|  
 DIREITOS HUMANOS A PARTIR  DE
 UMA PERSPECTIVA DE GÊNERO
 Silvia Pimentel e 
                  Valéria Pandjiarjian* Sumário: 1. Introdução. 2. Marco jurídico internacional. 3. Marco jurídico nacional. 
                  3.1. Saneamento da ordem jurídica: uma perspectiva feminista. 
                  3.2. A reforma do Código Penal: várias propostas feministas 
                  contempladas. 3.2.1. Dos crimes contra a dignidade sexual. 3.2.2. 
                  Da parte geral. 3.3. A ordem jurídica aplicada: estupro 
                  e legítima defesa da honra. 3.3.1. Estupro. 
                  3.3.2. Legítima defesa da honra. 4. Conclusão.  A noção de direitos 
                  humanos, de uma maneira geral, tem sua origem na busca de limites 
                  aos abusos estatais, garantindo-se aos cidadãos determinados 
                  direitos, como fundamentais. Tradicionalmente, é essa a abordagem 
                  que tem prevalecido, principalmente nos países desenvolvidos. O que se observa, em 
                  especial na América Latina, é uma mudança de eixo, um alargamento 
                  do conceito, de forma a se resguardar direitos dos cidadãos 
                  não apenas em relação ao Estado, mas também em relação à própria 
                  sociedade. Pode-se dizer que se 
                  constata tendência de diminuição do autoritarismo e dos abusos 
                  estatais, em relação aos direitos humanos, na medida em que 
                  países como o Brasil, Argentina, Chile, Peru e outros superam 
                  governos militares despóticos e colocam-se sob regimes democráticos. 
                  Mas não se pode dizer que a violência diminuiu. Ao contrário, 
                  é crescente. Está mais difusa, pois suas manifestações são várias 
                  e de diversas ordens: aumento de criminalidade, assaltos, roubos, 
                  latrocínios, seqüestros; aumento de abusos de grupos nacionais 
                  e transnacionais contra a natureza e os índios (o que freqüentemente 
                  não é tratado como ações criminosas); aumento de atividades 
                  do narcotráfico que se espraia cada vez mais em nosso continente 
                  e, em especial, no Brasil (o qual passou a ser rota privilegiada 
                  de saída da coca da Colômbia, contando, inclusive, com vários 
                  centros de refino); aumento da prostituição infanto-juvenil; 
                  aumento da justiça paraestatal, causando um sem número de vítimas, 
                  inclusive crianças e adolescentes; aumento do desemprego, da 
                  fome e da exclusão social, revelando a ausência de direitos 
                  econômicos, sociais e culturais no país. A mesma lógica aplica-se 
                  à questão dos direitos das mulheres. Até há pouco tempo, os 
                  atos de violência cometidos contra a mulher – em especial a 
                  violência doméstica – não eram considerados violações aos direitos 
                  humanos. Isso porque, como já dissemos, em sua origem, os direitos 
                  humanos eram vistos como direitos que buscavam prevenir e/ou 
                  coibir a violência exercida pelo Estado contra seus cidadãos. 
                  Ora, quem espanca, assassina, violenta, tortura as mulheres 
                  não é o Estado, e sim seus pais, maridos, companheiros ou homens 
                  desconhecidos. Os abusos contra a 
                  população feminina são uma evidência de que o Estado não é o 
                  detentor exclusivo do uso da violência. Portanto, além de controlar 
                  "o exercício autoritário do Poder do Estado", os direitos humanos 
                  devem também coibir o autoritarismo da própria sociedade machista 
                  sobre suas mulheres. Coloca-se, pois, hoje, 
                  um verdadeiro desafio a todos os envolvidos com a causa dos 
                  direitos humanos: a reconstrução de sua agenda. E isso passa 
                  necessariamente por uma reformulação conceitual que venha a 
                  explicitar a figura da sociedade – indivíduos, grupos nacionais 
                  e transnacionais – enquanto possível agente desrespeitador dos 
                  direitos humanos, em relação aos quais caberia estabelecer novas 
                  estratégias de enfrentamento. Essa reformulação do conceito 
                  criaria condições para se trabalhar, diretamente, a questão 
                  dos direitos humanos das mulheres versus os aspectos 
                  androcêntricos, patriarcais e machistas da sociedade. Importa salientar que 
                  a integração dos direitos humanos com os direitos das mulheres 
                  depende da reconstrução de ambos os conceitos. Enquanto teoria 
                  e prática, o movimento em prol dos direitos humanos tendeu a 
                  minimizar as questões específicas da mulher e parte do movimento 
                  de mulheres tendeu a dar pouca atenção para as sutilezas das 
                  inflexões sociais, privilegiando os mecanismos que se relacionam 
                  especificamente a gênero. Os direitos das mulheres 
                  foram, pela primeira vez, expressamente reconhecidos como direitos 
                  humanos no marco da Conferência Mundial de Direitos Humanos, 
                  em Viena, Junho de 1993. Nesse sentido, a Conferência, 
                  no artigo 18 de sua Declaração, reconheceu que:  
                  "Os direitos humanos 
                    das mulheres e das meninas são inalienáveis e constituem parte 
                    integrante e indivisível dos direitos humanos universais (...). 
                    A violência de gênero e todas as formas de assédio e exploração 
                    sexual (....) são incompatíveis com a dignidade e o valor 
                    da pessoa humana e devem ser eliminadas (...) Os direitos 
                    humanos das mulheres devem ser parte integrante das atividades 
                    das Nações Unidas (...), que devem incluir a promoção de todos 
                    os instrumentos de direitos humanos relacionados à mulher." Frise-se, ainda, que 
                  a própria Declaração de Viena estabeleceu que se deve "estimular 
                  o treinamento de funcionários das Nações Unidas especializados 
                  em direitos humanos e ajuda comunitária, para ajudá-los a reconhecer 
                  e fazer frente a abusos de direitos humanos e desempenhar suas 
                  tarefas sem preconceitos sexuais". Se esta é a determinação 
                  da Assembléia Geral para os funcionários da ONU - Organização 
                  das Nações Unidas, o que não dizer das recomendações aos órgãos 
                  dos Estados e pessoas responsáveis pela proteção dos direitos 
                  humanos em seus respectivos países? É mister, pois, uma 
                  ação político-jurídica transformadora para fornecer capacitação 
                  legal aos agentes que lidam, nas principais esferas de poder, 
                  com questões de direito, mulher, saúde e sexualidade, direitos 
                  sexuais e reprodutivos, enfim, com direitos humanos em uma perspectiva 
                  de gênero. Vale ressaltar, como faz J. 
                  A. Lindgren Alves, que "de todas as áreas cobertas pela Declaração 
                  de Viena, aquela em que o consenso logrado em 1993 tem-se mantido 
                  com maior regularidade diz respeito aos direitos da mulher"1. A Organização das Nações 
                  Unidas, a propósito, promoveu a realização da IV Conferência 
                  Mundial sobre a Mulher, em Beijing, China, em 1995, "enquadrada 
                  na seqüência de grandes eventos da década para os temas globais 
                  da agenda social internacional". A Conferência, realizada dez 
                  anos após a Década da Mulher estabelecida pela ONU (1975-1985), 
                  vale ressaltar, lidou muito bem com o tema da violência, aproveitando-se 
                  dos avanços de Viena, quando, conforme mencionado, ficou assentado 
                  que a violência contra a mulher é um desrespeito aos direitos 
                  humanos. O relatório da Conferência 
                  de Beijing afirma que a violência contra a mulher constitui 
                  obstáculo a que se alcancem os objetivos de igualdade, desenvolvimento 
                  e paz; que viola e prejudica ou anula o desfrute por parte dela 
                  dos direitos humanos e das liberdades fundamentais. A Plataforma de Ação dessa 
                  Conferência, vale frisar, recomenda, em seu § 1242, como 
                  medidas que devem ser adotadas pelos governos para o combate 
                  à violência contra a mulher, dentre outras, as seguintes:  
                  "adotar e/ou aplicar 
                    as leis pertinentes e revisá-las e analisá-las periodicamente, 
                    a fim de assegurar sua eficácia para eliminar a violência 
                    contra a mulher, pondo ênfase na prevenção da violência e 
                    na perseguição dos infratores; adotar medidas para assegurar 
                    a proteção das mulheres vítimas da violência, o acesso a remédios 
                    justos e eficazes, inclusive a reparação dos danos causados, 
                    a indenização e a cura das vítimas, e a reabilitação dos agressores; adotar todas as medidas 
                    necessárias, especialmente na área da educação, para modificar 
                    os hábitos de condutas sociais e culturais da mulher e do 
                    homem, e eliminar os preconceitos e as práticas consuetudinárias 
                    e de outro tipo baseadas na idéia da inferioridade ou da superioridade 
                    de qualquer dos sexos e em funções estereotipadas atribuídas 
                    ao homem e à mulher; criar mecanismos institucionais, 
                    ou reforçar os existentes, a fim de que as mulheres e as meninas 
                    possam denunciar os atos de violência cometidos contra elas, 
                    e registrar ocorrências a respeito em condições de segurança 
                    e sem temor de castigos ou represálias; instaurar, melhorar 
                    ou desenvolver, conforme o caso, e financiar a formação de 
                    pessoal judicial, legal, médico, social, educacional, de polícia 
                    e serviços de imigração, com o fim de evitar os abusos de 
                    poder conducentes à violência contra a mulher, e sensibilizar 
                    tais pessoas quanto à natureza dos atos e ameaças de violência 
                    baseados na diferença de gênero, de forma a assegurar tratamento 
                    justo às vítimas de violência." No âmbito internacional, 
                  os direitos das mulheres têm recebido especial tratamento não 
                  só nos documentos produzidos nas Conferências das Nações Unidas, 
                  mas encontram-se também protegidos por instrumentos e mecanismos, 
                  gerais e específicos, que integram os complexos sistemas global 
                  e regional de proteção aos direitos humanos. Os instrumentos jurídicos 
                  internacionais de proteção aos direitos humanos, ao contrário 
                  dos documentos produzidos em Conferências, têm força jurídica 
                  vinculante para os Estados que os ratificam. Em relação aos direitos 
                  das mulheres, dois instrumentos jurídicos devem ser destacados: 
                  a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação 
                  contra a Mulher ("Convenção da Mulher") e a Convenção Interamericana 
                  para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher 
                  ("Convenção de Belém do Pará"). A "Convenção da Mulher", 
                  que integra o sistema global de proteção aos direitos humanos, 
                  foi adotada em dezembro de 1979 pela Assembléia Geral das Nações 
                  Unidas (ONU) e ratificada pelo Brasil em fevereiro de 1984. 
