Direitos
Humanos e Cidadania a Partir da Bíblia
Rev.
Luiz Caetano Grecco Teixeira, ost
Sacerdote
anglicano e Secretário Regional para o Brasil
do CLAI – Conselho Latino Americano de Igrejas
palestra
apresentada ao Encontro de Juventude Regional
Nordeste
promovido
pelo CLAI-Brasil, em Natal (RN), novembro de 1998
O
CLAI - Conselho Latino Americano de Igrejas vem
desenvolvendo, há alguns anos, o Programa “Direitos
Humanos e Solidariedade” em toda a América Latina
e o Caribe. Esse Programa, em diversos aspectos,
marca - de forma significativa - a inserção das
Igrejas Protestantes Históricas, Evangélicas e
Pentecostais latino-americanas, filiadas ao CLAI,
em ações concretas de promoção e defesa dos Direitos
Humanos no continente e no mundo. Por sua vez,
o Programa de Juventude na Região Brasil, vem
trabalhando o tema da Cidadania nos últimos dois
anos.
As
Igrejas Cristãs são desafiadas, em cada geração,
a reafirmar a consequência de sua fé e identidade.
Nisso, se defrontam com a questão do poder e do
abuso do poder diante de sua vocação específica
de anunciar a Boa Nova do Evangelho, a Vida em
Plenitude para toda a humanidade a partir de Jesus
Cristo, que veio “para que todos tenham vida e
a tenham em abundância” (cf. Evangelho de São
João 10,10). Nesse sentido, cada cristão é chamado
a ser testemunha e agir no mundo promovendo a
Vida em Plenitude.
Afirmar
os Direitos Humanos significa reconhecer duas
coisas: que os seres humanos têm direitos alienáveis
e, ao mesmo tempo, que há sempre o risco desses
direitos não serem respeitados: há sempre alguém
que se julga com poder para não respeitálos...
As Igrejas, como toda a sociedade, são também
chamadas a refletir e a optar pela ação em defesa
dos Direitos Humanos. O exercício pleno dos Direitos
da Pessoa Humana é o que chamamos de cidadania.
O
presente artigo pretende apresentar uma posição
teológica, embora de forma muito resumida, que
fundamenta essa opção.
O TEMA NA BÍBLIA
O
tema dos Direitos Humanos, às vezes sem adotar
essa nomenclatura, sempre esteve presente nas
Igrejas Cristãs. E parte da missão apostólica
a afirmação e a defesa da dignidade da pessoa
humana, criada por Deus à Sua imagem, conforme
a Sua Semelhança. A presença do tema na reflexão
e na ação cristã decorre exatamente pela sua presença
na Bíblia. Vejamos alguns exemplos:
No Livro de Gênese
As
duas narrativas míticas sobre a Criação que encontramos
na Bíblia provêm de tradições orais diferentes,
mas ambas afirmam a dignidade da pessoa humana
que, colocada no centro do ato criador de Deus,
se torna parceiro de Deus no cuidado de toda a
Criação. Isto é, Deus entrega ao Ser Humano o
poder sobre toda a Criação, para que o ser humano
cuide dela.
O
tema do poder perpassa toda a Bíblia, como perpassa
toda a História. Logo após as narrativas da Criação,
vem a narrativa (da tradição Javista) da Queda
do Homem. E aqui a Bíblia coloca já de início
a questão do poder e do seu abuso.
Ao
contrário do que ensinam os moralistas histéricos,
e geralmente hipócritas, a famosa narrativa do
fruto proibido nada tem a ver com a sexualidade.
Pelo contrário, têm a ver com o conceito de poder
absoluto.
Em
Gênesis 3 surge o problema do poder. Segundo o
texto, Deus havia dado um limite ao poder delegado
ao Ser Humano: não poderia comer frutos de uma
árvore colocada no centro do Jardim. A Serpente
traz a tentação de comer o fruto daquela árvore,
com um argumento crucial: “É certo que não morrereis.
Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes
se vos abrirão os olhos e, como Deus, sereis conhecedores
do bem e do mal”. Ou seja, o comer daquele fruto
permitiria tornar-se igual a Deus, com o mesmo
saber/poder de Deus.
