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No Brasil
Morte de pobre não é notícia

- entrevista com Caco Barcellos*, jornalista da Globo,
conduzida por
Noélia Oliveira

No Brasil, o segundo país mais violento do mundo, ocorrem 55 mil crimes de morte por ano. Em 22 anos, 1970-1992, uma elite especial da Polícia Militar do Estado de São Paulo foi responsável por 12 mil assassinatos. A justiça é perversa. 97 por cento das pessoas encarceradas têm um rendimento inferior a 50 contos. Os jornalistas são indirectamente responsáveis pela violência que se verifica. Estes dados foram apresentados por Caco Barcellos, jornalista na TV Globo, na comunicação apresentada ao 1º Encontro de Jornalistas de Línguas Ibéricas organizado pelo Sindicato dos Jornalistas, em Lisboa, nos dias 2 e 3 do corrente mês.

O "Avante!" entrevistou Caco Barcellos e procurou saber quais são, no seu entender, as causas de situações tão dramáticas e indignas dum mundo civilizado e as razões que têm impedido que a forte imprensa brasileira as denuncie.

— Disse na sua comunicação que o Brasil é o segundo país mais violento do mundo. Porquê?

A informação não é minha mas dum ranking elaborado pelas Nações Unidas, que faz um estudo comparativo sobre a violência e que nos coloca, pelo segundo ano consecutivo, como o 2º país mais violento do mundo, só superado pela Colômbia. É muito grave porque é um ranking sobre o crime mais grave, o crime de morte. São vários os factores que explicam uma situação tão complexa como esta. Acho que o factor principal é o económico. Num outro ranking, este elaborado pelo Banco Mundial, somos classificados como a terceira nação económicamente mais injusta do mundo e parece que caminhamos rapidamente para o primeiro lugar. Nós vivemos um paradoxo absurdo que certamente é o factor mais grave. Temos uma minoria com uma alta concentração de riqueza. Os nossos ricos são alguns dos mais ricos do mundo. Os ricos formam um contingente não maior que 30 por cento da nossa população. Temos uma numerosa classe média. Do outro lado, temos uma imensa maioria absolutamente pobre vivendo abaixo das condições de dignidade.

Este contraste social provoca um clima de desarmonia intenso que pode ser o gerador desta situação. Refiro-me ao exemplo brasileiro, mas noutras nações onde há este contraste social, mais do que a pobreza, existe o fenómeno da violência. Nos países comunistas, não havia este problema porque não havia uma concentração de riqueza em poucas mãos, ela estava relativamente bem distribuída pela população. Em países africanos, essencialmente pobres, onde há uma componente racial, há violência, mas não tão bárbara quanto a nossa.

A justiça não se democratizou


— A percentagem dos que matam para roubar é elevada?

Não. A percentagem não chega a 5 por cento. Penso que estamos, sobretudo, perante um factor de desarmonia. Tanto mata o pobre como mata o rico. Estamos matando-nos uns aos outros. Uma sociedade que se diz católica, cujo mandamento fundamental é não matar, produz 55 mil assassínios por ano, produz 55 mil tragédias nas suas famílias. Mas o mais grave é que a sociedade não procura soluções porque grande parte dessas vítimas vem da população excluída da organização social, logo não preocupa a imprensa. Por isso atribuo uma responsabilidade parcial à imprensa, porque se acomoda perante este quadro.

Outro componente que considero gravíssimo refere-se à justiça. A nossa justiça não se democratizou. Ela só pune os pobres, jamais os ricos. Os grandes criminosos ricos nunca são condenados no Brasil. Uma pesquisa científica sobre o universo da população encarcerada brasileira, feita pela Universidade Federal de São Paulo, revela que 97 por cento das pessoas condenadas pela nossa justiça têm um rendimento inferior a 300 dólares (menos de 50 contos). Que justiça é esta?