                  Constitui-se no mais importante documento internacional para 
                  garantir à mulher a igualdade com o homem no gozo de seus direitos 
                  civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. Ao ratificar 
                  a Convenção, os governos se comprometem a adotar internamente 
                  uma série de medidas para pôr fim à discriminação contra a mulher. 
                  Entretanto, uma das fragilidades da Convenção é que praticamente 
                  não há sanção prevista contra os governos que não cumpram com 
                  os compromissos internacionalmente assumidos. O sistema global de 
                  proteção aos direitos humanos, vale frisar, não dispõe de um 
                  órgão jurisdicional com competência para julgar casos individuais 
                  de violação aos direitos internacionalmente assegurados. A sistemática 
                  de monitoramento internacional se restringe ao mecanismo de 
                  relatórios, a serem elaborados pelos Estados-partes e, por vezes, 
                  ao mecanismo das comunicações interestatais e petições individuais 
                  a serem consideradas pelos Comitês ou Comissões (órgãos não-jurisdicionais) 
                  criados especialmente para fiscalizar o cumprimento de convenções 
                  internacionais. O órgão das Nações 
                  Unidas encarregado de monitorar, especificamente, a implementação 
                  da "Convenção da Mulher" é o CEDAW – Comitê para a 
                  Eliminação da Discriminação Contra a Mulher. Esse Comitê, até 
                  há pouco tempo, somente tinha competência para analisar os relatórios 
                  elaborados pelos Estados-partes. Mas, a aprovação, em março 
                  de 1999, pelo Comitê do Status da Mulher, de Protocolo Opcional 
                  ao CEDAW (documento E/CN.6/1999/WG/L.2), permitirá que mulheres 
                  ou grupos de mulheres de Estados que o ratifiquem possam fazer 
                  denúncias ou petições individuais ou grupais por violações de 
                  seus direitos, perante o Comitê. A "Convenção de Belém 
                  do Pará", que por sua vez integra o sistema regional interamericano 
                  de proteção aos direitos humanos, foi adotada pela Assembléia 
                  Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) em junho de 
                  1994 e ratificada pelo Brasil em novembro de 1995. É instrumento 
                  que introduz conceitos de suma importância com vistas a melhorar 
                  a proteção legal das mulheres. Cabe destacar, nesse sentido, 
                  a consideração da violência contra a mulher como uma violação 
                  dos direitos humanos e das liberdades fundamentais; o reconhecimento 
                  da categoria "gênero", da noção de "direito a uma vida livre 
                  de violência", da visibilização da violência sexual e psicológica 
                  e a consideração do âmbito público e privado como espaços de 
                  ocorrência de atos violentos contra a mulher. Ao ratificar a 
                  Convenção, os governos se comprometem a adotar uma série de 
                  políticas e medidas de prevenção, punição e erradicação da violência 
                  contra a mulher, no âmbito dos Poderes Executivo, Legislativo 
                  e Judiciário. Diverso do sistema 
                  global, o sistema interamericano dispõe de um órgão jurisdicional, 
                  que é a Corte Interamericana de Direitos Humanos, cujas decisões 
                  têm força jurídica vinculante e obrigatória. Dispõe, ainda, 
                  da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, com competência 
                  para, dentre outras funções, receber e analisar petições individuais 
                  que contenham denúncias de violação aos direitos humanos contra 
                  os Estados-partes, nos termos estabelecidos pelos instrumentos 
                  internacionais que integram o sistema interamericano de direitos 
                  humanos. É, inclusive, através da Comissão (ou através de um 
                  Estado-parte) que uma petição individual pode chegar à Corte 
                  Interamericana de Direitos Humanos, desde que o Estado-parte 
                  acusado da violação reconheça expressamente a competência jurisdicional 
                  da Corte. A "Convenção de 
                  Belém do Pará" encontra-se, assim, submetida a esta sistemática 
                  de monitoramento. Vale dizer, para efetuar denúncias individuais 
                  de violações a essa Convenção contra um Estado-parte, há que 
                  submeter uma petição à Comissão Interamericana de Direitos Humanos 
                  que, ao avaliá-la, poderá emitir um informe final no qual determine 
                  a existência ou não de responsabilidade do Estado acusado. As 
                  decisões da Comissão, no entanto – ao contrário daquelas da 
                  Corte – não possuem força jurídica vinculante e obrigatória, 
                  apenas política e moral. Em geral, se o Estado não cumpre a 
                  determinação da Comissão, o caso é então enviado à Corte Interamericana 
                  para julgamento. No caso do Brasil, 
                  o sistema interamericano de monitoramento até muito pouco tempo 
                  encontrava-se limitado à Comissão, vez que o Estado brasileiro 
                  não reconhecia a competência 
                  jurisdicional da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Recentemente, 
                  no dia 10 de dezembro de 1998, por ocasião da celebração do 
                  cinqüentenário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, 
                  o governo brasileiro reconheceu oficialmente a competência jurisdicional 
                  da Corte. A Constituição Federal 
                  de 1988 é o marco jurídico-político da transição democrática 
                  e da institucionalização dos direitos humanos no país. Em uma interpretação sistemática 
                  de seus dispositivos (arts. 1o, 4º, II e 5º, §§ 1º e 2º), no 
                  entendimento de juristas brasileiros como Antônio Augusto Cançado 
                  Trindade e Flávia Piovesan, ao qual aderimos, a Constituição 
                  dá aos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos 
                  um status de norma constitucional, pelo regime e princípios 
                  que ela mesmo adota. A Constituição estabeleceu, 
                  expressamente, a igualdade entre homens e mulheres, em direitos 
                  e obrigações, e atribuiu ao Estado o dever de criar mecanismos 
                  para coibir a violência no âmbito da família e proteger cada 
                  um de seus membros (art. 5º e art. 226, §§ 5º e 8º). Como todo marco histórico, 
                  insere-se em um processo: há um antes e um depois. A Constituição 
                  representou o resultado do trabalho articulado dos segmentos 
                  organizados da sociedade civil e desencadeou um movimento jurídico-político 
                  que está a exigir, neste momento, uma retomada mais firme, no 
                  sentido de efetivar as conquistas nela estabelecidas e revisar 
                  criticamente toda a legislação infraconstitucional . Antes de 1988, o movimento 
                  de mulheres já se debruçava sobre a necessidade de reformulação 
                  da legislação vigente. Muitos textos legais, elaborados no início 
                  do século e que constam ainda dos Códigos Civil (1916) e Penal 
                  (1940) brasileiros, na década de 80 já estavam totalmente desatualizados. 
                  Este fato evidenciou-se na Constituinte, na qual 80% das reivindicações 
                  das mulheres restaram contempladas pelo texto constitucional. 
                  No que se refere à legislação internacional, vale lembrar que 
                  desde 1984 o Estado brasileiro já tinha ratificado a Convenção 
                  sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra 
                  a Mulher (CEDAW), da ONU. Depois de 1988, muito 
                  se fez. O Brasil ratificou diversos instrumentos de proteção 
                  internacional dos direitos humanos, do sistema global da ONU 
                  e do sistema re-gional da OEA, e aqui vale lembrar, a inovadora 
                  Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a 
                  Violência contra a Mulher, ratificada pelo Estado brasileiro em 1995 
                  – "Convenção de Belém do Pará". Contudo, embora haja 
                  esforços significativos de parlamentares e de segmentos da sociedade 
                  na produção e reforma legislativa, o resultado é incipiente, 
                  ainda insatisfatório. A legislação infraconstitucional 
                  mantém-se em desacordo com os novos conceitos sobre igualdade 
                  e eqüidade entre homem e mulher. Contradiz tanto a lei maior 
                  do país, quanto as principais legislações internacionais de 
                  proteção aos direitos humanos. A título de ilustração, temos 
                  o artigo que atribui ao marido a chefia da sociedade conjugal 
                  e aquele que considera o estupro como "crime contra os costumes" 
                  e não "crime contra a pessoa". Para corrigir essa falta de sintonia, 
                  tanto o Código Civil quanto o Código Penal estão em processo 
                  de reformulação. Urge o saneamento da 
                  ordem jurídica brasileira, em uma perspectiva feminista. Deve-se 
                  dar, pois, à luz dos princípios e normas constitucionais, e, 
                  inclusive, do direito internacional dos direitos humanos. 3.2. A reforma do 
                  Código Penal: várias propostas feministas contempladas Ao analisarmos brevemente 
                  alguns aspectos do Anteprojeto de Reforma da Parte Especial 
                  do Código Penal, tomamos por base o documento "Um olhar feminista 
                  sobre a reforma do Código Penal: algumas reflexões e contribuições", 
                  resultante do "Seminário Traduzindo a Legislação com a Perspectiva 
                  de Gênero: um Diálogo entre as Operadoras do Direito", realizado 
                  no Rio de Janeiro, em agosto de 1998, no qual ambas participamos. Esse documento foi 
                  apresentado à Comissão Revisora de Reforma do Código Penal, 
                  que contou com a participação fundamental da procuradora da 
                  República, Senhora Doutora Ela Wiecko de Castilho. Esta, única 
                  mulher integrante da Comissão, cumpriu com firmeza o desafio 
                  de defender as reivindicações do movimento de mulheres. Dentro 
                  do processo democrático de intervenção de política jurídico-criminal, 
                  várias propostas constantes do referido documento foram contempladas. Apesar de alguns avanços, 
                  o Anteprojeto ainda está calcado em uma perspectiva doutrinária 
                  tradicionalmente repressora, desconsiderando toda uma produção 
                  teórica crítica do Direito Penal, que avança no sentido da diminuição 
                  dos tipos e na redução das penas, na busca de novas formas de 
                  resolução e de composição dos conflitos sociais. O Anteprojeto manteve 
                  uma postura ainda muito repressora em relação a alguns pontos, 
                  em especial ao aborto voluntário, não contemplando as demandas 
                  de descriminalização/legalização da interrupção da gravidez, 
                  propugnadas pelo movimento de mulheres. Pretendemos, neste 
                  artigo, resgatar alguns aspectos positivos e negativos de temas 
                  como o aborto, o assédio sexual e o adultério, acrescentando 
                  alguns comentários de natureza geral. Dentro dessa perspectiva 
                  destacamos: Do aborto – Em relação a este importante tema, que diz respeito à cidadania 
                  e à saúde da mulher, é inegável que o Anteprojeto representa 
                  um avanço em relação ao Código em vigor. O Código Penal de 1940 
                  prevê que não se pune o aborto praticado por médico se não há 