O
drama mítico atinge então o ápice logo em seguida:
o ser humano se percebe nu, isto é, se percebe
frágil e precisa esconder-se. O tiro saiu pela
culatra: ao invés de ficarem iguais a Deus, ficaram,
sim, conscientes de sua fragilidade e de sua limitação.
A presença de Deus, que vinha passear pela tarde
no Jardim e gozar da companhia do ser humano,
se torna ameaça e o ser humano, diante da Presença,
precisa esconder-se.
Mais
ainda, a percepção da nudez e o sentimento de
vergonha impede que o ser humano se mostre como
é diante do seu semelhante, e por isso Deus lhes
faz as vestes, para cobrir sua nudez, o símbolo
de sua fragilidade, a denúncia de sua vontade
de poder frustrada.
Isso
nos recorda aquela fábula renascentista do Rei
que estava nu não é mesmo? Bem, na verdade, os
reis de todos os tempos, os poderosos do mundo,
não podem negara própria nudez que os olhos
de uma criança, livres das ideologias e dos sistemas
políticos, denunciam....
Um
segundo exemplo no Livro de Gênesis, sobre a tentação
do poder absoluto, é a narrativa da Torre de Babel
(Gênesis 11,1-9): a busca do poder absoluto leva
a humanidade ao desentendimento, à quebra da comunhão
e ao dispersar-se sem unidade e sem senso de comunidade.
A confusão de línguas mostra a impossibilidade
do seres humanos viverem sob o poder absoluto
de um semelhante. Sempre haverá discórdia e luta
pelo poder, porque cada um fala uma língua, cada
um diz e pensa de forma diferente e terá de impor
sua vontade sobre os demais.
A LEI
No
Pentateuco, ou os chamados Cinco Livros da Lei
de Moisés, se percebe claramente o caráter social
da ética dos hebreus. Vamos encontrar nestes
cinco livros, exemplos claros de que o critério
hebreu para o convívio humano se pauta pelo reconhecimento
de direitos que eram reportados como Lei de Deus.
O
Código Legal que se deduz da leitura desses cinco
livros é realmente desafiador para o mundo contemporâneo,
em que a massificação e os aparatos de controle
político e econômico violentam as pessoas, especialmente
aqueles que não se enquadram no modelo: os excluídos.
O
Código Mosaico (de Moisés) parte do pressuposto
de que a Vontade de Deus é soberana e norteia
toda a ação e o convívio humano. E sua maior preocupação
é sempre com os que correm o risco maior de exclusão:
o pobre, o órfão, a viuva, o leproso, o estrangeiro,
o endividado... Regula o uso e a distribuição
da terra e dos alimentos, prevê o sustento dos
pobres, define os poderes das autoridades, estabelece
padrões reguladores para a vida econômica... e
estabelece também as penas para aqueles que não
cumprem a lei ou que abusam do poder.
Seria
por demais extenso e cansativo relacionar todas
as referências de conteúdo ético social, político
e econômico do Pentateuco. Espero que o leitor
mais cuidadoso e interessado possa dispor de
tempo para fazer, ele mesmo, sua pesquisa e aprofundar
as idéias que aqui lanço apenas de passagem.
A TRADIÇÃO PROFÉTICA
Mas
é, sem dúvida, na Tradição Profética do Antigo
Testamento que vamos encontrar referências para
as ações em defesa da dignidade humana, sua liberdade
e seu direito à vida em plenitude e abundância.
A
moderna exegese bíblica informa que a Tradição
Profética surge na contramão do poder estabelecido
em Israel e Judá. Os profetas, fossem quem fossem
(homens do povo - como Amós, que era pastor de
ovelhas, ou homens da própria corte - como saías),
representavam a oposição consciente ao discurso
e, especialmente, aos atos do poder despótico
daqueles que reinavam sobre o povo em Israel (Samaria)
e em Judá (Jerusalém).
Os
profetas falam conscientes de que são chamados
e enviados por Deus para denunciar toda opressão
e anunciar o Reinado de Deus, e exercem essa
vocação a partir da Autoridade Divina. Denunciam
a falácia do poder dos Reis, que deveria estar
a serviço do povo, mas serve apenas aos interesses
da corte que tem, no Templo, seu maior aliado.
