem, o acesso
ao sistema interamericano, a uniformidade dos órgãos e
procedimentos de proteção, as opiniões consultivas da Corte
Interamericana de Direitos Humanos, e as medidas cautelares.
Quanto
às faculdades da CIDH, o autor ressalta a importância de garantir
suas atividades de proteção e seu status
de órgão principal da OEA, mantendo prerrogativas como a elaboração
de relatórios sobre países e a possibilidade de realizar visitas in loco para avaliar situações. O trabalho da CIDH, que compreende
as violações ocorridas em todos os países membros da OEA,
dependeria da manutenção da obrigatoriedade da Declaração
Americana de Direitos e Deveres do Homem. Trata-se do único
instrumento que vincula os Estados que não ratificaram nenhum
tratado de direitos humanos no âmbito da OEA. Outra característica
que o autor considera importante preservar é o grau de acesso ao
sistema de proteção por intermédio de petições dirigidas à
CIDH. Enquanto no sistema europeu o peticionário precisa ser a vítima
ou seu representante, no marco da OEA qualquer pessoa, grupo de
pessoas ou ONG legalmente reconhecida pode apresentar petições
individuais sobre casos de violações. Além disso, diferentemente
do que ocorre no sistema da ONU, a existência de órgãos centrais
uniformizaria os procedimentos e impediria a duplicação de esforços,
contribuindo para uma maior eficácia dos mecanismos de proteção.
A jurisprudência formada pelas opiniões consultivas da Corte, por
sua vez, teriam possibilitado uma interpretação segura dos
instrumentos de direitos humanos da OEA, o que para Salvioli
contribuiria para o fortalecimento da segurança jurídica do
sistema. O último aspecto que o autor considera fundamental ser
mantido, e se possível reforçado, são as chamadas medidas
cautelares para proteger indivíduos que enfrentam perigo iminente
de terem seus direitos violados.
Os
aspectos que estariam a exigir mudanças urgentes também receberam
a atenção de Salvioli. O primeiro deles é o problema de que
importantes países da região ainda não ratificaram a Convenção
Americana de Direitos Humanos, como é o caso dos Estados Unidos e
do Canadá. Outro defeito do sistema, segundo o autor, é que a vítima
de violações não tem acesso direto à Corte Interamericana, a
qual só analisa casos trazidos à consideração pelos Estados e
pela CIDH. O terceiro aspecto a melhorar diz respeito ao papel das
ONGs, cuja participação tem lugar sem que haja uma atribuição de
status consultivo.
Ainda de acordo com o autor, também mereceria ser modificado o
papel da Assembléia Geral da OEA, que desde 1980 não condena países
específicos, limitando-se a fazer referências gerais à existência
de violações na região. Para Salvioli, uma maior visibilidade das
questões de direitos humanos na Assembléia Geral deveria ser
acompanhada de outra mudança fundamental no sentido de conferir à
CIDH e à Corte os meios materiais, técnicos e econômicos para
realizar a contento seu trabalho. A última recomendação do autor
refere-se à necessidade de ampliar a proteção dos direitos econômicos,
sociais e culturais, a partir da ratificação do Protocolo de São
Salvador.
O
debate sobre a eventual reforma do sistema não tem permanecido
restrito às reflexões acadêmicas. A I Cúpula das Américas
(1994) recomendou o fortalecimento do sistema interamericano de
promoção e proteção dos direitos humanos, à luz das novas
circunstâncias de democracia em que vive o continente. Como conseqüência
dessa decisão, a 26ª Assembléia-Geral da OEA (1996) encarregou o
Conselho Permanente da organização de fazer uma avaliação do
funcionamento do sistema com vistas a iniciar um processo que
permita seu aperfeiçoamento, incluindo a possibilidade de reforma
dos instrumentos jurídicos correspondentes e dos métodos e
procedimentos de trabalho da CIDH. Nesse contexto, foram dados os
seguintes passos: a) realização de um seminário sobre "O
Sistema Interamericano de Promoção e Proteção dos Direitos
Humanos" (Washington, 2-4 dezembro 1996), sob os auspícios da
CIDH; b) apresentação ao Conselho Permanente do documento de
trabalho, de iniciativa do Secretário Geral da OEA, "Uma Nova
Visão do Sistema Interamericano de Direitos Humanos"; c)
realização de uma Sessão Especial da Comissão de Assuntos Jurídicos
e Políticos (abril de 1997), convocada pelo Conselho Permanente,
sobre a Avaliação e o Aperfeiçoamento do Sistema Interamericano
de Direitos Humanos com a Participação de Peritos Governamentais.