                  outro meio de salvar a vida da gestante e se a gravidez resulta 
                  de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante 
                  ou, quando incapaz, de seu representante legal. De acordo com a proposta 
                  de Reforma, estes permissivos legais foram significativamente 
                  ampliados, atendendo às reivindicações do movimento de mulheres, 
                  de alguns proeminentes profissionais da saúde e incorporando 
                  decisões judiciais inovadoras. O texto do Anteprojeto 
                  determina que não constitui crime o aborto provocado por médico 
                  se: não há outro meio de salvar a vida ou preservar de grave 
                  e irreversível dano a saúde da gestante; a gravidez resulta 
                  de crime contra a liberdade sexual; há fundada probabilidade, 
                  atestada por dois outros médicos, de o nascituro apresentar 
                  graves e irreversíveis anomalias que o tornem inviável. Vale destacar que, 
                  na década de 40, nossos legisladores não tinham o respaldo científico 
                  de que atualmente dispõem para incluir determinados permissivos 
                  para o abortamento legal. Hoje, com os avanços da medicina, 
                  amplia-se a possibilidade de diagnósticos de anomalias fetais 
                  com alta precisão. Também houve avanços quanto ao conhecimento 
                  dos riscos à saúde materna, advindos de determinadas patologias 
                  durante a gestação. O Anteprojeto significou, 
                  assim, em alguma medida, um esforço de adequação aos termos 
                  dos Planos de Ação das Conferências Internacionais do Cairo 
                  (1994) e de Beijing (1995), assinados sem reservas pelo Governo 
                  brasileiro. Reconhecendo o aborto como uma questão de saúde 
                  pública, pois sua ilegalidade agrava os quadros de morbi-mortalidade 
                  feminina, estes Planos recomendam a revisão das legislações 
                  punitivas em relação ao aborto voluntário. Lamentamos, entretanto, 
                  a não-revogação do artigo 124 referente à punição de gestante 
                  que "provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho 
                  provoque". Contudo, reconhecemos a sensibilidade da Comissão 
                  ao reduzir a pena de detenção de um a três anos, para de seis 
                  meses a dois anos. Aqui, vale ressaltar a inclusão da figura 
                  do perdão para esses casos, "podendo o juiz, conforme as circunstâncias, 
                  deixar de aplicar a pena". Em relação ao aborto 
                  provocado por terceiro com o consentimento da gestante, a pena, 
                  que no atual Código Penal é de reclusão de um a quatro anos, 
                  passa a ser de detenção. Se provocado sem o consentimento da 
                  gestante, a pena que era de três a dez anos de reclusão passa 
                  a ser de quatro a oito anos. Apesar das inovações 
                  positivas, chamamos a atenção para o fato de que ainda estamos 
                  muito longe de acompanhar a tendência mundial de despenalização 
                  do aborto. A transformação do 
                  título "Dos Crimes contra os Costumes" em "Dos crimes contra 
                  a Dignidade Sexual" evidencia a preocupação da Comissão com 
                  o fato de que nos crimes de natureza sexual o que mais importa 
                  é a liberdade e a dignidade da pessoa, homem ou mulher, no exercício 
                  de sua sexualidade, e não a moralidade social. Entretanto, ainda melhor 
                  seria que o título acima mencionado, com o nome de "Dos 
                  Crimes Contra a Liberdade Sexual", passasse a integrar 
                  – enquanto um capítulo específico – o título "Dos Crimes 
                  contra a Pessoa", pois, seja no estupro, seja nos demais 
                  delitos sexuais, o bem jurídico a ser protegido é mais do que 
                  a sexualidade, vez que a violência se exerce sobre a totalidade 
                  da pessoa, isto é, sobre o conjunto de elementos biológicos, 
                  psicológicos e sociais. A sexualidade constitui uma das dimensões 
                  da vida do ser humano. Quando se viola essa esfera, todas as 
                  demais se vêem comprometidas. Vale ainda destacar 
                  a expulsão da figura da "mulher honesta" de todo Código Penal. 
                  Em nosso entender, este fato poderá trazer conseqüências saneadoras 
                  de aspectos discriminatórios ainda presentes nas decisões do 
                  Poder Judiciário brasileiro e ensejar uma revisão deste conceito, 
                  ainda hoje incluído no Código Civil de nosso país. Do assédio sexual – 
                  Dentro do título "Dos crimes contra a dignidade sexual", o 
                  Anteprojeto tipificou o assédio sexual. Ressalte-se que no movimento 
                  de mulheres, hoje, há dois entendimentos predominantes: um, 
                  considerando que o assédio sexual deva ser criminalizado, e 
                  outro, que deva ser tratado em legislação de natureza não penal. 
                  Considerando-se a sua criminalização, entendemos que foi adequada 
                  a formulação do tipo penal, tendo, inclusive, a Comissão Revisora 
                  acatado sugestões de mudanças propostas no documento que serve 
                  de base a estes nossos comentários. Assim sendo, é crime, punível 
                  com pena de detenção de três meses a um ano, e multa, "assediar 
                  alguém, exigindo, direta ou indiretamente, prestação de favor 
                  de natureza sexual, como condição para criar ou conservar direito 
                  ou para atender à pretensão da vítima, prevalecendo-se do cargo, 
                  ministério, profissão ou qualquer outra situação de superioridade". Sensibilizadas por 
                  toda a problemática da violência sexual contra a mulher, a partir 
                  de nossa experiência como acadêmicas e militantes do movimento 
                  de mulheres e de direitos humanos, decidimos, junto com a pesquisadora 
                  Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer, empreender uma pesquisa que 
                  teve como objeto o estudo e a análise de processos judiciais 
                  e acórdãos de estupro no Brasil, a partir de uma perspectiva 
                  sociojurídica de gênero. Intitulada Estupro: 
                  crime ou ‘cortesia’? Abordagem sociojurídica de gênero3, 
                  a referida pesquisa, predominantemente qualitativa, buscou analisar 
                  processos judi-ciais e acórdãos de estupro nas 5 regiões do 
                  Brasil representadas pelas capitais: Belém (PA), no Norte; Recife 
                  (PE), no Nordeste; Cuiabá (MT), no Centro-Oeste; São Paulo (SP), 
                  no Sudeste e Florianópolis (SC), nos Sul. Nessas regiões foram 
                  pesquisados processos judiciais arquivados e acórdãos publicados 
                  no período de janeiro de 1985 a dezembro de 1994. O universo 
                  temporal previsto justifica-se, por se tratar de década posterior 
                  à Década da Mulher, estabelecida pela Organização das Nações 
                  Unidas (ONU) e também por se tratar de período no qual ocorreu 
                  significativa mudança na legislação nacional a respeito do tema, 
                  a saber: Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90) 
                  e Lei dos Crimes Hediondos (Lei n. 8.072/90). Nos universos geográfico 
                  e temporal apontados, foi pesquisado e analisado um total de 
                  50 processos judiciais de estupro, sendo 10 por região, com 
                  decisões de condenação e absolvição alternadas ano a ano. Quanto aos acórdãos, 
                  foi coletado e analisado um total de 101, sendo 9 da região 
                  Norte; 19 da região Nordeste; 25 da região Centro-Oeste, 24 
                  da região Sudeste e 24 da região Sul. A partir do estudo 
                  bibliográfico empreendido para essa investigação, podemos apontar 
                  alguns marcos teóricos conceituais, relevantes para a compreensão 
                  e caracterização do fenômeno da violência sexual do estupro 
                  perpetrado contra meninas, adolescentes e mulheres adultas, 
                  a partir de reflexões sobre práticas sociais e institucionais 
                  discriminatórias de gênero. • A noção sociológica 
                  de gênero é fundamental para a compreensão do fenômeno da violência 
                  sexual do estupro. Conforme Saffioti & Almeida (1995:20):  
                  "O referente do gênero 
                    é uma relação social que remete os indivíduos a uma categoria 
                    previamente constituída. Coloca em relação um indivíduo com 
                    outros, determina se ele é pertencente a uma categoria e o 
                    posiciona face a outros pertencentes a outra categoria." E, "Para Lauretis4, 
                    o gênero não é apenas uma construção sócio-cultural, mas também 
                    um aparelho semiótico, ‘um sistema de representação que atribui 
                    significado (identidade, valor, prestígio, posição no sistema 
                    de parentesco, status na hierarquia social etc.) aos 
                    indivíduos no interior da sociedade.’" (p. 5). • A violência 
                  sexual do estupro, enquanto violência de gênero, é fenômeno  
                  praticamente universal. 
                    Contudo, não é inevitável e muito menos incontrolável. Como 
                    demonstram estudos transculturais, as relações entre os sexos 
                    e as políticas dos sexos diferem radicalmente de sociedade 
                    para sociedade, sendo, em muito, determinadas por complexas 
                    configurações de arranjos econômicos, políticos, domésticos 
                    e ideológicos. Há sociedades "propensas ao estupro" e outras 
                    "livres do estupro", e estas diferenças na agressão sexual 
                    masculina relacionam-se com os níveis de violência geral, 
                    os estereótipos de papéis sexuais e a posição das mulheres 
                    dentro da divisão sexual do trabalho em cada sociedade5. • A violência 
                  de gênero – somada às de raça-etnia e classe – enquanto fenôme-  
                  no que estrutura as 
                    relações sociais, apresenta peculiaridades, porque se inscreve 
                    no domínio da história. É o estupro, enquanto violência de 
                    gênero, a mais grave violência sexual que tem como vítimas 
                    mulheres de todas as faixas etárias. Entretanto, meninas, 
                    adolescentes e jovens mulheres são as vítimas preferenciais 
                    do estupro. • Apesar do processo 
                  de (re)democratização vivido pelo Brasil e por vários  
                  países da América Latina 
                    nesta última década, a atuação do Poder Judiciário continua 
                    reproduzindo, acriticamente, estereótipos e preconceitos sociais, 
                    inclusive de gênero, impedindo, assim, a efetivação da igualdade, 
                    calcada em princípios de solidariedade, eqüidade e justiça. A análise dos processos, corroborada 
                  quase sempre pelos dados dos acórdãos e pela leitura da bibliografia 
                  nacional e internacional consultada sobre o tema, apontou para 
                  os seguintes indicativos de prováveis conclusões6: • Os estupradores 
                  condenados pertencem às camadas baixas da sociedade. O  
                  perfil sócio-econômico 
                    e racial-étnico das vítimas coincide com o dos réus. Réus 
                    e vítimas são geralmente parentes, amigos, vizinhos ou conhecidos, 
                    o que se coaduna com o mencionado acima. • Inexiste um 
                  só tipo de estuprador e o mais comum é o de indivíduos com uma  
                  orientação e vida normais. 