Ao mesmo tempo, lembram que toda autoridade vem
do Senhor dos Exército e é, portanto, delegada
em benefício do povo.
Os
Profetas reafirmam a Lei Mosaica, não a contradizem.
Respondem assim às ideologias de seu tempo que
buscavam justificar - com a própria Lei - as atitudes
e a opressão dos poderosos sobre os mais fracos.
Um
exemplo muito interessante e rico é o episódio
da Vinha de Nabote (1 Reis 21).
NO NOVO TESTAMENTO
Há
duas passagens do Nova Testamento que são as prediletas
daqueles que advogam pela causa dos poderosos
e justificam os atos autoritários. Sempre que
formulamos críticas ao poder estabelecido, eles
vem com estes textos bíblicos, que já se tornaram
chavões. Gostam de citar o versículo, a frase,
sem relacioná-la com o contexto histórico da comunidade
cristã onde (ou para quem) o texto foi elaborado.
1.
“Daí a César o que é de César...”
Uma
primeira passagem é a célebre frase de Jesus:
“Daí a César o que é de César...”. A frase está
na perícope do Evangelho de São Mateus 22,15-22
(e paralelos nos Evangelhos de São Marcos e São
Lucas).
Sem
grandes elucubrações filológicas e exegéticas,
podemos resumir o texto assim: os fariseus e
doutores da Lei buscavam pegar Jesus através
de suas próprias palavras para acusarem-no de
subverter a ordem pública, especialmente diante
do Império Romano. Assim ficariam livres dele
e ao mesmo tempo não seriam os que iriam julgá-lo.
Ou seja, buscavam um artificio que politicamente
os deixasse bem com o Poder e com o Povo. Bem
típico de grupos de interesse em todos os tempos
e de certas bancadas “modernas” e defensoras do
pragmatismo no Congresso Nacional.
Então,
perguntaram a Jesus acerca do tributo que se devia
pagar ao Imperador Romano. Jesus estava diante
de uma arapuca: se dissesse ser justo, contrariaria
o espírito nacionalista da Lei Mosaica e reconheceria
o domínio do Império, que ao ver do povo, usurpava
do direito que era de Deus; se, por outro lado,
afirmasse que o tributo era injusto, seria alvo
fácil da repressão do Império.
A
resposta de Jesus é uma grande tirada: pergunta
de quem é a imagem que está na moeda com a qual
se pagaria o imposto. Todos respondem que é do
próprio Imperador. Então Jesus se safa com a seguinte
afirmação teológica: “Dai pois a Césaro que é
de César, e a Deus o que é de Deus”!
Ao
associar a imagem de César com a moeda, Jesus
relembra que o ser humano é imagem de Deus. Assim,
a resposta de Jesus coloca o poder de César sobre
aquela moeda, mas não sobre o ser humano!
Ora,
foi preciso coragem para a comunidade cristã do
primeiro século fazer tal afirmação. César, o
Imperador Romano, era Senhor do Mundo (Kýrios,
no grego). Os cristãos afirmavam, já no primeiro
século, que Jesus é o Kýrios (Jesus é o Senhor).
Tal afirmação era (como ainda é) revolucionária
e contestadora de todo poder estabelecido como
absoluto. Ao colocar essa afirmação na boca de
Jesus, a comunidade cristã onde o texto foi gerado
estava afirmando de forma clara e inequívoca que
sua adesão a Jesus Cristo implicava em não reconhecer
César (e portanto, o., Império) como absoluto.
Acima
de César e de todos os imperialismos está o poder
de Deus e a dignidade do Homem, que sendo feito
à imagem de Deus, só a Deus pertence. O ser humano
não é objeto que pertença a nenhum outro, a nenhum
sistema ideológico, político, econômico ou religioso.
O ser humano é livre pela sua própria natureza
e essência, livre em Deus!
Por
essa afirmação de fé e consequente atitude política
é que os cristãos foram assassinados pela repressão
do Império Romano (e sempre pelos órgãos de repressão
a serviço de todo tipo de poder absoluto: despotismo,
ditadura, etc, até mesmo em nossa América Latina
e país há pouco tempo atrás).
Assim,
o texto ao invés de justificar a autoridade de
César (e dos Césares de todos os tempos por extensão),
pelo contrário, mostra exatamente a limitação
dessa autoridade: está abaixo do Reinado de Deus.