Uma força de elite da Polícia Militar de São Paulo matou 12 mil pessoas. Como é isso possível num país que vive em democracia?

É muito grave, na verdade. São forças do Estado, são o nosso braço armado, pagas pelos nossos impostos, pertencem à sociedade. É a sociedade que está matando. A nossa Polícia Militar foi criada pela ditadura militar em 1970. Entre 1970 e 1992, ano em que publiquei o meu livro "Rota 66", 12 mil pessoas foram assassinadas. Trabalhei duro durante sete anos para investigar estas mortes e preparar este livro que denuncia aqueles assassinatos. Até esta data mataram aquelas pessoas e diziam que o faziam de forma legítima. Eu suspeitava seriamente disso porque havia uma coincidência muito estranha: em cada 10 pessoas que eles matavam, 9 eram apresentados como bandidos. Como criminosos, mas sem identificação. Se não tinham identificação, como sabiam que eram criminosos? Isto levou-me a investigar.

Suspeito é pobre e negro


— Como agia então essa unidade de elite, Rondas Ostensivas Tobias Aguiar, conhecida em São Paulo como Rota?

Eles saem para a rua para patrulhar a cidade e agem quando encontram alguém que consideram suspeito - suspeito para eles é alguém pobre e negro e quando se comporta de forma "indevida". Quando a viatura se aproxima, devia chegar dando sinal com as luzes e sirenes. Mas eles não fazem isso. Chegam às escuras, o carro é pintado de cinzento escuro, quase invisível à noite e assustam em geral os jovens. Quando se assustam, correm. Se correm, mais suspeitos são na optica dos policiais, que atiram e matam. Depois de matar examinam os documentos para saberem se é criminoso ou não. Se não é criminoso destroem os documentos e apresentam à sociedade aquele episódio como resultado de um tiroteio. Colocam armas nas mãos das vítimas, disparam o gatilho com o próprio dedo do morto para ficarem vestígios de pólvora na mão e surgir no exame residográfico presença de pólvora.

Quando fiz a investigação para o meu livro consegui identificar 4.200 dos 12 mil. Entre os 4.200 identifiquei 680 crianças com idades entre os 7 e os 11 anos. Examinei os cadáveres do ponto de vista da medicina legal e, para além do que já referi, encontrei frequentemente marcas de tiro na nuca. Até o jardim de infância da medicina legal sabe que um tiro na parte posterior da cabeça é no mínimo indício de execução e não de legítima defesa.

— A Rota dispõe de quantos elementos?

Cerca de 750. Um grupo minoritário mas extremamente poderoso, e entre eles estavam homens do alto comando. O massacre na cadeia de Carandiru (1992) ocorreu um mês depois do lançamento do meu livro. Dois dos comandantes de duas unidades especiais, a Gatio e o Goi, denunciados no meu livro, estiveram à frente das forças que invadiram a prisão e mataram 111 presos. Este massacre veio confirmar a minha denúncia. Só que em média eles matavam 110 a 120 pessoas por mês, e naquele dia mataram 111. A maioria da polícia, contudo, é contra estes actos. São 90 mil os policiais militares no Estado de São Paulo e mais de 60 mil nunca dispararam um único tiro. São políciais que por vezes me denunciam situações que eu investigo como repórter.

Há uma reacção classicista, na sociedade, porque pior que ser negro no Brasil é ser negro e pobre.

Defende-se o património,
não a vida

— Não há mecanismos constitucionais que impeçam esta bárbarie e anulem, estes resquícios da ditadura?

Após a ditadura, vários sectores da sociedade democratizaram-se, mas a justiça, e sobretudo a polícia, não se democratizaram. A polícia age em defesa do património e não em defesa da vida, da sociedade e do cidadão. Os juízes também têm responsabilidades. É certo que o processo judicial e inquérito é feito pela polícia e o juiz recebe-o já deformado e já injusto. Mas eles permitem isso. Só colocam os pobres na cadeia.