                    Não prevalece, portanto, a idéia de que o estuprador seja 
                    necessariamente um "anormal", e portanto, portador de uma 
                    patologia como muitos acreditavam. A maioria dos agressores 
                    é de jovens até 30 anos. A maioria absoluta das vítimas não 
                    tinha 18 anos e era virgem à época do estupro, sendo que muitas 
                    foram violadas, reiteradamente, desde crianças, por seus próprios 
                    pais e padrastos. • A violência 
                  sexual doméstica do estupro, principalmente por parte dos pró-  
                  prios pais, parece 
                    não ser percebida por eles mesmos como algo hediondo e de 
                    graves repercussões no desenvolvimento biopsicossocial das 
                    meninas e adolescentes. Este fato aponta para a necessidade 
                    de providências quanto a políticas públicas na área da educação 
                    e cultura, visando a erradicação deste tipo de comportamento. 
                    Os aspectos psicológicos e jurídicos da problemática merecem 
                    também maior atenção. • Na maioria das 
                  agressões não foram utilizados instrumentos como armas ou  
                  outros objetos. É altamente 
                    provável que a maior força física do homem e a intimidação 
                    pelo uso da violência psicológica sejam, então, os principais 
                    fatores determinantes para neutralizar a resistência da mulher 
                    ao domínio de seu algoz. • A morosidade 
                  da justiça brasileira é um fato inconteste. Alguns processos  
                  estudados ultrapassaram 
                    o período de oito anos entre a data de instauração do inquérito 
                    policial e o trânsito em julgado da última decisão proferida. 
                    Entretanto, vale assinalar que a maioria dos processos analisados 
                    não ultrapassou o período de 3 anos de duração. • Estereótipos, 
                  preconceitos e discriminações contra os homens tanto quanto  
                  em relação às mulheres 
                    interferem negativamente na realização da Justiça. Entretanto, 
                    há evidências de que o impacto desse tipo de viés recai de 
                    maneira mais intensa e freqüente sobre as mulheres. Estereótipos, 
                    preconceitos e discriminações de gênero estão presentes na 
                    nossa cultura e profundamente inculcados nas consciências 
                    dos indivíduos, sendo, portanto, absorvidos – muitas vezes 
                    inconscientemente – também pelos operadores do Direito e refletidos 
                    em sua praxis jurídica. • Réus e vítimas 
                  têm seus comportamentos referentes à sua vida pregressa jul-  
                  gados durante o processo, 
                    em conformidade com os papéis tradicionalmente determinados 
                    a homens e a mulheres. Quanto a estas últimas, na prática, 
                    há uma exigência de que as vítimas se enquadrem no conceito 
                    jurídico de "mulher honesta", apesar de não haver previsão 
                    legal para tanto. Prevalece, pois, o julgamento moral da vítima 
                    em detrimento de um exame mais racional e objetivo dos fatos. • O Código Penal 
                  e a própria doutrina explicitam que, no crime de estupro, é 
                  a  
                  liberdade sexual da 
                    mulher que é protegida, independentemente de sua moralidade. 
                    A doutrina é uníssona quanto à palavra da vítima constituir 
                    o vértice de todas as provas nos crimes contra os costumes. 
                    Entretanto, na avaliação das provas, pouco ou nenhum valor 
                    têm suas palavras quando não se caracteriza sua "honestidade". 
                    Assim sendo, é muito difícil para uma mulher que não pode 
                    ser caracterizada como "honesta", conseguir fazer valer sua 
                    palavra, sua versão dos fatos e, com isso, garantir a proteção 
                    de seus direitos. Isto ocorre, principalmente, com mulheres 
                    adultas. No processo judicial é levada em consideração a conduta 
                    da vítima, em especial com relação à sua vida sexual, afetiva 
                    e familiar. Há extremos em que se traça o perfil da vítima 
                    como de moral sexual leviana ou mesmo como prostituta, como 
                    se isso pudesse justificar a desqualificação da mulher que 
                    vive uma situação de violência. A postura majoritária na magistratura, 
                    quanto a isto, é de omissão, nada fazendo para que seja respeitada 
                    a dignidade da mulher. • As próprias 
                  vítimas e seus defensores, por sua vez, reforçam as estereotipias  
                  anteriormente mencionadas, 
                    reproduzindo em suas alegações modelos tradicionais patriarcais, 
                    apresentando-se e apresentando-as, respectivamente, como pessoas 
                    discretas, recatadas e virtuosas. • É diferente 
                  o tratamento dado pelos operadores da Justiça à criança e à 
                  adoles-  
                  cente, daquele conferido 
                    à mulher adulta. Quando se trata de crianças, verificamos 
                    que na maior parte das vezes não prevalecem as estereotipias, 
                    preconceitos e discriminações de gênero que, explícita ou 
                    implicitamente, levam em consideração a honestidade e moralidade 
                    da mulher mais do que a análise e o julgamento do ato em si. 
                    É a mulher adulta que mais sofre este tipo de discriminação, 
                    o que não impede que isto também ocorra com adolescentes. 
                    Até mesmo em relação às crianças, há casos em que estas são 
                    apontadas como as "sedutoras", mas isto é minoritário. • No caso de estupro 
                  praticado pelo pai ou padrasto contra meninas, ocorrido  
                  na unidade doméstica, 
                    há três importantes questões a serem ressaltadas. A primeira 
                    diz respeito à reiteração e continuidade da violação que caracteriza 
                    a maior parte dos processos desta natureza; a segunda refere-se 
                    ao longo período de silêncio – dificilmente rompido – em que, 
                    em geral, permanecem as vítimas deste tipo de violência doméstica; 
                    por fim, a terceira diz respeito ao freqüentemente alegado 
                    (pseudo?) desconhecimento por parte da mãe da vítima da violação 
                    praticada. • Com uma certa 
                  freqüência, os discursos dos operadores do Direito – membros  
                  da Magistratura, do 
                    Ministério Público, da Advocacia e Delegados de Polícia – 
                    apresentam estereótipos, preconceitos e discriminações em 
                    relação às mulheres. Contudo, 
                    alguns juízes e promotores se demonstram sensíveis às questões 
                    de gênero e altamente respeitadores das mulheres vítimas. 
                    Assim sendo, podemos dizer que o desempenho técnico-jurídico 
                    dos operadores do Direito, na fundamentação de suas argumentações 
                    foi, por vezes, exemplar. Mas, nos processos analisados neste 
                    estudo, os casos exemplares foram minoritários. • Entre alguns 
                  operadores do Direito há muita veemência e repúdio ao delito  
                  em si, havendo a utilização 
                    de expressões contundentes e desqualificadoras em relação 
                    ao estuprador. Contudo, freqüentemente, outros expressam desrespeito 
                    à parte ofendida, levantando dúvidas quanto às suas declarações 
                    e à sua própria moralidade. Talvez se possa dizer que é maior 
                    a rejeição a um ato "disfuncional" da sociedade, ofensivo 
                    aos seus bons costumes, do que um efetivo respeito à parte 
                    ofendida em sua cidadania. Aliás, vale lembrar que o crime 
                    de estupro está tipificado no Código Penal brasileiro no título 
                    "Dos Crimes contra os Costumes" e não naquele "Dos Crimes 
                    contra a Pessoa". • A freqüência 
                  com que ocorrem espancamentos, torturas e pressões outras nas  
                  Delegacias de Polícia 
                    é utilizada de forma recorrente como justificativa de modificação, 
                    às vezes absoluta, da fala dos réus e mesmo das testemunhas, 
                    entre a fase policial e judicial. Por esta razão o inquérito 
                    policial revela-se, na maioria das vezes, tendo pequeno ou 
                    nenhum valor para a Magistratura. Este nos parece um aspecto 
                    lamentável, porque é a autoridade policial aquela que se encontra 
                    mais próxima à ocorrência do delito e a que escuta, geralmente, 
                    "em primeira mão", as primeiras versões do delito, na sua 
                    mais provável espontaneidade. • Nem sempre é 
                  absoluta, coerente e linear a relação que existe entre a norma  
                  positiva, a norma aplicada 
                    aos casos e os valores presentes na sociedade. Fica patente 
                    que o momento da aplicação do Direito é muito mais do que 
                    o momento de uma mecânica subsunção do fato à norma positiva 
                    jurídica. É o momento supremo do direito em que ressaltam 
                    muito mais os valores do que fatos sociais. Contudo, os valores 
                    sociais, por vezes travestidos em estereótipos e preconceitos 
                    discriminatórios, atuam subrepticiamente, inconscientemente 
                    nas argumentações dos operadores do Direito, impedindo-os 
                    de desempenharem suas funções tendo em vista o respeito, a 
                    dignidade e a justiça. • A Polícia, o 
                  Ministério Público e o Poder Judiciário não se comportam de  
                  forma criativa e ativa 
                    em relação a providências que poderiam melhor garantir a efetividade 
                    do processo legal. Ilustra esta idéia um dos 50 casos analisados 
                    em que o réu acusado fugiu e "se escondeu" na moradia de sua 
                    mãe, em uma cidadezinha próxima àquela onde ocorreram os fatos 
                    criminosos. Consta no processo que era público e notório seu 
                    "esconderijo". Entretanto, as autoridades não tomaram 
                    providências. Condenado à revelia, evadiu-se "para sempre". • Também não são 
                  tomadas providências legais quando há alegação de espan-  
                  camento e sevícias 
                    na Polícia. É como se o Poder Judiciário ignorasse e/ou aceitasse 
                    com certa "naturalidade" este fato, o que é um absurdo, pois 
                    trata-se de crime que merece investigação e punição. Ademais, 
                    é uma prática que depõe contra a imagem e legitimidade da 
                    instituição policial, que deve representar, numa sociedade 
                    democrática, um baluarte. • O pensamento 
                  jurídico crítico emergente, em sua vertente feminista, encontra  
                  respaldo e alimento 
                    nesta pesquisa, que revela a ideologia patriarcal machista 
                    em relação às mulheres, verdadeira violência de gênero, perpetrada 
                    por vários operadores do Direito, que mais do que seguir o 
                    princípio clássico da doutrina jurídico-penal – in dubio 
                    pro reo – vale-se precipuamente da normativa social: in 
                    dubio pro stereotypo. As autoras pretendem 
                  que os resultados apresentados sejam tomados como subsídio empírico 
                  e científico para o encaminhamento de ações de sensibilização 
                  e capacitação, quanto à questão de gênero, dirigidas, em especial, 
                  aos operadores do Direito em nosso país; que, de alguma forma, 
                  este estudo contribua para a superação da "duplicação" da violência 
                  de gênero realizada pelos operadores do Direito em geral, inclusive 
                  pelo Poder Judiciário, quando reproduzem acriticamente estereótipos 
                  e preconceitos discriminatórios em relação à mulher que sofre 
                  violência sexual. Pretendem, também, que membros do Poder Legislativo 
                  e do Poder Executivo, ao tomarem conhecimento deste estudo, 
                  sensibilizem-se para mais adequadas elaborações e execuções 
                  de normas e programas de ação, além de políticas públicas que 
                  implementem os direitos humanos em uma perspectiva de gênero. 3.3.2. Legítima defesa 
                  da honra O Código Penal brasileiro 
                  alberga a figura da legítima defesa enquanto uma excludente 
                  de ilicitude ou antijuridicidade. Em seu artigo 25, estabelece: 
                  "Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos 
                  meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, 
                  a direito seu ou de outrem". Para que se configure 
                  a legítima defesa, importa que a reação não seja exagerada e 
                  desproporcional e seja imediata à ameaça iminente ou agressão 
                  atual a direito próprio ou de outra pessoa. A doutrina jurídica, 
                  de forma consensual, entende que todo e qualquer bem jurídico 
                  pode ser defendido legitimamente, incluindo-se a honra. Não há consenso, entretanto, 
                  em relação ao uso desta figura nos casos em que o homicídio 
                  é praticado para defender suposta honra por parte do cônjuge 
                  (concubino/companheiro/namorado) traído. Importa ressaltar que 
                  são poucos os casos em que a mulher faz uso de tal alegação, 
                  mesmo porque são poucos os casos em que, traída, a mulher reage 
                  com tal violência. No final dos anos 70 
                  e início de 80, o movimento de mulheres brasileiras mobilizou-se 
                  contra a tradicional invocação da tese da legítima defesa da 
                  honra nos crimes passionais, criando o slogan que se 
                  tornou famoso em todo o país: "Quem ama não mata". Entretanto, nestes 
                  últimos 15 anos pouco se tem dado atenção ao tema, não se podendo 
                  avaliar em que medida, ainda hoje, esta tese tem sido invocada 
                  e acolhida pelo Poder Judiciário brasileiro. Com tal preocupação, 
                  realizamos uma primeira aproximação do objeto a ser estudado: 
                  as decisões dos tribunais brasileiros sobre legítima defesa 
                  da honra. Este esforço inicial 
                  já nos permitiu colher dados significativos sobre o tema. Constatamos 
                  que, ainda hoje, não é pacífica a jurisprudência a respeito, 
                  havendo acórdãos, em menor número, que admitem a legítima defesa 
                  da honra. Esta tese, portanto, ainda nesta década, continua 
                  a ser invocada, às vezes com sucesso, inclusive no Estado de 
                  São Paulo, considerado o mais desenvolvido do país. A seguir, apresentamos 
                  algumas das argumentações mais relevantes encontradas nos 15 
                  acórdãos – período de 1988 a 1998 – aos quais tivemos acesso. 