2.
“Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores...”
Aqui
se cita o Apóstolo São Paulo, em sua carta aos
Romanos, 13,1-7. Citado assim, parece mesmo que
o Apóstolo está nos sugerindo que toda autoridade
é boa e deve ser obedecida. Cansei de ouvir esse
texto como advertência nos tempos de minha militância
no movimento estudantil na década de 70 e no movimento
sindical nos anos 80.
Porém,
São Paulo fala no contexto da vida cristã, tendo
como referencial a fé e as virtudes decorrentes
de uma nova vida em Cristo. Pois antes, no capítulo
12, fala exatamente dessa nova vida.
Por
isso, a obediência a que Paulo se refere está
subordinada à obediência ao Evangelho. Paulo dá,
nessa e em outras epístolas, lições de bom senso
para as comunidades que pastoreava ou com quem
se comunicava. O que Paulo está dizendo é que
não se deve hostilizar a autoridade inadvertidamente,
nem que se deve desprezar as ordenações sociais
que regulam as relações humanas. Poderíamos hoje
dizer que Paulo defenderia o que chamamos de Estado
de Direito, no contexto de sua existência no mundo
helenista do Império Romano no Oriente e de sua
formação como fariseu. Mas jamais o Apóstolo estaria
defendendo a obediência cega e não crítica à autoridade,
O mesmo Paulo afirmava que Jesus é o Senhor, em
clara desobediência ao Imperador e aos estatutos
do Império Romano.
O
próprio Paulo se valeu, contudo, de sua condição
de cidadão romano (de sua cidadania!) para reivindicar
o direito de receber julgamento justo (cf. Atos
22- 27). Ou seja, modernamente falando, podemos
dizer que o Apóstolo Paulo defende - na limitação
de seu contexto histórico e sócio-político - os
valores de cidadania e de direitos da pessoa humana.
CONCLUI N DO
Quando
celebramos os 50 anos da Declaração Universal
dos Direitos Humanos é preciso estarmos atentos
diante dos fatos que observamos no cotidiano.
A Declaração é mais que um documento, é o reconhecimento
da integridade e da dignidade de cada pessoa humana.
Nestes
tempos esta dignidade e integridade se acham constantemente
ameaçados. Os esquemas de poder e dominação hoje
são sutis; os déspotas, os opressores, os que
se apropriam do poder em beneficio de si próprios
ou de seus aliados continuam, com o sempre, traindo
a tarefa que lhes é delegada quando se lhes concede
o poder.
Mas
estão ocultos, não são facilmente reconhecidos,
escondem-se por trás de grandes corporações, por
trás de sistemas políticos e econômicos e principalmente
atrás de discursos forjados na comunicação de
massa e na ideologia do consumo e do mercado.
Milhares
ou melhor dizendo, milhões de pessoas são colocadas
à margem todos os dias, impossibilitadas de atenderem
ao que se considera mínimo para sua inclusão entre
os seres humanos “consumidores”. Regiões inteiras
do nosso planeta são deixadas de lado e não têm
mais acesso aos benefícios conquistados pela ciência
e pela tecnologia que, em princípio, deveriam
tornar melhor a vida humana.
Por
serem pobres, não interessam ao deus-mercado,
e assim são tratados como se não existissem, ou
seja, não recebem tratamento algum! Essa é a maior
manifestação do Diabólico em nosso tempo.
Contra
o deus-mercado, a Bíblia nos convoca novamente
a afirmar o Senhorio do Deus que criou a Vida,
em Jesus Cristo. Defender e promover os Direitos
Humanos é acima de tudo, assumir atitudes cidadãs
e lembrar ao mundo que os Direitos são de todos
os Humanos, não de alguns poucos privilegiados
que podem consumir.
Que
nos próximos 50 anos a humanidade seja capaz de
construir o mundo mais próximo do jardim que Deus
nos deu na Criação, de tal forma que não precisemos
celebrar os 100 anos da Declaração Universal dos
Direitos Humanos, porque não será mais uma declaração
de princípios, mas a forma de vida adotada por
toda a humanidade.
Que
Deus se compadeça de nós e em Sua misericórdia
(capacidade de compreender a dor), nos ajude.
Amém.
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