O nosso Governo hoje é neoliberal, mas usa o modelo da extrema direita. Tivemos uma oportunidade recente de mudar a nossa polícia e foi perdida. Houve no Congresso vários projectos de deputados de esquerda propondo uma mudança de estrutura da polícia, nomeadamente que os crimes praticados por estes policiais deixassem de ser investigados pelos próprios policiais militares. É um absurdo que um matador investigue um matador. Os projectos não foram aprovados no Congresso. Mas conquistou-se uma pequena vitória. Hoje o julgamento não é feito pelos oficiais, é a sociedade civil que julga agora estes crimes.


— A sociedade civil não reage, não denuncia?

Há iniciativa da própria sociedade atingida. A democratização tecnológica - talvez seja este um dos seus aspectos positivos - permite que as pessoas tenham câmaras televisivas em suas casas e elas estão documentando a brutalidade quando as atinge. A Globo mostrou em rede, há pouco tempo, um massacre que foi filmado por um cidadão, na Candelária. Isto causou uma grande revolta no país. A imprensa, que nunca trata destes assuntos, de repente tratou-o com aquela ênfase toda. Em minha opinião, foi o documento mais importante da história da televisão brasileira e veio revelar a falência da imprensa e televisão. Foi também um incentivo para a população fazer isso, já que a imprensa não o faz.


— Não há intelectuais ou artistas que lutem contra esta situação já que têm tanto peso na sociedade brasileira?

Há intelectuais que denunciam estas barbáries, mas são minoritários. A denúncia tem um papel limitado. Tem faltado à esquerda um papel alternativo no que se refere à política de segurança pública. Há uma minoria no Congresso que age, mas como é minoria nada pode fazer. O filme exibido de que falei e que passou um pouco por todo o mundo, agitou e mexeu um pouco com o senso comum que vigora na sociedade brasileira e que é gravíssimo. Ele exige um policial a cada porta para impedir um eventual crime.

O espelho da nossa sociedade revela que ela é extremamente conservadora, egoísta e classicista. Não importa que o seu irmão favelado esteja passando dificuldades. Se o seu filho está protegido, que se dane o filho do favelado. Não há um sentimento de dignidade e nem de entender que um indivíduo que tem o salário padrão da Etiópia, que me desculpem esta expressão, não se pode comportar como um indivíduo padrão de comportamento suíço. Ele tem um comportamento coerente com a brutalidade que recebe diariamente. O consumismo tem um papel importante: gera frustrações e insatisfação a toda a hora e a todo o instante. As empresas brasileiras são pobres e os empresários são arquimilionários.


— Os seus trabalhos de investigação e reportagem são bem recebidos pelos outros jornalistas?

Não sei responder. Penso que não há consenso. Mas tenho felizmente grandes manifestações de carinho por parte dos colegas, mas mais por parte da população. Sinto-me um pouco refém do trabalho que faço e que me faz sofrer muito, por me envolver em situações trágicas e desgastantes do ponto de vista emocional. Diariamente chovem telefonemas, sempre que alguém morre me chamam para contar a história.


O desconforto


— Ao longo da entrevista fez algumas críticas ao alheamento que a imprensa brasileira tem tido para com a situação dramática dos excluídos. Os jornalistas acomodaram-se após a ditadura?