                  Importa esclarecer que este elenco não representa a totalidade 
                  dos acórdãos proferidos no país a respeito, mas sim aqueles 
                  publicados e divulgados pelas principais revistas de jurisprudência 
                  do país e pela internet. Importa dizer, ainda, 
                  que este breve estudo visa trazer alguma luz a respeito da utilização 
                  dos argumentos referentes à legítima defesa da honra, e, assim, 
                  mostrar a relevância ou não de posterior aprofundamento sobre 
                  o tema. Resumo: Ofensa à integridade física de companheira em razão desta ter-lhe confessado 
                  infidelidade. Foi mantida, pelo Tribunal de Alçada Criminal 
                  de São Paulo, a decisão do juiz que em primeira instância acolhe 
                  a tese da legítima defesa da honra pelo acusado que, dominado 
                  por violenta emoção, com moderada repulsa e em consonância com 
                  sua realidade, lesou a integridade corporal de sua companheira, 
                  aplicando-lhe alguns socos. Argumentações significativas: 
                  "Ora, diante do confessório da infidelidade da mulher, não 
                  se pode vislumbrar nenhum arbítrio do julgamento do MM. Juiz 
                  de primeiro grau admitindo o reconhecimento da legítima defesa 
                  da honra. O decisum recorrido 
                  não está alheiado da realidade social, não comportando um juízo 
                  de reforma. O complexo probatório 
                  é determinado no sentido de evidenciar que N. era adúltera, 
                  inobstante o concubinato que não exclui o dever de fidelidade 
                  recíproca. (...) Embora hodiernamente 
                  se possa reconhecer a atitude de quem mata ou fere a esposa 
                  ou companheira que trai, como um preconceito arcaico, in 
                  casu, a honra do apelado foi maculada pela declaração da 
                  amásia, com quem vivia há longos anos, de que o traía com outro 
                  homem, não se podendo olvidar que, apesar da ilicitude da união, 
                  o casal possui quatro filhos". Resumo: Acusado que, surpreendendo a mulher em situação de adultério, mata-a juntamente com 
                  seu acompanhante. A tese da legítima defesa da honra foi aceita 
                  por expressiva maioria pelo Tribunal do Júri e confirmada pelo 
                  Tribunal de Justiça de São Paulo, que negou provimento ao apelo 
                  do Ministério Público, mantendo a decisão do Júri. Argumentações significativas: 
                  "Antonio, já antes ferido na sua honra, objeto de caçoada, 
                  chamado, agora sem rodeios, de chifrudo por pessoas daquela 
                  localida- de (...) mal sabia 
                  o que o esperava. Entrou em casa e viu 
                  sua esposa e J. J. dormindo a sono solto, seminus, em sua própria 
                  cama e na presença de seu filho, cujo berço estava no mesmo 
                  quarto (...) Saísse ele daquela 
                  casa sem fazer o que fez e sua honra estaria indelevelmente 
                  comprometida. Não se pode esquecer 
                  que o réu foi educado em outra época, nas décadas de 20 e 30, 
                  quando a moral e os costumes ainda eram outros e mais rígidos 
                  talvez que os de agora, mas que por certo estavam incrustados 
                  em seu caráter de maneira a moldar sua personalidade com reflexos 
                  futuros perenes. Tudo isso, à evidência, 
                  deve ter sido aos jurados ou pelo menos por eles analisado, 
                  sem contar, ademais, que os juízes de fato, retirados que são 
                  do seio da sociedade, representam, no Tribunal do Júri a moral 
                  média desta (...) Sabe-se, é claro, que 
                  a questão relativa à legítima defesa da honra não é nova. Nem 
                  por isso, contudo, perde a atualidade. O assunto também não 
                  é pacífico, quer na doutrina, quer na jurisprudência. (...) O adultério, em geral, 
                  em todos os tempos, em todas as leis as mais primitivas e modernas, 
                  sempre foi considerado um delito, uma ação imoral e anti-social. (...) As ofensas à honra, 
                  comumente, se exteriorizam de mil maneiras, numa infinidade 
                  de atos, palavras, símbolos, formas morais ou materiais, porém, 
                  nenhuma a atinge tão intensamente como a relação adulterina, 
                  como as ações libidinosas ou conjunção carnal com outrem que 
                  não o cônjuge. Traduz, em realidade, em nossa opinião, uma dupla 
                  agressão dos adúlteros, moral e física, ao cônjuge inocente, 
                  sendo a primeira mais grave, perturbadora, profunda e injusta 
                  que a materialidade que se descobre na cena do flagrante. É incontestável, ademais, 
                  que um cônjuge tem em referência ao outro, na constância do 
                  casamento, o absoluto direito à fidelidade, de exigir-lhe tal, 
                  direito que vai a implicar numa honra como um bem jurídico a 
                  ser respeitado e a dever ser mantido. (...) A ofensa do adultério 
                  não ocorre somente em relação ao indivíduo mas, também, às normas 
                  de conduta do grupo social; a reação pessoal é algo que possui 
                  e é movido por uma visível carga social. Reage o indivíduo em 
                  função de sua dignidade e em função do sentimento comum de valorização 
                  da coletividade. Reage porque a honra só pode ser entendida 
                  e existir sob um duplo caráter e sob o dever para consigo mesmo 
                  e para com a sociedade. Na luta por seu direito, outra não pode 
                  ser a sua atitude ou conduta como pessoa e como membro de um 
                  grupo numa dada coletividade organizada. Organismo social governado 
                  por valores que emanam das normas de cultura e das suas regras 
                  de conduta e que se relacionam com os seus princípios básicos 
                  (...) (...) Quem age em defesa 
                  de sua personalidade moral, em qualquer dos seus perfis, atua 
                  como um verdadeiro instrumento de defesa da própria sociedade 
                  ao combater o delito, a violência, a injustiça, no próprio ato 
                  em que se manifestam. (...) Eis uma das razões 
                  pelas quais se tem asseverado, constantemente, que a justiça 
                  penal, no Estado, e a legítima defesa, no particular, são um 
                  dos contra-motivos para o crime, duas formas da luta contra 
                  o delito, aparecendo o instituto com tonalidades repressivas 
                  e preventivas. Daria ensejo, até, à conservação da ordem e paz 
                  social e jurídica (...) Instituto, aliás, anterior 
                  e superior ao direito legislado, positivo, acima dos códigos 
                  (...) um direito natural e inalienável, misto de conteúdo individual 
                  e social. Instituto que por sua humanização e simplificação 
                  moderna tornou-se mais eficiente com a realidade humana e social". Voto vencido: "(...) Pois na pretensa legítima defesa da honra o que 
                  ocorre é o sacrifício do bem supremo – vida – em face de meros 
                  preconceitos vigentes em algumas camadas sociais (...) (...) ‘Honra é atributo 
                  pessoal, independente de ato de terceiro, donde impossível levar 
                  em consideração ser um homem desonrado porque sua mulher é infiel’ 
                  (...)’A lei e a moral não permitem que a mulher prevarique. 
                  Mas negar-lhe, por isso, o direito de viver, seria um requinte 
                  de impiedade’". Considerações críticas Nesses dois casos, 
                  houve acolhimento da tese da legítima defesa da honra por tribunais 
                  do Estado de São Paulo. O primeiro refere-se 
                  à lesão corporal e, na primeira e segunda instância, entendeu-se 
                  que o fato do réu ter dado alguns socos na mulher representou 
                  moderada repulsa, explicável pela violenta emoção do acusado. Já, no segundo caso, houve 
                  o homicídio da mulher, e na decisão do Tribunal de Justiça, 
                  que confirmou a do Tribunal do Júri7, não aparece referência 
                  ao artigo 25 do Código Penal que apresenta a moderação 
                  da resposta à agressão como um dos requisitos da legítima defesa. 