A
27ª Assembléia-Geral da OEA tomou nota dos resultados do seminário,
do documento elaborado pelo Secretário Geral da OEA e das conclusões
da Sessão Especial de peritos, e encarregou o Conselho Permanente
de, por intermédio da Comissão de Assuntos Jurídicos e Políticos,
prosseguir na consideração do aperfeiçoamento do sistema
interamericano de proteção e promoção dos direitos humanos,
fazendo as recomendações apropriadas sobre "eventuais
reformas dos instrumentos jurídicos aplicáveis". O Conselho
Permanente deve submeter suas recomendações sobre a questão,
"e qualquer outro assunto que possa representar uma contribuição
ao aperfeiçoamento e fortalecimento do sistema interamericano de
direitos humanos" à 28ª Assembléia-Geral (Caracas, junho de
1998). No entanto, seria recomendável examinar com cautela a
proposta de fazer modificações nos instrumentos jurídicos
interamericanos de proteção dos direitos humanos, evitando-se
abrir espaço para as tentativas de tornar o sistema inoperante. As
eventuais mudanças no arcabouço jurídico existente devem obedecer
às necessidades de consolidação do sistema. Além disso, seria
importante dar a devida atenção às propostas concretas elaboradas
pelo Secretário Geral da OEA no documento mencionado,
sobretudo aquelas voltadas para a reforma dos métodos de trabalho
dos órgãos de supervisão do sistema.
Algumas
das questões levantadas pelo Secretário Geral coincidem com
propostas do artigo de Salvioli. Os principais aspectos do documento
do Secretário Geral são os seguintes: a) aumento da periodicidade
das sessões da Comissão e da Corte e mais recursos materiais e
humanos para ambos órgãos; b) ampliação da participação das
ONGs no sistema com a atribuição de status consultivo a tais organizações; c) transformação da CIDH
em verdadeiro Ministério Público perante a Corte, o que requer o
acesso direto dos peticionários àquele Tribunal; d) possível fusão
da Comissão e da Corte em um único órgão, a exemplo do que
ocorrerá no sistema europeu; e) estabelecimento de regras claras
para a admissibilidade de petições; f) estabelecimento de critérios
claros para o envio de casos à Corte; g) ratificação universal
dos instrumentos interamericanos de direitos humanos; h) Conselho
Permanente da OEA teria responsabilidade de ajudar na execução das
sentenças da Corte. De todas as propostas, talvez as relacionadas
nas letras “c”, “d” e “e” sejam as que têm provocado o
número maior de reações. O interesse por essas propostas decorre
dos problemas imediatos sentidos pelos Estados em seu relacionamento
com a CIDH e da experiência do sistema europeu que, em certa
medida, devido ao seu grau mais avançado de uniformização dos
procedimentos, tem servido de modelo para o sistema interamericano.
A
proposta de transformação da CIDH em verdadeiro Ministério Público
é uma resposta ao mal-estar criado pela situação no mínimo esdrúxula
da troca de papéis que a Comissão é obrigada a efetuar no atual
sistema. Em um primeiro momento, enquanto o caso tramita no âmbito
da própria CIDH, seus membros agem como uma espécie de corpo
neutro, pairando sobre as partes em litígio. Em um segundo momento,
porém, quando o caso é submetido à Corte, a Comissão
transfigura-se em acusador, em parte contrária ao Estado. Essa
situação cria óbvia tensão no sistema, minando as condições
que possibilitam um diálogo fluido entre a CIDH e os Estados. A
maneira de resolver esse impasse seria permitir o acesso direto dos
peticionários à Corte, de modo que a CIDH passasse a agir como uma
espécie de “fiscal da lei”. O exemplo mais citado a esse
respeito é o Protocolo nº 9, de 1990, à Convenção Européia de
Direitos Humanos, que concede um tipo de locus
standi aos indivíduos ante a Corte Européia, em casos admissíveis
que já foram objeto de relatório da Comissão Européia de
Direitos Humanos.
Quanto
à possibilidade de fusão da Comissão e da Corte em um único órgão,
o debate tem como referência o Protocolo nº 11, de 1994, à Convenção
Européia de Direitos Humanos. Previsto para entrar em vigor em
novembro de 1998, o Protocolo nº 11, levará à substituição da
atual estrutura de supervisão da Convenção – representada pela
coexistência de uma Comissão e de uma Corte – pelo
estabelecimento de uma Corte permanente que absorverá as funções
dos antigos mecanismos. A Corte permanente terá a tarefa de
analisar a admissibilidade da petição, ou seja, fazer a filtragem
que hoje se encontra a cargo da Comissão Européia, e julgar no mérito
todas as questões concernentes à interpretação e aplicação da
Convenção. Os objetivos centrais da unificação operada no
sistema europeu foram: a) aumentar a eficácia do sistema de
monitoramento da Convenção; b) diminuir o tempo necessário ao
exame das petições individuais; e c) eliminar a duplicação de
esforços. Para que mudança idêntica possa ser introduzida no
sistema interamericano e ao mesmo tempo cumprir seus objetivos, duas
dificuldades iniciais teriam de ser superadas. Todos os Estados
membros da OEA teriam de ser Partes da Convenção Americana e todos
os Estados Partes teriam de aceitar a competência contenciosa da
Corte Interamericana.