Eu não diria que há um acomodamento ideológico, mas há um desconforto prático, porque conviver nas áreas em que estas situações ocorrem é muito desconfortável. É muito mais confortável ficar frente ao computador consultando a Internet e tendo ali toda a riqueza de informações do que sair para o calor de muitos graus e ouvir aquela população que só lhe conta tragédias e problemas. Sobretudo para quem vive e disfruta de uma situação confortável em torno de si própria. Não nego uma postura arrogante e egoísta por parte dos jornalistas. Mas a responsabilidade maior é do empresário de jornalismo que nos força a comportarmo-nos dessa maneira. Somos jornalistas brilhantes a retratar uma certa realidade brasileira, a melhor que o país já teve. Do ponto de vista tecnológico é impressionante. Eu, que trabalho em investigação na TV Globo, disponho de equipamentos fantásticos como uma câmara do tamanho da sua caneta e com uma lente que não passa de um pontinho negro na ponta da caneta. Todas estas ferramentas maravilhosas estão ao serviço dos interesses de uma minoria da nossa sociedade a que chamaria talvez a Suíça brasileira, enquanto os excluídos não merecem o mesmo tratamento. O episódio do Impechement é revelador. A imprensa no Brasil é poderosa. Fomos nós jornalistas que levámos aquele ladrão público à Presidência. Depois, fomos nós, novamente pela via da investigação, que o tirámos de lá. Isto é uma prova como a imprensa é poderosa e foi eficaz na investigação jornalística. Acho que a 2ª investigação não devia ter sido necessária. Devíamos ter evitado que o ladrão fosse para o poder. De qualquer modo revela eficácia que, no entanto, não se mostra igual ao retratar a imensa maioria da população.

Isto indica que, quando o interesse do empresário de jornalismo está afinado pelo interesse da minoria da sociedade, temos uma imprensa brilhante. A melhor da nossa história. Quando esses interesses não estão afinados, temos em minha opinião, uma imprensa vergonhosa.


— Na sua opinião, os jornalistas devem ter militância partidária ou deixam de ser isentos se a tiverem?

Nada impede que não seja isento. Há preconceito na sociedade brasileira quanto a essa questão. Eu não sou filiado. Mas tenho partido e reservo-me o direito de votar no partido que tenho. Procuro exercer o meu trabalho como um acto político, sempre. O filho do favelado é tão importante como o meu filho. Isto é uma acção política, embora não engajada partidariamente e assumida publicamente. Sei que se assumisse publicamente a minha opção partidária estava a ajudar a combater esse preconceito e ao não fazê-lo estou a alimentá-lo. É um assunto em que continuo a pensar e sobre o qual poderei tomar uma posição diferente.

 

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Quem é *Caco Barcellos

Caco Barcellos é, actualmente, repórter na TV Globo onde só trabalha em investigação.
Integra o Grupo Repórter que, semanalmente, apresenta uma reportagem de uma hora. É responsável por um programa semanal de meia hora, onde aborda questões relacionadas com os marginalizados e excluídos da sociedade.
Começou a sua carreira no Rio Grande do Sul, na imprensa alternativa, durante a ditadura. Foi jornalista na Veja e desta foi para a TV Globo, onde é um dos principais repórteres e um dos mais conhecidos no Brasil.
Tem 45 anos. É gaúcho. Estudou engenharia e foi motorista de táxi enquanto estudante. Integrou uma comunidade hippy à qual, também, pertenceu o realizador de cinema Licínio de Azevedo.
Cobriu a guerra na Nicarágua, tendo feito trabalhos sobre as crianças vítimas da guerra.
Especializou-se na área dos direitos humanos, basicamente nas questões de segurança, na investigação de crimes policiais e de Estado.
Após sete anos de investigação publicou o livro "Rota 66" onde narra a história dos polícias de um carro, o 66, das Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (Rota), que matam três jovens. Através deste caso, denúncia toda a história de 22 anos de execuções desta unidade especial.
Após a publicação do livro, em 1992 teve de sair do Brasil, por razões de segurança. Esteve em Londres quase um ano.
Regressou ao Brasil e ainda hoje sofre ameaças. Em Dezembro, quando tinha o carro estacionado junto a um supermercado, tinha escrito no parabrisas: "você poderia morrer aqui".
Na viagem para Lisboa, vindo de São Paulo, uma hospedeira avisou-o de ter ouvido recentemente: "temos de dar um jeito naquele cara".

 

 
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