                  O homicídio por parte do marido traído é visto como a única 
                  forma deste ter evitado que sua honra ficasse indelevelmente 
                  comprometida. A argumentação da decisão 
                  é preocupante, pois significa mais do que uma justificativa 
                  da ação homicida. Significa mesmo uma louvação a ela, 
                  pois considera seu agente "um verdadeiro instrumento da própria 
                  sociedade"; ressalta não só o aspecto repressivo, mas o preventivo 
                  da legítima defesa (da honra). Em termos filosóficos 
                  jurídicos, esta decisão, contrária à lei, apresenta referências 
                  ao culturalismo jurídico e ao direito natural. Em país como o Brasil 
                  – aliás, em toda a América Latina – que apresenta uma tradição 
                  jurídica marcada pelo positivismo formalista de Hans Kelsen, 
                  este aparente esforço de humanização é extremamente insidioso. 
                  In casu, serve para justificar e louvar o ato que tira 
                  a vida de mulheres. Importa registrar que as teorias críticas 
                  ao positivismo jurídico formalista só propõem um alargamento/expansão 
                  interpretativa da lei e, por vezes, mesmo uma decisão contrária 
                  a ela, nos casos em que, se aplicada, exegeticamente, vier a 
                  propiciar decisões injustas e absurdas. Importa esclarecer 
                  que as várias correntes do pensamento jurídico deste século, 
                  incluindo o positivismo em suas várias manifestações, representam 
                  esforços no sentido de melhor resguardar os direitos das pessoas. 
                  Mesmo que, por vezes, isto se dê de forma explícita ou implícita. 
                  A grande crítica ao positivismo formalista é que ele é insuficiente 
                  para tal. Assim sendo, transcender-se o direito positivo, captando-se 
                  valores sociais e culturais não constituídos pelo ordenamento 
                  jurídico, seria apenas legítimo nos casos em que estes valores 
                  servissem para melhor e maior garantia dos direitos das pessoas. Fica evidente que é 
                  a desvalorização da mulher, de sua vida, que está subjacente 
                  a decisões dessa ordem. Princípios e normas 
                  de proteção aos direitos humanos estabelecidos pela ONU e pela 
                  OEA, em vários de seus documentos, servem de embasamento à firme 
                  rejeição de posturas como a dessa decisão. Esse acórdão fere, 
                  dentre outros, o artigo III da Declaração Universal dos Direitos 
                  Humanos que estabelece que "toda pessoa tem direito à vida, 
                  à liberdade e à segurança pessoal"; o artigo 5º, letra "a" da 
                  Convenção da Mulher que estabelece que "os Estados-partes tomarão 
                  todas as medidas apropriadas para modificar os padrões sócio-culturais 
                  de conduta de homens e mulheres, com vistas a alcançar a eliminação 
                  de preconceitos e práticas consuetudinárias e de qualquer outra 
                  índole que estejam baseados na idéia da inferioridade ou superioridade 
                  de qualquer dos sexos ou em funções estereotipadas de homens 
                  e mulheres"; fere, ainda, o artigo 1º da Convenção de Belém 
                  do Pará que preceitua: "Para o efeitos desta Convenção deve-se 
                  entender por violência contra a mulher qualquer ação ou conduta 
                  baseada no gênero, que cause a morte, dano ou sofrimento físico, 
                  sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como 
                  no privado". No marco nacional, 
                  fere a Constituição brasileira, em seu artigo 5º, caput, 
                  ao estabelecer que todos são iguais perante a lei, garantindo-se 
                  o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à 
                  propriedade, e, em seu inciso I, ao explicitar que homens e 
                  mulheres são iguais em direitos e obrigações. Fere, também, 
                  o artigo 25 do Código Penal. O voto vencido apresenta 
                  firme argumentação que, entretanto, foi relegada pela maioria 
                  do colegiado do Tribunal que privilegiou preconceitos em detrimento 
                  do bem supremo da vida. Acolhimento da legítima 
                  defesa da honra, em tese, mas não no caso concreto Caso 3 (Apelação n. 75.026-3, 2.5.90, Tribunal de Justiça de São Paulo) Resumo: Acusado que mata esposa adúltera. O Tribunal do Júri absolveu 
                  o réu, reconhecendo a legítima defesa da honra. Entretanto, 
                  o Tribunal de Justiça de São Paulo, embora reconhecendo ser 
                  esta excludente admissível em tese, não cabe no caso em questão, 
                  pois ausente o requisito da atualidade da agressão. Argumentações significativas: 
                  "Não se pode repelir, preconceituosamente, 
                  a possibilidade da legítima defesa da honra em casos do tipo 
                  sub-judice. Há opiniões divergentes na jurisprudência 
                  sobre o tema (...) ‘Não há negar que julgados 
                  dos tribunais têm admitido a legítima defesa quando o cônjuge 
                  ultrajado mata o outro cônjuge ou o seu parceiro. Mas, via de 
                  regra, nessas decisões há uma constante: a flagrância do adultério’ 
                  (...) Ora, na hipótese a 
                  repulsa não foi imediata (...)   Resumo: Ex-concubino elimina a vítima sob a alegação de ter perdido a cabeça 
                  por ela ter insistido em dizer que iria dormir com outrem. O 
                  Tribunal do Júri acatou a tese da legítima defesa da honra. 
                  O Tribunal de Justiça do Espírito Santo não reconheceu esta 
                  excludente no caso, ordenando novo julgamento. Argumentações significativas: 
                  "(...) É manifestamente contrária à prova dos autos a decisão 
                  do júri que reconhece legítima defesa da honra, ensejando a 
                  desclassificação para o excesso culposo, se o réu já não mais 
                  mantinha o concubinato com a vítima e barbaramente a esfaqueou 
                  sob a alegação de ter perdido a cabeça (...)"  Considerações críticas Nesses dois casos, 
                  em que não há a aplicação da tese da legítima defesa da honra, 
                  revelam entretanto a aceitação desse instituto por parte dos 
                  Tribunais de Justiça do Estado de São Paulo e do Espírito Santo. O acórdão de São Paulo 
                  afirma que não cabe a aplicação da tese da legítima defesa, 
                  pois ausente um dos requisitos do artigo 25 do Código Penal: 
                  a atualidade da agressão. No caso 4, o Tribunal 
                  de Justiça do Espírito Santo não reconheceu aplicável esta tese, 
                  pois "o réu já não mais mantinha o concubinato com a vítima". 
                  Preferiu uma interpretação baseada em parte da doutrina e da 
                  jurisprudência, preterindo argumentação baseada na ausência 
                  do requisito legal da moderação, que sequer foi mencionado; 
                  há referência à barbaridade das facadas, mas, insistimos, não 
                  foi esta barbaridade do ato o que levou à não-aceitação da tese 
                  de legítima defesa da honra, mas, como se disse, o fato da relação 
                  concubinária entre réu e vítima não mais existir no momento 
                  do homicídio. Não acolhimento da 
                  legítima defesa da honra   Resumo: Agente que, suspeitando da infidelidade do cônjuge, desfere nele tiros 
                  e facadas, matando-o. O Tribunal do Júri acatou a tese invocada 
                  pela defesa – legítima defesa da honra –, considerada inaceitável 
                  no caso presente, por ausência de fato concreto, atual e iminente, 
                  pelo Tribunal de Justiça do Paraná que decidiu submeter o apelado 
                  a novo júri. Argumentações significativas: 
                  "Para defender o dever de fidelidade dispõe o cônjuge traído 
                  das ações que a lei lhe confere, a. s., dissolução da sociedade 
                  conjugal, no juízo cível, e a de adultério, no fôro criminal. 
                  A morte violenta em resposta ao adúltério, convenha-se, é reação 
                  inacolhível pelos princípios consagrados no Direito Penal (...) 