No
que diz respeito aos critérios de admissibilidade, talvez o que
esteja em questão são menos os critérios em si e mais o que é
visto por muitos Estados como uma prática demasiado liberal de
abertura de casos novos por parte da CIDH. Os critérios para
admissibilidade são claros e estão definidos na Convenção
Americana e no regulamento da Comissão. A dificuldade se encontra
na prática da Comissão de abertura quase automática de casos uma
vez recebida a petição inicial. De acordo com algumas interpretações,
tal prática pode dar margem a um uso abusivo do sistema de
recebimento de queixas, pois abriria espaço para que petições
manifestamente infundadas seguissem um longo caminho até a rejeição,
consumindo recursos escassos que deveriam ser aplicados com eficiência
em benefício das verdadeiras vítimas de violações de direitos
humanos. Naquelas situações em que o peticionário busca tão-somente
vantagens pessoais ou procura “rever” decisões internas dos
tribunais tomadas de acordo com o devido processo legal, muitos
Estados têm defendido a aplicação estrita dos dispositivos que
permitem à CIDH declarar a inadmissibilidade de petições
infundadas.
A
Convenção Americana e o regulamento da CIDH determinam que a
Comissão deverá declarar inadmissível toda petição que, pela
exposição do próprio peticionário ou do Estado, for infundada ou
improcedente. O princípio segundo o qual, nos sistemas de proteção
dos direitos humanos, o ônus da prova cabe aos Estados somente faz
sentido em contexto de alegações verossímeis e fundamentadas. Do
contrário, corre-se o risco de minar a transparência e a segurança
jurídica do sistema, contribuindo para fortalecer, nos Estados, as
correntes contrárias a uma maior cooperação com a CIDH e com o
sistema como um todo. Cabe registrar que, mais do que uma questão
puramente jurídica - de aplicação das regras existentes -
trata-se de chamar a atenção sobre a necessidade de aguçar a
sensibilidade política dos órgãos do sistema e, desse modo,
evitar que a falta de transparência com relação a aspectos da
tramitação de petições possa ser utilizada como pretexto para
desacreditar em bloco o trabalho de proteção dos direitos humanos.
No
momento em que a discussão acerca do aperfeiçoamento do sistema
interamericano de proteção dos direitos humanos ganha fôlego,
certamente seria bem-vinda a iniciativa dos órgãos do sistema no
sentido de melhorar seus métodos de trabalho. Há países que estão
claramente propensos a fazer uma reforma sem que os órgãos de
supervisão tenham participação ativa. O antídoto contra uma
reforma "imposta" e que desconsidere a contribuição da
Comissão e da Corte pode ser encontrado na própria postura a ser
assumida por tais órgãos no curto prazo. A título de exemplo, é
indubitável que uma iniciativa da CIDH de se adequar às regras
existentes e afastar a possibilidade de "banalização" do
sistema de queixas seria um sinal importante, capaz de credenciar a
Comissão para participar do processo de reforma que, esperamos,
deverá preparar o sistema interamericano para responder aos
desafios deste final de século e início de novo milênio.
Para
finalizar, cabe assinalar que, diante das dificuldades imensas que
os países do continente enfrentam no campo dos direitos humanos, o
sistema interamericano, a despeito de seus defeitos e insuficiências,
segue sendo um importante instrumento de defesa das camadas mais
vulneráveis da população. Se é verdade que os regimes autoritários
deram lugar ao estabelecimento dos direitos políticos e às
instituições da democracia representativa na maioria absoluta dos
países da região, não deixa de ser igualmente correto notar que o
grau de observância dos direitos civis, econômicos, sociais e
culturais não tem correspondido às expectativas geradas pelos avanços
institucionais. A ampla utilização do sistema interamericano com o
objetivo de elevar o grau de respeito aos direitos humanos adquire
importância renovada sob a democracia, visto que não se trata,
como antigamente, de simplesmente afirmar os direitos do indivíduo contra
o Estado, mas de realizar os direitos e garantias individuais e
coletivos com o Estado. Vale dizer, o Estado não é o inimigo a ser derrotado
e os sistemas internacionais de proteção não são armas numa
suposta guerra. O Estado deve ser, ele também, instrumento de proteção,
pois os direitos humanos não se realizam automaticamente pela
abstenção estatal ou pela mera não intrusão pública no espaço
privado. Os direitos humanos exigem do Estado obrigações
positivas, obrigações de fazer, ao contrário do que certamente
prefiriria a versão vulgarizada da teoria liberal clássica. Desta
perspectiva, a potencialidade da conversão do Estado em aliado na
luta pelos direitos humanos se encontra inscrita na democracia e a
realização efetiva desta aliança é impulsionada, entre outros
fatores, pela cooperação com os mecanismos internacionais de proteção.
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