                  A uxoricida passional, a reconhecer-se que o crime tenha sido 
                  praticado em estado de exaltação emocional, aproveitaria, quando 
                  muito, a causa especial de redução de pena prevista no § 1o 
                  do artigo 121 do CP, não, porém, a legítima defesa. (...) (...) em parecer da 
                  d. Procuradoria Geral de Justiça, verbis: ‘A insustentabilidade 
                  da decisão proferida está traduzida nas próprias contra-razões 
                  – no discursivo alinhavado têm-se frases genéricas, alguma jactância 
                  na certeza de que o Conselho de Jurados cultiva o despreparo 
                  para o julgamento sereno, o curioso desprezo pelos ‘doutores’, 
                  como se a cultura posta entre aspas fosse pecaminosa e dissociada, 
                  como um mal, dos valores mais caros ao povo, a incompreensível 
                  maniqueísta entre conhecimento e sensibilidade, como se essa 
                  fosse apanágio da rudeza e da ignorância; mas não indicação 
                  concreta de apoio para sequer o vislumbre de legítima defesa 
                  da honra". Resumo: O acusado matou concubina com quem vivia há pouco tempo. Informado 
                  pelo irmão da vítima de que esta iria se encontrar com outro 
                  homem, perdeu a cabeça, foi até o bar onde a vítima se encontrava 
                  e contra ela efetuou disparos. O Tribunal de Júri acatou a tese 
                  da legítima defesa da honra absolvendo o réu. O Tribunal de 
                  Justiça, entendendo estar diante de decisão manifestamente contrária 
                  às provas dos autos, determina novo julgamento. Argumentações significativas: 
                  "De há muito a doutrina e jurisprudência vêm entendendo que 
                  a honra é atributo personalíssimo, não se deslocando da pessoa 
                  de seu titular para a de quem, de forma regular ou não, viva 
                  em sua companhia. Esse entendimento, já consagrado no passado, 
                  ganha maior relevo nos dias presentes, após a promulgação da 
                  Constituição de 1988, na qual, no relacionamento entre os casais, 
                  os direitos e deveres entre homens e mulheres são absolutamente 
                  iguais". Resumo: Soldado mata companheira e colega de farda, que supunha amantes, 
                  com arma da corporação. O Colegiado Julgador Militar condena 
                  o reú, policial militar, pelo homicídio e uso de arma da corporação, 
                  a 15 anos de reclusão. Defesa e acusação apelaram. Superior 
                  Tribunal Militar, Distrito Federal, nega o apelo da Defesa e 
                  dá provimento ao recurso do Ministério Público Militar, condenando 
                  o réu à pena de 25 anos de reclusão e afastando as alegações 
                  de legítima defesa da honra argüídas pela Defesa. Argumentações significativas: 
                  "(...) A defesa, sustentando a tese de que o acusado agiu 
                  em legítima defesa de sua honra, aduziu que, em relação à morte 
                  da sua esposa, por ter sido chamado de ‘corno’, quando em discussão 
                  com a mesma foi tomado por exacerbada emoção eis que passava 
                  por drama moral e social violentíssimo (...). (...) testemunhas presenciais 
                  daquele crime, não confirmam tais agressões verbais (...) (...) as demais testemunhas, 
                  tanto de acusação como de defesa nada aduzem em desabono da 
                  conduta da vítima companheira e, contrariamente, afirmam sobre 
                  o bom relacionamento daquele casal (...) (...) A tese esposada pelo 
                  ilustre Defensor, concernente à legítima defesa da honra não 
                  está configurada nestes autos e, mesmo que estivesse, não excluiria 
                  a ilicitude daquela conduta (...)". Resumo: Duplo homicídio praticado pelo marido que surpreende sua esposa em flagrante 
                  adultério. Tribunal do Júri absolve o réu, acatando a legítima 
                  defesa da honra. O Tribunal de Justiça do Paraná confirmou a 
                  decisão do júri de Apucarana, mas a Procuradoria Geral da Justiça 
                  interpôs recurso especial e o Superior Tribunal de Justiça rejeita 
                  a tese da legítima defesa da honra, por manifestamente contrária 
                  à prova dos autos, e sujeita o réu a novo julgamento. (Informação 
                  quanto ao desfecho posterior deste caso: em segundo julgamento 
                  pelo Tribunal do Júri, foi o réu novamente absolvido pelo acolhimento 
                  da legítima defesa da honra). Argumentações significativas: 
                  "(...) a figura da legítima defesa, tipificada no artigo 
                  25, do Código Penal, apresenta regras inflexíveis e só se efetiva, 
                  quando o fato concreto revela a ação do agente que ‘usando moderadamente 
                  os meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, 
                  a direito seu ou de outrem". Ora, a hipótese dos 
                  autos jamais comportaria reação de quem supondo ofendido em 
                  sua honra, deixa de recorrer aos atos civis da separação e do 
                  divórcio, preferindo abater a mulher, ou o comparsa, ou a ambos, 
                  procedendo de modo absolutamente reprovável, desde que foi ela 
                  que, ao adulterar, não preservou a sua própria honra. (...) Ora, no Brasil não 
                  fazemos uso do direito costumeiro, a pretender justificar a 
                  ação do marido na hipótese dos autos, tão-só, porque assim entendem 
                  os jurados simples pessoas do povo. O direito positivo, ao dispor 
                  sobre o instituto da legítima defesa, delimitou as hipóteses 
                  de seu emprego não sendo elástico ao ponto de se prestar para 
                  cobrir qualquer ação delituosa. (...) (...) Magalhães Noronha, 
                  citando Leon Rabinovicz ‘é orgulho de macho ofendido’ (...). (...) Entre os autores estrangeiros, 
                  vale citar o eminente Jimenez de Asúa (...) ‘no existe esse 
                  honor conyugal. El honor és personal; el honor és próprio. El 
                  hombre que así reacciona, o que sigue esa norma – y muchos han 
                  matado a la mujer porque no habia más remedio para conservar 
                  un falso credito –, ha realizado el acto acaso en un momento 
                  de transtorno mental transitorio, motivado por celos agudissimos; 
                  pero no és possible hablar aqui de defensa personal’. (...) o que temos é 
                  a forma privilegiada (...) Voto vencido: "A norma jurídica há de ser interpretada culturalmente. 
                  É verdade, há de obedecer à coerência do ponto de vista dogmático, 
                  não é possível, porém, esquecer o aspecto valorativo que o tipo 
                  penal encerra (...) alguns autores e até decisões jurisprudenciais 
                  entendem ser possível a legítima defesa da honra quando o titular 
                  desta honra, no momento em que este valor está sendo afetado, 
                  reage a fim de fazer cessar a agressão. Data venia, o 
                  casamento acarreta obrigações recíprocas. Uma delas, a fidelidade 
                  do ponto de vista conjugal (...) (...) Enquanto os juízes 
                  togados se vinculam mais ao aspecto formal, dogmático da norma 
                  jurídica, os jurados, leigos – não são necessários especialistas 
                  em direito – julgam de acordo com as normas da vida, com as 
                  normas culturais, com as exigências históricas de um determinado 
                  instante. Os magistrados ajustam 
                  o homem à lei. Os jurados adaptam a lei ao homem. (...) (...) O aspecto cultural 
                  há de ser interpretado de acordo com o lugar do fato. Se ainda, 
                  neste local, se entende que a honra do marido maculada desta 
                  forma enseja ou autoriza reação violenta, extrema – individualmente 
                  contrasta com meu pensamento – entretanto esse é o entendimento 
                  do júri. (...) Não podemos dizer que 
                  o Tribunal do Júri tenha errado. Podemos dizer que julgou mal. 
                  Ele está manifestando uma cultura brasileira. (...) O entendimento no Brasil 
                  é polêmico. Enquanto Vossa Excelência (o relator) e tantos outros 
                  entendem que a interpretação deve ser meramente dogmática, formal, 
                  há outros, e são os jurados, que procuram fazer interpretação 
                  do ponto de vista da justiça material. De acordo com o artigo 
                  25 essa reação moderada está até na exposição dos motivos de 
                  1940. Não é matematicamente dosada, mas analisada de acordo 
                  com as características da ação e da reação".   Resumo: Homicídio. Julgamento do Tribunal do Júri reconhecendo a legítima 
                  defesa pessoal do réu, sobrevindo condenação por excesso doloso. 
                  Decisão anulada pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal 
                  por entender que cabia ao presidente do Tribunal do Júri prosseguir 
                  com as duas outras séries de quesitação (legítima defesa da 
                  própria honra e legítima defesa da honra dos filhos). O STJ 
                  restabeleceu a decisão do Tribunal do Júri, por entender que, 
                  ao não se prosseguir com a quesitação, não houve cerceamento 
                  de defesa. Contudo, decisão do STF anula a decisão do STJ, restabelecendo 
                  a do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, a fim de que o 
                  réu seja submetido a novo julgamento popular por ter havido 
                  cerceamento de defesa no não- prosseguimento da quesitação. Argumentações significativas: 
                  "Os impetrantes se insurgem contra o não prosseguimento 
                  dos quesitos das outras séries, fundados na expectativa de que 
                  numa ou nas duas séries seguintes os jurados poderiam responder 
                  que não houve o excesso doloso, por se tratar de legítima defesa 
                  da honra: este é o cerne da controvérsia; invocam em favor da 
                  tese o único voto vencido na decisão atacada, (...) na passagem 
                  onde indaga: ‘digamos que os jurados, ao afirmarem a imoderação 
                  hajam dito: não, a conduta da vítima não ensejaria resposta 
                  tão vigorosa mas, poderão entender que, com a defesa 
                  da honra, impunha aquela reação vigorosa."   Resumo: Ré denunciada por homicídio qualificado pelo motivo torpe 
                  (ciúme), contra seu marido, suposto amante de sua própria irmã. 
                  Absolvição sumária pelo reconhecimento da legítima defesa própria. 
                  O Ministério Público interpôs recurso em sentido estrito visando 
                  à pronúncia, nos termos da denúncia. O Tribunal de Justiça, 
                  por unanimidade, deu provimento parcial do recurso, no sentido 
                  de que a ré fosse pronunciada, por homicídio simples e, assim, 
                  submetida a júri popular. Argumentações significativas: 
                  "Segundo a ré, seu relacionamento com a vítima e seu marido 
                  não era dos melhores. Discutiam seguidamente. A ré desconfiava 
                  de relacionamento amoroso entre a vítima e uma irmã da própria 
                  ré". Obs: não se menciona 
                  a honra, é discussão sobre legítima defesa apenas. Resumo: Réu mata suposto amante de sua esposa em razão de meros boatos ou suspeita 
                  de adultério. O Tribunal do Júri aceita a tese de legítima defesa 
                  da honra e o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, descaracterizando-a, 
                  determina que o réu seja submetido a novo júri. Argumentações significativas: 
                  "A defesa postulou perante o plenário do Tribunal do Júri 
                  a tese da legítima defesa da honra, uma vez que a vítima vinha 
                  espalhando em toda cidade de Três Lagoas que o acusado era um 
                  ‘corno’, porque ele vítima vinha mantendo relacionamento amoroso 
                  com a ex-esposa do apelado. (...) tese manifestamente 
                  alheia à realidade processual, porque a situação fática é a 
                  de que ‘Na época dos fatos o réu estava separado da mulher, 
                  embora o tivesse negado, mas afirma que perdera a confiança 
                  nela depois dos comentários a respeito de sua infidelidade consistente 
                  em um caso amoroso que teria tido com a vítima". Resumo: Réu mata companheira com a qual vivera por cerca de 20 anos como se 
                  casados fossem, por tê-la encontrado saindo abraçada de um "bailão" 
                  em companhia de outra pessoa com a qual mantinha relacionamento 
                  amoroso. Julgado pelo Tribunal do Júri foi condenado à pena 
                  de reclusão de 6 anos e oito meses em regime semi-aberto. Irresignado, 
                  apela, argumentando que o entendimento dos senhores jurados 
                  contrariara a prova dos autos e requer seja submetido a novo 
                  julgamento O Tribunal de Justiça do Paraná mantém a condenação 
                  do júri popular. Argumentações significativas: 
                  "Na verdade, incensurável é que, a decisão do Conselho de Sentença, 
                  consentânea com a confissão do réu, reconhecendo o homicídio 
                  privilegiado e rejeitando a tese da legítima defesa, ajusta-se 
                  ao entendimento no sentido de que, o conceito de honra, por 
                  ser eminentemente pessoal, não se coaduna com o ato de infidelidade 
                  da companheira, nem confere ao varão o direito de ceifar-lhe 
                  a vida, ainda que a eclosão da violência, decorrente do descontrole 
                  emocional, possa minorar a reprovabilidade da conduta". Resumo: Marido que, suspeitando da traição da esposa, a mata com um tiro pelas 
                  costas. Pronunciado por homicídio doloso, o réu interpôs recurso 
                  objetivando a sua impronúncia ou alternativamente a desclassificação 
                  para homicídio culposo e, por fim, a absolvição sumária diante 
                  do fato de ter agido em legítima defesa de sua honra, sempre 
                  argumentando que agiu mediante violenta emoção. O Tribunal não 
                  acolheu a tese da defesa, determinando a pronúncia do réu e, 
                  por conseguinte a sua submissão ao julgamento pelo Tribunal 
                  do Júri. Argumentações significativas: 
                  "Controvertida é a possibilidade da legítima defesa da honra, 
                  inegavelmente, o sentido da dignidade pessoal, a boa fama, a 
                  honra, enfim, são direitos que podem ser defendidos, mas a repulsa 
                  do agredido há de ater-se sempre aos limites impostos pelo artigo 
                  25". Resumo: Homicídio duplamente qualificado. O crime teria ocorrido porque a namorada 
                  do réu estaria mantendo relacionamento amoroso com a vítima. 
                  Não ocorreu de improviso, pois 
                  avisado de antemão, o réu teve tempo de fazer planos. Furtou 
                  uma faca e foi à procura do desafeto, matando-o. Condenado pelo 
                  Tribunal do Júri, foi apenado pelo juiz em 15 anos e seis meses. 
                  Apelou, alegando decisão manifestamente contrária à prova dos 
                  autos, sustentando que não houve dolo de matar e que agiu em 
                  legítima defesa da honra ou pelo menos por relevante valor moral. 
                  O Tribunal de Justiça do Distrito Federal reconheceu que a pena 
                  foi exacerbada, fixando-a em 12 anos de reclusão. Argumentações significativas: 
                  "A honra, como todo bem jurídico é tutelada pelo Direito. Pode 
                  seu titular, diante de agressão injusta a ela, atual ou iminente, 
                  valer-se dos meios necessários à sua salvaguarda. Não tenho, 
                  como muitos, o preconceito de afastar, de plano, a possibilidade 
                  de o agredido em sua honra agir na defesa desse direito. Principalmente 
                  quando a acusação pretende sua exclusão na ocorrência de homícidio 
                  (...). Dizer que não pode o Conselho de Sentença do Tribunal 
                  do Júri absolver réus com esse fundamento é desprezar a soberania 
                  de seus veredictos, a ele outorgada pelo Constituinte (...)".   Resumo: Marido mata esposa que comete adultério, desferindo-lhe cinco tiros. 
                  Submetido ao Tribunal de Júri que rejeitou a legítima defesa 
                  da honra, o réu foi condenado. A defesa apelou, mas o Tribunal 
                  de Justiça de Alagoas manteve a decisão do júri popular. Argumentações significativas: 
                  "A perda da honra é do cônjuge adúltero, não age em legítima 
                  defesa o marido que atira em sua esposa infiel, pois quem perde 
                  a honra é o cônjuge adúltero e não o inocente". Considerações críticas Das 15 decisões a que 
                  tivemos acesso, 11 delas, portanto a grande maioria, não acolhem 
                  a legítima defesa da honra. Mas, vale lembrar que, destas 11, 
                  em 5 o Tribunal do Júri havia absolvido o réu embasando-se na 
                  tese da legítima defesa da honra. Observe-se, ainda, 
                  que mesmo quando tribunais hierarquicamente superiores (Tribunais 
                  de Justiça, Superior Tribunal de Justiça, Superior Tribunal 
                  Militar e Supremo Tribunal Federal) tenham entendimento diverso 
                  ao do Tribunal do Júri, cabe a este último, pela definição constitucional 
                  da soberania de seus veredictos, realizar novo julgamento, dando 
                  a última palavra. Desta forma, muitas 
                  vezes, como no caso 8, apesar da manifestação do Superior Tribunal 
                  de Justiça não acatar a tese da legítima defesa da honra, o 
                  réu, submetido a novo júri, em Apucarana, Paraná, foi absolvido. Destacamos no caso 
                  5 referência ao parecer da Procuradoria Geral da Justiça (Ministério 
                  Público), por refletir significativa tensão existente entre 
                  a atuação dos Tribunais do Júri e a atuação dos Tribunais superiores 
                  hierarquicamente. Importa dizer que há 
                  um debate nacional sobre a legitimidade ou não da existência 
                  desse tipo de tribunal popular. Alguns, reconhecendo sua relevância 
                  e vendo-o como manifestação de um profundo espírito democrático. 
                  Outros, reconhecendo suas limitações face ao despreparo jurídico 
                  de seus componentes. No caso 8, o voto vencido 
                  é exemplar. O Ministro que o proferiu, embora tenha expressado 
                  que, pessoalmente, não aceita a tese da legítima defesa da honra, 
                  por contrastar com seu pensamento, aceitou sua aplicação pelo 
                  Tribunal do Júri, por entender que, além de possuir um poder 
                  soberano para julgar o mérito da causa, este tribunal popular 
                  manifesta a cultura do país. Em seu entender, os jurados, leigos, 
                  julgam de acordo com as normas da vida, com as normas culturais. Como foi visto, a tendência 
                  atual do direito é no sentido de que cabe ir além do direito 
                  positivo; sempre que assim agindo, operadores do direito contribuem 
                  para a garantia e resguardo maior dos direitos das pessoas e 
                  nunca para justificar agressão a eles. No caso 8, o voto vencido 
                  do senhor ministro alberga uma reflexão que vai contra toda 
                  a construção filosófica jurídica moderna e contemporânea. Ao 
                  destacar os aspectos sociais e culturais da decisão absolutória 
                  do Tribunal do Júri, e inclusive afirmar que "Os magistrados 
                  ajustam o homem à lei. Os jurados, a lei ao homem", inequivocamente 
                  manifesta um juízo de valor. E, juízo de valor positivo com 
                  referência à utilização da tese da legítima defesa da honra 
                  como excludente de ilicitude, nos casos de homicídio por infidelidade 
                  da mulher. Queremos frisar que, ao nosso ver, esse entendimento 
                  fere o esforço civilizatório do direito, muito especialmente 
                  deste século, pois trata-se de construção teórica justificatória 
                  da mais grave violência de gênero: o assassinato de mulheres 
                  por homens. Como não temos, por 
                  enquanto, informações a respeito das decisões dos Tribunais 
                  de Júri do país que não receberam recursos, e como esses acórdãos 
                  não representam a totalidade dos acórdãos proferidos no país 
                  nos últimos anos, não podemos nem de longe quantificar ou mesmo 
                  estimar sua frequência. Mas podemos afirmar que a legítima defesa 
                  da honra, avocada para absolver homens assassinos de suas respectivas 
                  mulheres ou ex-mulheres, é, incontestavelmente, ainda, uma prática 
                  cultural, por vezes presente em nossos tribunais, como se 
                  pode verificar através do presente estudo. Essa prática revela 
                  a existência de preconceitos e estereótipos que necessitam ser 
                  enfrentados criticamente. A comunidade internacional 
                  reunida na Organização das Nações Unidas já manifestou, por 
                  mais de uma vez – há vários documentos a respeito – sua não-aceitação 
                  e mesmo repúdio às práticas culturais desrespeitadoras 
                  dos direitos humanos das mulheres. A IV Conferência Mundial 
                  sobre a Mulher, realizada em Beijing, 1995, em sua Plataforma 
                  de Ação, item 224, estabeleceu que a violência contra a mulher 
                  constitui ao mesmo tempo uma violação aos seus direitos humanos 
                  e liberdades fundamentais e um óbice e impedimento a que desfrute 
                  desse direito. Ressalta a violência contra a mulher derivada 
                  dos preconceitos culturais e declara que é preciso proibir 
                  e eliminar todo aspecto nocivo de certas práticas tradicionais, 
                  habituais ou modernas, que violam os direitos da mulher. As considerações teóricas 
                  e os estudos empíricos apresentados neste artigo revelam as 
                  dificuldades da efetivação dos marcos jurídicos internacionais 
                  de proteção aos direitos humanos da mulher; revelam também as 
                  dificuldades da efetivação do marco jurídico constitucional 
                  brasileiro nessa proteção. Como vimos, a legislação infraconstitucional 
                  brasileira – civil e penal – não se coaduna aos princípios de 
                  igualdade e equidade estabelecidos pela Constituição Federal 
                  de 1988. E, ainda, muitas vezes, tribunais brasileiros, na aplicação 
                  da lei penal em casos de estupro e de legítima defesa da honra, 
                  reproduzindo preconceitos e estereótipos sociais, desrespeitam 
                  a cidadania e os direitos humanos das mulheres. _______ * Silvia Pimentel 
                  – Professora Doutora em Filosofia do Direito da Pontifícia Universidade 
                  Católica de São Paulo (PUC/SP); coordenadora do CLADEM – Brasil, 
                  seção nacional do Comitê Latino-americano e do Caribe para a 
                  Defesa dos Direitos da Mulher; membro do conselho diretor do 
                  IPÊ – Instituto para Promoção da Equidade e da CCR – Comissão 
                  de Cidadania e Reprodução e do conselho consultivo do CFEMEA 
                  – Centro Feminista de Estudos e Assessoria. Valéria Pandjiarjian 
                  – Advogada e pesquisadora formada pela PUC/SP; membro integrante 
                  do CLADEM – Brasil e do IPÊ, organizações não-governamentais 
                  através das quais desenvolve trabalhos de investigação, consultoria 
                  e treinamento em direito internacional dos direitos humanos, 
                  com ênfase para questões de gênero e violência. 1. Ver J. A. Lindgren 
                  Alves, Os direitos humanos como tema global, São Paulo: 
                  Perspectiva / Fundação Alexandre Gusmão, 1994, p. 130, (Coleção 
                  Estudos). 2. Ver IV Conferência 
                  Mundial sobre a Mulher – Beijing, China-1995, Nações Unidas, 
                  CNDM e Editora Fiocruz, 1996, p. 100-102, alíneas d, k, l 
                  e n. 3. Esse trabalho de 
                  investigação, levado a cabo durante ano e meio (entre 1996-1997), 
                  foi promovido pelo IPÊ – Instituto para Promoção da Eqüidade 
                  em colaboração com o CLADEM-Brasil, seção na-cional do Comitê 
                  Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher, 
                  com o apoio e financiamento da FAPESP – Fundação de Amparo à 
                  Pesquisa do Estado de São Paulo e da Fundação FORD. 4. Aqui, as autoras 
                  estão se referindo ao estudo de T. de Laurentis, Preface e The 
                  technology of gender, in Lauretis, Technologies of Gender, 
                  Blomington: Indiana University Press, 1987, p. ix-xi e 1-30. 5. Ver Tomasselli 
                  & Porter (1992:220) 6. Vale ressaltar 
                  que os indicativos das conclusões de conteúdo apresentadas não 
                  devem ser concebidos como generalizações acerca de processos 
                  judiciais e acórdãos de estupro, mas sim enquanto resultantes 
                  de análise do universo limitado de processos e acórdãos coletados 
                  nas 5 regiões do país. 7. Compete ao 
                  Tribunal do Júri – composto por 7 membros da comunidade – o 
                  julgamento dos crimes dolosos contra a vida, consumados ou tentados. 
                  São garantidos constitucionalmente a plenitude de defesa, o 
                  sigilo das votações e a soberania dos veredictos. Para maiores 
                  informações, consulte-se a Constituição Federal em seu artigo 
                  5º, XXXVIII e Código de Processo Penal, em seus artigos 406 
                  e seguintes. |